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POLÍTICAS

SETORIAIS III

Klauze Silva
Reinserção social
e saúde mental:
desafios e possibilidades
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar os conceitos e o contexto histórico relacionados à saúde


mental.
 Descrever a rede de atenção à saúde mental brasileira, seus procedi-
mentos e seus desafios.
 Identificar as dificuldades e possibilidades do processo de reinserção
social das pessoas com transtornos psíquicos.

Introdução
O campo da saúde mental tem uma trajetória recente na história da saúde
brasileira, vinculada ao processo de desinstitucionalização. Inicialmente, as
pessoas tidas como loucas viviam segregadas em instituições hospitalares
e manicomiais, sendo submetidas a tratamentos degradantes. Ao longo
do tempo, ocorreram avanços por meio de medidas assistenciais, do
atendimento ambulatorial promovido pelos Centros de Apoio Psicossocial
(CAPSs) e da articulação em rede com o Programa Saúde da Família e
outras políticas sociais. Hoje, o usuário da saúde mental é compreendido
como portador de direitos sociais e protagonista da sua história.
Neste capítulo, você vai conhecer conceitos relacionados à saúde
mental. Você também vai ver como funciona a rede de atenção à saúde
mental brasileira, seus procedimentos e seus desafios. Por fim, vai verificar
as dificuldades e possibilidades do processo de reinserção social das
pessoas com transtornos psíquicos.
2 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

Saúde mental: conceitos e contexto histórico


Para você compreender melhor a evolução do conceito de doença mental, deve
considerar a trajetória que se inicia com o desenvolvimento da psiquiatria.
Para Foucault (2002), a questão da loucura deve ser estudada no tempo e no
espaço do desenvolvimento da sociedade capitalista. Afinal, a condição de
pertencimento ou não pertencimento à sociedade é uma construção valorativa,
imbuída da moral estabelecida em cada contexto histórico.
A doença, no aspecto biológico, apresenta-se como uma condição inade-
quada em relação à saúde (norma). Ou seja, a doença caracteriza-se por ser
uma anormalidade. Indo além, Silva (2008, p. 142) afirma que “[...] o patológico
não é apenas um desvio da norma, mas uma norma diferente, valorizada como
inferior [...]”. Dessa forma, a medicina situa-se no campo do valor, cabendo a
elaboração epistemológica dos parâmetros normativos orientadores da tera-
pêutica. Estabelecem-se, assim, padrões patológicos e condutas terapêuticas.
A partir das análises de Canguilhem (2002), pode-se inferir que a deter-
minação valorativa da doença tem sido uma construção da própria vida, na
medida em que se apreende como negativo tudo aquilo que infringe a vida.
Nesse sentido, a condição negativa dada à vida constitui o parâmetro da
medicina para avaliar a condição de saúde ou doença das pessoas. Ou seja:
Parte-se do pressuposto de que a vida é um valor fundamental para o ser
humano e, como tal, serve de baliza para a análise no campo da medicina. Aquilo
que afeta a vida tem valor negativo e necessita ser combatido; no caso, o que
afeta a vida é a doença. A vida se expressa não somente pela condição de saúde,
mas também pela forma como os seres viventes relacionam-se em sociedade.
A sociedade pode ser vista como um constructo de normas elaboradas a partir
da hierarquização de valores. Pressupõe-se que os seres humanos optem pela
melhor forma de se viver em determinada sociedade. O papel do Estado, nesse
contexto, é proporcionar os mecanismos necessários a uma vida saudável dos
sujeitos sociais. No campo da saúde mental, estabelecem-se as orientações a partir
do que se considera anormal conforme os critérios de normalidade ora discutidos.
Assim, a psiquiatria funda-se nos princípios valorativos constitutivos da
norma moral para estabelecer o parâmetro entre saúde e doença. A história
da psiquiatria passa pelo sistema judiciário nacional. Os psiquiatras eram
convocados a elaborarem pareceres de anormalidade nos casos envolvendo
crimes. Nesse contexto, a anormalidade é definida a partir da transgressão
das regras sociais postas. As primeiras incursões da psiquiatria no espaço
jurídico acontecem pelo caráter antropófago e incestuoso do criminoso, que
expressaria a sua anormalidade.
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 3

A história da psiquiatria no Brasil data da época do império. Nesse período,


membros do império e da rica sociedade carioca que apresentavam conduta
desviante eram internados em instituições asilares e em casas de misericór-
dia, sendo afastados do convívio social por serem motivo de vergonha para
suas famílias. O atendimento individualizado aos pacientes com transtornos
mentais surge a partir do século XVII, quando sujeitos “normais” e sujeitos
“não normais” começam a ser separados.
Foucault (2002) trata a questão da doença mental a partir das relações de
poder nas sociedades capitalistas. Para ele, o poder nas sociedades contem-
porâneas é marcado pela vigilância, pela correção e pelo controle. A vida
moderna, a partir do século XVIII, caracteriza-se pelo disciplinamento às
normas. A anormalidade encontra-se no espaço da transgressão às normas e
cabe à psiquiatria readaptar o sujeito para a vida em sociedade.
Foi a partir do uso do conceito de “normal” e “anormal” que ocorreu a
segregação social do doente mental em instituições de abrigamento e longa
permanência, os hospitais psiquiátricos. Era necessária a exclusão social dessas
pessoas para se alcançar êxito no tratamento. Esse processo segue a lógica
prisional de abrigamento com a finalidade de resolver problemas gerados pelo
comportamento transgressor. Além da reclusão em manicômios, os doentes
mentais eram submetidos a tratamentos degradantes e humilhantes à sua con-
dição de sujeitos sociais. “No tratamento eram utilizados diversos recursos, que
variavam desde a internação em si, as técnicas de hidroterapia, a administração
exagerada de medicamentos, e até a aplicação de estímulos elétricos ou até mesmo
o uso de procedimentos cirúrgicos [...]” (FREITAS, 2018, documento on-line).
A história da loucura passa também pela dimensão religiosa. Por muito
tempo, a loucura foi vista como possessão demoníaca provocada por ações de
bruxaria. Aos comportamentos desviantes, cabia a exclusão, sem a alternativa
de tratamento. A maioria das instituições asilares era vinculada à Igreja Católica
e servia de cárcere, pois mantinha o doente mental afastado da sociedade,
submetido a um tratamento desumano.
A ideia da segregação social do doente mental perdurou por longo período
na história da psiquiatria nacional, com consequente ampliação de manicômios
em todo o País. O foco do atendimento nesses lugares era a doença, e não
o sujeito. Entendia-se que essas pessoas não tinham a autonomia necessária
para decidir sobre os rumos da sua própria vida e muito menos para opinar a
respeito do tratamento que recebiam. Considere o seguinte:
4 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

No ano de 1912, foi promulgada a primeira Lei Federal de Assistência aos


então tidos como Alienados, seguida do ganho de status de uma especialidade
médica autônoma aos médicos psiquiatras, aumentando assim o número das
instituições destinadas aos doentes de transtornos mentais. A criação dessas es-
truturas manicomiais visava à criação de espaços de poder disciplinadores por
meio de hospitais ou de clínicas especializadas. A disciplina realizada nessas
instituições também produzia socialmente a normalização dos comportamen-
tos, sendo passíveis de intervenção do saber médico psiquiátrico, sendo uma
atuação de higienização da sociedade (FREITAS, 2018, documento on-line).

No contexto mundial, observa-se uma mudança no campo da psiquiatria a partir


do século XIX, com a introdução da psiquiatria científica, seguindo os padrões
europeus. Na França e nos Estados Unidos, surge um movimento de contestação
ao tratamento dispensado ao doente mental até a Segunda Guerra Mundial. Esses
movimentos lutam pela humanização da atenção ao portador de sofrimento mental.
No Brasil, a década de 1970 é marcada pelo Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental, que denuncia o tratamento desumano e violento ao qual estão
submetidos os pacientes, assim como as péssimas condições de trabalho nesses
espaços. Mais tarde, mudanças foram impulsionadas pela psiquiatria positiva, que
visava a compreender a dimensão do sujeito social, e não mais focar na doença.
O movimento antimanicomial brasileiro torna-se evidente a partir da década
de 1980, com o claro propósito de extinguir os manicômios e as formas desumanas
com que eram tratados os usuários desses serviços. O produto desse processo é a
Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001). Essa lei propõe
a regulamentação dos direitos das pessoas com transtornos mentais e o fim do
asilamento compulsório. Além disso, prevê o modelo assistencial aos sujeitos
com transtorno mental numa perspectiva de aquisição de direitos sociais. Veja:

A Lei 10.216 diz sobre os direitos da pessoa doente mental, de sua autono-
mia quanto aos tratamentos propostos, da não internação desnecessária, da
internação voluntária e involuntária, e da reinserção do doente em seu meio
social, ou seja, o doente mental precisa ser visto como um indivíduo que
apresenta uma doença, e como em outras doenças, precisa receber o melhor
tratamento disponível para que assim ele consiga ter uma melhor qualidade
de vida (BRASIL, 2001 apud FREITAS, 2018, documento on-line).

O movimento de reforma psiquiátrica busca mudar a concepção do trata-


mento oferecido aos usuários da saúde mental, que passa a ser orientado pela
assistência de qualidade. Visa-se a um atendimento extra-hospitalar, em meio
aberto, considerando a autonomia do sujeito para decidir sobre a sua vida.
As conferências nacionais de saúde protagonizaram mudanças na assistência
em saúde mental, como a introdução do trabalho interdisciplinar e a conse-
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 5

quente ampliação da equipe de trabalho, somando esforços em conjunto com


assistentes sociais e psicólogos. Nessa direção, inaugura-se o Centro de Apoio
Psicossocial (CAPS) e o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAP), promovendo
um atendimento que visa a compreender o sujeito social em sua totalidade.
Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) elenca
algumas recomendações relativas às ações em saúde mental. Veja a seguir.

 Proporcionar tratamento em cuidados primários: ampliação do acesso.


 Disponibilizar medicamentos psicotrópicos: esses medicamentos devem
ser incluídos nas listas de medicamentos essenciais de todos os países
e os melhores devem estar disponíveis sempre que possível.
 Proporcionar cuidados na comunidade: os serviços de base comu-
nitária podem levar a intervenções precoces e limitar o estigma
associado ao tratamento.
 Educar o público: é necessário reduzir os obstáculos ao tratamento e aos
cuidados, aumentando a consciência sobre a frequência das perturbações
mentais, a sua suscetibilidade ao tratamento, o processo de recuperação
e o respeito pelos direitos humanos das pessoas com tais perturbações.
 Envolver as comunidades, as famílias e os utentes: esses atores devem
ser incluídos na formulação e na tomada de decisões sobre políticas,
programas e serviços.
 Estabelecer políticas, programas e legislação nacional: a política, os
programas e a legislação sobre saúde mental constituem fases neces-
sárias de uma ação significativa e sustentada, devendo basear-se nos
conhecimentos atuais e na consideração pelos direitos humanos.
 Preparar recursos humanos: deve-se aumentar e aperfeiçoar a formação
de profissionais para a saúde mental. Tais profissionais prestarão cuidados
especializados e apoiarão programas de cuidados primários de saúde.
 Estabelecer vínculos com outros setores: outros setores, como educa-
ção, trabalho, previdência social e direito, bem como certas organi-
zações não governamentais, devem participar da melhoria da saúde
mental das comunidades.
 Monitorar a saúde mental na comunidade: a saúde mental das comu-
nidades deve ser monitorada por meio da inclusão de indicadores de
saúde mental nos sistemas de informação e de notificação de saúde.
 Apoiar a pesquisa: há necessidade de mais pesquisas sobre os aspec-
tos biológicos e psicossociais da saúde mental. A ideia é melhorar a
compreensão das perturbações mentais e desenvolver intervenções
mais eficazes.
6 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

Em 2001, a OMS divulgou o Relatório sobre a Saúde no Mundo. Tal documento buscou
renovar a importância de princípios proclamados pela Organização das Nações Unidas
(ONU) na década anterior: não deve existir discriminação devido a doenças mentais;
na medida do possível, deve-se conceder a todo paciente o direito de ser tratado e
atendido em sua comunidade; todo paciente deve ter o direito de ser atendido num
ambiente o menos restritivo possível, com o tratamento menos intrusivo possível
(OMS, 2002).

Rede de atenção à saúde mental:


procedimentos e desafios
O processo de desinstitucionalização no campo da saúde mental vem ocorrendo
desde a década de 1990, com a implementação do Sistema Único de Saúde
(SUS) e da Política Nacional de Saúde Mental. A reforma psiquiátrica marca
uma mudança na concepção de atenção à saúde mental, que passa a considerar
um modelo assistencial baseado em processos humanizados. Assim, enfatiza-
-se a autonomia das pessoas em sofrimento mental e focaliza-se a atenção em
saúde comunitária. Como pontua Barros e Salles (2011, documento on-line),
“[...] o processo de Reforma Psiquiátrica é um conjunto de transformações de
práticas, saberes, valores culturais e sociais em torno do louco e da loucura, mas
especialmente em torno das políticas públicas para lidar com a questão [...]”.
Antes de seguir, você deve ter em mente o conceito de desinstitucionaliza-
ção. Desinstitucionalizar é muito mais do que retirar os usuários em condição
de internação das instituições psiquiátricas e transportá-los para tratamento
na comunidade. A desinstitucionalização envolve uma mudança na cultura
política, ideológica e social. Trata-se da formulação de uma política pública
em vias de descentralização político-administrativa cuja capilaridade atenda
aos municípios remotos e, dessa forma, dissemine a cultura do tratamento
comunitário assistencial.
O processo de desinstitucionalização pode ser observado sob três aspectos:
“[...] a desinstitucionalização como desospitalização, a desinstitucionalização
como desassistência e, por último, a desinstitucionalização como desconstrução
[...]” (AMARANTE, 1996 apud HIRDES, 2009, p. 299). Do ponto de vista da
desospitalização, observa-se a redução de custos públicos, sem perspectiva de
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 7

alteração no tratamento do usuário. A desassistência aponta para o abandono


terapêutico do usuário, influenciado por condutas conservadoras e aspectos
econômicos. A questão da desconstrução inspira-se no movimento sanitarista
quanto à crítica na centralidade do saber médico, na perspectiva de construir
uma nova cultura de atenção aos usuários da saúde mental.
Torna-se imperativo pensar no processo de desinstitucionalização para além
do proposto por Amarante (1996 apud HIRDES, 2009). O modelo indicado
na reforma psiquiátrica deve refletir os condicionantes socio-históricos. Para
tanto, apreende-se modelo como um conjunto de “[...] técnicas, tecnologias,
conceitos e teorias existentes em um certo momento social, político e histórico,
compondo um tipo de organização que preza por responder a uma determinada
demanda, por meio de uma certa racionalidade orientadora das práticas [...]”
(TRAPÉ; CAMPOS, 2017, documento on-line).
Pressupõe-se a desinstitucionalização a partir do modelo assistencial pro-
posto pela reforma psiquiátrica: propugnado no aparato legal, com a quebra
do paradigma médico centrado na compreensão da doença. Assim, desloca-se
a ideia de cura para a proposta de saúde como atenção integral ao usuário.
Também estão em jogo: a intervenção multidisciplinar no diálogo de diferentes
saberes em torno da saúde mental; a recusa ao modelo manicominal; a redução
de custos nos tratamentos comunitários; e o apoio aos serviços substitutivos
da internação. Dessa forma, busca-se compreender o usuário da saúde mental
em sua totalidade e no modo como se relaciona em sociedade, prevalecendo
a autonomia pessoal e a perspectiva de transformação.
Veja o que afirma Hirdes (2009, p. 300):

Os projetos de atendimento surgidos nos últimos anos têm de saída a recusa


do modelo sintomático em benefício da criação de uma clínica psiquiátrica
renovada, deslocando o processo do tratamento da figura da doença para a
pessoa doente. Nestes novos espaços, as ações antes centradas nos sinais e
sintomas, na classificação dos diferentes quadros nosográficos, em suma,
na medicalização da loucura, passam a ter outro enfoque, que é o de falar
de saúde, de projetos terapêuticos, de cidadania, de reabilitação e reinserção
social e, sobretudo, de projetos de vida.

A saúde mental brasileira vem evoluindo ao longo dos anos, especialmente


a partir da legislação nacional, ao contemplar, ainda que sumariamente, os
princípios e propósitos referendados pelo movimento de reforma psiquiátrica.
É o que você pode ver no Quadro 1, a seguir.
8 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

Quadro 1. Evolução histórica da saúde mental no Brasil

Período histórico Características principais

1990 (Lei nº 8.080 e SUS: Coordenação de Saúde Mental do Ministério da


Lei nº 8.142) Saúde (COSAM) considera a assistência psiquiátrica de
má qualidade, centrada no leito hospitalar.
NOB-SUS (Norma Operacional Básica): transformação do
modelo assistencial e diversificação dos procedimentos.

1992 a 2001 Implementação de estratégias de desinstitucionaliza-


ção; primeiras experiências de humanização e controle
da hospitalização; ampliação da rede ambulatorial em
saúde mental e início do financiamento; implantação de
novos serviços substitutivos.

2000 a 2002 (Lei Expansão da rede de atenção psicossocial, com financia-


nº 10.216) mento para implantação de dispositivos de desinstitucio-
nalização e início da expansão da agenda política para
novos problemas a serem enfrentados, como a questão
das crianças e adolescentes e o abuso de drogas.

A partir de 2003 Consolidação da hegemonia reformista, com projetos


específicos para situações específicas, como o Programa
de Volta para Casa, e maior articulação de políticas
intersetoriais.

Fonte: Adaptado de Barros e Salles (2011).

A Política Nacional de Saúde Mental propõe referendar os princípios e


diretrizes apontados pelo movimento de reforma psiquiátrica, especialmente
em relação à atenção à saúde mental de base comunitária. A ideia é proporcio-
nar o livre acesso das pessoas que enfrentam sofrimento mental aos serviços
públicos de natureza distinta, assim como a circulação delas pela cidade.
Também objetiva-se reduzir o número de leitos de internação hospitalar por se
considerar esse serviço de péssima qualidade. Em contrapartida: amplia-se a rede
de assistência extra-hospitalar por meio dos CAPSs; possibilita-se o atendimento
em Serviços de Residência Terapêutica (SRTs); criam-se leitos psiquiátricos em
hospitais gerais; e referenciam-se ações de saúde mental nos serviços de atenção
básica. Enfim, abrem-se novos espaços para o atendimento das demandas no campo
da saúde mental, proporcionando ao usuário maior mobilidade entre os equipa-
mentos públicos e atendimento humanizado, respeitando as suas necessidades.
Os CAPSs surgem para atender às demandas inicialmente previstas para os
hospitais psiquiátricos. Eles visam ao atendimento humanizado, com propostas
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 9

de integração social a fim de abarcar as necessidades dos usuários em saúde


mental no cotidiano das relações sociais. Para atender às necessidades sociais
dos usuários em saúde mental, os CAPSs possuem diferentes modalidades.

Os CAPSs oferecem assistência às pessoas no campo da saúde mental a partir de


atendimento médico e acompanhamento de um técnico de referência. Esse profissional
pode ser assistente social, psicólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta ou educador
físico. O técnico de referência é responsável pela conduta terapêutica a ser desenvolvida
com o usuário, assim como pelo acolhimento da família no desenvolvimento da
proposta terapêutica. Acesse o link a seguir para conferir as modalidades dos CAPSs.

https://qrgo.page.link/Hk1Nu

Os SRTs visam a minimizar os casos de ausência de moradia para aqueles


usuários que tiveram um longo período de permanência hospitalar e perderam
o vínculo familiar. Por sua vez, o Programa de Volta para Casa prevê o paga-
mento mensal de auxílio-reabilitação para a inclusão social dos egressos dos
serviços asilares. Já os CAPSs, como você viu, disponibilizam atendimento
ambulatorial, desenvolvem ações referendadas no modelo assistencial e pro-
movem a articulação com a rede de serviços socioassistenciais no âmbito da
saúde e das demais políticas sociais.
As Comunidades Terapêuticas (CTs) têm se tornado estratégias de ação
no campo da Política Nacional Antidrogas no Brasil desde 1980, acolhendo
usuários de substâncias psicoativas e ofertando atividades terapêuticas em
ambiente recluso. O tempo de permanência varia, podendo chegar a 12
meses. Os idealizadores desse projeto no Brasil objetivavam atender aos
princípios e diretrizes elaborados pelo movimento de luta antimanicomial,
que preconizava o atendimento humanizado aos usuários da saúde mental
e o processo de desinstitucionalização. Esse movimento tem no dia 18 de
maio o seu marco inicial. A data “[...] remete ao Encontro dos Trabalhado-
res da Saúde Mental ocorrido em 1987, na cidade de Bauru, no estado de
São Paulo, que reuniu mais de 350 trabalhadores da área de saúde mental
indignados com o tratamento desumano recebido pelos pacientes dessa
área [...]” (FRACASSO, 2017, documento on-line).
10 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

O escopo da proposta é a oferta de serviço no campo da saúde mental


segundo o modelo psicossocial, por meio de atendimento humanizado, em
ambiente fechado, sob forte influência religiosa. Pressupõe-se a composição
de equipe profissional, porém sem a definição das disciplinas integrantes
da equipe. Segundo Woerner (2015, p. 176):

Estima-se que as comunidades terapêuticas no Brasil atendam cerca de 80%


das pessoas com transtornos decorrentes do uso e abuso de SPA [substância
psicoativa] (DANTAS, 2013), sendo esse um serviço de saúde vinculado
diretamente ao SUS. Observa-se, assim, que tais instituições apresentam um
número de atendimentos expressivos.

Desde 2015, a Política Nacional Antidrogas vem sofrendo fortes e severos


ataques quanto à sua concepção e à sua execução. Recentemente, vê-se mudanças
na organização dos processos de gestão dessa política, que passa a ser vinculada
ao Ministério da Justiça e não mais ao Ministério da Saúde, como preconiza a Lei
nº 10.216/2001, que prevê o fim de estruturas asilares/hospitalares segregadoras
e desumanas no atendimento a pessoas em sofrimento mental.
Os impactos nefastos dessa proposta vêm se consolidando ao longo dos úl-
timos anos. Inicialmente, nota-se a pretensa, porque não se efetivou, nomeação
para o cargo de coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde de um
psiquiatra com larga experiência em um hospital considerado um dos maiores
hospícios do Brasil. Além disso, houve a reorganização do financiamento da
saúde mental: os hospitais psiquiátricos passaram a receber parte significativa
dos recursos financeiros, em detrimento da expansão dos serviços substitutivos,
conforme preconiza a legislação em vigor.
Veja o que aponta Evangelista (2017, documento on-line, grifo nosso):

[...] para Leonardo Vidal Mattos, coordenador do Grupo de Pesquisa e Do-


cumentação sobre o Empresariamento na Saúde da UFRJ, mais do que uma
estagnação, o que está acontecendo é uma mudança no caminho do dinheiro
público nessa área. Isso porque, segundo ele, com foco no tratamento de usuá-
rios de álcool e outras drogas, a saúde mental tornou-se um negócio lucrativo.
“Eu acho que está mais para retrocesso do que estagnação. Se analisarmos
a política pública que defendemos, da reforma psiquiátrica, de fato, há uma
estagnação, mas se olharmos para um panorama mais amplo, considerando
o avanço das comunidades terapêuticas, eu acho que pode se dizer que é um
retrocesso”, explica Mattos.
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 11

As mudanças propostas na legislação da saúde mental sofreram intensa


pressão da iniciativa privada, que busca a expansão da rede hospitalar de
psiquiatria, com a inclusão de tratamentos como eletroconvulsoterapia (eletro-
choque). Outra linha de pressão ao governo centra-se no lobby exercido pelas
bancadas religiosas do Congresso Nacional para a ampliação do atendimento
aos transtornos vinculados ao uso de álcool e drogas nas CTs, conforme aponta
Evangelista (2017, documento on-line):

Para Paulo Amarante, a resposta pode ser encontrada no lobby feito pelas
bancadas religiosas no Congresso Nacional. “As igrejas com seus poderes
financeiro, econômico e ideológico incidem diretamente sobre o poder político
que as representa. As comunidades terapêuticas são parte de um processo que
se dá por meio de liberação de emendas parlamentares”, afirma Amarante.

De acordo com Fracasso (2017), as federações que organizam e sistemati-


zam o conteúdo das CTs assinalam como elementos essenciais ao tratamento
para a abstinência:

 prática de espiritualidade sem imposição de crenças religiosas;


 internação e permanência voluntárias, entendidas como uma interven-
ção que objetiva auxiliar o dependente de substâncias psicoativas a se
reinserir na sociedade, assumindo suas funções como cidadão, membro
de uma família e trabalhador e/ou estudante;
 ambiente residencial com características de relações familiares, saudável
e protegido técnica e eticamente, livre de drogas e violência, assim como
de práticas sexuais (temporariamente, neste último caso);
 convivência entre os pares, participando ativamente da vida e das ati-
vidades da CT;
 critérios de admissão, permanência e alta definidos com o conhecimento
antecipado do dependente candidato e de seus familiares/responsáveis;
 aceitação e participação ativa no programa terapêutico definido e
oferecido pela CT, tanto pelos dependentes como pelos familiares/
responsáveis;
 utilização do trabalho como valor educativo e terapêutico no processo
de tratamento na CT e na recuperação do dependente;
 acompanhamento pós-tratamento de, no mínimo, um ano após o epi-
sódio da internação.
12 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

Esse modelo de atenção aos usuários de álcool e drogas perdurou no Brasil


até meados do século XXI. Em 2014, foi realizada consulta pública para
normatização e regulamentação das CTs. Instituições que representam os
profissionais da saúde mental produziram material teórico-metodológico
argumentativo a respeito da necessidade ou não de regulamentar esses espaços.
O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) produziu um documento
intitulado “Nota sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas: contri-
buições do CFESS para o debate” (2014). Esse documento foi produzido em duas
versões, cada uma respondendo aos debates preliminares. No texto, o CFESS
(2014) posiciona-se contrário à regulamentação das comunidades terapêuticas.
Hegemonicamente, o Serviço Social manifesta-se em defesa da classe
trabalhadora e da viabilização dos direitos sociais. Dessa forma, o assistente
social deve pautar-se pelo projeto ético-político profissional, embasado na
legislação que regulamenta a profissão. Só assim pode construir uma prática
reflexiva, transformadora e emancipatória.
A seguir, veja alguns pontos relevantes destacados pelo CFESS (2014) no
documento a respeito das CTs:

 política antidrogas, que deve acompanhar a concepção adotada pela Lei


nº 10.216/2001, por se configurar como um instrumento democrático e
representar a luta histórica da sociedade;
 defesa dos princípios constitucionais que tratam a saúde como direito
fundamental e dever do Estado;
 Estado laico, que tem a obrigação de respeitar todas as expressões
religiosas — portanto, a imposição religiosa nos serviços de saúde
contraria a laicidade desse Estado;
 indefinição quanto à composição da equipe multiprofissional e ao
aparato teórico-metodológico, técnico-operativo e ético-político;
 estratégia de redução de danos, que não exclui processos de abstinência
como etapa possível e reforça a ideia da complexidade do tratamento
com dependência química;
 tempo de permanência de internação, que, segundo os preceitos do SUS,
deve ser entre 45 e 90 dias para internações sob efeito de álcool e drogas;
 atividade de laborterapia, apropriada como atividade laborativa sem
proteção social, na medida em que a rentabilidade retorna para a CT;
 ausência de penalidades e/ou restrições às comunidades terapêuticas
ao descumprirem a regulamentação.
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 13

Como você pode notar, a presença do assistente social nas comunidades


terapêuticas deve se pautar pelo aparato legal que organiza e rege a profissão
e, sobretudo, fundamentar-se no projeto ético-político profissional. Muitos são
os desafios postos ao exercício profissional no campo da saúde mental, porém
maior é a necessidade de qualificar esse espaço, consolidando o arcabouço
teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo.
Ainda que as CTs representem espaços socio-ocupacionais para os assis-
tentes sociais, é necessário problematizar o desalinhamento das comunidades
em relação aos princípios e diretrizes aprovados pela Lei da Reforma Psiqui-
átrica. Um resgate histórico mostra que o movimento de luta antimanicomial
se posicionou contrário à inserção das CTs no rol de serviços prestados aos
usuários de álcool e drogas. Tal posição justifica-se pela ausência de eficácia
científica na prestação desse serviço. Diante do movimento contrário dos
apoiadores da proposta de reforma psiquiátrica e de parcela da população, as
reivindicações a respeito das CTs foram acolhidas pelo Ministério da Justiça,
que se propôs a regulamentar as atividades.
Segundo texto publicado pelo Conselho Regional de Serviço Social do Rio
Grande do Norte (CRESS/RN, 2017, documento on-line):

O Ministério da Saúde, ao definir a política de atenção integral às pessoas que


consomem drogas ou delas são dependentes, reafirma que o local apropriado
para atendimento é a rede proposta pelo SUS, que se baseia no atendimento
realizado próximo ao ambiente de moradia dos/as usuários/as, evitando, dessa
forma, que as pessoas sejam isoladas e segregadas.
Vale salientar que a resolução que regulamenta as comunidades terapêuticas,
apesar de aprovada pelo Conad, encontra-se suspensa pela justiça, que compre-
ende que a regulamentação fere princípios básicos da política e da Lei 10.216.
A inclusão das comunidades terapêuticas no rol de serviços de saúde mental
altera a lógica da Reforma Psiquiátrica, incluindo serviços que não possibilitam
a construção da autonomia dos/as usuários/as.

A Política Nacional de Saúde Mental, ancorada nas prerrogativas da


reforma psiquiátrica e na Lei nº 10.216/2001, expressa uma conquista dos
trabalhadores e comunidades envolvidas na saúde mental. Ela é fruto de
um longo processo de pesquisas e amadurecimento técnico-científico e,
sobretudo, da humanização do atendimento aos usuários da saúde mental.
A desinstitucionalização supõe o rompimento de estruturas que enclausuram
sujeitos sociais, destituindo-os de sua natureza de seres humanos. Portanto,
14 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

“[...] desinstitucionalizar é reintegrar pessoas que, por violência histórica,


passaram a morar nos manicômios longos anos da sua vida, mas é também
impedir reinternações repetidas [...]” (REIS, 2019, documento on-line).

O campo da saúde mental deve ser apreendido na sua dimensão intersetorial. Afinal,
ele promove o diálogo transversal com as diversas políticas sociais na articulação de
demandas para infância e juventude, idosos, população adulta, usuários de álcool
e drogas. Tal diálogo se dá na interface com políticas de trabalho, renda e cultura,
visando à inclusão social.

Reinserção social: possibilidades e dificuldades


O modelo assistencial proposto pela reforma psiquiátrica avançou muito no aten-
dimento aos usuários da saúde mental, em especial quanto aos mecanismos de
desinstitucionalização e segregação social. O usuário dos serviços de saúde mental
passou a ser visto como sujeito de direitos, podendo conviver em sociedade.
Os CAPSs aperfeiçoaram o atendimento ambulatorial aos usuários da
saúde mental, proporcionando atendimento multidisciplinar e se constituindo
como lugares de passagem e tratamento. As atividades desenvolvidas nesses
espaços devem permanecer em destaque a fim de se evitarem propostas con-
servadoras, retrocedendo ao modelo manicomial. É preciso barrar iniciativas
dessa natureza por meio de investimento em ações educativas, capacitação
e qualificação dos profissionais que atuam na saúde mental, assim como por
meio da inserção da comunidade e dos familiares nos debates.
Também existe a necessidade de aprimorar e ampliar a estratégia de saúde da
família no atendimento e no acolhimento das pessoas que enfrentam sofrimento
mental, numa perspectiva de fixar o usuário e os seus familiares no território,
promovendo uma ação integral de saúde. Busca-se, dessa forma, alcançar a
maior valorização dos usuários da saúde mental e a consequente desarticulação
de atitudes estigmatizantes que afetam o equilíbrio psíquico dos sujeitos.
A quebra de paradigmas no âmbito das políticas sociais gera disputas e
conflitos no contexto das relações sociais capitalistas. O movimento de reforma
psiquiátrica avança na perspectiva de inclusão social das pessoas em sofrimento
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 15

mental, mudando o olhar sobre a loucura. Sobretudo, a pessoa em sofrimento


mental passa a ser vista como sujeito de direitos, capaz de controlar os ímpetos
de fúria e transgressão para uma vida saudável em sociedade.
No entanto, as mudanças geram desconforto, especialmente quando se
trata de resguardar os valores de dada sociedade. Há ainda que ressaltar o
viés econômico e político dos acordos internacionais dos quais o Brasil é
signatário. Nesse sentido, o País deve seguir as orientações dos organismos
internacionais no marco do sistema capitalista neoliberal.
Entre os desafios enfrentados na saúde mental, estão: a retração de inves-
timento na política de saúde e na capacitação de recursos humanos, a retração
de recursos financeiros em todas as esferas de governo e gestão pública e
as disputas entre setores conservadores da sociedade que tentam retomar o
modelo hospitalocêntrico e segregador. Soma-se a essa miríade de desafios
a influência negativa dos meios de comunicação em massa, que apresentam
as deficiências do sistema de saúde por ausência de gestão e investimento
público, desqualificando as iniciativas exitosas e os ganhos pessoais com a
autonomia e a livre circulação dos sujeitos.
É inquietante, ainda, a ação de alguns governos estaduais e, recentemente,
do Governo Federal para viabilizar as internações involuntárias segundo a
Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, sob o discurso higienista, com vistas à
limpeza social. Isso ocorre sem debates com a sociedade e com as pessoas
em sofrimento mental, os seus familiares e os trabalhadores da saúde mental.
Além disso, tais trabalhadores necessitam de aprimoramento técnico-científico
a fim de que possam construir coletivamente estratégias humanizadas no
atendimento às demandas dos usuários dos serviços.
Há ainda outros desafios. Veja:

[...] permanecem desafios para consolidar e ampliar uma rede de atenção de


base comunitária e territorial promotora da reintegração social e da cidadania.
Entre eles, aumentar recursos do orçamento anual do SUS para a Saúde Mental
é fundamental e, especialmente, aumentar a contrapartida federal para o custeio
dos CAPS que se aproxime mais realisticamente das exigências de custeio
desses serviços possibilitando a expansão da rede CAPS, especialmente dos
CAPS III (BARROS; SALLES, 2011, documento on-line).

A questão do orçamento tem sido debatida nas produções científicas da área


de saúde mental como um entrave ao pleno desenvolvimento das estratégias
de inclusão social e atenção humanizada. Veja o que afirma Trapé e Campos
(2017, documento on-line):
16 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

O aumento do orçamento total em saúde implicaria o adensamento de serviços


e ofertas; contudo, sem uma mudança no processo organizativo, esse cresci-
mento perderia a potência diante de uma lógica organizacional fragmentada
e irracional [...]. O debate sobre formas de governança e a organização dos
serviços de saúde mental, nessa perspectiva, é uma pauta que deve entrar na
agenda dos formuladores das políticas de saúde mental e do controle social.
O financiamento próprio da área tem a necessidade de ampliar seu percen-
tual relativo, uma vez que a demanda só tende a aumentar, visto a transição
demográfica em voga.

Há ainda muito a avançar na direção da efetividade dos serviços na


esfera da saúde comunitária. Nesse contexto, destaca-se a vontade política
para a criação e a manutenção de estruturas substitutivas à internação.
Isso implica o esforço de redimensionar as ações em atenção ao sofrimento
psíquico sob o olhar da saúde integral como qualidade de vida dos sujeitos
sociais. Também são necessárias ações que possam “[...] transpor o modelo
biomédico, na doença, através de uma abordagem que articule tratamento,
reabilitação psicossocial, clínica ampliada e projetos terapêuticos indivi-
dualizados [...]” (HIRDES, 2009, p. 304).
No decurso da história, é possível identificar mudanças em relação ao
conceito de saúde. Por muito tempo, a saúde foi percebida como uma relação
simbiótica entre homem e natureza, esta última tida em sua totalidade. A
harmonia entre esses elementos caracterizava-se por complexos de saúde. Na
medida em que as sociedades foram evoluindo, o conceito de saúde se ampliou,
acompanhando o desenvolvimento das relações sociais.
Houve um período em que a questão da saúde foi vista a partir das mudanças
climáticas e das trocas das estações do ano, que impactariam na relação homem-
-natureza. Estava em jogo, portanto, um viés cosmológico de análise da saúde para a
explicação de mecanismos de adoecimento. Nas trilhas dessa história, observam-se
análises sobre saúde orientadas pela perspectiva biofísica, marcada pela especia-
lização e pelo aparato tecnológico centrado no saber médico. Recentemente, esse
modelo foi superado, dando espaço a processos multidisciplinares na atenção à
saúde, que passa a ser compreendida como um contexto biopsicossocial. Assim,
amplia-se o olhar sobre a saúde, entendida agora como uma articulação entre o
sujeito, a natureza e a sociedade, promotora de desenvolvimento humano e social.
Note que a última etapa dessa evolução histórica do conceito de saúde
se dá no âmbito da sociedade capitalista neoliberal, o que sinaliza a direção
política e econômica da intervenção do Estado. Portanto, esse é um processo
de avanços e retrocessos nada lineares. Por isso, são necessárias lutas sociais
a fim de minimizar as desigualdades e viabilizar o acesso aos direitos.
Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades 17

Todo esse processo influenciou o atendimento aos familiares da pessoa em


sofrimento mental. Inicialmente, a família era mantida à margem do tratamento,
seja devido à distância física dos hospitais psiquiátricos, geralmente localizados em
regiões periféricas das cidades ou até em cidades-polo, seja pela responsabilização
das famílias como causadoras dos acometimentos em saúde. Diante disso, a par-
ticipação das famílias no tratamento dos usuários em saúde mental era incipiente.
A desinstitucionalização das pessoas em sofrimento mental possibilita que as
famílias contribuam no tratamento de seu ente querido. Portanto, no novo modelo, a
família tem papel importante, atuando como cuidadora no processo de estabilidade
psíquica da pessoa em sofrimento mental. Nesse contexto, a equipe de saúde deve
ser sensível às requisições dos familiares, que em certos casos também necessitam
de acompanhamento. Conhecer a dinâmica familiar contribui para desatar os nós
que envolvem o adoecimento psíquico da pessoa em sofrimento mental.
O Serviço Social adere à proposta de saúde integral objetivando alinhavar
as dimensões da vida social dos sujeitos na direção do acesso aos direitos
sociais, sob o prisma da saúde biopsicossocial. Nesse sentido, está em jogo a
“[...] difusão do paradigma da produção social da saúde como um processo que
envolve múltiplos aspectos objetivos e subjetivos [e que] passou a ser reconhe-
cido como matéria de intervenção multiprofissional [...]” (SILVA, 2015, p. 41).
A dimensão do cuidado passa a envolver diferentes disciplinas, que com-
põem o quadro das profissões em saúde; entre elas, está o Serviço Social. Para
o Serviço Social, o cuidado com a saúde insere-se no complexo das relações
sociais em que vivem os sujeitos. Conjugam-se, assim, as dimensões política,
econômica, cultural, religiosa e ambiental, que dizem respeito às determinações
das condições de vida em sociedade.
Segundo Silva (2015, p. 42):

As demandas que chegam ao Serviço Social nos serviços de saúde estão rela-
cionadas a questões que ampliam a vulnerabilidade de distintos segmentos da
população em sua situação de saúde, tais como: precariedade e/ou à ausência
de moradia, violência urbana e doméstica, situações de negligência e aban-
dono, acidentes de trabalho, desemprego, dificuldade de acesso a consultas
com especialistas e medicamentos, etc.

As questões relacionadas ao cuidado em saúde são tratadas pelos assistentes


sociais no âmbito do seu projeto ético-político profissional. Assim, a liberdade,
a autonomia, a cidadania e, sobretudo, a defesa dos direitos sociais dos sujeitos
são fundamentais. Para realizar o seu trabalho, o assistente social se vale da
escuta qualificada, do acolhimento, das entrevistas e das interações sociais
produzidas na relação profissional com o usuário.
18 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

A seguir, veja alguns aspectos que definem uma atenção primária em saúde
mental adequada (OMS, 2002):

 serviços situados perto do domicílio, inclusive a atenção proporcionada


por hospitais gerais na admissão de casos agudos, e dependências
residenciais de longo prazo na comunidade;
 intervenções relacionadas tanto com as deficiências quanto com os
sintomas;
 tratamento e atenção específicos para o diagnóstico e as necessidades
de cada indivíduo;
 ampla gama de serviços que levem em conta as necessidades das pessoas
com transtornos mentais e comportamentais;
 serviços que são combinados e coordenados entre profissionais de saúde
mental e organismos da comunidade;
 serviços ambulatoriais e não estáticos, inclusive aqueles que podem
oferecer tratamento no domicílio;
 parceria com os provedores de atenção e atendimento das suas
necessidades;
 legislação em apoio aos aspectos da atenção mencionados.

Leia o artigo de Hirdes (2009) “A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re)visão”, disponível
no link a seguir.

https://qrgo.page.link/cAy3K

BARROS, S.; SALLES, M. Gestão da atenção à saúde mental no Sistema Único de Saúde.
Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 45, n. spe 2, p. 1780–1785, 2011. Dis-
ponível em: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2/25.pdf. Acesso em: 27 ago. 2019.
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20 Reinserção social e saúde mental: desafios e possibilidades

Leituras recomendadas
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http://www.saude.gov.br/noticias/693-acoes-e-programas/41146-centro-de-atencao-
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CARETTA, F. A saúde integral. [2010]. Disponível em: http://www.mdc-net.org/it/down-
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