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O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica 1


Benilton Bezerra Jr.2

O ocaso da interioridade! Na chamada interiorização (sec. XVIII-XIX) cresceu o “mundo


interior” (que era originalmente delgado como que entre duas membranas) e que foi se
expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura até meados do século
XX. Hoje é incontornável pesquisar e pensar considerando o seu fim, ocaso da interioridade e
suas ressonâncias clínicas. O escrito abaixo trata dessa mutação  atual

Começo com uma ideia, a ser discutida: no cenário atual presenciamos


mudanças tanto no plano das realidades socio-político-econômicas quanto nos
modos de subjetivação que parecem indicar transformações no que se
constituiu como solo para o que chamamos de clínica. Se esta impressão é
correta então vale a pena pesar as consequências dessas mudanças para a
psicanálise, já que foi desse solo que também emergiu a clínica psicanalítica.
Vou apresentar minhas observações em três blocos: primeiro abordarei
rapidamente algumas das premissas da clínica médica moderna, à qual a
clínica psicanalítica está historicamente referida. Em seguida farei alusão a
alguns dos elementos que permitem pensar num deslocamento atual em
relação a essas premissas. Entre elas a importância crescente da noção
de risco, o aparecimento de uma biossociabilidade, o processo de
esvaziamento da dimensão da intimidade e exteriorização da vida subjetiva, e
a reconfiguração das fronteiras entre o normal e o patológico, com
transformação da clínica em técnica. Finalmente tentarei sugerir pontos cuja
discussão, creio, deveria ser estimulada entre nós.
I. Como se sabe, a clínica – entendida como um dispositivo voltado para o
exame da experiência de sofrimento de um indivíduo – não é uma invenção da
psicanálise. A genialidade de Freud está na alquimia que ele produziu a partir
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de certos elementos da cultura, e que resultou na criação de uma teoria


original do psiquismo e um modo inédito de lidar com o pathos psíquico.
O primeiro elemento importante é a tradição filosófica ocidental, que desde os
gregos se dedicou a explorar a natureza dos estados da alma humana e as
causas do sofrimento. A relação do pensamento freudiano com a filosofia tem,
é fato, uma dupla face, de aproximação e distância. De um lado a influência
dos filósofos mais caros a Freud pode ser detectada em alguns dos principais
conceitos de sua teoria e mesmo no seu estilo, francamente (malgré lui) mais
próximo da liberdade especulativa dos amantes da sabedoria do que da
correção metodológica dos produtores de ciência. Por outro lado Freud, ao
afirmar a singularidade da psicanálise, frequentemente o fez contrastandoa
com a perspectiva filosófica. Certo ou errado, não é o caso de discutir agora,
Freud via na filosofia uma ilusão que ele recusava: a de resolver, por meio de
sistematizações unificadoras, a complexidade e o caráter trágico da
experiência humana. A filosofia, aos seus olhos, era presa de uma antiga
ilusão – a onipotência do pensamento – que a psicanálise ajudaria a exorcisar. 3
O segundo elemento é o universo da arte. Os textos freudianos estão repletos
de referências a diversos artistas e obras de arte, e eles comparecem não
apenas como ilustração para suas teorias. De modo especial, a literatura, tal
como se constituiu na modernidade ocidental, está nas origens da psicanálise.
Freud sempre reconheceu a precedência histórica dos poetas na capacidade de
mergulhar nas profundezas da alma humana e de lá extrair conhecimento, e
não apenas fruição estética. Mas o débito da psicanálise para com a literatura
vai além disso e se encontra também no fato de que, a partir do século XVI, a
literatura se constituiu progressivamente num dos mais poderosos
instrumentos de criação do universo imaginário que ajudou a moldar a
sensibilidade e a subjetividade modernas. Édipo e os mitos gregos ilustram,
para Freud, facetas do humano em sua face universal. No entanto, como disse
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Harold Bloom, foi com Shakespeare que aprendemos a nos reconhecer como
dominados por uma profundidade obscura e insondável. Se a noção moderna
de interioridade psicológica encontra suas raízes nas reflexões de Santo
Agostinho, foi com Montaigne que a prática da introspecção se abriu para o
leitor comum. Com os seus Ensaios surge um tipo de auto-reflexão voltado
não para a busca do universal inscrito no homem, mas para a exploração da
natureza fragmentária e contingente da condição humana, revelada na
particularidade de cada experiência individual. A escrita de si, que Montaigne
inaugurou, transformou a literatura num imenso laboratório no qual as formas
subjetivas modernas ganharam contorno e visibilidade (Khel 2001). Depois
dele, Goethe (de quem La Rochefoucauld disse que ensinou seus
contemporâneos a se apaixonar), Schiller, Flaubert, Dostoiévski, e outros
tantos que Freud leu e admirou, fizeram da ficção literária um campo de
identificações, uma fonte de roteiros de subjetivação para o qual se voltaram
os indivíduos modernos.
O terceiro elemento, e o mais importante para os propósitos desta discussão, é
a tradição da terapêutica médica e o surgimento, na passagem do século XVIII
para o XIX, da clínica moderna. Segundo a leitura clássica de Foucault (1994)
a invenção da clínica médica acarretou uma novidade revolucionária: a noção
de um saber sobre o individual e uma prática voltada para a experiência de
sofrimento do indivíduo. Desde os gregos conhecer significava apreender
universalidades. A ruptura conceitual promovida pela anátomo-clínica
modificou profundamente o olhar médico sobre o patológico e implicou o
desaparecimento da chamada medicina das espécies (voltada para o estudo das
doenças entendidas como realidades em si mesmas, independentes de um
organismo). No seu lugar surge o que conhecemos como a clínica moderna,
caracterizada fundamentalmente pelo valor central concedido à singularidade
do pathos individual. Pela primeira vez na história da medicina ocidental o
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doente, e não a doença, ocupam o foco central. O indivíduo se torna objeto de


ciência. Os efeitos deste deslocamento ultrapassam em muito os limites da
ciência médica: como disse Foucault, levantada a velha proibição aristotélica
“poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o indivíduo um discurso de
estrutura científica” (1994: XIII). Assim, a clínica médica está presente nas
origens da clínica psicanalítica de duas maneiras. Em primeiro lugar porque
participa da constituição dos a priori epistemológicos sobre os quais irão se
fundar as chamadas ciências do homem, a psicologia e a psicanálise entre elas.
Em segundo, pela criação de um dispositivo – a relação médico-paciente –
voltado para o exame e o registro da experiência singular individual, e a
intervenção sobre ela.
Estes três elementos estão, é claro, articulados ao processo mais amplo de
constituição do individualismo como configuração central de valores nas
sociedades capitalistas ocidentais (Dumont 1993). Nesse processo – que inclui
o racionalismo universalista dos iluministas e o expressivismo singularizante
dos românticos – emergiu uma forma subjetiva particular, caracterizada pela
interioridade psicológica, pela construção de identidades fundadas em
atributos e sentimentos privados, pela problematização e exploração do
repertório afetivo íntimo. O homo psychologicus aprendeu a organizar sua
experiência em torno de um eixo situado no centro de sua vida interior. Nas
sociedades tradicionais as identidades e papeis sociais eram atribuídos por
herança, conforme laços de pertencimento definidos ao nascer. Ser alguém
significava fazer parte de um todo. Na sociedade moderna ser alguém
significa ser um indivíduo, ou seja, conceber a sua existência como uma
realização pessoal, ao longo da vida. Se antes as determinações que regiam a
vida se apresentam claras e externas à experiência individual, agora elas se
tornam enigmáticas e inscritas na vida interior. A norma e o desvio – antes
visíveis na exterioridade das regras instituídos – são implantados no terreno
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movediço e instável de seu universo interno 2. No choque com as exigências


da vida social burguesa, desejos e pulsões reprimidos produzem respostas
sintomáticas que apresentam o sofrimento psíquico como expressão de uma
interioridade dilacerada. Também no plano social, o desmonte das hierarquias
tradicionais naturalizadas põe em choque os interesses dos diversos grupos
sociais, que passam a legitimamente disputar hegemonia política. Quer no
plano da cultura, quer no plano da individualidade a estabilidade e a certeza
dão lugar ao questionamento. O centro normativo da formação subjetiva
moderna passa a ser o conflito.
II. Este quadro histórico, no entanto, sofreu imensas transformações e hoje é
bastante diferente daquele que viu a clínica psicanalítica nascer. As
características do cenário social atual e seu impacto sobre o modo pelo qual os
indivíduos configuram sua experiência de sujeitos tem sido objeto de intensa
discussão não só entre psicanalistas (Birman 1999; Costa 1994, 1999;
Roudinesco, 1999) como também filósofos, historiadores e cientistas sociais
(Bauman 1997; Ehrenberg, 1995, 1998; Heller 1998; Lasch 1986). Não se
trata, é claro, de afirmar de maneira mecanicista que mudanças objetivas no
mundo, como a implantação do projeto neoliberal na economia ou o
surgimento de tecnologias de comunicação ou de intervenção biológica
automaticamente causem mudanças nas formas de subjetivação, produzindo
como consequência sujeitos diferentes. A maneira como a realidade político-
econômica de uma sociedade afeta a subjetividade e o mundo psíquico dos
indivíduos é mais complexa e indireta, e se dá fundamentalmente por meio da
criação de certos ideais, da valorização de modelos de pensamento, da
propagação de certos repertórios de conduta, da difusão de metáforas que se
incorporam ao senso comum, enfim pela criação de novos jogos de
linguagem, repertório de sentidos ou jogos de verdade que dão consistência ao
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imaginário de uma época, imaginário através do qual o mundo, a existência e


a experiência pessoal ganham consistência e significação.

Uma das noções que vem, nos últimos quinze anos, ganhando importância na
análise das novas formas de organização da experiência individual,
estruturação das relações sociais e controle político é a noção de risco (Beck
1992; Castel 1987, 1991; Giddens 1991). Giddens chama a atenção para o fato
de que na sociedade contemporânea, os indivíduos – livres dos
constrangimentos e repertórios tradicionais – são instados a fazer escolhas em
praticamente todos os aspectos de sua existência. Ideologia, identidade,
aparência, padrão moral de conduta, tudo parece depender de decisão
individual, já que as antigas referências à tradição, classe, família, cultura
local etc, tiveram sua legitimidade questionada e seu poder normativo
esvaziado.
Esta “liberdade de escolha”, porém, precisa ser sustentada de algum modo por
um ambiente que possibilite um sentimento de confiança mínimo (em
sistemas abstratos como o monetário, ou em entidades concretas como os
especialistas, p. ex.) que permita ao indivíduo exorcisar a incerteza que
necessariamente o acompanha e a angústia que pode facilmente deixá-lo em
pânico, ou paralisado. Esta expectativa, no entanto, esbarra facilmente nas
próprias premissas sobre as quais o modelo político-econômico atual se ergue,
ou seja: de um lado o desmantelamento das redes de segurança fornecidos
pelo Estado; de outro, as exigências de competitividade acirrada, o culto à
flexibilidade, a celebração da performance, a ideologia da prosperidade, a
exaltação da competência pessoal, etc. Os indivíduos de uma maneira geral
são instados a enfrentar riscos, a se transformarem em “empresários de si
mesmo”, e a contar com sua própria capacidade de “empowerment” (Sennett
1999). Não é de espantar que este culto à autonomia e à performance acabe
produzindo sujeitos dependentes de todo tipo de ajuda especializada. Trata-se
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paradoxalmente, como diz Ehrenberg (1995), de uma autonomia assistida,


fundada num processo infinito de auto-exame, auto-regulação e auto-
aprimoramento, e numa demanda incessante de bens e serviços de apoio.

Ao lado disto ocorre um deslocamento importante nas novas estratégias de


intervenção na saúde pública, caracterizado pelo abandono progressivo do
ideário – até há pouco inquestionado – da saúde como dever do Estado e
direito dos cidadãos, e a adoção de um quadro ideológico no qual esta
responsabilidade é transferida para os indivíduos. Propaga-se a crença de que
o indivíduo pode e deve ser capaz não só de evitar doenças mas sobretudo
gerenciar os riscos à sua saúde, minimizando de forma consciente a
possibilidade de patologias e otimizando seus próprios recursos. A saúde
exibida como espetáculo é a prova que o sujeito dá do seu direito ao
reconhecimento pessoal e social. É a consigna do chamado “healthism”, uma
ideologia que combina um estilo de vida hedonista (maximização de prazeres
e evitação de desprazeres) com uma obsessiva preocupação com práticas
ascéticas cujo objetivo – longe de buscar excelência moral, elevação espiritual
ou determinação política – é otimizar a vida pelo cuidado com aparência de
saúde, beleza e fitness, atendendo assim ao que parece ser a imagem do sujeito
ideal atual.
Rabinow (1999) cunhou a expressão biossociabilidade para aludir à forma de
estruturação das relações entre os sujeitos que se cria neste contexto. Sua
marca principal é a criação de novos critérios de mérito e reconhecimento
fundados regras ligadas a práticas de auto-vigilância fisiológica, regimes de
ocupação do tempo e ideais de performance física. Este tipo de sociabilidade
resulta numa hierarquização moral de atributos físicos Comportar-se de modo
a exibir uma imagem saudável significa apresentar-se a si e aos demais como
um sujeito independente, responsável, confiável, dotado de vontade e auto-
estima. Recusar este imperativo ou simplesmente deixar de privilegiá-lo em
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relação a outros é expor-se à reprovação moral e ao sentimento de desvio,


insuficiência pessoal ou fracasso existencial.
O que interessa aqui sublinhar é o impacto que estas regras tem sobre novas
novas técnicas de si, novos jogos de verdade, novas regras de construção das
narrativas do eu, que organizam uma subjetividade fortemente ancorada (ao
contrário da subjetividade intimista do homo psychologicus) na exterioridade
visível da imagem corporal e no escrutínio e fruição das sensações físicas.
Novas formas de construção identitária– bio-identidades – são fabricadas
tendo como base não num repertório de sentimentos, crenças ou filiação a
horizontes supra-individuais, mas em função de itens ligados à natureza do
organismo individual.
Dois elementos da cultura atual concorrem para reforçar essa tendência. Um é
a crise dos valores e metanarrativas tradicionais, de natureza religiosa, política
ou histórica. Esta crise abriu espaço para a hegemonia da ciência como
discurso totalizante, capaz de fornecer não só explicação para os fatos do
mundo mas também – e esta é a novidade – significação para os
acontecimentos da existência. O outro é a verdadeira explosão tecnológica que
vem caucionar o movimento anterior. As chamadas tecnologias cognitivas, no
campo da informática e da computação, têm de fato transformado a realidade
em que vivemos e redesenhado nossa visão do mundo. Basta tomar o exemplo
da internet para verificar como nossa percepção de espaço se modificou, com
a criação de um lugar virtual no qual laços subjetivos intensos proliferam de
uma maneira que era impensável há poucos anos. Mas é no campo das
biotecnologias que o impacto é mais profundo. Quando Canguilhem
escreveuO normal e o patológico, em 1943, a vida ainda se apresentava como
algo para além das possibilidades humanas de descrição objetiva ou
intervenção redirecionadora. Não podíamos nos imaginar decifrando seus
mistérios, quebrando os seus códigos. Hoje estas expressões tornaram-se
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comuns, e em grande parte é a capacidade da ciência surpreender os


contemporâneos com este tipo de conquista que explica o fato de que o mito
da cientificidade desapropriou outros terrenos de significação, e tomou para si
quase o monopólio da validação ideológica.
A hegemonia do mito científico como fonte de sentido invade o modo como
os indivíduos se apropriam de sua experiência subjetiva. Por exemplo: a
difusão, no imaginário social, de explicações fisicalistas do funcionamento da
mente e do sofrimento psíquico estimula o privilégio concedido à dimensão
biológica da vida subjetiva em detrimento da psicológica ou intersubjetiva. No
vocabulário do cotidiano palavras comuns e despidas de conotação médica ou
científica como “tristeza”, “desencanto” ou mesmo “angústia” cedem
rapidamente lugar a expressões como “depressão” ou “distimia”, ou síndrome
do pânico” supostamente mais precisas ou objetivas. O engajamento dos
sujeitos neste roteiro de auto-descrição baseado no léxico médico
retroalimenta, é claro, sua dependência em relação aos especialistas do bem
estar (médicos, indústria farmacêutica, etc), mas o mais importante, creio, é
que intensifica o processo de “somatização” da experiência subjetiva e o
esvaziamento da relevância da esfera da intimidade e do mundo privado. Não
é só que o privado deixe de se constituir num polo privilegiado de
estruturação da vida subjetiva (que, em contraste com o mundo público,
preservava para o sujeito um espaço de segredo, inviolabilidade e
singularização). Faz parte das regras do sucesso conseguir tornar-se visível.
Na sociedade do espetáculo o anonimato não tem valor positivo. O
surpreendente despudor com que se aceita exibir intimidades só indica o
quanto é a própria privacidade, ou os contornos do que sejam as esferas do
público e do privado que estão desmontados.

O que desejo, porém, sublinhar neste ponto é a paulatina reconfiguração dos


critérios de definição das experiências de sofrimento psíquico. Aos poucos
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modificam-se os parâmetros do normal e do patológico no campo da vida


subjetiva. A crescente incorporação de vocabulários fisicalistas na descrição
dos sentimentos e dos afetos, e a força persuasiva do cientificismo médico,
aliados ao culto da performance e da imagem, se infiltram no modo como
concebemos o que seja transtorno ou anormalidade. Se na cultura do
psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito
interior, ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as regras
rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das
sensações e do espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da
performance física ou mental que falha, muito mais do que numa interioridade
enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos prevalentes
parecem atestar isso: os fenômenos aditivos (incapacidade de restringir ou
adiar a obtenção de satisfação, que se torna compulsiva seja via drogas ilícitas,
medicamentos, consumo, ginástica, sexo, etc), transtornos vinculados à
imagem ou à experiência do corpo (bulimias, anorexias, ataques de pânico),
depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação, empenho).

Nestes quadros o mal-estar tende a ser experimentado menos como


idiossincracia enigmática do que como expressão de incompetência,
insuficiência ou disfunção. O primeiro tipo de experiência solicita
interrogação, interpretação, deciframento e reposicionamento subjetivo. O
segundo demanda explicação e intervenção corretiva. O processo de
medicalização de praticamente todos os aspectos da vida chega a tornar
plausível a crença de que toda insatisfação ou mal-estar é indicação de um
desvio, e como tal deve ser suprimido. Transformada em ideologia, a saúde
física ou mental é extraída do campo das interrogações filosóficas e políticas
acerca da “boa vida”, para ingressar na esfera das habilidades e competências
a serem demonstradas no mercado da subjetividade.
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Com as novas tecnologias biológicas e cibernéticas começa-se a aspirar a uma


“ética indolor” (Lipovetsky 1994) na qual o sofrimento psíquico passa a ser
considerado como um limite a ser retirado de nosso horizonte, assim como
fazemos hoje com a dor física, para a qual nossas sociedades não reservam
mais valor moral algum 3. Ao contrário do sujeito freudiano cujo sentimento
de liberdade e autonomia pressupunha a capacidade de internalizar proibições
e experimentar o conflito entre suas aspirações e idiossincrasias, e os
obstáculos à sua realização, o sujeito atual, “preocupado em retirar de si a
essência de todo conflito”(Roudinesco1999:19) é levado a crer que o bem-
estar é seu dever maior, e que a experiência de sofrimento ou de mal-estar é
sinal de falência em suas obrigações existenciais.
III.Quando comparamos o quadro atual ao cenário da invenção da clínica
psicanalítica não podemos deixar de reconhecer mudanças: antes, uma
concepção teórica e uma experiência de sujeito marcada pela forte presença
normativa de uma interioridade conflituada, pelo exercício de uma
sensibilidade psicológica acentuada (a capacidade de descrever em termos
sentimentais e afetivos as vicissitudes da vida), pela valorização de uma
atitude interpretativa diante dos problemas pessoais, pela busca de um sentido
singular para a própria existência, e assim por diante.
No presente , ao contrário, a presença crescente de uma subjetividade
exteriormente centrada, avessa à experiência de conflito interno, esvaziada em
sua dimensão privada idiossincrática, e mergulhada numa cultura cientificista
que privilegia a neuroquímica do cérebro em detrimento de crenças, desejos e
afetos. A clínica médica, que participou da constituição do indivíduo moderno
e de sua experiência de singularidade, vem mudando sua orientação: ela
pretende ser cada vez mais “científica”, o que significa basear-se em
evidências estatísticas, imagens computadorizadas e dados de laboratório,
relegando a um segundo plano a singularidade
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do caso, e a subjetividade do doente. Ocupada com os riscos mais do que


apenas com os eventos patológicos, ela tende a dissolver seu objeto e seus
objetivos privilegiados (sai o indivíduo, entram as práticas e condições de
risco; saem a prevenção e tratamento, entram a antecipação e a produção de
saúde). Ao contrário do que disse René Leriche, a saúde não é mais hoje “a
vida no silêncio dos órgãos”: ela é um espetáculo estridente na superfície da
imagem corporal. A patologia que já foi compreendida e vivida como
transgressão, ruptura ou desafio é experimentada como disfunção e desvio,
assim como a clínica, que já foi ars curandi, transforma-se, sob a obrigação de
cientificidade, em técnica de correção e modelagem.
Assim, é possível perceber na hegemonia da ideologia científica, na
espetacularização da vida social e na tecnificação da medicina, a indicação de
um processo de deslocamento importante no que chamamos – ainda que de
maneira imprecisa e esquemática – de solo tradicional da clínica. Isto nos leva
a duas direções. Em primeiro lugar, vale a pena interrogar nossa compreensão
habitual das figuras psicopatológicas tradicionais. Não se pode analisar, por
exemplo, a expansão impressionante do consumo de drogas e das adições em
geral sem atentar para os efeitos de um ambiente social incapaz de oferecer
uma experiência de reasseguramento facilitador de um sentimento espontâneo
de continuidade da existência. As drogas pesadas ainda podem ser vividas
como propiciadoras de experiência de transgressão, mas para a maioria
absoluta dos adictos hoje em dia, a adição representa outra coisa. Bauman
chama o indivíduo pós-moderno de “colecionador de instantâneos”, mas se
esta expressão indica a presença de uma temporalidade comprimida num
presente implacável e uma busca sôfrega de satisfações imediatas, ela acaba
apontando indiretamente para outro aspecto: em um ambiente cuja provisão de
confiança e reasseguramento aos sujeitos é extremamente insuficiente, é o
próprio sentimento de continuidade da existência que se põe em risco 4. Aderir
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compulsivamente ao barato da droga, ao prazer do sexo, à endorfina do


exercício, ao gozo dos objetos, mais do que a busca frenética de satisfação,
pode ser uma resposta a este tipo de perigo, que a estrutura social atual parece
exacerbar.
Em segundo lugar é melhor não adotar uma posição melancólica ou
nostálgica. O processo de diluição da importância da interioridade não deixa
de conter algumas possibilidades interessantes. Talvez possamos nos livrar
das “tiranias da intimidade” (Sennett 1988) que se tornaram substância da
subjetividade burguesa, com o privilégio da introspecção sobre a ação, ênfase
excessiva no mundo privado em detrimento do mundo público, etc. Talvez,
seguindo a sugestão de Foucault, possamos finalmente destronar o “sexo-rei”
e colocar outra coisa no lugar de centro de nossas identidades subjetivas.
Quem sabe se torna mais visível o fato de que somos constituídos por laços
sociais, e que autonomia implica dependências relativas. A diluição da
espessura ontológica interior na descrição de estados mentais já produziu um
efeito positivo da reordenação dos diagnósticos em psiquiatria, por exemplo.
Faz muita diferença “apresentar um transtorno bipolar” ao invés de “ser um
psicótico maníaco-depressivo”7.
O horizonte que se vislumbra para a intervenção na vida por meio da genética,
da inteligência artificial e das tecnologias cognitivas só tem os limites da
nossa imaginação. A ação humana paulatinamente se livra das restrições
importas pela sua biologia. É possível também que descolemos finalmente
nossas concepções do humano, da subjetividade e do sujeito, das formas
naturais que até agora lhe têm servido de suporte. Talvez então exorcizemos
de vez o “fantasma na máquina”. É claro que novas formas de dominação e
controle virão. Mas podemos também imaginar novas modalidades de
resistência, novas subjetivas, novas modos de existência, mais livres e
criativos.
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A psicanálise tem sido criticada como uma espécie de ícone de uma cultura
que ficou para trás, sepultada pelas ciências da mente e pela sociedade “pós-
humana”. O antifreudismo é uma onda que ainda está crescendo. Mas seu
destino não está nas mãos dos ideólogos do mercado ou da ciência. O que vai
determinar o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será
sua capacidade de atualizar aquilo que está na origem de sua clínica: a
sustentação de um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência
humana sob o crivo da interrogação.
Bibliografia
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Brasileira.
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(1991) “From dangerousnes to risk” in Burchell, G., Gordon, C e Miller, P.
(eds) The Foucault Effect: Studies in Governamentality. Henmel Hempstead:
Harvester Wheatsheaf. Costa, J. F. (1994) A ética e o espelho da cultura. Rio
de Janeiro: Rocco.
(1999) Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco. Dumont,
L. (1993) O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna.Rio de Janeiro: Rocco.
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savoir: Paris: Gallimard.
(1994) Nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Giddens,
A (1991) Modernity and Self-Identity: Self and Society in Late Modern
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15

Heller, A (1998) A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira. Khel, M. R. (2001) “Nós, sujeitos literários”
in Textura:Revista de Psicanálise. Ano I, N. 1. São Paulo: Reuniões
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Lasch, C. (1986) O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempor
difíceis. São Paulo: Brasiliense Lipovetsky, G.(1994) O crepúsculo do dever:
a ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Dom Quixote.
Rabinow, P. (1999) Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Roudinesco, E. (1999) Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.
Sennet, R. (1988) O declínio do homem público: as tiranias da intimidade.
São Paulo, Companhia das Letras. (1999) A corrosão do caráter. Rio de
Janeiro: Record.
1
Publicado em: PLASTINO, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro:
Contracapa, 2002; p. 229-239 2 Psicanalista, professor do Instituto de
Medicina Social da UERJ 3 No entanto, mesmo nesta crítica é impossível não
ver a presença de uma tradição anti-universalista, anti-essencialista,
profundamente pluralista, que Freud sabia existir em certas vertentes
filosóficas (em Nietzsche, por exemplo, cuja afinidade com a psicanálise ele
não deixou de reconhecer).
2
 O exemplo da passagem do sodomita para o homossexual, descrita por
Foucault (1976) é esclarecedora. O primeiro um reincidente, alguém que
pratica um ato que contraria uma regra pública. O segundo é alguém cujo
desvio expressa uma essência interna, uma natureza interior pervertida.
3
 A este respeito ver em http://www.huxley.net: “The Brave New World? A
Defence of Paradise Engineering”; e http://www.hedweb.com : “The Hedonist
Imperative”. Há duzentos anos, dizem os autores, sonhar com uma vida na
qual a dor física pudesse ser eliminada do cotidiano parecia absurdo e
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vagamente imoral. Para eles, a resistência atual ao projeto de abolição da dor


psíquica é, do mesmo modo, uma reação historicamente datada.
4
 Suprir o sentimento de uma vivência real parece ser a promessa paradoxal
das próximas cyber drugs e sua experiências virtuais. A aposta é utilizar
nanotecnologia e informática para gravar sensações, emoções e pensamentos e
produzir drogas digitais (não mais químicas) que as transmitam para o
organismo receptor. Sobre isso
cf. http://www.alchemind.org/newtechnology.htm . 7O problema da psiquiatria
biológica não está na recusa de um essencialismo psicológico, que
supostamente a psicanálise acarretava nas classificações anteriores. Está no
equívoco (epistêmico e ético) da adoção de outro, o essencialismo fisicalista,
que reduz experiência subjetiva a mero comportamento.

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