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Harold Bloom, foi com Shakespeare que aprendemos a nos reconhecer como
dominados por uma profundidade obscura e insondável. Se a noção moderna
de interioridade psicológica encontra suas raízes nas reflexões de Santo
Agostinho, foi com Montaigne que a prática da introspecção se abriu para o
leitor comum. Com os seus Ensaios surge um tipo de auto-reflexão voltado
não para a busca do universal inscrito no homem, mas para a exploração da
natureza fragmentária e contingente da condição humana, revelada na
particularidade de cada experiência individual. A escrita de si, que Montaigne
inaugurou, transformou a literatura num imenso laboratório no qual as formas
subjetivas modernas ganharam contorno e visibilidade (Khel 2001). Depois
dele, Goethe (de quem La Rochefoucauld disse que ensinou seus
contemporâneos a se apaixonar), Schiller, Flaubert, Dostoiévski, e outros
tantos que Freud leu e admirou, fizeram da ficção literária um campo de
identificações, uma fonte de roteiros de subjetivação para o qual se voltaram
os indivíduos modernos.
O terceiro elemento, e o mais importante para os propósitos desta discussão, é
a tradição da terapêutica médica e o surgimento, na passagem do século XVIII
para o XIX, da clínica moderna. Segundo a leitura clássica de Foucault (1994)
a invenção da clínica médica acarretou uma novidade revolucionária: a noção
de um saber sobre o individual e uma prática voltada para a experiência de
sofrimento do indivíduo. Desde os gregos conhecer significava apreender
universalidades. A ruptura conceitual promovida pela anátomo-clínica
modificou profundamente o olhar médico sobre o patológico e implicou o
desaparecimento da chamada medicina das espécies (voltada para o estudo das
doenças entendidas como realidades em si mesmas, independentes de um
organismo). No seu lugar surge o que conhecemos como a clínica moderna,
caracterizada fundamentalmente pelo valor central concedido à singularidade
do pathos individual. Pela primeira vez na história da medicina ocidental o
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Uma das noções que vem, nos últimos quinze anos, ganhando importância na
análise das novas formas de organização da experiência individual,
estruturação das relações sociais e controle político é a noção de risco (Beck
1992; Castel 1987, 1991; Giddens 1991). Giddens chama a atenção para o fato
de que na sociedade contemporânea, os indivíduos – livres dos
constrangimentos e repertórios tradicionais – são instados a fazer escolhas em
praticamente todos os aspectos de sua existência. Ideologia, identidade,
aparência, padrão moral de conduta, tudo parece depender de decisão
individual, já que as antigas referências à tradição, classe, família, cultura
local etc, tiveram sua legitimidade questionada e seu poder normativo
esvaziado.
Esta “liberdade de escolha”, porém, precisa ser sustentada de algum modo por
um ambiente que possibilite um sentimento de confiança mínimo (em
sistemas abstratos como o monetário, ou em entidades concretas como os
especialistas, p. ex.) que permita ao indivíduo exorcisar a incerteza que
necessariamente o acompanha e a angústia que pode facilmente deixá-lo em
pânico, ou paralisado. Esta expectativa, no entanto, esbarra facilmente nas
próprias premissas sobre as quais o modelo político-econômico atual se ergue,
ou seja: de um lado o desmantelamento das redes de segurança fornecidos
pelo Estado; de outro, as exigências de competitividade acirrada, o culto à
flexibilidade, a celebração da performance, a ideologia da prosperidade, a
exaltação da competência pessoal, etc. Os indivíduos de uma maneira geral
são instados a enfrentar riscos, a se transformarem em “empresários de si
mesmo”, e a contar com sua própria capacidade de “empowerment” (Sennett
1999). Não é de espantar que este culto à autonomia e à performance acabe
produzindo sujeitos dependentes de todo tipo de ajuda especializada. Trata-se
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A psicanálise tem sido criticada como uma espécie de ícone de uma cultura
que ficou para trás, sepultada pelas ciências da mente e pela sociedade “pós-
humana”. O antifreudismo é uma onda que ainda está crescendo. Mas seu
destino não está nas mãos dos ideólogos do mercado ou da ciência. O que vai
determinar o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será
sua capacidade de atualizar aquilo que está na origem de sua clínica: a
sustentação de um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência
humana sob o crivo da interrogação.
Bibliografia
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Zahar Editor. Beck, U. (1992) Risk society: Towards a New
Modernity. London: Sage. Birman, J. (1999)Mal-estar na atualidade: a
psicanálise e as novas formas de subjetivação.Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
Castel, R. (1987) A gestão dos riscos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
(1991) “From dangerousnes to risk” in Burchell, G., Gordon, C e Miller, P.
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Harvester Wheatsheaf. Costa, J. F. (1994) A ética e o espelho da cultura. Rio
de Janeiro: Rocco.
(1999) Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco. Dumont,
L. (1993) O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna.Rio de Janeiro: Rocco.
Ehremberg, (1995) A L’individu incertain. Paris: Calman-Lévy (1998) La
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savoir: Paris: Gallimard.
(1994) Nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Giddens,
A (1991) Modernity and Self-Identity: Self and Society in Late Modern
Age.Stanford: Stanford University Press.
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