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Loucura, sociedade

e reforma psiquiátrica
Luiz Renato Paquiela Givigi

Descrição

A construção histórica da loucura enquanto problema social e suas diferentes representações ao longo do tempo.

Propósito

O estudo das diferentes formas de representação da loucura, bem como dos modos de se relacionar com ela ao longo da
história, é de natureza essencial para a formação dos profissionais da área da saúde, uma vez que, em seu exercício
profissional, eles serão os principais responsáveis por garantir o direito universal à saúde por meio de uma relação de cuidado
não excludente, baseada no respeito à diferença e à dignidade humana.

Objetivos

Módulo 1

Emergência da questão social da loucura na história do ocidente

Reconhecer as diferentes formas de emergência da questão social da loucura na história do ocidente.


Módulo 2

Mudança no modelo de atenção psiquiátrica

Analisar os principais pressupostos de mudança no modelo de atenção psiquiátrica, bem como o contexto de criação dos
atuais dispositivos de atenção à saúde mental no Brasil.

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Introdução
Embora tenha sido vitoriosa em vários aspectos, com diversos avanços no campo cultural, jurídico e da assistência, a Reforma
Psiquiátrica é um processo inacabado. Isso quer dizer que há ainda muito a construir, tanto no campo das Políticas Públicas e
das estratégias de atenção quanto no campo da pesquisa e da formação profissional.

Mas a importância do estudo da trajetória do louco, da loucura e de suas instituições ao longo da história não se justifica
apenas pelo aspecto inacabado do processo de Reforma Psiquiátrica, pois a questão social da loucura não se restringe a
aspectos meramente técnicos-assistenciais.

Por estar diretamente envolvida com questões culturais, econômicas e sociais, a mudança das formas de lidar com a loucura
é algo que se encontra em ameaça constante, uma vez que são muitas as forças que dela pretendem se apoderar, a fim de
explorá-la economicamente e/ou relegá-la novamente a um sistema de isolamento e exclusão.

É nesse sentido que o estudo da loucura e das formas de lidar com ela é importante, pois estudar a loucura numa perspectiva
histórica é buscar conhecer a transformação desses olhares ao longo do tempo, para entender como chagamos a ver o que
vemos hoje, e para que não voltemos a reproduzir determinadas práticas do passado.
1 - Emergência da questão social da loucura na história do
ocidente
Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer as diferentes formas de emergência da questão social
da loucura na história do ocidente.

A loucura como questão social


Estudar o tema da loucura a partir de uma perspectiva histórica requer, inicialmente, um esforço de distinção entre a loucura e
aquilo que hoje conhecemos como doença mental. A associação entre loucura e doença, nesse caso a doença mental,
constitui-se em um dado recente de nossa história.

Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de
doença mental.

(FOUCAULT, 1968, p. 75)

Mesmo antes de termos acesso aos dados históricos de todo o processo que deu origem à associação entre loucura e
doença, podemos, a partir de um esforço de imaginação, pensar que diversas sociedades, em diferentes momentos históricos,
trataram de formas distintas a questão da loucura, associando-a a atributos ora positivos, ora negativos, a depender das
questões culturais, econômicas e políticas que estruturavam tais sociedades. Vamos conhecer um pouco mais.
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A loucura já foi associada a certos dons sobrenaturais, à liberdade, à criatividade artística, à genialidade intelectual, à
pura diferença, à diferença radical, à verdade, à sabedoria do destino, à alegria, à adivinhação, ao dom de guiar e/ou
liderar determinado grupo, entre outros. A esse respeito, basta pensarmos na ascensão de um indivíduo à posição de
xamã em determinadas culturas, na qual se requer deste uma série de manifestações alucinatórias, convulsivas e
“delirantes” capazes de explicitar e até mesmo comprovar seus dons de liderança.

Também deve-se considerar grandes pensadores como Antonin Artaud (1896- 1948) e Friedrich Nietzsche (1844-1900),
artistas consagrados como Vincent van Gogh (1853- 1890) e Jean Michel Basquiat (1960-1988), ou mesmo
matemáticos como John Forbes Nash (1928-2015), cuja história deu origem ao premiado filme Uma mente
brilhante(2001), sucesso de crítica e bilheteria no Brasil e no mundo.

Vincent Van Gogh, famoso artista que apresentava sintomas que apontam para transtorno mental.

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A loucura pôde ser associada a possessões demoníacas, à bruxaria, ao descontrole, à irresponsabilidade, à


agressividade, à violência, à periculosidade, à criminalidade, à preguiça, à improdutividade, à incompetência, à
desrazão, à alienação mental e, mais contemporaneamente, à doença e aos transtornos mentais. Se levarmos ainda
mais adiante esse nosso exercício de imaginação, podemos pensar que, para cada tipo de associação ou consideração
social da loucura, haverá também maneiras específicas de se relacionar com ela.

As fogueiras da inquisição, os campos de trabalho forçado, a tortura, a prisão, as sangrias e as purgações, o


manicômio, as mutilações cerebrais, os castigos de toda sorte, bem como as modernas contenções medicamentosas,
são apenas alguns exemplos de práticas sociais dirigidas à questão da loucura, quando associada aos aspectos
negativos descritos acima.
A contenção medicamentosa é uma prática que muitos pacientes ainda sofrem, sendo submetidos a fortes medicamentos e altas dosagens que não só
controlam seus sintomas mentais como também inibem sua vontade, afetividade etc.

Existe uma boa quantidade de filmes e documentários que retratam as formas peculiares ou, melhor dizendo, preconceituosas
de conceber a loucura. Relacionados especificamente com o que descrevemos acima, seria de fundamental importância que
você tivesse acesso a duas obras consideradas obrigatórias a esse respeito. São elas o já clássico filme de Laís Bodanzky,
Bicho de Sete Cabeças (2000), e o documentário de Daniela Arbex e Armando Mendz, Holocausto Brasileiro (2016).

Bicho de Sete Cabeças possui uma importância especial sobretudo por ter servido como disparador de diversos debates no
contexto da aprovação da Lei nº 10.216 de 2001, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira. Seu conteúdo versa
sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.

Capa do livro que baseia o filme Holocausto Brasileiro.

Já Holocausto Brasileiro demonstra de maneira contundente até que ponto a racionalidade cientificista moderna -
representada nesse caso pela figura do saber-poder médico-psiquiátrico - pode chegar, no sentido da exclusão e da destruição
do outro.
Em suma, concluímos após nosso exercício de pensamento que a loucura sempre existiu, mas não podemos dizer o mesmo
da doença mental, ou seja, da consideração da experiência da loucura como algo relativo a uma patologia, a uma
anormalidade, ou a uma questão médica.

Assim, a consideração da loucura como experiência patológica, tal como a conhecemos hoje, diz respeito a um processo
econômico, político e cultural relativamente novo, no que concerne ao que denominamos tempo histórico, distinto do tempo
de nossa própria existência enquanto indivíduo.

O conceito de dispositivos de Foucault


Segundo Foucault (1972), esse processo só foi possível devido a mudanças que ocorreram na sociedade ocidental e à
constituição de uma série de dispositivos de captura e de apropriação do fenômeno da loucura que datam do final do século
XVII e início do XVIII.

Mas o que seria um dispositivo?

Um dispositivo, para Foucault (2014), traduz-se como um conjunto dominante e estratégico que comporta discursos,
instituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais e filantrópicas que, em um dado momento histórico, tem por função responder a determinadas
questões sociais de seu tempo. No que se refere ao momento em que a loucura passa a ser vista como um problema social a
ser tratado, um dos principais elementos deste dispositivo será a constituição e o desenvolvimento da medicina mental como
campo de saber teórico e prático. Esse campo responsável pela construção de toda uma maneira de ver e falar sobre a
loucura transforma-a, nesse caso, em doença mental, isto é, em uma patologia.

Arranjo arquitetônico seria aquilo que Foucault chamou de instituições disciplinares, neste caso representado pelo
manicômio, baseadas num sistema jurídico calcado na segurança social e na reclusão. Seriam também inspiradas por
enunciados científicos e medidas administrativas que propõem uma espécie de limpeza e higiene social excludente, com
prerrogativas morais cujo horizonte é a produtividade, e por um sistema filantrópico que justificaria esse processo como um
bem que visa à salvação do outro.

São esses elementos, imbricados uns nos outros, fortalecendo-se mutuamente, que vão produzir a grande teia que constitui
aquilo que Foucault chama de dispositivo de captura da loucura, transformada em doença mental. E isso de tal modo que,
como veremos adiante, nem mesmo as manifestações dos sintomas poderão ser atribuídas ao que seria a experiência da
loucura propriamente dita, em estado puro, mas, sim, àquilo que dela foi feito por esses dispositivos, processo esse que, nos
anos 1960, ficou conhecido/nomeado como institucionalização da loucura.
É nesse sentido que Erving Goffman, em sua obra intitulada Manicômios, Prisões e Conventos, vai afirmar que “o que a
psiquiatria denomina ‘curso natural da doença’ é, na realidade, a ‘carreira moral do doente mental’” (AMARANTE, 2007, p. 54).

Da mesma maneira, Foucault (1968, p. 87) afirma que “o que se chama ‘doença mental’ é apenas loucura alienada”. Ou seja,
as ideias, as percepções e os sentimentos que temos sobre a loucura e sua própria forma de apresentação se constituem já
como um efeito de práticas e discursos que a capturaram historicamente.

Em outros termos, o que conhecemos como loucura hoje diz respeito às forças que se
apoderaram dessa experiência ao longo da história, como é o caso da constituição do saber-
poder médico que, a partir do final do século XVII e início do XVIII, dela se apropria,
transformando-a em doença.

O saber-poder médico-psiquiátrico, como já dissemos, está necessariamente relacionado às concepções políticas, sociais e
econômicas de seu tempo.

Analogia com a captura histórica do conceito Infância


Para que isso possa ficar mais compreensível, podemos tomar como exemplo uma outra experiência, como é o caso da
infância.

Como demonstrou o historiador Philippe Ariès (1981), a noção de infância, bem como a criação de instituições específicas
para o cuidado infantil, é um empreendimento que tem início apenas no fim do século XVII e início do XVIII. Essa criação é
efeito dos grandes investimentos políticos e econômicos implicados com a máxima eficiência produtiva de seus corpos,
momento em que o corpo da criança se torna espaço de disputa do poder.

Pintura de 1638 de menino com 18 meses.

O sentimento de infância, como denomina o autor, diz respeito a um processo histórico, político e econômico que tem como
consequência uma grande preocupação relativa à formação dos pequenos, que doravante saem de seu anonimato para se
constituírem como centro de organização econômica das famílias e da vida social burguesa. Ainda segundo Ariès (1981), é
também nesse período que a criança é destacada do meio adulto e enviada às instituições destinadas à sua “educação”, onde
as relações de aprendizado mútuo entre jovens, e destes com os adultos, dá lugar ao enclausuramento dos primeiros. É
instituída uma espécie de “quarentena”, engendrando os processos de escolarização e, ao mesmo tempo, oferecendo
visibilidade e sentido ao que denominamos contemporaneamente de infância.
É assim que, hoje, quando queremos saber como vai a vida de uma criança, logo perguntamos se ela está indo à escola, se tira
boas notas, se tem planos para ser algo quando crescer, que profissão quer seguir etc. Isso quer dizer que a forma dominante
de experimentar a infância tornou-se o modo de vida aluno, eterno candidato ao sucesso ou ao fracasso no mercado de
trabalho. Assim, quando pensamos em criança, pensamos imediatamente em escolarização, num modo de ser aluno.

A mesma coisa se passa com a experiência da loucura que, a partir da construção de processos análogos e contemporâneos
um do outro, passa a ser atribuída a aspectos negativos, como o descontrole, a agressividade, a violência, a periculosidade, a
improdutividade, a patologia, entre outros. Em suma, o fato é que, para Michel Foucault (1926-1984), uma de nossas principais
referências na discussão que fazemos aqui, a loucura deve ser entendida como uma construção histórica, um objeto de
percepção produzido por práticas sociais. Portanto, para esse filósofo, ela não pode ser procurada em si mesma, pois não
existe fora dos discursos que a descrevem e dominam, bem como dos mecanismos que a capturam, isolam e excluem.

Breve histórico da questão social da loucura

A visão de Foucault

O estudo desses modelos de compreensão da loucura é abordado em diversas obras. Dentre essas, grande destaque é dado à
História da Loucura na Idade Clássica (1961), do pensador francês Michael Foucault (1926-1984), que se constitui no grande
marco desses estudos, influenciando definitivamente a historiografia contemporânea sobre o tema.

Antes de mais nada, é importante perceber que Foucault estuda a história para pensar o presente. Nesse sentido, ele quer
saber quando a loucura passou a ser pensada como doença, entendendo que isso nem sempre foi assim. Portanto, estudar a
loucura numa perspectiva histórica é buscar conhecer a transformação desses olhares ao longo do tempo, para entender
como chegamos a ver o que vemos hoje.

Ademais, quando nos damos conta de que as coisas não são naturais, mas, sim, produções
históricas, compreendemos também que podem ser modificadas, potencializando assim nossa
capacidade de agir no mundo, no presente.

Segundo Foucault, antes de ter sido “dominada” por volta do final do século XVII, a loucura estava “ligada, obstinadamente, a
todas as experiências maiores da Renascença” (1972, p. 8).

Naquele momento, a loucura circulava livremente pelos espaços públicos e era tema recorrente de diversas expressões
artísticas, como peças de teatro, romances, entre outros.

Os loucos “conhecidos” eram tolerados, e os loucos “estranhos”, com comportamentos desviantes e bizarros, incluindo os
bêbados e os devassos, eram confinados em navios numa espécie de exílio ritualístico. Essa representação nômade da
loucura na Idade Clássica é apresentada por Foucault na Nau dos Loucos ou dos Insanos, simbolizando a busca da razão por
meio da purificação pela água, ou também a entrega do louco a seu próprio destino, ou a sua própria sorte.
A percepção social da loucura era, então, de uma alteridade pura, ou seja, a loucura era vista como uma diferença radical,
genuína, experiência originária. Os loucos poderiam até mesmo ser pensados como aqueles que diziam a verdade quando
todos a escondiam. A loucura era também trágica, uma vez que se encontrava fora do alcance de interpretações que visavam
ao seu controle e submetimento a uma razão universal e abstrata, ou a um sentido interpretativo dominante. Em outras
palavras, poderia ser pensada como uma simples desrazão, sem conotação médica.

No que diz respeito aos hospitais, nessa época, não tinham o propósito de cura ou tratamento, mas exerciam a simples função
de hospedaria, depósito de gente para onde se encaminhava todo tipo de excluídos da ordem social, econômica e política.
Instituições de caridade abrigavam pobres, mendigos, desabrigados e doentes, porém sem nenhuma conotação terapêutica.
Como relata Foucault:

O pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a
conseguir sua própria salvação. Era um pessoal caritativo – religioso ou leigo – que estava no
hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna.

Assegurava-se, portanto, a salvação da alma do pobre no momento da morte e a salvação do


pessoal hospitalar que cuidava dos pobres.

(FOUCAULT, 1979, p. 102)

Hoje, quando pensamos em hospital, é natural que nos venha à mente a figura do médico com seu jaleco branco, uma vez que,
além de ser o hospital um lugar privilegiado de exercício da Medicina, a própria formação do médico não pode ser pensada
sem que este passe um bom tempo na instituição hospitalar, daí a conhecida figura moderna do médico residente. No entanto,
antes do fim do século XVII e início do XVIII, a Medicina era uma prática não hospitalar, e o hospital, por sua vez, ainda não era
medicalizado.

Influências da organização social do trabalho

Mudanças de ordem social, como o declínio do feudalismo, o início da industrialização, o crescimento populacional nas
cidades, o aumento da expectativa de vida e, sobretudo, as mudanças na organização social do trabalho, tornaram menores os
limites de tolerância à loucura. O trabalho agrícola de subsistência e o artesanato para trocas imediatas tinham como
característica a pouca discriminação entre indivíduos considerados aptos ou não aptos para o exercício dessas atividades.
Esses respeitavam, de certa forma, o tempo ou o ritmo de cada um.
Diferente da massificante atividade industrial, que requer o controle e a igualização do tempo, o trabalho artesanal não apenas
requer a expressão singular de cada um, como muitas vezes é um fator que valoriza ainda mais o produto final.

O trabalho no campo, por sua vez, respeita o tempo e as leis da natureza, cujas regularidade e alternância podem se adequar
com certa facilidade às diferentes formas de ser e estar no mundo. Porém, com o declínio do campesinato e o fim dos ofícios
artesanais, o modo de produção deixa de respeitar o tempo de cada um e passa a ser submetido aos batimentos do relógio e
ao compasso das máquinas, tornando-se mais discriminatório em ternos de diferenças individuais.

São os “tempos modernos”, como satirizado e imortalizado por Charlie Chaplin em seu filme homônimo, de 1936. É nesse
período que o trabalho se torna um valor quase que sagrado.

Na verdade, o que se passa é que esse tipo de produção controlada e disciplinada, tão estranha ao tempo da natureza e ao
próprio homem como parte desta, terá de ser imposta a duras penas. Não se trata mais do trabalho como realização ou
expressão de um indivíduo, ou de um “trabalhar para viver”, mas, sim, de um “viver para trabalhar”, da busca por uma máxima
exploração das energias dos sujeitos, pensados agora como força de trabalho ou mão de obra, correias de transmissão de
uma grande máquina da qual não possui o menor controle.

Esse tipo de trabalho, conhecido apenas nos presídios e nas casas de correção, era percebido como algo incompatível pela
população, e não é por acaso que, nessa época, ao mesmo tempo em que a Europa enfrentava grande escassez de mão de
obra, desocupados, mendigos e “vagabundos” passavam a circular em número cada vez maior nas cidades. Ou seja, esse
modo de exploração dos indivíduos (da mão de obra) era visto ainda como uma forma de escravidão, algo bem diferente dos
tempos atuais, quando a exploração do trabalho passou a ser até mesmo desejada.

Além dos discursos que visavam glorificar o trabalho duro, exploratório, bem como a exortação moral e religiosa que buscava
definir o trabalho como a essência do homem, esse processo exigirá também o uso da força a fim de reprimir a chamada
vagabundagem, a mendicância e a ociosidade.

Chibatadas no tronco, marcação a ferro em brasa, multas, prisão e até mesmo pena de morte são algumas das penalidades
aplicadas àqueles que se recusavam a se submeter ao novo mundo do trabalho, à nova ordem social. Como descreve Resende
(1990, p. 24):

As medidas legislativas de repressão se complementaram pela criação de instituições, as


casas de correção e de trabalho e os chamados hospitais gerais que, apesar do nome, não
tinha qualquer função curativa.

Destinavam-se a limpar as cidades dos mendigos e antissociais em geral, a prover trabalho


para os desocupados, punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução
religiosa e moral.

Os hospitais gerais como estruturas de exclusão

É nesse contexto que os limites de tolerância à loucura se estreitam, fazendo com que essa emerja na cena social como um
problema a ser solucionado.

O louco, que durante longo tempo pôde usufruir de relativa tolerância e liberdade, será incluído no
grupo que, por não conseguir se adaptar à nova ordem social, constitui-se como ameaça a esta
mesma ordem.

Como vimos, entre as instituições encarregadas de recolher esses indivíduos está o Hospital Geral, que nesse momento passa
a assumir um novo papel. No fim do século XVII, o hospital, outrora predominantemente caritativo, passa a cumprir uma
função social e política mais explícita, inserida naquilo que Foucault chamou de “estrutura da exclusão”.

Hospital Pitié-Salpêtrière em Paris, França.

Para Foucault (1972), a origem da medicina mental ou da Psiquiatria encontra seu ápice nesse momento, com a criação, em
1656, do Hospital Geral de Paris, por decreto do rei da França. É também a partir daí que surge um novo lugar social para a
loucura, o da segregação e isolamento, como já indicamos acima.
Com a desorganização social e econômica da Europa, a loucura passa a ser vista como algo a ser excluído. Os diferentes em
relação à moral, à razão e à ordem social passam a ser encaminhados para o isolamento. O objetivo era limpar a cidade,
ocupar quem não trabalhava, punir o ócio, reeducar os desviados. Como relata Foucault a respeito dessas instituições:

Trata-se de recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou


aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária. É preciso também
zelar pela subsistência, pela boa conduta e pela ordem geral daqueles que não puderam
encontrar seu lugar ali, mas que poderiam ou mereciam estar.

Essa tarefa é confiada a diretores nomeados por toda a vida, e que exercem seus poderes não
apenas nos prédios do Hospital como também em toda a cidade de Paris sobre todos
aqueles que dependem de sua jurisdição.

(FOUCAULT, 1972, p. 56)

O hospital, que antes exercia a função de caridade, vai ganhando cada vez mais a função de controle social, cujo objetivo é o
de dar uma resposta ao problema da escassez de mão de obra, da “vagabundagem” e da mendicância. Nesse período na
Europa, empreendeu-se uma grande repressão à mendicância, à vagabundagem e à ociosidade. Isso se deve à resistência das
pessoas à mudança dos modos de produção, em que se tratava de inverter a equação trabalhar para viver para viver para
trabalhar, do campesinato e dos ofícios artesanais para o advento da manufatura.

Os hospitais destinavam-se a limpar as cidades dos mendigos e antissociais em geral, a prover trabalho para desocupados,
punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução religiosa e moral (RESENDE, 1990).

É nesse período que a loucura, durante tanto tempo manifesta, será varrida do cenário social e confinada junto aos demais
desordenados para sofrer toda sorte de punições e torturas. Em suma, a instituição hospitalar vai se configurando em uma
espécie de instituição “semijurídica” que visa ao estabelecimento da lei, da ordem e da moralidade burguesa.

Ainda durante muito tempo a casa de correção ou os locais do Hospital Geral servirão para a
colocação dos desempregados, dos sem trabalho, e vagabundos. Toda vez que se produz
uma crise, e que o número de pobres sobe verticalmente, as casas de internamento retomam,
pelo menos por algum tempo, sua original significação econômica.

(FOUCAULT, 1972, p. 76)

A medicalização dos hospitais

No final do século XVIII, com o fortalecimento dos ideais iluministas e o advento da Revolução Francesa (1789), que tinha
como princípio os ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, esses espaços passam a receber uma série de denúncias,
uma vez que o que acontece em seu interior em nada se assemelha àqueles ideais.

A afirmação desses ideais tem então como consequência a exigência de democratização de


todos os espaços sociais, dentre eles a instituição hospitalar.

É nesse contexto específico que os médicos adentram o hospital, com o objetivo de adequá-lo ao novo espírito da época. Tem
início aqui o que foi chamado de humanização do hospital, com a introdução de uma série de tecnologias disciplinares de
controle e organização do espaço e do tempo.

Uma das primeiras medidas de reorganização desses espaços será a libertação daqueles indivíduos que haviam sido
internados em função das medidas autoritárias do Antigo Regime, caso ainda fossem aptos para o trabalho, devido à
escassez de mão de obra. Com a criação de outras instituições como as casas de correção, os reformatórios, os centros de
reabilitação e os orfanatos, os demais indivíduos, jovens demais para o trabalho ou considerados perigosos demais para a
vida em sociedade, também puderam encontrar seus destinos.

Para os loucos, restou o hospital como herança. Separados de seus companheiros de isolamento, pela primeira vez esses
indivíduos receberam, ou melhor, sofreram, algum tratamento psiquiátrico. Isso porque tais tratamentos não se diferenciavam
muito das torturas anteriores. Inspirados na medicina galênica, cuja causa da doença era pensada como desequilíbrio dos
quatro humores do corpo, essas práticas tinham como finalidade livrar os sujeitos de seus maus humores a partir de
procedimentos de sangria, purgação, afogamento, dentre outros.

A despeito desses métodos condenáveis, o fato é que o hospital começa a se medicalizar ao mesmo tempo em que a
Medicina vai se tornando um saber hospitalar, extraindo dessa prática um conhecimento cada vez maior sobre o hospital, as
doenças, suas diferentes categorizações, sua forma de evolução e sua clínica de maneira geral. O hospital, lugar de
mortificação, torna-se agora lugar de saber e verdade, em estreita consonância com os ideais iluministas. O poder sobre o
hospital, antes nas mãos da filantropia e do clero, passa agora inteiramente para as mãos do médico. É nesse momento que
surge a figura de Fhilippe Pinel, considerado o fundador da Psiquiatria, que, em 1793, assume a direção do Hospital de Bicêtre,
uma das unidades do Hospital Geral.
Quadro representando “o gesto de Pinel”.

Encontramo-nos agora numa nova fase da história da loucura, inaugurada por aquilo que ficou conhecido como “o gesto de
Pinel”, que seria o de ter libertado os loucos das correntes, humanizando o hospital. Mas Pinel não é famoso apenas por ter
liberado a loucura das correntes, mas também porque ele, em um mesmo gesto, teria aprisionado a loucura a outras amarras,
em uma prisão mais sutil, como se costuma dizer.

Inserido em uma certa corrente de pensamento de seu tempo, Pinel e seus contemporâneos passam a conceber a loucura
como “alienação mental”, alienação essa cujas causas estariam presentes no meio social. Ora, se as causas da loucura, agora
compreendida como “alienação mental”, estavam presentes no meio social, seu tratamento deveria se basear no afastamento
do louco do mundo exterior. Ou seja, o tratamento deveria começar com o isolamento.

Ao publicar sua obra, denominada Tratamento Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, Pinel consolidou o conceito de
alienação mental e estabeleceu uma nova profissão, a de alienista. Em suma, Pinel fundou os primeiros hospitais
propriamente psiquiátricos e instaurou o primeiro modelo de tratamento ao estabelecer o chamado “tratamento moral”,
baseado no isolamento, na ordem e na disciplina dos internos. No filme Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese, encontramos
bons fragmentos desse tipo de tratamento.

Como o conceito de “alienação mental”, segundo Pinel, está relacionado à perda da racionalidade, ao distúrbio das paixões, à
dificuldade em perceber a realidade objetiva e à incapacidade em discernir entre certo e errado, ela nasce também associada à
periculosidade. As pessoas consideradas alienadas eram então compreendidas como representando um risco para a
sociedade e para si mesmas.

Isolar passa então a ser considerado um método para proteger o louco da alienação externa, para
estabelecer os princípios da ordem e da disciplina, pressupostos do tratamento moral, e para se
conhecer a doença em “estado puro”, como em um laboratório.

É assim que, enquanto instituição disciplinar, o hospital de alienados passa a ser pensado como instituição terapêutica,
destinado a educar a mente, afastar os delírios e chamar a consciência à realidade. Como advertiu Foucault (1979, p. 107), “é
a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua medicalização”.

Os loucos não são mais enclausurados por caridade ou repressão, mas por um imperativo terapêutico, que nesse contexto
significava garantir a segurança do louco e de sua família, liberá-lo das influências externas, vencer suas resistências
pessoais, submetê-lo a um regime médico, impor-lhe novos hábitos, entre outros (AMARANTE, 2007).

Todo o espírito do “tratamento moral” foi brilhantemente retratado em um dos mais famosos contos de Machado de Assis, O
Alienista, referência básica para se pensar a questão da loucura em nossa sociedade. O fato é que o alienismo pineliano, que
levou a loucura de acorrentada à institucionalizada, obteve grande fama pelo mundo, e em diversos países hospitais de
alienados foram criados inspirados em sua obra, muitos levando até mesmo o seu nome.

Agora vamos ver um vídeo em que o especialista aborda as influências de Pinel e o conceito de alienação mental no
imperativo terapêutico de isolamento dos loucos.

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Reflexões sobre “o gesto de Pinel” e suas implicações
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Segundo Foucault (1972), a associação entre loucura e doença mental é um fenômeno que:

A Sempre existiu, porém de diferentes formas.

B Resiste aos discursos da modernidade.

C Surge no final do século XVII e início do XVIII.

D Surge com a Igreja na Idade Média.

E Possui realidade empírica.

Parabéns! A alternativa C está correta.

Essa associação é relativamente recente, nascida a partir do desenvolvimento das sociedades modernas no final do
século XVII e início do XVIII, contemporânea das ideias iluministas, de sua crença na razão, na verdade e no progresso
científico.

Questão 2

Em História da Loucura na Idade Clássica, Foucault afirma que, antes de ser dominada pelo discurso científico da
modernidade no fim do século XVII e início do XVIII, a loucura podia ser vista, dentre outras coisas, como:

A Uma psicopatologia.
B Uma doença genética.

C Uma manifestação do inconsciente.

D Uma alteridade pura.

E Uma esquizofrenia paranoide.

Parabéns! A alternativa D está correta.

Antes desse período, a loucura não estava associada a uma condição médica. Sendo assim, não podia receber esses
diagnósticos, que são, na verdade, bem posteriores a esse momento.

2 - Mudança no modelo de atenção psiquiátrica


Ao final deste módulo, você será capaz de analisar os principais pressupostos de mudança no modelo de
atenção psiquiátrica, bem como o contexto de criação dos atuais dispositivos de atenção à saúde mental no
Brasil.
Pressupostos da crítica ao modelo psiquiátrico tradicional
Vimos anteriormente que, no final do século XVIII, na esteira dos ideais cientificistas da Idade das Luzes, estabeleceu-se
aquilo que viria a ser a ciência psiquiátrica. Isso significa dizer que esse campo de saber definiu a loucura como seu objeto de
práticas e estudos sistemáticos, buscando descrever suas causas, formas de apresentação, seu desenvolvimento, seu
tratamento e sua cura. A essa forma de apropriação da loucura, ou de captura da loucura, como alguns chamavam,
convencionou-se denominar de institucionalização da loucura.

Será como questionamento dessa forma de aprisionamento daqueles que escapam à ordem social dominante que irão surgir
as chamadas psiquiatrias reformadas, ou aquilo que recebe o nome de Reforma Psiquiátrica, movimentos que, dentro da
própria Psiquiatria ou não, têm como horizonte a crítica a esse estado de coisas.

A Psiquiatria é um saber que já nasceu criticado, principalmente por suas contradições relacionadas àqueles ideais da
Revolução Francesa, sobretudo os ideais de liberdade e cidadania, uma vez que a formação do cidadão pressupõe a
convivência e o compartilhamento de uma vida comunitária em liberdade, na pólis, e não no confinamento e na exclusão.

Ora, que tratamento libertador é esse cujo princípio básico permanece sendo o aprisionamento do louco
e seu afastamento da pólis?

Esse questionamento, engrossado progressivamente por diversos outros, como a crítica ao modelo positivista de ciência que
chancelava essas práticas asilares, ou seja, que as legitimava em seu saber-poder, é o que vai constituir todo o movimento
da Reforma Psiquiátrica.

Se, por um lado, a Psiquiatria possuía ainda um saber demasiadamente precário sobre a loucura, por outro, a elevação de sua
condição ao status de saber científico a concedia grandes poderes sobre a população. Um exemplo é o próprio mandato social
de privação de liberdade, porém agora com justificativas médico-científicas, para um suposto bem do louco e do meio social.
“Como tão pouco saber pode gerar tanto poder?”, questionava Foucault (2006, p. 70) a esse respeito.

No Brasil, O Alienista, de Machado de Assis, é uma das críticas mais contundentes a esse paradigma, pois coloca em xeque os
principais pontos problemáticos desse modelo, que são a discussão sobre o que é ser normal ou anormal, questionando a
pretensa neutralidade dos saberes científicos, produtores de verdade sobre a loucura. Conta-se que Machado de Assis teria
se inspirado no Hospício de Pedro II. Construído no ano de 1852, na cidade do Rio de Janeiro, esse hospital foi o primeiro a ser
completamente inspirado nos modelos franceses, os pinelianos.

Publicado em 1882, o livro conta a história do doutor Simão Bacamarte, um alienista que, ao se aprofundar em seus estudos
de psiquiatria, constrói um manicômio chamado Casa Verde para abrigar os loucos de sua região. A partir de seus próprios
critérios de classificação e seleção da loucura, baseados, todavia, em estudos e hipóteses pretensamente científicas, o doutor
Simão Bacamarte acaba internando quase toda a população da cidade fictícia de Itaguaí, uma vez que quase ninguém se
enquadrava em seus critérios de normalidade, sendo todos anormais, portanto.

Porém, quando se apercebe que todos são anormais e somente ele mesmo é normal, o Dr. Bacamarte conclui que talvez o
único anormal seja ele mesmo, internando a si próprio, por consequência, até a morte.

Obviamente, a obra é muito mais rica e interessante do que esse pequeno resumo, e por isso mesmo deve ser lida em sua
integralidade, tanto por gosto literário quanto como objeto de reflexão social e filosófica. A opção pelo pequeno relato é a de
exemplificar o porquê de essa obra abrir todo um campo de debate em torno do normal e do anormal, bem como da pretensa
neutralidade dos saberes científicos, que de neutros não têm nada. O fato é que, assim como no conto machadiano, esses
asilos, tanto no Brasil quanto no mundo, logo ficaram lotados de internos.

A enorme dificuldade em estabelecer os limites entre a loucura e a sanidade; as evidentes


funções sociais (ainda) cumpridas pelos hospícios na segregação de segmentos
marginalizados da população; as constantes denúncias de violência contra os pacientes
internados, fizeram com que a credibilidade do hospital psiquiátrico e, em última instância, da
própria psiquiatria, logo chegasse aos mais baixos níveis.

(AMARANTE, 2007, p. 38)

Devido a esse estado de coisas, variadas foram as propostas e tentativas de superação desse modelo asilar, que, no entanto,
insiste em permanecer até os dias atuais, presentificando-se em diversas práticas e diferentes instituições de cuidado, mesmo
aquelas com um modelo de tratamento não asilar, em espaço aberto.
Como diz uma expressão que ficou famosa no campo da Reforma Psiquiátrica, não adianta acabar com os manicômios se
esses locais permanecerem dentro de nós. Ou seja, mesmo que não seja realizada no espaço de um manicômio como
descrevemos acima, ainda assim uma prática pode guardar características manicomiais.

Reforma Psiquiátrica ao redor do mundo


Dentre essas tentativas de superação do modelo asilar, existem aquelas consideradas reformadoras, que buscam recuperar
certa essência terapêutica que o hospital possuiria, mas que teria perdido em algum momento. Há também aquelas que
buscam romper com o paradigma psiquiátrico tradicional de modo geral, visando à superação do manicômio.

As primeiras tentativas de resgatar a pretensa essência terapêutica da instituição psiquiátrica foram as colônias de alienados,
aldeias localizadas no interior das cidades para onde familiares enviavam seus loucos a fim de serem tratados pelo trabalho
no campo e pela própria formação de comunidade de trabalhadores, onde ocorria uma suposta cura pelo trabalho.

No início do século XX, o Brasil foi um grande signatário dessas colônias, criando dezenas delas. Os exemplos mais famosos
são a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e a Colônia de Juquery, em São Paulo. Essa última chegou a acumular 16 mil
internos, e logo se assemelharam aos mesmos asilos que visavam superar, sobretudo por suas práticas asilares de
recuperação pelo trabalho.

Colônia de Juquery.
Imagem representativa do uso de camisas de força em manicômios.

Novas tentativas de Reforma Psiquiátrica nasceram no período pós Segunda Guerra Mundial, quando essa condição histórica
revelou aspectos terríveis da natureza humana, demonstrando que o tratamento dispensado aos loucos não diferia muito
daqueles destinados aos prisioneiros dos campos de concentração e de trabalho forçado, violando diversas dimensões da
dignidade humana.

As Comunidades Terapêuticas e a Psicoterapia Institucional


A partir desse acontecimento histórico, surgem variadas experiências de reforma da instituição psiquiátrica, consideradas
pós-pinelianas. Algumas dessas reformas foram mais marcantes, influenciando as práticas no campo da Psiquiatria até os
dias de hoje.

É o caso das experiências da “Comunidade Terapêutica” na Inglaterra e da “Psicoterapia Institucional” na França, que
acreditavam que o problema da instituição psiquiátrica estava em sua forma de organização, na maneira de gerir as
instituições. Sendo assim, essas experiências propunham que, modificando as relações no interior do hospital, seria possível
resgatar seu caráter terapêutico. Vamos conhecer melhor cada uma delas.

Comunidades Terapêuticas expand_more

As experiências das Comunidades Terapêuticas tiveram início na Inglaterra, com Maxwell Jones, em meados dos anos
1950. Foi um processo de reforma institucional baseado na utilização do potencial dos próprios pacientes no processo
terapêutico, muitos deles ex-combatentes de guerra. Baseava-se na instauração de grupos operativos, grupos de
discussão, comunicação livre entre equipe e paciente, participação ativa dos pacientes nas atividades propostas e
assembleias diárias. Tudo na instituição poderia ser objeto de debate, visando destituir a hierarquização e a
verticalização dos papéis sociais, com o objetivo de democratizar as relações e viabilizar a expressão livre dos
sentimentos.

Psicoterapia Institucional expand_more

Já a Psicoterapia Institucional francesa teve como principal personagem François Tosquelles, um oficial espanhol
refugiado da ditadura do general Franco, na Espanha. Assim como a Comunidade Terapêutica, tinha como objetivo
recuperar o potencial terapêutico do hospital. No Hospital de Saint-Alban, Tosquelles realizou uma das mais bem-
sucedidas experiências de Reforma Psiquiátrica, propondo um movimento de gestão autônoma entre pacientes e
técnicos com passeios, festas, feiras de produtos dos próprios internos, construção de ateliês de arte, oficinas de
trabalho, entre outras atividades.

Esse movimento de gestão autônoma ficou conhecido como Clube Terapêutico. Tosquelles propunha ainda que no
hospital todos faziam parte de uma mesma comunidade e que, sendo assim, todos os seus agentes teriam uma
função terapêutica. Sua principal diferença com relação às experiências inglesas era a utilização do conceito de
transversalidade, que propunha o confronto de papéis, ou seja, uma mistura dos papéis profissionais e institucionais
com o objetivo de questionar a produção de hierarquias no interior do hospital.

A Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva

No fim dos anos 1950 e início dos 1960, surgem outras duas importantes experiências reformadoras: a Psiquiatria de Setor e a
Psiquiatria Preventiva.

A Psiquiatria de Setor tem como personagem principal Lucian Bonnafé, e aponta a necessidade de se realizar um trabalho
externo ao manicômio, dando continuidade ao tratamento fora do hospital, após a alta, evitando novos casos. Para isso, serão
criados os Centros de Saúde Mental (CSM), distribuídos em diferentes regiões administrativas francesas, de acordo com o
índice populacional. Essa experiência teve como característica a inauguração da discussão sobre aquilo que ficou conhecido
como regionalização da assistência psiquiátrica, em que a própria divisão do espaço interno do hospital deveria corresponder
à região de origem dos pacientes.

Atenção!

Interessa ressaltar que as equipes também eram divididas, possibilitando o acompanhamento do paciente tanto no hospital
quanto no local de residência. A própria ideia de equipe terapêutica assume aqui uma importância especial, uma vez que
retirava do médico a exclusividade do cuidado.

O paciente passava a ser cuidado por uma equipe multidisciplinar, o que contribuiu para um olhar mais integral de sua
condição. Em suma, o principal legado dessa iniciativa, ou aquilo que a singulariza, foram as noções de regionalização e de
equipe multiprofissional.

A Psiquiatria Preventiva foi desenvolvida nos EUA por Gerald Caplan, considerado precursor dessa corrente. Sua principal
ideia era tornar o hospital obsoleto a partir de medidas preventivas, ou seja, prevenir para não ter que remediar, como se
costuma dizer. Naquele período, os hospitais norte-americanos ganharam visibilidade pelas péssimas condições em que se
encontravam os internos, vítimas de violência e maus-tratos das mais diversas matizes. Por incentivo do próprio presidente
dos EUA, a ordem então era a de reduzir as doenças mentais das e nas comunidades, promovendo a saúde mental. Caplan
acreditava que todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente, o que daria início a
uma caça aos suspeitos que possuíssem alguma.

O que aconteceu foi que, novamente, todos aqueles indivíduos que apresentavam algum tipo de desadaptação social
passaram a ser recolhidos pela ordem psiquiátrica, com a justificativa médica de buscar promover a sua saúde mental, uma
vez que apresentavam comportamentos considerados pré-patológicos. No fim, ocorreu um aumento da demanda psiquiátrica
nos EUA, já que esses serviços de atenção comunitária acabaram servindo como centros de captação de uma nova clientela,
promovendo o que posteriormente foi chamado de medicalização do campo social.
Todavia, apesar dos pesares, a Psiquiatria Preventiva deixou como legado conceitos importantes, como a noção de cuidado
comunitário e de saúde mental, em detrimento da associação da Psiquiatria apenas com a noção de doença, e o conceito de
desinstitucionalização. Esta, naquele momento, estava muito ligada à noção de desospitalização apenas, significando
sobretudo a tentativa de reduzir o tempo médio de internação dos pacientes, antes internados indefinidamente.

A noção de trabalho comunitário das equipes de saúde mental, apesar de não ser uma novidade
desta corrente, também foi bastante desenvolvida aqui.

As experiências da Comunidade Terapêutica e da Psicoterapia Institucional visavam a uma intervenção no interior do próprio
hospital, numa espécie de reorganização ou democratização de suas relações. Já as experiências da Psiquiatria de Setor e da
Psiquiatria Preventiva tinham como expectativa uma reforma por fora, em meio externo, comunitário (ou “comendo pelas
beiradas”). Porém, existe ainda um outro conjunto de experiências mais radicais que visavam não apenas à reforma ou à
melhoria dos hospitais, mas também ao rompimento com o paradigma psiquiátrico como um todo: a Antipsiquiatria e a
Psiquiatria Democrática.

A Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática


A Antipsiquiatria foi um movimento que ganhou expressão em meio aos movimentos de contestação social dos anos 1960.

Encabeçadas por Ronald Laing e David Cooper, essas experiências partiam do pressuposto de que a mera reforma ou
melhoria da instituição psiquiátrica não era suficiente, já que os loucos eram vítimas de violências não apenas desses locais,
mas também de suas famílias e da sociedade como um todo. Sua crítica ao modelo psiquiátrico não se restringia aos
modelos de tratamento, mas sobretudo aos paradigmas teóricos adotados pela Psiquiatria, que no seu entender adotava
referenciais metodológicos equivocados, herdados das ciências naturais. Segundo eles, o conhecimento em ciências
humanas seria de uma natureza inteiramente distinta, cujas consequências ético-políticas deveriam ser avaliadas. Como
afirmava o próprio Laing: “o que é cientificamente correto pode ser eticamente errado” (LANG, 1988 apud AMARANTE, 2007, p.
53).

Em suma, com a Antipsiquiatria, veremos surgir a primeira crítica ao saber médico-psiquiátrico, no sentido de desautorizá-lo a
considerar a esquizofrenia como uma doença, ou como um objeto que poderia ser fixado dentro dos parâmetros científicos
então adotados.

A doença mental deveria ser pensada como uma certa experiência do sujeito articulada ao meio
social, e não como uma entidade em estado puro.

Segundo Amarante (2007, p. 54):

Na medida em que o conceito de doença mental era então rejeitado, não existiria exatamente
uma proposta de tratamento da ‘doença mental’, no sentido clássico que damos à ideia de
terapêutica.
O princípio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiência; esta seria, por si
só, terapêutica, na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de reorganização
interior.

Ao ‘terapeuta’ competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a superar este processo,


acompanhando-a, protegendo-a, inclusive da violência da própria psiquiatria.

Para a Antipsiquiatria, o que o hospital fazia era reproduzir as mesmas estruturas opressoras da sociedade, produzindo
patologias ao invés de tratá-las. Foi nesse sentido que criaram diversos espaços de contracultura, lugares de vida, espaços
“anti”, pois a loucura poderia ser vista ainda como um movimento de reação a uma cultura alienante, e, nesse sentido, uma
experiência de libertação que guardava dentro de si ainda uma saúde.

A Psiquiatria Democrática tem como principal protagonista o psiquiatra italiano Franco Basaglia, que nos anos 1960 dirigiu o
Hospital Psiquiátrico de Gorizia, numa pequena cidade italiana. Ao propor a reforma do hospital psiquiátrico da cidade,
promoveu uma série de mudanças práticas e teóricas, relatadas no livro A Instituição Negada, de 1968. Conta-se que, ao
adentrar neste hospital pela primeira vez, Basaglia não pôde deixar de compará-lo aos campos de concentração.

No início de seu trabalho, Basaglia se inspirou na Comunidade Terapêutica e na Psicoterapia Institucional, a fim de recuperar o
potencial terapêutico do hospital. Porém, com o passar do tempo, percebeu que esse tipo de mudança não era suficiente,
posto que não seria possível combater processos mortificadores com meras medidas administrativas, ou mesmo
humanizadoras.

Franco Basaglia

Após entrar em contato com as obras de Michel Foucault e Erving Goffman, Basaglia formulou a hipótese de que o manicômio
não deveria ser combatido apenas em seu sentido físico, mas que deveria ser pensado como um aparato que inclui saberes,
práticas sociais, enunciados científicos, medidas administrativas, legais, entre outras.

Basaglia observava que era importante questionar não somente “o manicômio e a psiquiatria como ciência, mas tudo o que,
partindo do território, repelia a doença e a confiava à psiquiatria e ao manicômio” (BASAGLIA, 2005 apud AMARANTE, 2007).
Esse conceito de “aparato manicomial” se assemelha muito ao conceito de “dispositivo” proposto por Foucault, tal como
vimos em nosso primeiro módulo, ao tratar do dispositivo de exclusão da loucura.

Para Basaglia, é esse dispositivo, ou esse “aparato manicomial”, que legitima um lugar de
isolamento, segregação, e patologização das experiências humanas, e apenas com sua
desconstrução seria possível construir um novo lugar social para a loucura.

Além da experiência de Gorízia, Basaglia também realizou um trabalho no Hospital Psiquiátrico de Trieste, no Norte da Itália.
Foi nesse hospital, na década de 1970, que se deu aquela que é considerada, até hoje, a mais bem-sucedida experiência de
transformação da Psiquiatria, constituindo-se como principal referência para o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira
nas décadas de 1980 e 1990, iniciado na cidade de Santos, no estado de São Paulo.

A experiência de Trieste demonstrou que era possível substituir o modelo manicomial, e não apenas reformá-lo. Paralelo ao
fechamento do hospital, surgem então os serviços substitutivos, representados por um conjunto de estratégias alternativas ao
hospital, tendo como finalidade o desmonte daquele enquanto dispositivo de clausura. Diferentemente das demais
experiências, esses serviços, como os clubes ou os Centros de Saúde Mental (CSM), por exemplo, não visavam dar
continuidade ao tratamento manicomial após a alta, ou servir de estabelecimento intermediário, mas, sim, tomar o lugar da
instituição psiquiátrica, substituí-la. Uma das grandes diferenças com relação às experiências anteriores residia na noção de
desinstitucionalização, que, como vimos anteriormente, se restringia à desospitalização, e não à desmontagem do aparato
asilar como um todo.

Para a Psiquiatria Democrática, é a desmontagem desse aparato, que por sua vez envolve uma gama muito grande de atores
sociais, que pode propiciar uma nova relação com os sujeitos em sofrimento mental.

Reforma Psiquiátrica brasileira


O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil tem seu início em meados da década de 1970. Contemporâneo ao processo de
redemocratização da sociedade brasileira, constituiu-se como mais um dos movimentos que expressavam o desejo de
cidadania e justiça social naquele momento. Nesse contexto de abertura política e luta por direitos humanos, o tratamento
dispensado aos psiquiatrizados ganhará visibilidade na forma de uma grande contradição, posto que representava justamente
a imagem do autoritarismo e da negação dos direitos humanos mais básicos. Mais especificamente, esse movimento se
insere no denominado movimento sanitário, da década de 1970, que defendia a mudança dos modelos de atenção e gestão
nas práticas de saúde, a saúde coletiva, a equidade na oferta dos serviços, e o protagonismo dos trabalhadores e usuários
dos serviços de saúde nos processos de gestão e atenção à saúde. Em suma, todo um combate contra as práticas
verticalizadas, isto é, autoritárias, próprias de um Estado tomado por um golpe militar.

Se dissemos que ela se insere neste movimento, é porque, como vimos anteriormente, a Reforma Psiquiátrica tem também
uma história singular, herdeira daquelas experiências que visavam a superação do modelo asilar no pós-guerra.
Mesmo hoje, em cada serviço de saúde mental no Brasil, existe um pouquinho de Comunidade Terapêutica, de Psicoterapia
Institucional, de Antipsiquiatria, de Psiquiatria de Setor, de Psiquiatria Preventiva e, sobretudo, de Psiquiatria Democrática, uma
vez que a experiência de Trieste na Itália demonstrou ser possível o rompimento com os paradigmas tradicionais da
Psiquiatria.

A rigor, podemos dizer que a Reforma Psiquiátrica brasileira é uma grande mistura de tudo isso, somada à peculiaridade de
nosso contexto e à produção de nossos próprios saberes e experiências.

Efetivamente, o início desse percurso se deu em 1978, com os movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos,
como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), formado por trabalhadores do movimento sanitário,
associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de
internações psiquiátrica. A formação desse movimento teve como estopim uma crise na Divisão Nacional de Saúde Mental
(DINSAM), órgão do Ministério da Saúde então responsável pelas políticas de saúde mental (AMARANTE, 1995).

Foi pelo protagonismo desse movimento que se passou a denunciar a violência dos manicômios e a mercantilização da
loucura pelo setor privado, que recebia dinheiro público para manter pacientes internados sob condições desumanas; e,
quanto mais tempo internados e mais desumanas as condições, maiores eram os lucros.

O MTSM passa a protagonizar e publicar essas denúncias, ressaltando a violência promovida nos manicômios. Por meio
desse movimento, foi possível também construir e fortalecer uma crítica mais coletiva ao saber psiquiátrico e seu modelo
hospitalocêntrico.

Em 1987, no 2° Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), foi adotado aquele que viria a ser o principal lema da reforma: “Por
uma sociedade sem manicômios”. No mesmo ano, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, no Rio de Janeiro.
Outros acontecimentos de fundamental importância foram o surgimento do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
do Brasil, em Santos (SP), em 1987, e a emblemática intervenção da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP), em 1989,
na Casa de Saúde Anchieta, um hospital psiquiátrico famoso por maus-tratos e morte de pacientes. Na época, essa
intervenção teve repercussão nacional e provou que era possível construir uma rede de atenção territorial capaz de substituir o
hospital psiquiátrico. Foi o que aconteceu no município de Santos, com a criação dos primeiros Núcleos de Atenção
Psicossocial (NAPS), serviços abertos que funcionavam 24 horas.
Imagem CAPS em Jaguaribe/CE.

Paralelamente, são criados também cooperativas, residências terapêuticas para os egressos do hospital, clubes, centros de
convivência e associações. Essa experiência teve o mérito de demonstrar para todo o Brasil que a superação do manicômio
era possível.

Em 1989, inicia-se a luta do movimento da Reforma Psiquiátrica no campo legislativo, com a entrada do Projeto de Lei no
Congresso Nacional que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção
progressiva dos manicômios no País, de autoria do deputado Paulo Delgado (PT-MG). Esse projeto só seria aprovado em
2001, recebendo o apelido de Lei da Reforma Psiquiátrica.

Em 1986, houve a 8ª Conferência Nacional de Saúde, marco na história da saúde pública brasileira ao propor um novo modelo
para a saúde pública com diretrizes que posteriormente seriam incorporadas ao SUS.

Dentre elas, podemos citar os princípios básicos da universalidade (a saúde deve ser acessível a todos), da integralidade
(todos têm direito à assistência em saúde em todos os níveis da atenção), da equidade (todos devem ser tratados de maneira
igual pelo SUS); e do controle social (a população acompanha as discussões sobre as políticas de saúde por meio das
Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde).

Em 1988, temos a Constituição Federal e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que incorpora diversas demandas do
movimento sanitário, sobretudo aquelas diretrizes estabelecidas pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, descritas acima.

De 1992 até o ano 2000, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, os movimentos sociais conseguem aprovar as
primeiras leis estaduais e municipais em direção à implementação de uma rede extra-hospitalar de cuidados, buscando a
substituição progressiva de leitos hospitalares por uma rede integrada de atenção à saúde mental. Essa tendência ganha
força sobretudo a partir do compromisso assumido pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas (1990), e pela
realização da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental.

Nesse momento, entra em vigor uma série de normativas federais que regulamentam a criação de serviços de atenção diária,
inspirados nos CAPS, NAPS e Hospital-dia. Porém, essa implementação é ainda bastante precária e descontínua.

“Ao final deste período, o país tem em funcionamento 208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para
a Saúde Mental ainda são destinados aos hospitais psiquiátricos” (BRASIL, 2005, p. 08).

A partir de 2001, com o sancionamento da Lei Federal nº 10.216 (Lei Paulo Delgado), que em seu texto redireciona a
assistência em Saúde Mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, um novo ritmo é
dado ao movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Nesse momento, a política de saúde mental do governo federal passa a estar mais alinhada com as diretrizes propostas pela
Reforma Psiquiátrica, dando mais sustentação e visibilidade a ela. É realizada ainda a 3ª Conferência Nacional de Saúde
Mental, consolidando ainda mais esses novos rumos.

Movimentos sociais da luta antimanicomial no Brasil.

Outro fato importante nesse período é o programa De volta pra casa (Lei nº 10.708), destinado a oferecer ajuda financeira para
que egressos de longa data do sistema manicomial possam viver em comunidade.

A Portaria nº MS 106/00, que cria os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) no âmbito do SUS, é publicada, impulsionando
as ações de desinstitucionalização da loucura. É realizado ainda, em 2004, o 1° Congresso Brasileiro de Centros de Atenção
Psicossocial, em São Paulo, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. A partir daí, a rede de atenção extra-
hospitalar, diária e comunitária, se expande, chegando a regiões onde sequer existiam, marcando a transição de um modelo
assistencial centrado no hospital psiquiátrico para um modelo de atenção comunitária, cuja referência do cuidado passa a ser
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e não mais o manicômio.

Os CAPS, por sua vez, têm como objetivo realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo
fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Sendo assim, suas práticas se caracterizam por ocorrerem em ambiente
aberto, acolhedor e inserido no território dos usuários.

O cuidado é realizado prioritariamente em espaços coletivos, como grupos, assembleias, oficinas


e reuniões diárias.

Segundo o Ministério da Saúde (2004), os projetos desses serviços devem ultrapassar sua própria estrutura física, em busca
de uma rede de suporte social que potencialize suas ações, olhando os sujeitos em sua singularidade, sua história, sua
cultura e sua vida cotidiana.

Se, como dizia Basaglia, o modelo psiquiátrico havia colocado a pessoa entre parênteses para se relacionar com a doença, os
dispositivos extra-hospitalares de base comunitária buscam colocar a doença entre parênteses para lidar com pessoas, sendo
que pessoas têm trabalho, vizinhos, amores, família, desejos, problemas concretos, e não apenas mentais.

Por isso, os serviços de atenção à saúde mental precisam ser um lugar de produção de sociabilidade e de vida. É o que
propõe a Reforma Psiquiátrica, tanto no Brasil quanto em outros países.

Hoje, quando utilizamos o termo saúde mental, e não mais doença mental, estamos falando de todo esse processo de
transformação da Psiquiatria, que visou livrá-la de uma prática reduzida meramente ao estudo e tratamento de doenças.

A expressão dessa mudança, que não é só conceitual, se expressa na forma como os serviços de atenção à saúde mental se
organizam nos dias de hoje, em que o hospital não possui, ou não deve possuir, o lugar de centralidade ou referência na
atenção aos sujeitos em sofrimento psíquico, mas, sim, os serviços de atenção comunitária, como é o caso dos CAPS.

Ademais, contemporaneamente, até mesmo o termo saúde mental recebeu um complemento, passando a ser referido como
saúde mental e atenção psicossocial (AMARANTE, 2007). Isso porque a atenção à saúde mental é uma tarefa complexa,
realizada no território existencial de sujeitos em liberdade, algo que vai exigir a articulação de diversos dispositivos.

Dentre esses dispositivos, podemos citar Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Residências
Terapêuticas (SRTs), Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento (UAs), leitos de
atenção integral em Hospitais Gerais, ambulatórios de saúde e de saúde mental, atenção
Hospitalar de Urgência e Emergência.

Também poderíamos incluir diversas outras instituições, como serviços de assistência social, jurídicos, associação de
moradores, clubes, escolas, instituições religiosas etc. Enfim, tudo aquilo que um sujeito em liberdade pode ter acesso.

Agora vamos ver um vídeo em que o especialista reflete sobre as diversas influências, etapas e os dispositivos da Reforma
Psiquiátrica no Brasil até a atualidade.
video_library
O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Quando falamos em Reforma Psiquiátrica, estamos nos referindo a iniciativas que visam interferir no paradigma
tradicional de atenção à saúde mental. De acordo com o que vimos em nosso conteúdo, uma das primeiras tentativas de
superar o modelo manicomial foram as:

A Comunidades alternativas.

B Colônias de alienados.

C Casas de correção.

D Colônias de caridade.

E Comissões de humanização.

Parabéns! A alternativa B está correta.

No final do século XIX e início do XX, surgiram muitas iniciativas com propostas de enviar os loucos para regiões
afastadas das cidades, a fim de que eles pudessem viver em pequenas comunidades de trabalho rural, acreditando que
este poderia ser um fator de cura das moléstias mentais. Esses lugares eram denominados “colônia de alienados”.

Questão 2

O movimento da luta antimanicomial, inserido no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira e sua Rede de Atenção
Psicossocial, tem como principal utopia:
A A humanização do hospital psiquiátrico.

B A reforma do manicômio.

C A democratização dos hospitais psiquiátricos.

D A substituição do tratamento manicomial.

E A descentralização da gestão hospitalar.

Parabéns! A alternativa D está correta.

Inspirado sobretudo na Reforma Psiquiátrica italiana, o movimento da luta antimanicomial visa à completa substituição
do manicômio em benefício de uma rede substitutiva aberta e de base comunitária.

Considerações finais
Pensar a saúde mental, e não apenas a doença mental, significa habitar um processo social complexo cuja utopia remete para
a construção de um novo lugar social para os sujeitos em sofrimento mental. Mais do que uma mudança assistencial ou
médico-psicológica, significa mudar as relações da sociedade com a loucura.

Como afirmamos no início deste percurso, a história da loucura era a história dos momentos em que a loucura se tornou um
problema para os modos de vida de uma sociedade, ou seja, um problema a ser tratado.

Por outro lado, os movimentos de Reforma Psiquiátrica questionam esse estado de coisas e colocam as características
excludentes de determinada sociedade como problema.

Para você, que chegou até aqui, isso pode parecer óbvio, mas talvez não fosse antes de ter percorrido todo esse processo, e
certamente não é para a maioria da população.

Ou seja, o problema não está na experiência da loucura, que já foi recebida de muitas maneiras por diferentes sociedades e
em diferentes tempos históricos, mas, sim, na maneira de viver de uma sociedade que se constitui de tal modo que a diferença
não tem mais lugar, a não ser o silenciamento, a exclusão e a morte, seja essa biológica seja existencial.
O problema da Reforma Psiquiátrica não é tanto destituir as formas de tratamento da loucura, que, no entanto, enquanto
reprodutoras de opressão, devem ser denunciadas, e sim intervir nas causas sociais que condenam o louco ao isolamento, o
que já seria uma prática de produção de saúde e, talvez, uma das mais urgentes.

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Podcast
Agora, o especialista Luiz Renato Paquiela Givigi irá desenvolver os antecedentes históricos, panorama geral e perspectivas da
Reforma Psiquiátrica no Brasil, apresentando os diversos impasses e desafios.

Referências
AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Coordenado por Paulo Amarante. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1995.

AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

BRASIL. Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à
Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de
2005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília, 2004.

FOUCAULT, M. Eu sou um pirotécnico. In: Pol-Droit, R. (org). Michel Foucault: entrevistas. São Paulo: Graal, 2006.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

FOUCAULT, M. O jogo de Michel Foucault (1977). In: Ditos & Escritos IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2014. 

FOUCAULT, M. A história da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972.


RESENDE, H. Política de Saúde Mental no Brasil: uma visão histórica. In: TUNDIS, S. A.; COSTA, N. R. (Orgs.). Cidadania e
Loucura: Políticas de Saúde Mental no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1990.

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Não deixe de assistir ao clássico filme de Laís Bodanzky, Bicho de Sete Cabeças (2000), que apresenta a história de um
jovem que, por apresentar problemas e conflitos com o pai, acaba sendo internado em um manicômio, sofrendo todos os
abusos e maus tratos típicos desse lugar.

É muito importante assistir no YouTube ao documentário de Daniela Arbex e Armando Mendz, intitulado Holocausto
Brasileiro (2016), que apresenta, com depoimentos e documentos, a triste história do hospital Colônia, em Barbacena (MG),
onde milhares de pessoas passaram fome, frio e sofreram tortura ao serem internados e excluídos da sociedade. Há ainda o
livro homônimo de Daniela Arbex.

O documentário Estamira é também um excelente exemplo que ilustra a vida de uma mulher que apresentava sintomas de
transtorno mental e trabalhava catando lixo no aterro sanitário de Jardim Gramacho, na cidade do Rio de Janeiro. Também
disponível no YouTube.

Outra excelente opção é o livro O Alienista, de Machado de Assis, fundamental para todo futuro profissional em saúde
mental. Disponível no site Domínio Público.

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