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Saúde em Debate
TÍTULOS PUBLICADOS APÓS JANEIRO DE 2010
Atenção em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes no SUS, Edith Lauridsen-Ribeiro & Oswaldo Yoshimi
Tanaka (orgs.)
Dilemas e Desafios da Gestão Municipal do SUS: Avaliação da Implantação do Sistema Municipal de Saúde
em Vitória da Conquista (Bahia) 1997-2008, Jorge José Santos Pereira Solla
Semiótica, Afecção e o Trabalho em Saúde, Túlio Batista Franco & Valéria do Carmo Ramos
Adoecimento Crônico Infantil: um estudo das narrativas familiares, Marcelo Castellanos
Poder, Autonomia e Responsabilização: Promoção da Saúde em Espaços Sociais da Vida Cotidiana, Kênia Lara
Silva & Roseli Rosângela de Sena
Política e Gestão Pública em Saúde, Nelson Ibañez, Paulo Eduardo Mangeon Elias & Paulo Henrique
D’Angelo Seixas (orgs.)
Educação Popular na Formação Universitária: Reflexões com Base em uma Experiência, Eymard Mourão Vas-
concelos & Pedro José Santos Carneiro Cruz (orgs.)
O Ensino das Práticas Integrativas e Complementares: Experiências e Percepções, Nelson Filice de Barros, Pamela
Siegel & Márcia Aparecida Padovan Otani (orgs.)
Saúde Suplementar, Biopolítica e Promoção da Saúde, Carlos Dimas Martins Ribeiro, Túlio Batista Franco,
Aluisio Gomes da Silva Júnior, Rita de Cássia Duarte Lima, Cristina Setenta Andrade (orgs.)
Promoção da Saúde: Práticas Grupais na Estratégia Saúde da Família, João Leite Ferreira Neto & Luciana
Kind
Capitalismo e Saúde no Brasil nos anos 90: as Propostas do Banco Mundial e o Desmonte do SUS, Maria Lucia
Frizon Rizzotto
Masculino e Feminino: a Primeira Vez. A Análise de Gênero sobre a Sexualidade na Adolescência, Silmara Conchão
Educação Médica: Gestão, Cuidado, Avaliação, João José Neves Marins & Sergio Rego (orgs.)
Retratos da Formação Médica nos Novos Cenários de Prática, Maria Inês Nogueira
Saúde da Mulher na Diversidade do Cuidado na Atenção Básica, Raimunda Magalhães da Silva, Luiza Jane Eyre
de Souza Vieira, Patrícia Moreira Costa Collares (orgs.)
Cuidados da Doença Crônica na Atenção Primária de Saúde, Nelson Filice de Barros (org.)
Tempos Turbulentos na Saúde Pública Brasileira: Impasses do Financiamento no Capitalismo Financeirizado,
Áquilas Mendes
A Melhoria Rápida da Qualidade nas Organizações de Saúde, Georges Maguerez
Saúde, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação, Ana Luiza d’Ávila Viana, Aylene Bousquat &
Nelson Ibañez
Tecendo Redes: os Planos de Educação, Cuidado e Gestão na Construção do SUS. A Experiência de Volta Redonda
(RJ). Suely Pinto, Túlio Batista Franco, Marta Gama de Magalhães, Paulo Eduardo Xavier Mendonça,
Angela Guidoreni, Kathleen Tereza da Cruz & Emerson Elias Merhy (orgs.)
Coquetel. A Incrível História dos Antirretrovirais e do Tratamento da Aids no Brasil, Mário Scheffer
Psicanálise e Saúde Coletiva: Interfaces, Rosana Onocko Campos
A Medicina da Alma: Artes do Viver e Discursos Terapêuticos, Paulo Henrique Fernandes Silveira
Clínica Comum: Itinerários de uma Formação em Saúde (orgs.), Angela Aparecida Capozzolo, Sidnei José
Casetto & Alexandre de Oliveira Henz
Práxis e Formação Paideia: Apoio e Cogestão em Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos, Gustavo Tenório
Cunha & Mariana Dorsa Figueiredo
Intercâmbio Solidário de Saberes e Práticas de Saúde: Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e Comple-
mentares, Marilene Cabral do Nascimento & Maria Inês Nogueira (orgs.)
Depois da Reforma: Contribuição para a Crítica da Saúde Coletiva, Giovanni Gurgel Aciole
Diálogos sobre a Boca, Carlos Botazzo
A ERA DO
SANEAMENTO
As bases da política
de Saúde Pública
no Brasil
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
GILBERTO HOCHMAN
A ERA DO
SANEAMENTO
As bases da política
de Saúde Pública
no Brasil
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TERCEIRA EDIÇÃO
HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2013
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
Coordenação editorial
MARIANA NADA
Assessoria editorial
MARIANGELA GIANNELLA
Circulação
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Tel.: (11)3892-7772 – Fax: (11)3892-7776
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
H618e
3.ed.
Hochman, Gilberto, 1960-
A era do saneamento : as bases da política de saúde pública no Brasil /
Gilberto Hochman. – 3.ed. – São Paulo : Hucitec, 2012.
253p. : 21 cm (Saúde em Debate ; 113)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-64806-08-5
1. Saúde pública – Brasil – História. 2. Política de saúde – Brasil –
História. 3. Saneamento – Brasil – História. I. Título. II. Série.
12-4003. CDD: 362.10981
CDU: 614.2(81)
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PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
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SUMÁRIO
♦♦♦
13 Apresentação
15 Introdução
Capítulo 1
21 Quando a saúde se torna pública: formação do Estado e polí-
ticas de saúde no Brasil
21 1. Introdução
25 2. Aspectos teóricos e metodológicos
39 3. Argumento geral, estratégia de análise e estrutura do livro.
39 3.1. Argumento
40 3.2. Análise
45 3.3. Estrutura do livro
Capítulo 2
48 O micróbio da doença e o poder público: o movimento sanita-
rista brasileiro e o surgimento de uma consciência da inter-
dependência
48 1. Introdução
50 2. A sociabilidade da doença: externalidades, consciência e co-
munidade
59 3. Brasil = Sertões + Hospital: A equação do movimento pela
reforma sanitária na Primeira República
59 3.1. Apresentação
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Capítulo 3
88 A reforma da saúde pública ou quem deve ser o responsável pela
“doença que pega”?
88 1. Introdução
92 2. A responsabilidade governamental em saúde pública e sanea-
mento nas primeiras décadas da República
106 3. A reforma dos serviços de saúde pública na agenda nacional:
propostas, crises sanitárias e decisões
106 3.1. Repercussão pública da campanha pelo saneamento
110 3.2. Propostas, debates e decisões I — Os círculos profissionais
115 3.3. Propostas, debates e decisões II — O Legislativo federal
124 3.4. Um interregno trágico e uma ameaça permanente: a auto-
ridade pública sob o impacto das epidemias
130 3.5. Propostas, debates e decisões III — Depois da epidemia
137 4. Considerações finais
Capítulo 4
141 Sobre o encontro da consciência com o interesse: uma política pú-
blica e nacional de saúde
141 1. Introdução
145 2. O poder central como solução dos problemas sanitários
145 2.1. Sobre ineptos e incautos ou o perigo mora ao lado
151 2.2. Sobre os benefícios e os custos da coletivização: uma inter-
pretação
160 3. Dos custos, das oportunidades e das regras: o saneamento
rural como política nacional de saúde pública
160 3.1. Os benefícios do poder central, a regra de adesão e os cus-
tos tangíveis da estatização
168 3.2. A reforma sanitária: benefícios do Estado, custos externos
e custos do Estado
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Capítulo 5
196 À exceção de São Paulo: autonomia política, interdependência
sanitária
196 1. Introdução
199 2. Políticas de saúde pública em São Paulo uma breve exposição
207 3. A excepcionalidade paulista: da constatação ao problema
213 4. A excepcionalidade paulista como interpretação
213 4.1. Cada um que cuide de si: uma proposta paulista para a saúde
do Brasil
218 4.2. São Paulo cuida de si e dos outros: a internalização dos custos
da interdependência
222 4.3. São Paulo cuida de si e o Governo Federal dos outros: uma po-
lítica viável de saúde pública
225 5. Considerações finais
Capítulo 6
228 Considerações gerais
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DIVULGAÇÃO HUCITEC EDITORA.
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APRESENTAÇÃO
♦♦♦
S
ob que condições os pobres, os destituídos, os doentes, os iletrados e as
vítimas em geral da adversidade e do infortúnio passam a ser objeto de
proteção pública? Como se dá, em termos históricos e analíticos, o processo
de “coletivização da proteção a destituição humana”? Perguntas graves, com
certeza. Mais do que isso, talvez: perguntas que sugerem um certo desencontro
com os tempos que correm, marcados pelo predomínio de políticas e de concepções
que parecem decorrer de perguntas simetricamente opostas. Para falarmos nos
termos de Karl Polanyi, a “religião do mercado”, assumida como imperativo
categórico da modernidade, está a indicar o trajeto oposto e as perguntas que
dele decorrem: sob que condições a adversidade e o infortúnio podem/devem
deixar de ser percebidos como efeitos de processos de geração de males públicos?
Como se dá – deve dar – o processo de “comodificação” (com o perdão de Esping-
-Andersen. . .) da proteção social? Mas, seria um equívoco supor que A era do
saneamento permanece nos limites de um belo e competente exercício de história,
devotado a exibir um contraste: o da combinação entre consciência da necessidade
pública de um sistema nacional e coletivizado de saúde e um conjunto de interes-
ses específicos com os valores e as políticas vinculados ã naturalização do mercado.
Se esse fosse o limite do trabalho de Gilberto Hochman, já estaríamos, com
certeza, saciados. Alas não é esse o caso. O que está em jogo é mais do que isso.
A era do saneamento pretende demonstrar a centralidade assumida pe-
las políticas de saúde e saneamento, no Brasil da Primeira República, no proces-
so de construção do Estado Nacional. Em termos mais diretos, aquelas políticas
são apresentadas como cruciais para o alargamento da presença do Estado na so-
ciedade e no território brasileiros. Trata-se de, portanto, indicar a complexidade
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da esfera pública e estatal no Brasil oligárquico. Por esse caminho, o livro de Gil-
berto Hochman pode ser lido, ainda, como um corajoso e brilhante experimento
analítico que indica o tema da complexidade do Brasil anterior a 1930. A ex-
periência política e institucional da Primeira República brasileira é percebida,
não raro até hoje, como uma espécie de hiato na formação do Estado Nacional.
Tanto o universo da política imperial, como o da vida política posterior a 1930
são tidos como legíveis a partir da perspectiva estratégica da construção do
Estado. O domínio parentético da República Velha segue desinteressante: ele
não passaria de abrigo de uma ordem política tida como simples – já que tra-
duz no plano político as hierarquias do predomínio social e regional – e como
hospedeira preferencial do folclore coronelista e da truculência oligárquica.
Através de um ângulo específico, porém decisivo, Gilberto Hochman nos
persuade que a transformação da saúde em um bem público interage de maneira
intensa com a constituição de uma comunidade nacional e com o próprio forta-
lecimento da esfera pública e estatal. A escolha desse ponto de observação é um
dos pontos brilhantes da análise: dados os padrões de complexidade e interde-
pendência social crescentes, o fenômeno da doença transmissível e da insalubri-
dade é um objeto privilegiado para tratar das relações entre público e privado
e entre poder local e poder central. O que se está indicando é, em termos mais
diretos, a presença de uma tradição republicana, anterior mesmo a 1930, que
associa consciência, valores e interesses no processo de geração de bens públicos e
de políticas de combate à destituição. Mesmo em um oceano de oligarcas cíni-
cos, foi possível, graças ao esforço de persuasão do movimento sanitarista bra-
sileiro, perceber o país como um “imenso hospital”, cuja letalidade é função
direta da ausência de poder público.
Mas, a meu juízo, aqui fica registrado o mérito principal desse livro: o
de nos sugerir o quanto que nossa experiência civilizatória recente, e desde as
duas décadas que antecedem a Revolução de 1930, está marcada pela capaci-
dade de integração promovida por políticas sociais públicas e nacionais. Com
todos os problemas contidos nessa tradição, trata-se de um legado que parece
não estar à altura da perspectiva contábil e da mercadofilia dos reformadores
contemporâneos.
— R ENATO L ESSA
Professor titular da UFF.
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INTRODUÇÃO
DESTA TERCEIRA EDIÇÃO
♦♦♦
A
primeira edição deste livro (1998) foi resultado do Prêmio José
Albertino Rodrigues concedido pela Anpocs à melhor tese
de doutorado em ciências sociais no ano de 1996. Ganhou uma
nova edição em 2006 que rapidamente se esgotou. Ao longo de uma
década A era do saneamento ingressou e circulou em diferentes circuitos
acadêmicos tais como as ciências sociais, a história, a saúde coletiva, a
educação e a engenharia ambiental. Tenho consciência de que este livro,
associado a outros trabalhos publicados no mesmo período, consolidou
uma interpretação original sobre as relações entre políticas de saúde e
formação do Estado no Brasil e forneceu pistas e atalhos para uma produ-
ção crescente na área de ciências sociais e da saúde coletiva. Inúmeras
leituras têm sido feitas dos argumentos centrais do livro, algumas surpre-
endentes e diversas do que originalmente pensei. Como filhos em um
dado momento da vida, livros seguem caminhos independentes do autor.
Ao apresentar uma nova edição a novos leitores alerto que poucas modi-
ficações foram feitas no texto. Sua ampla e positiva recepção e inúmeras
citações indicam que sua base teórica e empírica resistiu, e sua interpre-
tação continua ajudando a reflexão sobre políticas públicas, história da
saúde e pensamento social no Brasil. O livro reeditado, como todo traba-
lho acadêmico, precisa ser continuamente desafiado. Meus próprios arti-
gos e capítulos de livros posteriores têm reelaborado visões e perspectivas
nele contidos. Reeditar esse livro em 2011 é renovar meus compromissos
intelectuais de cientista social com a saúde da população brasileira e con-
tinuar refletindo e debatendo sobre seu passado e futuro
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DIVULGAÇÃO HUCITEC EDITORA.
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Capítulo 1
QUANDO A SAÚDE SE TORNA PÚBLICA:
FORMAÇÃO DO ESTADO E
POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL
♦♦♦
1. Introdução
Interesses sem [. . .] elevação espiritual
são frágeis e ineficazes; por outro lado,
ideias só podem ser bem-sucedidas na
história quando e na medida em que se
vinculam a interesses tangíveis
— O TTO H INTZE, 1931.1
O
objetivo deste trabalho é analisar a formação de políticas de
saúde pública no Brasil. Parto da associação indicada pelo his-
toriador alemão Otto Hintze, entre ideias e interesses tangí-
veis da ação humana, pretendendo apropriar-me dessa articulação de ele-
mentos e operacionalizá-la no exame da constituição de soluções para os
problemas sanitários. Tais soluções revelam a combinação bem-sucedida
que explica a decisão que tornou a saúde não somente pública, mas estatal
e nacional. Se a relação entre ideias e interesses é o ponto de partida mais
geral, minha investigação sobre a coletivização e a nacionalização dos
cuidados com a saúde e suas consequências busca o ponto de encontro
entre a consciência e o interesse ou em que condições ocorre essa combi-
nação que movimenta os atores relevantes e possibilita a gênese de cuida-
dos estatais com saúde pública.
1
Publicado em Gilbert (1975). As traduções de textos em inglês ao longo do livro
são minhas.
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Trata-se de um argumento presente em parte da literatura que indica uma ten-
dência de aproximação e semelhança entre vários países no tocante a gastos públicos,
políticas e arranjos institucionais (cf. Mishra, 1982, pp. 39-49).
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Quadro I
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Quadro II
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3.1. Argumento
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3.2. Análise
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Quadro III
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Saliency of the state ou stateness são termos utilizados por Nettl (1968, p. 579).
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Quadro IV
Quadro V
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Essa dificuldade foi reconhecida por dirigentes do setor nos anos 30. No relató-
rio do ano de 1930 do Departamento Nacional de Saúde Pública, órgão máximo da saúde
na esfera federal, seu diretor lamentava “[. . .] que a história da evolução recente dos
nossos serviços sanitários esteja fadada a grandes lacunas devido ao fato de não se ter
encontrado, nem em nossos arquivos, nem nos arquivos do antigo Ministério da Justiça e
Negócios Interiores, vestígio algum dos relatórios anuais do diretor-geral do Departa-
mento de Saúde Pública, de 1920 para cá, a não ser o relativo a 1927 [. . .]” (Arquivo
Belisário Penna, COC/Fiocruz). Comentários semelhantes sobre a ausência de informa-
ções organizadas sobre o período foram feitos por J. P. Fontenelle, importante médico e
funcionário dos serviços sanitários federais nos anos 20 e 30, autor de numerosos traba-
lhos sobre saúde pública (ver Fontenelle, 1937, p. 1).
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Capítulo 2
O MICRÓBIO DA DOENÇA
E O PODER PÚBLICO:
O MOVIMENTO SANITARISTA BRASILEIRO E O
SURGIMENTO DE UMA CONSCIÊNCIA
DA INTERDEPENDÊNCIA
♦♦♦
1. Introdução
O meu vizinho adoeceu por vontade própria; foi a
um laboratório e injetou-se uma cultura viva de ba-
cilos coléricos. Se ele se houvesse simplesmente ati-
rado do telhado à rua ou arrebentado os miolos com
uma bala ou ingerido um grama de estricnina, isso
só afetaria a sua pessoa e eu tinha que limitar-me a
lamentar a ocorrência. Com os bacilos do cólera o
caso muda de figura — eles se vão difundir aos
milhões e milhões pelos objetos que terei que tocar,
pelos encanamentos da água que terei que beber,
pelos esgotos que vão passar por minha casa. E terei
que resignar-me, pois as medidas ao meu alcance
isolado seriam improfícuas, visto ascenderem a tal
importância e complexidade, que só o Estado as
poderia executar. Mas o Estado não deve tolher a
liberdade do meu vizinho de querer adoecer e mor-
rer, ainda que seja para proteger a minha de aspirar
à saúde e à vida. E o mal se há de propagar pela
cidade inteira, e as cidades vizinhas e os campos
serão contaminados, o país todo sofrerá o flagelo, e
milhares e milhares de vidas serão sacrificadas.
— SEBASTIÃO B ARROSO, 1919, pp. 10-1.
S
ebastião Barroso foi médico, político fluminense e dirigente de
serviços federais de saneamento no início dos anos 20. Seu co-
mentário expressa com clareza as relações entre doença trans-
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Bacteriologia: “[. . .] estudo sistemático dos microrganismos é uma área da
microbiologia e tem grandes afinidades com várias disciplinas médicas, notadamente a
imunologia, epidemiologia e saúde pública. Como desciplina independente, a bacteriolo-
gia surgiu no terceiro quarto do século XIX quando estabeleceu as provas para a «teoria
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Neste livro, utilizarei indistintamente comunicação e transmissão.
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Para alguns historiadores da medicina, o medo coletivo seria a mais poderosa força
social para o surgimento de ações públicas contra a doença. Para Richard H. Shryock, o
medo viria da violência e do caráter inesperado de uma epidemia, do desconhecimento
sobre as causas da doença e dos modos de transmissão e dos desagradáveis sintomas e
manifestações públicas da doença (Shryock, 1972, p. 141). No entanto, nessas interpreta-
ções, as forças sociais não são centrais, mas complementos aos pré-requisitos médicos e
científicos de combate a uma doença.
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Apresento de forma simplificada as versões da teoria do germe e da teoria
miasmática; no entanto, estou consciente da enorme complexidade e da longa evolução
histórica das teorias anticontagionistas e contagionistas. O texto de Ackerknecht (1948)
é o clássico, por excelência, sobre o embate na Europa entre essas duas interpretações, ao
longo do século XIX, sobre a origem e forma de transmissão de doenças. Uma referência
para esses debates e suas implicações nos EUA, em especial em torno das epidemias de
febre amarela, pode ser encontrada em Pernick (1985); e, para o tema das quarentenas
nacionais e regionais no contexto do federalismo americano, ver os trabalhos sobre a febre
amarela no Sul dos EUA, de Humphreys (1992) e Ellis (1992).
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ampla, que pode ser estendida até a ideia de comunidade nacional, for-
mada por seres, cidades e regiões que se percebem como interdependentes.
São indivíduos e espaços, agora, interligados, ou igualados, pelos germes,
pelos mosquitos, moscas, ratos, lixo não tratado, esgoto despejado ao longo
dos rios, viajantes e imigrantes que se deslocam portando doenças, falta
de controle sobre alimentos que, produzidos em determinado lugar, são
consumidos em diversas localidades, etc. (Marcus, 1979).
Assim, desenvolveu-se a percepção de que a situação sanitária de
uma localidade — por ações equivocadas, por inação ou por quaisquer
outros motivos — poderia, por mecanismos diretos e indiretos de trans-
missão, atingir negativamente as demais, que não contribuíram para que
tal ocorresse. O conhecimento médico estabelecido deveria ser utilizado
para impedir ou sanar os efeitos negativos da doença que pega. Tal cons-
ciência da interdependência social significaria a consciência da necessi-
dade de administrar os elos de interdependência social, demandando, ao
final, algum arranjo supralocal que desse conta da extensão e complexi-
dade vinculadas a esse novo sentimento comunitário. O resultado mais
geral da sociabilidade gerada pelo micróbio da doença seria um senti-
mento de comunidade nacional, associado a demandas pelo aumento das
responsabilidades do Poder Público.
3.1. Apresentação
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lária e mal de Chagas), a partir da descoberta dos sertões, dos seus habitan-
tes abandonados e doentes e da possibilidade de curá-los e de integrá-los
à comunidade nacional. Diferentemente do período anterior, a reforma
sanitária se apresentava mais como um caminho para a construção da
nação, no bojo de uma corrente nacionalista que recusava o determinismo
racial e climático como explicação do Brasil e dos brasileiros (Castro
Santos, 1985; 1987, cap. 3). Para essa linha de interpretação, as medidas
decorrentes da campanha pelo saneamento do interior do Brasil tiveram
como consequência a constituição de agências e políticas governamen-
tais em saúde pública e saneamento (Castro Santos, 1987, cap. 6).
Uma vez de acordo com os aspectos mais gerais dessa interpreta-
ção, meu objetivo será qualificar a dimensão sociológica dos argumentos
do movimento pela reforma da saúde pública, integrar analiticamente os
dois períodos de reforma sanitária apontados, e identificar as relações
entre doença, sociedade e Poder Público, elaboradas e divulgadas por esse
movimento, entre 1916 e 1920. A base desse empreendimento é o en-
tendimento da interdependência sanitária enquanto dimensão social e
política. Para tanto, qualificarei os argumentos sobre o papel da saúde
pública no processo de construção do Estado nacional: a doença trans-
missível ao mesmo tempo que auxiliava a constituição de uma bem
estruturada noção de comunidade nacional, desafiava os limites estabele-
cidos na ordem política brasileira à ação do Poder Público.
Essa compreensão já estava presente entre os médicos e em parte
da elite, desde o início da República, e permaneceu depois da criação dos
novos órgãos federais de saúde pública a partir de 1920, o que revelaria
mais continuidades ao longo das quatro primeiras décadas republicanas
do que o sugerido pela bibliografia. O mesmo pode ser dito em relação às
propostas de reforma e de expansão dos serviços federais de saúde. As-
sim, o movimento sanitarista deve ser tratado como a expressão de uma
lenta, porém crescente, identificação, pela sociedade brasileira, dos pro-
blemas sanitários como problemas de interdependência. Contudo, existe
um fator diferenciador que justifica uma análise privilegiada do período
1910-1930, e, especialmente neste capítulo, dos anos de 1916 a 1920:
nunca essas relações foram tão radicalmente elaboradas e tão claramen-
te expostas e apresentadas à sociedade brasileira. A enorme capacidade
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Existem vários exemplos internacionais. Um dos mais citados foi o impacto cau-
sado pela mobilização e fracasso das tropas britânicas na Guerra dos Bôers, no grande
debate da Inglaterra eduardiana sobre as condições físicas da raça, que iria culminar com o
National Health Insurance Act de 1911. Ver Porter (1991, pp. 161, 172-4; 1993, p. 1256).
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O Instituto Oswaldo Cruz sucedeu o Instituto Soroterápico, criado em 1900, na
Capital Federal, durante a epidemia de peste bubônica. Na gestão do cientista Oswaldo
Cruz (1903-1917), tornou-se um importante centro de pesquisas e de formação de pro-
fissionais especializados em saúde pública. Foi dirigido até 1917 por Oswaldo Cruz, e por
Carlos Chagas até 1934. Sobre o papel desse instituto na ciência brasileira, ver Benchimol
(1990a); Benchimol & Teixeira (1993); Chagas Filho (1993); Luz (1982); Schwartzman
(1979); e Stepan (1976).
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Para o debate em torno das Forças Armadas e do serviço militar obrigatório no
Brasil, no contexto da Primeira Guerra Mundial, ver Oliveira (1990, pp. 119-22); Carva-
lho (1985, pp. 193-5); e Skidmore (1989, pp. 170-91).
8
No dia seguinte, em jantar em homenagem ao cientista Carlos Chagas, Miguel
Pereira discursou reafirmando e esclarecendo os seus argumentos, que aparecem um tan-
to mais otimistas em relação ao futuro do país (apud Jornal do Comércio, 22-10-1916,
Arquivo Carlos Chagas, COC/Fiocruz). Esse segundo discurso também teve grande re-
percussão na imprensa (Britto, 1995, pp. 21-3).
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Percorrendo o Brasil nas duas primeiras décadas do século XX, as expedições
científicas do Instituto Oswaldo Cruz destacaram-se na produção de conhecimentos sobre
a incidência de doenças, alimentando de informações o debate dos problemas nacionais.
Estiveram intimamente associadas à construção de ferrovias, às avaliações da viabilidade
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A referência e grande influência foi a obra de Euclides da Cunha, Os sertões
(1963) [1902]. Nela, sobressaem-se elementos de força e de fragilidade — o sertanejo é
um forte, mas é também rude e carente de civilização. Os sertões também destacam a
importância do conhecimento empírico do país, fundamental nos textos e reflexões do
movimento sanitarista. Ver Lima & Hochman (1996).
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Um exemplo de imagem negativa, fundada no indivíduo ou talvez na raça, está
no primeiro Jeca-Tatu de Monteiro Lobato, caipira naturalmente preguiçoso. Em artigos
publicados no jornal O Estado de S. Paulo, em 1914, Lobato argumentava ser o caboclo a
principal praga nacional e o descreve como “funesto parasita da terra [. . .] homem baldio,
inadaptável à civilização” (Lobato, 1957, p. 271). A campanha pelo saneamento do Brasil
fez com que Lobato se convertesse a uma posição não fatalista. Em 1918, ele escreveria:
“O Jeca não é assim, está assim”; e tornaria central o papel da saúde na famosa “ressurrei-
ção do Jeca”: um caipira doente, por isso preguiçoso, pobre e atrasado, que, ao passar a
acreditar na medicina e seguir suas prescrições, livra-se da opilação e, como consequência,
do estado permanente de desânimo, tornando-se um fazendeiro e um homem saudável,
por isso empreendedor, próspero e moderno (Lobato, 1956, pp. 329-40). Ver Castro San-
tos (1985); Lima & Hochman (1996); e Ribeiro (1993).
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12
A sensação de alívio oferecida pela ciência médica foi bem destacada por um
dos que melhor expressaram as angústias dessa geração de intelectuais: “Respiramos hoje
com mais desafogo. O laboratório dá-nos o argumento por que ansiamos. Firmados nele
contraporemos à condenação sociológica de Le Bon a voz mais alta da biologia” (Lobato,
1956, p. 298). Para mais detalhes, ver Lima & Hochman (1996).
68
13
Citado em correspondência de Acácio Pires, chefe do Serviço de Saneamento e
Profilaxia Rural no estado da Paraíba, a Belisário Penna, diretor de Saneamento e Profilaxia
Rural, em 7-7-1921, Arquivo Belisário Penna, COC/Fiocruz.
14
Apesar de não fazer menção às relações entre sertões e saúde pública, desenvol-
vidas nos anos de 1910, utilizo como referência a revisão sobre as diferenças existentes na
categoria sertões em Amado (1995).
69
15
O texto de Peixoto é o seguinte: “[. . .] Se raros escapam à doença, muitos têm
duas ou mais infestações [. . .] Veem-se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nos-
sas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões [. . .] E isto, não
nos `confins do Brasil’, aqui no Distrito Federal, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca
[. . .] Porque, não nos iludamos, o «nosso sertão» começa para os lados da Avenida” (Peixoto,
1922, pp. 31-2, ênfases minhas). Não coincidentemente, essa citação, que teve enorme
repercussão, é parte de um discurso de Afrânio Peixoto em homenagem a Miguel Pereira
em 19-5-1918. De forma semelhante, um importante divulgador da campanha, Monteiro
Lobato, enfatizava mais a periferia dos núcleos urbanos como alvo prioritário de uma
campanha de saneamento (Lobato, 1956, pp. 313-4).
70
16
Este livro, publicado por Belisário Penna em 1918, e republicado em 1923,
reúne trabalhos editados pelo O Correio da Manhã entre novembro de 1916 e janeiro
1917, e expõe o programa da Liga Pró-Saneamento do Brasil. A publicação também
tinha como objetivo arrecadar fundos para a campanha.
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Além do caráter simbólico e demonstrativo do combate a essa doença, Penna
chamava a atenção para o fato que “[. . .] é incalculável o dano que à nação causa a
ancilostomose, doença que não impressiona as massas como a varíola, a peste ou a febre
amarela, porque tem a marcha crônica, efeitos progressivos lentos, [. . .], não tem enfim
as manifestações violentas das moléstias agudas, embora prejudique e sacrifique muito
maior número de pessoas do que outras” (ibidem, p. 218). Porém, os governos estariam
dispostos a agir apenas em caso de epidemias “[. . .] que alarmam, porque atacam muita
gente a um tempo e matam em poucos dias” (Penna, 1918, p. 19).
73
19
A ênfase nas endemias rurais, em especial a ancilostomíase, não é privilégio do
sanitarismo brasileiro. A opilação foi também objeto de ampla campanha sanitária pro-
movida em escala mundial pela Fundação Rockefeller, que teve participação expressiva
também nas campanhas de combate à ancilostomose, e depois à febre amarela, realizadas
no Brasil entre 1915-1930 (Faria, 1994). As análises sobre a atuação da Rockefeller no
Sul dos Estados Unidos revelam uma preocupação com a representação popular muito
próxima da que encontramos no Brasil, frequentemente associando à precariedade física
e à improdutividade dessas populações esta verminose causada pelo germe da preguiça.
Mais ainda, chamando a atenção para os dilemas colocados pela existência de uma vasta
população indolente e improdutiva para a constituição de uma identidade nacional ame-
ricana. De certa maneira, a polêmica e o desconforto causados pelo encontro da Améri-
ca urbana com os seus estranhos compatriotas, quase estrangeiros, do Sul rural durante a
Era Progressiva antecedem e guardam muitas semelhanças com a perplexidade das elites
brasileiras ao serem apresentadas pelos sanitaristas aos habitantes dos sertões do Brasil.
Nesse sentido, o fator distintivo tanto do sul-americano quanto dos sertões brasilei-
ros seria a doença. Essas sugestões comparativas se baseiam em Boccaccio (1972); Bree-
den (1988); Cassedy (1971); Ettling (1981); Link (1988); Marcus (1988; 1989); Sullivan
(1930, pp. 290-332).
20
Surgem no período números de todo tipo sobre a improdutividade do brasileiro
causada pela doença. Afrânio Peixoto, no seu compêndio Higiene (1917), calculava que,
por exemplo, um italiano valeria 2.100 contos de réis, um americano 10.500, um francês
3.600 e um inglês 2.400. Considerando a demanda por mão-de-obra no Brasil e
74
sua relativa escassez, Peixoto calculou que um brasileiro valeria 9.600. Isso significava que
a recuperação de um brasileiro doente e improdutivo seria menos custosa e mais lucrativa
do que a importação de um trabalhador imigrante (pp. 12-3).
21
O efeito diferencial da saúde no desenvolvimento também é utilizado, em um
outro livro, para explicar por que Minas Gerais, apesar de suas terras férteis e minérios, da
sua enorme população e extensão territorial e de sua importância política tornou-se “o
mais infeliz dos estados”. O Rio Grande do Sul, que nem de longe teria a pujança de
Minas, seria um estado muito mais próspero. Para Penna “[. . .] a saúde foi, é, e será a
principal fonte econômica, o fator principal da riqueza e do progresso” (Penna, 1918, p. 22).
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24
A afirmação sobre o caráter inovador dessa formulação é sugerida por leituras
de fontes secundárias sobre o movimento sanitarista norte-americano. Parece-me que o
sanitarismo norte-americano, enfrentando igualmente a problemática relação entre auto-
nomia estadual e efeitos externos da interdependência sanitária, mesmo no seu período
de maior mobilização, entre 1878, ano da grande epidemia de febre amarela nos estados
do Sul, e 1912, data de criação do Public Health Service, nem de longe propôs uma
formulação semelhante à do movimento brasileiro dos anos 1910-1920. Esta comparação
impressionista me foi sugerida pelos trabalhos de Duffy (1990); Ellis (1992); Kagan (1961);
Marcus (1979); Tobey (1978); Warner (1984) e Waserman (1975).
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80
81
25
Pelo artigo 5.o da Constituição de 1891: “Incumbe a cada Estado prover, a
expensas próprias, as necessidades de seu Governo e administração; a União, porém, pres-
tará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública os solicitar”. O artigo 6.o
estabelecia as únicas condições pelas quais a União poderia intervir nos estados: repelir
invasão estrangeira ou de outro estado; manter a República Federativa; restabelecer a
ordem e a tranquilidade, nesse caso por requisição do governo estadual. Este artigo foi o
mais alterado, pela emenda constitucional de 3-7-1926, que expandiu sensivelmente o
poder de intervenção do Governo Federal. A emenda foi resultado dos conturbados acon-
tecimentos da Presidência Artur Bernardes (1922-1926).
26
Artigo 65: “E facultado aos Estados: [. . .] §2. Em geral todo e qualquer poder,
ou direito que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas
cláusulas expressas da Constituição”. Artigo 68: “Os Estados organizar-se-ão de forma que
fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo o que for de seu peculiar interesse”.
27
Outro argumento utilizado era o direito privativo da União na celebração de tratados
e acordos com outros países (artigo 48). De fato, como a União poderia assinar os acordos
sanitários internacionais relativos à febre amarela, peste e mal de Chagas, se não é conside-
rada a responsável pelas ações necessárias para cumpri-los? (Barroso, 1919, pp. 34-5).
82
28
Não tão conhecidos quanto a revolta contra a vacinação obrigatória em novem-
bro de 1904, na cidade do Rio de Janeiro, há inúmeros relatos sobre constrangimentos
físicos e legais impostos aos serviços de saneamento em nome da inviolabilidade da resi-
dência, tanto nas capitais como em cidades do interior do Norte e Nordeste. Os casos de
recurso à justiça tornaram-se menos frequentes, à medida que o Supremo Tribunal
83
84
5. Considerações finais
85
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87
Capítulo 3
A REFORMA DA SAÚDE PÚBLICA:
OU QUEM DEVE SER O RESPONSÁVEL PELA
“DOENÇA QUE SE PEGA”?
♦♦♦
1. Introdução
E
sta afirmação de Miguel Pereira, pouco tempo depois de sua
polêmica frase, manifestava a convicção dos que reivindicavam
uma reforma sanitária: uma vez reveladas as mazelas do país,
apresentadas as soluções, e estando disponíveis os recursos para implemen-
tá-las, os governantes iriam tomar as providências adequadas, urgentes e
necessárias. Sim, o Brasil era um hospital, mas, acreditavam, sua elite não
era constituída por insanos. Para os membros da campanha pelo sanea-
mento, loucos seriam aqueles que, conhecedores do diagnóstico do Brasil
doente, e participantes das arenas capazes de produzir decisões que modi-
ficassem o quadro sanitário do país, pouco ou nada fizessem; mais ainda,
se não adequassem a ordem político-constitucional às exigências da nova
sociabilidade criada pela doença transmissível.
1
Discurso parcialmente transcrito em “Miguel Pereira e os formandos de 1916”.
A Profilaxia Rural, ano 1, vol. 1, 1922.
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2
“Nesse período de tempo vimos a realização integral de dois esforços antagôni-
cos: partindo da organização despoticamente centralizadora criada pelo príncipe D. João,
chegou-se à municipalização de todas as atividades sanitárias; depois, em movimento
contrário, progressivamente desenvolvido voltou-se a uniformização administrativa dos
trabalhos de higiene pública inteiramente nas mãos do Governo Central, e apenas sepa-
rada no que se referia aos serviços terrestres e marítimos” (Fontenelle, 1922, p. 27).
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3
Um histórico sobre a presença de doenças epidêmicas no Brasil, em especial a
febre amarela, e as ações para combatê-las estão em Cooper (1967; 1975); e Barbosa
(1929).
4
O Serviço Sanitário do estado de São Paulo vinha sendo organizado e realizava
com sucesso campanhas antiamarílicas e contra a peste bubônica desde o fim da década
anterior. O presidente do estado de São Paulo, nesse período, era justamente Rodrigues
Alves, que, como presidente da República, daria suporte às campanhas sanitárias no Dis-
trito Federal (Blount, 1971; 1972; Stepan, 1976).
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5
Para mais detalhes sobre as reformas sanitárias do período, ver Benchimol (1990,
pp. 294-305; 1990a, pp. 22-6); Castro Santos (1987, pp. 100-21); Costa (1985, pp. 57-
-79); Fontenelle (1922, pp. 35-42).
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6
Nesse período, o Governo Federal também assumiu compromissos internacio-
nais no que diz respeito ao controle da importação de doenças, como a peste, o cólera e a
febre amarela, com países sul-americanos, principalmente Argentina, Uruguai e Paraguai.
A Convenção Sanitária Internacional, de 1904 acordava os direitos de cada país em dis-
ciplinar as medidas profiláticas a serem utilizadas em embarcações suspeitas de transpor-
tarem indivíduos ou objetos contaminados ou de serem provenientes de portos com alta
incidência dessas doenças. O acordo abandonava medidas, como as quarentenas, e bene-
ficiava o Brasil, que tinha seu comércio exterior prejudicado por medidas restritivas adotadas
por esses países (Fontenelle, 1922, p. 40). Vários navios evitavam parar em portos brasi-
leiros, considerados inseguros, do ponto de vista sanitário, preferindo aportar na Argenti-
na e no Uruguai (Castro Santos, 1987, p. 107). O Brasil assinou duas outras convenções
sanitárias internacionais, a de Montevidéu (1914) e a de Paris (1912), comprometendo-
-se a manter bem aparelhados os serviços sanitários dos portos.
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ameaça era mais clara na medida em que a maioria dos juristas e das elites
políticas entendiam que a DGSP só excepcionalmente e mediante autori-
zação poderia agir fora dos limites do DF, e além de seus serviços sanitários
marítimos, no restante do país.
Apesar do sucesso das campanhas sanitárias, com a extinção da
febre amarela no Rio de Janeiro, e do prestígio de Oswaldo Cruz, o con-
senso político sobre os limites constitucionais para a ação federal estava
bastante sedimentado, a ponto de impedir uma ampla atuação dos servi-
ços sanitários federais nos estados. Foi mantida a dualidade entre a res-
ponsabilidade federal sobre os portos e o DF e a dos estados sobre seus
respectivos territórios, e a convicção do caráter excepcional da ação da
DGSP sobre estes últimos. Mesmo as reformas de 1903 e 1904 eram
consideradas provisórias, carecendo de organização definitiva e orçamento
adequado, sendo muitas vezes entendidas como emergenciais, para pro-
ver a autoridade estadual ou municipal de instrumentos para combater
epidemias. Uma vez debeladas, poder-se-ia prescindir do auxílio federal
(Barbosa & Rezende, 1909; Fontenelle, 1922, pp. 41-5).7
Ainda nesse período, a constituição do Poder Público deu-se no
sentido da ampliação da sua capacidade de ação coercitiva, mesmo conside-
rando as dificuldades apontadas acima. Ao fazer face à liberdade individual
e ao direito de propriedade, a política de saúde pública acabou sendo
colocada na agenda pública do país. A legislação e os arranjos institucionais
produzidos entre 1902-1909, ano em que Oswaldo Cruz deixou a DGSP,
firmaram a base sobre a qual se dariam as reformas sanitárias iniciadas no
fim da década de 1910. Por exemplo, lentamente cresceu o número de
moléstias de notificação obrigatória — de dez, em 1902, para dezessete,
em 1914 — e o número de regulações sobre as condições de salubridade
7
Fato importante, mas pouco comentado, é que a lei da vacina obrigatória, que
tantos conflitos gerou, nunca foi regulamentada definitivamente, apesar da existência de
um anteprojeto. Como indiquei em nota no capítulo anterior, isso permitiu por muito
tempo o recurso à Justiça Federal, para impedir a exigência de atestado de vacinação. O
problema da falta de regulamentação está exposto por Carlos Seidl, diretor da DGSP, em
seu relatório relativo ao ano de 1916, enviado ao MJNI (ver Seidl, 1917, pp. 3-10). A
dificuldade de implementação da vacinação obrigatória, tanto no DF como no resto do
país, ao longo da década de 1910, e os surtos de varíola que ocorreram no DF, em São
Paulo e na Bahia são comentados por Castro Santos (1987, p. 118).
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8
Resumo das atribuições gerais da DGSP, definidas entre 1897-1904: estudo da
natureza, etiologia e tratamento e profilaxia de doenças transmissíveis (em qualquer parte
do país); socorros médicos e de higiene às populações dos estados, mediante solicitação
dos respectivos governos, em caso de calamidade pública, preparo de culturas e soros
antitóxicos e curativos; fiscalização do exercício da medicina e farmácia; organização das
estatísticas demográfico-sanitárias; direção dos serviços sanitários dos portos marítimos e
fluviais; confecção do Código Farmacêutico Brasileiro e do Laboratório de Bacteriologia.
A estas foram adicionados, entre 1902 e 1904, os serviços de higiene defensiva do DF e as
atividades de higiene domiciliar; polícia sanitária dos domicílios, lugares e logradouros
públicos; a profilaxia geral e específica das moléstias infecciosas. No âmbito da Capital
Federal, foram ainda criados o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela e a Justiça Sanitá-
ria (Fundação Casa de Rui Barbosa, 1985, pp. 183-4).
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9
Essa comissão se segue, imediatamente, aos estudos de Oswaldo Cruz sobre as
condições nosológicas da região de Rondônia, onde se construía a Estrada de Ferro Ma-
deira–Mamoré, e o trabalho de profilaxia da malária que atingia em torno de 80% dos
trabalhadores (Benchimol, 1990a, p. 51; Costa, 1985, p. 73).
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10
São os trabalhos de inspeção sanitária de uma comissão do IHB, no estado do
Rio de Janeiro e em São Paulo, que forneceram a informação de que haveria em torno de
90% de indivíduos opilados entre a população das áreas visitadas (Fontenelle, 1922, p. 51;
Perna, 1919, pp. 219-22). Este dado transformou-se na estimativa de que 70%-80% da
população do país tinha ancilostomíase. Tal informação, proveniente do trabalho científi-
co de uma prestigiosa, benemérita e experiente fundação estrangeira, ajudou a legitimar o
alarme sobre as condições da população rural brasileira. Monteiro Lobato alertava os
governantes que existiam “Dezessete milhões de opilados [!]” em uma população de 25
milhões de habitantes (Lobato, 1956, pp. 232-7). Para análise e mais detalhes da atuação
da Fundação Rockefeller no Brasil entre 1915 e 1930, ver Faria (1994).
11
Uma comissão do IHB, chefiada pelo general William Crawford Gorgas, que
atuara na extinção da febre amarela em Havana no início do século, chegara ao Brasil em
outubro de 1916 para estudos e contatos com autoridades nacionais, no sentido de uma
colaboração para a erradicação da febre amarela no litoral brasileiro (Faria, 1994; Fontenelle,
1922; pp. 54-5). Cabe informar que só na década de 1930 ficou comprovada a existência
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da variedade silvestre da febre amarela, em que primatas podem ser hospedeiros do vírus
ao serem picados pelo mosquito Aedes aegypti (único vetor da variedade urbana da doen-
ça) ou outros mosquitos. As estratégias antiamarílicas, entre 1900-1930, centravam es-
forços nos centros urbanos e consideravam como dado que apenas seres humanos pode-
riam ser hospedeiros (Cooper & Kiple, 1993, pp. 1100-7; McGrew, 1985b, pp. 356-7).
12
Lembro que esse período, que corresponde à eleição, à Presidência e sucessão de
Hermes da Fonseca (1910-1914), foi bastante atribulado no que diz respeito às relações
entre o Governo Federal, o Congresso Nacional e os Executivos estaduais (ver Bello,
1956, pp. 278-304).
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13
Comentários de então e trabalhos posteriores incorrem em um mesmo proble-
ma interpretativo. Consideram negativo qualquer retrocesso no processo de centralização
estatal, mesmo que isto signifique a manutenção de atividades, como as citadas, na esfera
pública, porém local. Considerando a centralização como uma marcha natural e triunfal,
esse tipo de análise não consegue trabalhar com a possibilidade de a descentralização, em
alguns casos, significar um rearranjo mais eficiente das atribuições do Poder Público,
depois de sua institucionalização (ver, por exemplo, Fontenelle, 1922, pp. 48-9). Para a
íntegra desse novo regulamento, ver Brasil (1916, pp. 860-944).
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Na regulamentação da reforma dos serviços sanitários, na década de 1920 (De-
cretos n.o 14.354, de 1920 e n.o 16.300, de 1923), os artigos pertinentes aos portos eram
remetidos diretamente ao decreto de 1914.
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15
Um trabalho de análise das constituições estaduais no período, realizado pelo
médico Sebastião Barroso, no que se referem à saúde pública, a competência dos executivos
e legislativos municipais e estaduais, indica que, apesar da enorme diferença entre elas,
apenas as do Rio Grande do Sul e Pernambuco não reconheciam explicitamente o direito
do Poder Público de intervir nessa área. A maioria das constituições, excetuando as do
Espírito Santo, Mato Grosso e Santa Catarina, tendia a considerar a higiene “[. . .] mais
geral do que local, mais do centro do que da periferia [. . .]” (Barroso, 1919, p. 26-30).
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Em 1892, Nina Rodrigues teceria duras críticas ao parecer do Conselho Supe-
rior de Saúde Pública do Brasil, apoiando um modelo de organização sanitária descen-
tralizado e de base municipal no qual caberia ao Governo Federal apenas os serviços
marítimos. Para Rodrigues, “A organização municipal autônoma e completamente inde-
pendente tem provado mal em toda parte; entre nós será um desastre completo” (Rodrigues,
1892, p. 421).
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Os membros dessa comissão eram Miguel Pereira, Carlos Chagas (diretor do
IOC), Miguel Couto (presidente da ANM), Afrânio Peixoto (professor da FMRJ), Carlos
Seidl (diretor da DGSP) e Aloysio de Castro (diretor da FMRJ). Informações sabre a
comissão estão em Couto (1919, pp. 383-4). O relatório da comissão está reproduzido na
mensagem do ministro da Justiça e Negócios Interiores, Carlos Maximiliano, à Comissão
de Finanças da Câmara, de 4-7-1917, publicada nos Anais da Câmara dos Deputados,
sessão de 10-9-1917, pp. 364-7.
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O Conselho Superior de Higiene a ser criado — composto por cinco médicos
—, teria poderes e autonomia nas áreas de recursos humanos, fiscalização, orçamento e
autorização de despesas, além de franquias postais, aduaneiras e de transporte para pro-
dutos, publicações e pessoal. Esse Conselho coordenaria os serviços das áreas endêmicas
e negociaria com estados e municípios um plano geral de saneamento. As doenças esco-
lhidas como de sua responsabilidade eram a malária, a ancilostomíase, leishmaniose, doença
de Chagas, febre amarela e a sífilis, percebidas como as que mais afligiam as populações
rurais do país. O novo órgão também teria como atribuição realizar estudos e divulgá-los,
além de educar a população nos assuntos de higiene (ibidem).
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19
Esse decreto foi regulamentado pelo de n.o 13.055 de 6-6-1918.
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20
A legislação sobre a produção de medicamentos estava vinculada à forma pela
qual se realizariam os serviços de saneamento rural. A legislação sobre o quinina oficial e
a profilaxia rural foi sensivelmente ampliada pelos Decretos n.o 13.139, de 16-8-1918, e
n.o 13.159 de 28-8-1918 (Brasil, 1919a, vol. III). Os detalhes sobre os decretos da profilaxia
rural serão objeto de discussão no próximo capítulo.
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21 Identifiquei 32 médicos de um total de 210 deputados, dos quais de dez não foi
possível conhecer a formação profissional. Os bacharéis eram 122 e 20, os engenheiros.
No Senado Federal, identifiquei nove médicos de um total de 63 senadores (ver Anais da
Câmara dos Deputados, anos de 1917 a 1920; Abranches, 1918; Castro & Castagnino,
1927; e Leite Neto, 1986). Esses números são superiores à média francesa de 11,2% de
médicos sobre o total de deputados nas seis legislaturas entre 1889 e 1914. Jack Ellis
chama a atenção que a França seria o país com maior percentual de médicos deputados no
legislativo nacional, se comparada, para o mesmo período, a outros países europeus e aos
Estados Unidos (Ellis, 1990, pp. 3-6).
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22
Alguns trabalhos que abordaram o tema da reforma sanitária dos anos 1910-
-1920 sobrevalorizaram os argumentos e as propostas dos médicos e suas instituições,
dando pouca atenção ao locus decisório fundamental que era o Legislativo. Mesmo quan-
do o fazem, aderem de tal maneira ao discurso do movimento sanitarista, que as suas
avaliações sobre sucesso e fracasso das propostas ficam contaminadas pela avaliação da
época. Perdem, assim, a perspectiva da interação política que produziu resultados diversos
dos pretendidos inicialmente (ver, por exemplo, Labra, 1985, pp. 88-172).
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23
A partir daqui utilizarei AC quando me referir aos Anais da Câmara dos Deputados.
24 Os principais discursos e propostas de Azevedo Sodré estão publicados em
Sodré (1918; 1920).
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Caso isso não fosse suficiente para convencer as elites de que am-
pliar o alcance e a capacidade do Poder Público na esfera federal não
violava a Constituição, além de ser uma necessidade diante da natureza
contagiosa das principais doenças que afligiam o país, o próprio Sodré
indicava um outro argumento também originário da campanha pelo sa-
neamento. A onipresença de endemias e a ameaça permanente de epide-
mias indicavam que a situação sanitária do país correspondia à figura
constitucional da calamidade pública, situação que impossibilitaria tam-
bém o cumprimento dos vários tratados internacionais assinados pelo
país (AC, 69.a sessão, 21-8-1918). A interpretação sobre as consequências
25
Argumentos de juristas como Prudente de Morais Filho, Mário Vianna, Silva
Marques e de ministros do STF como Pedro Lessa e Pires de Albuquerque estão expostos
em Penna (1923, pp. 309-12) e comentados em Perna (1922, pp. 8-11). Esses juristas se
basearam nos argumentos desenvolvidos por Sebastião Barroso, alguns já discutidos no
capítulo anterior, sobre a competência da União e dos estados. Para Sebastião Barroso, o
Governo Federal não deveria esperar a requisição de auxílio dos estados para dar combate
às epidemias. Essa condição “[. . .] seria negar que uma moléstia transmissível possa inte-
ressar a todos onde essa transmissão esteja em condições de dar-se” (1919, p. 35).
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26
Para Sodré, o novo Ministério não deveria, necessariamente, ser dirigido por
um médico, mas teria um conselho técnico para assessorá-lo. As proposições vindas da
ANM e de médicos vinculados aos serviços públicos reivindicavam o monopólio do cargo
de ministro para um médico que tivesse reconhecimento de seus pares.
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pela União. Variações dessa fórmula estavam presentes nos vários decretos
que regulamentaram o Serviço de Profilaxia Rural, em 1918, e iriam ser
propostas em projetos de reforma dos serviços sanitários que se seguiram
ao de Sodré. Uma forma de financiamento incorporada por projetos futuros
foi a da formação de um fundo para o saneamento rural, constituído pelo
imposto sobre bebidas alcoólicas, uma taxa sobre o produto dos jogos de
azar, saldo nas verbas do Ministério da Saúde, venda de selo sanitário e
renda dos laboratórios oficiais. Portanto, os recursos propostos para o sane-
amento rural seriam sempre obtidos fora do orçamento do novo ministé-
rio.27
Esses mecanismos de financiamento dos convênios entre estados e
Governo Federal foram cruciais, uma vez que definiram as possíveis coa-
lizões políticas as quais, em alguns momentos, vetariam, e, em outros,
viabilizariam, ao longo do tempo, o aumento das atribuições federais em
saúde e saneamento. De modo geral, representantes de estados não cen-
trais no pacto oligárquico, e com poucos recursos disponíveis, considera-
vam que a divisão dos recursos e das responsabilidades inviabilizava os
convênios. Além disso, a falta de recursos de toda ordem tornava-os bem
menos ortodoxos no que se refere à autonomia dos estados vis-à-vis a
União, levando-os a aderir às interpretações supracitadas dos dispositi-
vos constitucionais relativos ao tema. Os representantes dos estados não
centrais no pacto oligárquico adotaram mais rapidamente uma leitura da
Constituição que seria mais generosa para com as atribuições da União
em matéria de saúde pública e saneamento. O difícil seria convencer to-
das as bancadas sobre os custos dessa generosidade.
Reações de todo tipo ao projeto de Sodré apareceram na tribuna da
Câmara. Além de alguns apoios, repetiram-se as críticas de sempre: que
a campanha pelo saneamento denegria o país, que o diagnóstico era exa-
gerado, que a saída não era a ênfase nem na saúde nem nos sertões. O
27
O projeto também contemplava o financiamento de obras especiais através de
um fundo formado pela cobrança de 2% sobre os impostos de importação arrecadados
pelo estado em que fossem realizadas. Constitucionalmente um imposto que, mesmo
quando arrecadado pelo estado, deveria ser transferido para o Tesouro Nacional (artigos
7.o e 9.o, § 3.o). As reformas dos serviços sanitários, em 1919 e 1920, não incorporaram
essa ideia. A íntegra do projeto está em Sodré (1918).
122
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Eram membros da Comissão, além de Brandão e Sodré, Palmeira Ripper (SP),
Rodrigues Lima (BA), Zoroastro Alvarenga (MG), Otacílio Camará (DF), Domingos
Mascarenhas (RS), Alexandrino Rocha (PE) e Afonso Barata (RN), todos médicos.
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29
Alguns autores calculam 550.000 mortes nos EUA e 2,3 milhões na Europa,
entre setembro e outubro de 1918. Estima-se de 30.000 (Fontenelle, 1922, p. 22) a 180.000
mortes no Brasil (Patterson & Pyle, 1991, p. 14). Para o mundo inteiro, as cifras estima-
das por vários autores variam entre 15 e 50 milhões. Patterson & Pyle (ibidem),
retrabalhando essas estimativas, apontam 30 milhões de óbitos como o número mais apro-
ximado. Hoje, sabe-se que não era possível prevenir ou curar uma doença altamente con-
tagiosa pelo ar, e resistente aos métodos de desinfecção e isolamento então disponíveis
(Tomkins, 1992).
30
O relato do diretor-geral de Saúde Pública está em Torres (1919a). Para deta-
lhes sobre a epidemia na imprensa carioca, ver Britto (1997). Para um relato dos serviços
emergenciais na cidade do Rio de Janeiro organizados por Carlos Chagas, ver Chagas
Filho (1993, pp. 147-58), para a epidemia em São Paulo, ver Bertolli Filho (1989). Este
autor contesta o caráter democrático da epidemia, mostrando que o índice de mortalida-
de em bairros pobres foi o dobro do índice das áreas mais abastadas.
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vitimado pela gripe, e seu vice, o mineiro Delfim Moreira, tomou posse
em 15 de novembro. Esse mandato presidencial, de um homem já setua-
genário e com a saúde precária, fora arduamente costurado em um período
conturbado por disputas internas, pelo conflito mundial e as dificuldades
econômicas daí advindas.31 Mesmo sobrevivendo à doença, veio a falecer
em 16-1-1919. A epidemia, atingindo até mesmo o presidente eleito, fa-
miliares de ministros e membros das elites políticas, demonstrava, de forma
trágica, que representantes de ambos os lados do debate sobre a reforma
sanitária tinham razões suficientes para desconfiar dos serviços sanitários
existentes. Ao atingir também as elites, a epidemia produziu um consenso
mínimo sobre a necessidade urgente de mudanças na área de saúde públi-
ca. Afinal, todos pareciam ser iguais perante algumas doenças o que certa-
mente aumentou a sensibilidade de muitos parlamentares às propostas de
reorganização dos serviços sanitários.32
Um acirrado debate público em torno da competência dos órgãos
federais e de seus dirigentes, que se demitiram, foi travado durante e
depois da epidemia. Para os defensores da centralização, as estruturas
públicas existentes não se mostraram capazes de resolver problemas ele-
mentares de saúde pública. Portanto, fazia-se necessária uma revisão com-
pleta nessa área. Já os seus adversários acreditavam que não se poderia
ampliar o poder de uma autoridade que se mostrara incapaz de defender
o país. Incompetência dos dirigentes, inexistência de governo, falta de
recursos para o setor, descaso das autoridades que demoraram a agir, ou
mesmo a resignação em relação a uma fatalidade, são as acusações, argu-
mentos e desculpas que ressaltam no debate parlamentar (AC, sessões de
outubro e novembro de 1918). Portanto, se havia um consenso mínimo
sobre a falência dos serviços sanitários existentes isto não significava um
acordo sobre a solução para o problema.33
31
As informações sobre esse processo sucessório, adoecimento e morte de Rodrigues
Alves, estão em Franco (1973, vol. 2). A dinâmica política do final do Governo Brás e da
eleição e sucessão de Alves estão em Bello (1956, pp. 316-22).
32
O ministro da Viação e Obras Públicas, Afrânio de Melo Franco, perdera filho
e esposa (Chagas Filho, 1993; Franco, 1973). Em São Paulo, o prefeito da cidade, Wa-
shington Luís, e o diretor dos serviços sanitários estaduais, Artur Neiva, adoeceram.
33
Ao contrário dos dirigentes dos serviços sanitários, que perderam prestígio com
a epidemia, como Carlos Seidl, que se demitiu depois de cinco anos como diretor da
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35
A aparição de epidemias gera também enormes desconfianças em relação à
capacidade do Poder Público de proteger a sociedade. Isso manifestou-se no supracitado
debate parlamentar sobre a gripe espanhola. Judith W. Leavitt (1976), analisando a epi-
demia de varíola em 1894, doença evitável por vacinação, na cidade de Milwaukee,
Wisconsin (EUA), mostrou que uma epidemia gera insatisfação social e reações políticas
que podem acabar por reduzir os poderes da autoridade sanitária. Este foi o caso do
Departamento Municipal de Saúde de Milwaukee, que caiu em descrédito. O efeito des-
sa epidemia de varíola foi a reversão na tendência de ampliação do poder da autoridade
sanitária municipal (pp. 553-4).
129
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36
Incluía o professor de engenharia sanitária da Escola Politécnica, Domingos da
Silva Cunha, e um jurista, Clóvis Beviláqua. Outros membros eram o presidente da ANM,
Miguel Couto, o diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, os professores Ro-
cha Faria (presidente da comissão) e Afrânio Peixoto, o diretor da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, Aloísio de Castro, e o diretor da DGSP e inspetor sanitário federal,
Teófilo Torres. Ver Couto (1919) e Fontenelle (1922).
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37
Sobre a eleição de Epitácio Pessoa, como “fórmula de compromisso”, e seu man-
dato (1919–1922), ver Bello (1956) e Carone (1974). Os problemas econômicos e finan-
ceiros do governo estão em Fritsch (1989, pp. 41-50). É importante assinalar que as
políticas de saneamento, que se ampliaram nacionalmente no período, têm íntima relação
com o enorme empenho de Pessoa em realizar obras contra as secas na região Nordeste,
entre 1920 e 1922, principalmente a construção de açudes, estradas e portos, com a
contratação de empresas norte-americanas que tiveram, também, problemas com a febre
amarela e a malária. Segundo Robert Levine, esse teria sido o único esforço relevante de
gastos com obras públicas na região, durante a Primeira República (Levine, 1985, p. 151).
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38
O espaço dedicado à saúde e ao saneamento em mensagens presidenciais cres-
ceu de um ou dois parágrafos, ao longo dos anos de 1910, tratando quase exclusivamente
de febre amarela e das condições sanitárias do DF, para uma posição de destaque, abor-
dando inúmeros temas e problemas relativos à saúde e ao saneamento, especialmente as
de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes. Ver Brasil (Presidente, 1919-1922 (Delfim Moreira
e Epitácio Pessoa), 1978; Presidente, 1923-1926 (Artur Bernardes), 1978.
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39
Uma leitura dos Anais da Câmara dos Deputados, a partir de 1916, não deixa
dúvidas de que o diagnóstico sobre as condições sanitárias do país foi deixando de ser
polêmico para ser compartilhado pela maioria do Legislativo Federal.
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40
O projeto aprovado organizava o DNSP com uma diretoria-geral (médico no-
meado pelo presidente da República) e três diretorias: de Serviços Sanitários Terrestres
na Capital Federal; de Defesa Sanitária Marítima e Fluvial e de Saneamento e Profilaxia
Rural, reincorporada ao órgão sanitário federal. O DNSP abrangeria as seguintes ativida-
des: serviços de higiene no DF (profilaxia geral e específica das doenças transmissíveis);
providências visando à higiene domiciliária; polícia sanitária das habitações, fábricas, ofi-
cinas, colégios, estabelecimentos comerciais, hospitais, matadouros, lugares públicos, ho-
téis, etc.; serviços sanitários dos portos marítimos e fluviais; profilaxia rural no DF, no
território do Acre e, mediante acordo, nos estados; estudo e pesquisa científica da nature-
za, etiologia, profilaxia e tratamento das doenças transmissíveis; fornecimento de soro,
vacinas e remédios para o tratamento das doenças e epidemias, em qualquer região do
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4. Considerações finais
Meu objetivo neste capítulo foi analisar o processo político que re-
sultou na reorganização dos serviços sanitários federais em 1920. Os mili-
tantes do saneamento esperavam que a reforma fosse uma decorrência
natural da descoberta de que o país era um imenso hospital e da completa
ausência de Poder Público. Essa reforma implicaria unificação e centraliza-
ção dos serviços de saúde pública, na esfera federal, alterando as relações
entre estados e Governo Federal, estabelecidas pela Constituição, adap-
tando-as às exigências da natureza infectocontagiosa da maior parte das
doenças que assolavam o país.
Indiquei que a percepção da interdependência sanitária se difundi-
ra entre as elites políticas, que passaram a reconhecer a responsabilidade
governamental para com os mais variados problemas de saúde pública e
não apenas para com ações emergenciais de combate a epidemias. Toda-
via, isso não significou uma adesão à reforma demandada pelos médicos
e suas instituições, e que teria como forma organizacional preferencial o
Ministério da Saúde Pública e como principal virtude a franquia para
agir sobre todas as regiões do país.
Por outro lado, ao ficar manifesto que ninguém mais poderia ale-
gar ignorância em relação ao quadro sanitário nacional, descontados quais-
quer exageros retóricos, cresceu a pressão por ações governamentais, em
especial na área de saneamento rural. Foram desenvolvidas interpreta-
ções menos ortodoxas do texto constitucional, em especial um desapego
à abordagem fundamentalista de seu artigo 5.o que tratava das atribuições
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DIVULGAÇÃO HUCITEC EDITORA.
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Capítulo 4
SOBRE O ENCONTRO DA CONSCIÊNCIA
COM O INTERESSE: UMA POLÍTICA PÚBLICA
E NACIONAL DA SAÚDE
♦♦♦
1. Introdução
[. . .] a facilidade com que os estados do
Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará, Rio
Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa
Catarina e Mato Grosso aceitaram acor-
dos, para os serviços de saneamento e
profilaxia rural, prova como o terreno
está preparado para a organização de
uma repartição unitária de Saúde Pública
— J. P. F ONTENELLE, 1922.
A
rápida adesão dos estados à política de saneamento e profilaxia
rural dirigida pelo, então, recém-reformado serviço sanitário
federal era motivo de alento para José Paranhos Fontenelle, um
importante médico dos serviços de saúde pública. Na verdade, em ape-
nas dois anos de reforma, os argumentos sobre autonomia estadual,
burocratização, ineficiência e desperdício, correntes no Legislativo fede-
ral, foram substituídos pela presença da Diretoria de Saneamento e
Profilaxia Rural, do DNSP, em três quartos das unidades da Federação.
Este capítulo pretende responder à seguinte questão: Como e por que se
deu essa rápida conversão que, segundo entusiastas da reforma sanitária,
seria mais um passo para a futura unificação e centralização dos serviços
sanitários em todo o país?
141
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1
Em várias experiências nacionais, como por exemplo a dos EUA, a hanseníase
foi a primeira enfermidade a ser nacionalizada e submetida aos serviços federais, devido à
dificuldade explícita (e falta de vontade) dos estados de agir para isolar e tratar os enfer-
mos. A criação de uma leprosaria nacional na Luisiana foi autorizada em fins da década
de 1910, para abrigar e impedir a circulação de doentes de todo o país (Soviero, 1986). No
Brasil, houve um intenso debate a respeito de como isolar os doentes e impedir o seu
trânsito pelo território nacional. Ainda no final dos anos 20, a circulação de doentes
continuava sendo considerada um grave problema. Duas soluções estiveram em debate: a
criação de uma grande leprosaria nacional, para isolar todos os doentes em um mesmo
lugar, no estilo norte-americano (o lugar mais sugerido era a ilha Grande, no litoral do
Rio de Janeiro), ou a instalação de hospitais de isolamento em várias regiões do país,
dividindo espacialmente os doentes em várias lazarópolis. Algo próximo da segunda alter-
nativa começou a ser implementado sob a responsabilidade federal no esforço de nacio-
nalização das políticas de saúde pública, a partir de fins da década de 1910 (Araújo, 1927;
Sodré, 1920, pp. 39-43).
146
2
Uma situação específica ocorria com o controle do leite e da carne. Com o cresci-
mento das principais cidades do país, estábulos e abatedouros foram se transferindo para
municípios vizinhos, ou mais distantes, em geral menos aparelhados do que as grandes mu-
nicipalidades, para fiscalizar seu funcionamento. Os mesmos problemas de cooperação que
ocorriam no âmbito federal podiam ser encontrados nas relações intermunicipais, uma das
razões para uma estadualização das ações de saúde e higiene. A questão, já assinalada, é que
poucos estados tinham recursos técnicos e financeiros para exercer a fiscalização necessária,
e mesmo poder político para interferir nas áreas controladas por chefes locais. No Brasil, a
preocupação com o tema só ganharia atenção nacional na década de 1920, mesmo assim
de forma muito lenta e precária, tanto na regulamentação como na execução da reforma da
saúde pública, e muito mais a partir de um crescente destaque nas mensagens do Executivo
e de declarações e demandas de dirigentes e médicos dos serviços sanitários federais, nada
comparável, porém, ao movimento pelo saneamento rural. Esse caso se distancia bastante
da experiência norte-americana, em que o Congresso regulamentou, precocemente em
relação a outras políticas sanitárias, a produção e fiscalização de alimentos através do Food
and Drug Act, de 1906, responsabilidade entregue ao Departamento de Agricultura. Essa
legislação resultara de forte movimento de opinião pública, que incluía interesses comerciais,
reivindicando regulação federal do comércio interestadual de alimentos (Young, 1989).
147
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3
“Varíola: Nós devemos contraí-la para nos ajustar aos nova-iorquinos(!)”. Essa
exclamação de um jornal da cidade de Chicago, em 1882, continha a demanda por um
órgão federal de saúde com serviços de inspeção contra a varíola exercidos em todo o
território norte-americano, contra o qual resistiam as autoridades de Nova York. Os habi-
tantes de Chicago, situada à beira do lago Michigan, razoavelmente distante dos principais
portos atlânticos, reclamavam dos custos que lhes eram impostos pela irresponsabilidade
das autoridades das cidades litorâneas, que deixariam ingressar e circular variolosos (apud
Warner, 1984, pp. 427-8). A experiência norte-americana revela também que as percepções
de interdependência sanitária não se davam apenas no sentido geográfico e econômico,
isto é, Norte mais desenvolvido versus Sul mais atrasado, como tradicionalmente é apre-
sentado. Uma outra clivagem seria cidades litorâneas com mais problemas sanitários, me-
nos responsáveis e menos sensíveis a cooperar com uma solução nacional versus cidades
interioranas (Ellis, 1992; Humphreys, 1992; Warner, 1984).
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4
No caso norte-americano, parte da legitimidade da atividade federal em saúde
pública foi estabelecida pelas interpretações da Suprema Corte e por revisões judiciais de
decisões do Congresso, em torno da cláusula do comércio interestadual e internacional
(artigo 1, seção 8 da Constituição dos EUA). O poder de polícia dos estados (em saúde e
em outras áreas da atividade governamental) estaria limitado, quando da sua interferência
sobre o comércio interestadual, cujo melhor exemplo é a imposição de quarentenas e o
fechamento de fronteiras estaduais para impedir o ingresso e a circulação de mercadorias
e pessoas oriundas de áreas suspeitas de epidemias. Esse poder seria crescentemente con-
siderado uma atribuição constitucional da União. Analogias entre problemas de saúde
pública e seus impactos (por exemplo, contágio) e as relações econômicas supraestaduais
permitiram o crescimento, via Judiciário, do papel regulador do governo americano nessa
área (Kagan, 1961; Tobey, 1978, pp. 48-60).
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A íntegra do Decreto n.o 13.538 está em Brasil (1920, pp. 393-7).
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6
Como ilustração, o estado de Pernambuco tentara organizar campanhas de com-
bate a endemias rurais sem a participação do Governo Federal. Em 1919, o governo
estadual recém-empossado teria constatado a impossibilidade de implementar tal estra-
tégia. Assim sendo, propôs um acordo à Fundação Rockefeller, para que esta dirigisse os
serviços de profilaxia do estado, além de buscar o restante dos recursos necessários junto
ao Governo Federal. O acordo proposto seria no valor de 140 mil dólares (cf. carta de L.
Hackett, diretor do IHB no Brasil a W. Rose, diretor-geral do IHB, datada de 5-2-1920,
Arquivo Rockefeller: Banco de Dados, Uerj/IMS). Dois anos depois, Pernambuco contava
com seis postos de profilaxia da ancilostomíase e verminoses, em seis municípios organi-
zados mediante convênio com o IHB (Folhetos de Higiene, LXIV, 1922, p. 42).
164
165
rias para quem desejasse o acordo (artigos 11.o e 12.o).7 O estado contra-
tante deveria também estabelecer um código sanitário rural com medidas
obrigatórias, como a construção de latrinas, como ação profilática contra
a ancilostomíase, e o MJNI poderia fiscalizar os serviços em qualquer
parte do país (artigo 14.o). Assim, os serviços de profilaxia rural iniciariam
um processo de uniformização das ações sanitárias do Poder Público, em
âmbito nacional, incrementando a capacidade do poder central de agir
coercivamente, e ampliando o espaço sobre o qual poderia ser exercida.
O exemplo paranaense é, mais uma vez, ilustrativo desse processo.
Sendo um dos estados pioneiros no estabelecimento de convênios com o
Governo Federal, em dois anos adequou toda a sua legislação e serviços
às exigências federais, com a abertura de dois créditos anuais de 100 con-
tos de réis (idêntico ao valor que deveria ser creditado pela União) e a
criação, até o início de 1919, de quatro postos sanitários no interior e um
posto central na capital do estado, afora um contrato com a Fundação
Rockefeller, para verificação da frequência de verminoses na população
rural e seu tratamento (Souza Araújo, 1919).
Os custos da presença federal podem ser atestados, por exemplo,
pelo fato de que parte considerável da regulamentação dos serviços de
profilaxia rural realizados em território paranaense passou a ser estabelecida
por portarias do MJNI. Na portaria de 5-6-1919, que instrui os serviços
paranaenses, seguindo a determinação do artigo 5.o do Decreto n.o 13.538,
fica clara a concentração de poder nas mãos do chefe do serviço indicado
pelo Governo Federal, e que somente a ele responde e consulta. O Ser-
viço de Profilaxia Rural, através do seu chefe, poderia mudar a localiza-
ção dos postos de profilaxia, propor a organização e escolher a localiza-
ção de hospitais, fiscalizar a comercialização da quinina e definir os casos
de sua gratuidade, fazer acordos com fazendeiros e lavradores para reali-
zar serviços em suas propriedades, requisitar do governo estadual as me-
didas necessárias para suas ações, controlar os funcionários, a folha de
pagamento e a contabilidade, etc. (ibidem, pp. 39-42). As multas por
infração ao regulamento sanitário rural do Paraná poderiam ser impostas
7
Essa condição estava presente nas ações das comissões federais de combate à
febre amarela no norte do país, no início da década de 1910 (Frahia, 1972, pp. 35-6).
166
8
Seria ingênuo desconhecer que a indicação federal do chefe do Serviço de
Profilaxia Rural de um estado era negociada com o presidente do estado, principalmente
quando, dadas as suas atribuições, esse chefe exercia de fato a direção dos serviços sanitá-
rios estaduais. Muitas vezes, o indicado era um funcionário federal, oriundo do próprio
estado ou que nele tinha fortes laços pessoais e políticos. Isto organizava a interação,
muitas vezes conflituosa, dos serviços federais com o poder local. O estado do Paraná é,
mais uma vez, ilustrativo. O médico Souza Araújo, que implantou o SPR no estado, em
1918-1919, era um paranaense vinculado ao IOC. Para as relações entre os serviços fede-
rais e estaduais na Bahia, desde o início deste século, ver Castro Santos (1987).
167
9
Para José Barreto, São Paulo, que tinha um serviço sanitário estadual já organi-
zado, se quisesse, dispondo facilmente de seis mil contos poderia obter mais um terço
desse valor dos cofres federais, ao passo que os “estados do Norte” talvez não pudessem
investir 200 contos no SPR (ibidem).
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10
Segundo observadores do período, essas comissões foram sendo desmobilizadas
por ocasião da reorganização dos serviços sanitários federais durante os anos de 1920 e
1921. Um novo esforço de combate à febre amarela viria logo depois, através dos serviços
federais de profilaxia rural em estados nordestinos, seguido, em 1923, da criação do Ser-
viço de Febre Amarela e de um grande acordo firmado entre o Governo Federal e a
Fundação Rockefeller, no qual esta última ficava responsável pelos esforços de erradicação
da febre amarela no Nordeste (ibidem; Cueto, 1996, pp. 188-96; Faria, 1994, pp. 117-9;
Peryassu, 1927, pp. 50-2).
11 Ver Brasil (1921, vol. I, pp. 1-7) e Brasil (1921a, vol. III, pp. 244-484).
170
Este fundo seria composto por imposto de consumo sobre bebidas alcoó-
licas destiladas, venda de selo sanitário, renda dos laboratórios e institu-
tos de pesquisa federais, saldos apurados nas diversas verbas do MJNI e
taxa de 15% sobre o produto dos jogos de azar (artigo 12.o do Decreto n.o
3.987). Os vários mecanismos de financiamento e operação dos serviços
de profilaxia rural indicavam a transferência de responsabilidades para a
autoridade sanitária federal e a desoneração dos estados. Se, nos decretos
federais de 1918 e de abril de 1919, o convênio implicava, necessariamente,
que parte dos recursos seriam financiados pelos estados, agora, com o
DNSP, essa condição era apenas retórica, já que na prática todos pode-
riam contar com recursos federais para obras de saneamento, ressarcindo,
um dia, a metade dos gastos federais. E, dessa forma, a profilaxia rural foi
incluída no Departamento Nacional de Saúde Pública como Diretoria
de Saneamento e Profilaxia Rural (DSPR).
A partir de iniciativa independente do Executivo, as ações de sa-
neamento rural das autoridades sanitárias federais nos estados foram am-
pliadas pelo Legislativo, em 1919, e regulamentadas e organizadas nos
dois anos seguintes. Estavam contidas em uma reforma mais ampla da
política de saúde pública, implementada ao longo dos anos 20. A inten-
ção dos contratantes era que, alcançadas as metas de saneamento e en-
cerrados os trabalhos e/ou acordos, a autoridade federal se retirasse, dei-
xando a sua continuidade a cargo das autoridades sanitárias estaduais e
municipais existentes.
Contudo, as ações de profilaxia de endemias rurais implicavam uma
presença mais longa e organizada do poder central nos estados — dife-
rentemente das respostas emergenciais requeridas pelas epidemias, que
mais rapidamente eram percebidas como problemas nacionais —, uma
vez que os resultados dessas ações eram menos imediatos do que os obti-
dos pelo controle de uma epidemia, além de serem politicamente mais
delicadas, uma que visavam prioritariamente às áreas rurais e de expan-
são econômica. Os representantes do Governo Central, imbuídos dos
poderes que lhes eram concedidos pelos acordos, relacionavam-se cotidia-
namente, através de variadas ações de tratamento e prevenção de doenças,
com a população do interior do país, com os governos e seus represen-
tantes e com chefes locais. Tudo isso, na verdade, significava a penetração
171
172
12
Esse decreto foi modificado algumas vezes, até 1923, quando o Decreto n.o 16.300
(31-12-1923) aprovou o regulamento que vigoraria até o final da Primeira República.
13
O ano de 1920 foi um período de organização do DNSP, cujo regulamento só
foi decretado em 15-8-1920, entrando em execução em 1.o-10-1920. Os serviços de
profilaxia rural nos estados só foram efetivamente iniciados em 1921 (ver carta de Belisário
Penna, diretor do DSPR, a Carlos Chagas, diretor-geral do DNSP, de 8-4- 1921, Arqui-
vo Belisário Penna, COC/Fiocruz).
173
14
A hanseníase e as doenças venéreas, especialmente a sífilis, vinham atraindo a
atenção dos sanitaristas e da opinião pública e de filantropos, como Eduardo Guinle, que
começou a colaborar com o DNSP na construção de hospitais e enfermarias no Distrito
Federal (Araújo, 1927).
174
15
Podemos dizer que, à semelhança da experiência norte-americana, a lepra tor-
nou-se a enfermidade que mais rapidamente foi transferida para a responsabilidade fede-
ral; certamente uma resposta ao problema dos caronas, apontado na primeira seção da
segunda parte deste capítulo.
175
16
Para as atribuições do DNSP, por ocasião de sua criação em 1920, conferir nota
40 do Capítulo 3. O regulamento de 1923 (Decreto n.o 16.300) está em Brasil (1924).
176
177
17
Retornarei a essa questão quando tratar do caso paulista, no próximo capítulo.
Os postos de profilaxia das verminoses tinham objetivos restritos. Não se tratava de estru-
turas permanentes, não se constituíam em alternativa aos serviços federais, estaduais ou
municipais, nem dispunham da autoridade destes. Entretanto, representavam recursos
adicionais, à disposição dos estados, para dar combate às verminoses e educar a população
em práticas de higiene, aliviando também o orçamento federal. As metas das ações de
profilaxia da ancilostomíase foram assim resumidas: “[. . .] o objetivo claramente estabe-
lecido pela Fundação, desde o começo [. . .], não é erradicar a uncinariose [ancilostomíase
ou opilação], pois lhe falta naturalmente autoridade para obter das populações uma das
medidas profiláticas essenciais, que é a construção de latrinas. [. . .]. A norma de sua
atividade nesse terreno tem sido: estabelecer os índices de infestação das localidades, de-
monstrando assim, com bases irrefutáveis, a disseminação do mal; tratar pelos vermífugos,
em grande massa, as populações rurais, de maneira que elas tenham, com os efeitos da
cura, a noção íntima do valor da saúde; despertar a atenção das administrações locais e
gerais para esses resultados” (Folhetos de Higiene, LXIV, 1922, p. 40 e 44).
178
179
180
18
Todos esses dados estão nos comentários datilografados de Belisário Penna so-
bre o orçamento de despesa da DSPR, aprovado pela Câmara Federal para o ano fiscal de
1922, sem data, provavelmente segundo semestre de 1921 (Arquivo Belisário Penna, COC/
Fiocruz). Parte dessas informações estão incorporadas na exposição de Epitácio Pessoa ao
deixar a presidência, em 15/11/1922 (Brasil. Presidente, 1919-1922 (Delfim Moreira e
Epitácio Pessoa), 1978).
181
19
Belisário Penna preocupava-se com a pressão sobre o seu orçamento, temendo
não efetivar os serviços contratados, também porque as despesas fixas no DF, área de
competência exclusiva da DSPR, correspondiam, aproximadamente, a 20% do total de
seu orçamento (Arquivo Belisário Penna, COC/Fiocruz).
20
Previsão feita quinze dias depois do início da execução do regulamento do DNSP
por L. W. Hackett, em carta a W. Rose, em 15-10-1920, Arquivo Rockefeller: Banco de
Dados, Uerj/IMS. Belisário Penna, em correspondência a Carlos Chagas, datada de 8-4-
-1921, revelava-se menos otimista com a capacidade do Governo Federal de estabelecer o
fundo. Em pleno processo de ampliação do número de estados que optavam pelos acor-
dos, o Governo ainda não sabia estimar quanto arrecadaria, dificultando o planejamento
dos serviços da DSPR (ver Arquivo Belisário Penna, COC/Fiocruz).
182
da lepra por mais três anos, a partir de 1925, havia uma cláusula (7.a)
que permitia ao estado pagar a dívida contraída, nos acordos anterio-
res, em dez parcelas anuais a partir de 1926.21 Enquanto as dívidas pude-
ram ser negociadas e o orçamento permitiu, a política de saneamento
rural e outras ações de saúde pública foram executadas e custeadas pelo
poder central.
Em resumo, há indícios suficientes para afirmar que a reforma da
saúde inaugurou um novo ciclo de expansão do Poder Público. A adesão
da maioria dos estados evidencia que os benefícios dessa presença eram
avaliados como superiores aos seus custos. Parte considerável desses cus-
tos e benefícios não foram definidos pelo Legislativo e pela dinâmica
política do período 1918-1919, mas pela própria autoridade sanitária
federal, nos acordos com os estados e no processo de implementação dos
serviços de saneamento. Nesse sentido, a política de saneamento e pro-
filaxia rural foi, a partir de acordos voluntários, regulamentações e ações
federais e conveniências locais, o instrumento de transformação da saúde
em uma atividade cada vez mais pública e nacional. Na implementação
de políticas públicas — mediante um processo lento e desigual, porém
contínuo, a autoridade sanitária foi se constituindo, assumindo gradual-
mente novas e maiores atribuições, ocupando o país com prédios públi-
cos, instituições, exames, médicos, vermífugos, funcionários, fossas, pa-
lestras e folhetos educativos, cadastros de residências, estatísticas, vacinas
e regulamentos.
21
Acordo reproduzido em Revista de Saúde Pública, vol. 1, n.o 4, 1925, pp. 72-3.
Esse acordo contou com a intermediação do influente médico e deputado federal baiano,
Clementino Fraga, que representou o Governo Estadual na sua assinatura. Fraga substi-
tuiria Carlos Chagas na direção-geral do DNSP em 1926 e ficaria no cargo até 1930
(ibidem).
183
184
22
Ressalto que o período 1922-1926 foi conturbado, politicamente, e presenciou
uma reforma da Constituição que aumentava os poderes federais vis-à-vis os estados e o
Legislativo Federal (Bello, 1956; Carone, 1974). A presença e as atividades dos serviços
sanitários certamente foram afetadas pelas revoltas políticas e intervenções que ocorre-
ram em alguns estados. Há também indicações sobre o crescimento dos problemas de
financiamento federal dos serviços de saneamento rural e o abandono das obras contra as
secas iniciadas no Governo Pessoa.
185
23
Publicações oficiais da DSPR deixam claro que se tratava de serviços nos esta-
dos e nos municípios, mas não pertenciam a eles (ver, por exemplo, Barros Barreto, 1923;
Brasil-DNSP/DSPR, 1922; Souza Araújo, 1922; Torres, 1924 e Arquivo Belisário Penna,
COC/Fiocruz).
186
24
Esse dado teria sido um dos motivos que levaram a defecções no movimento
sanitarista. Sua unidade, garantida por objetivos muito gerais como saneamento do Brasil,
não resistiu aos conflitos pessoais, técnicos e políticos que ocorreram a partir do momento
em que suas lideranças foram alçadas ao controle dos principais postos do DNSP, em
1920. Belisário Penna deixou a DSPR em 15-11-1922. Suas cartas ao diretor-geral do
DNSP, Carlos Chagas, e as cartas recebidas de seus subordinados nos estados, no período
1921-1922, revelam conflitos em torno de questões orçamentárias, da orientação política
mais geral do DNSP e das relações com políticos estaduais. Esse desencanto de Penna
significava a rejeição da política e da barganha que, necessariamente, produziriam políticas
públicas diversas daquelas imaginadas como respostas científicas aos problemas da natu-
reza (ver Arquivo Belisário Penna, COC/Fiocruz e Arquivo Carlos Chagas, COC/Fiocruz).
187
25
Há várias informações sobre uma razoável interação do Exército com os servi-
ços de saneamento, em áreas do interior do Nordeste, principalmente com a cessão de
imóveis e infraestrutura militares para a instalação dos serviços (ver Arquivo Belisário
Penna, COC/Fiocruz).
26
De maneira distinta, e mais extensamente, Castro Santos analisou as dificuldades
do estabelecimento de políticas estaduais de saúde na Bahia, a partir, entre outros fatores,
da ausência de unidade entre as elites estaduais e do facciosismo regional, em contraste
com a coesão das elites paulistas, como facilitadoras da instauração de políticas públicas
de saúde (Castro Santos, 1987, cap. 5).
188
27
Em 1926-1927, catorze dos vinte estados gastaram mais de 2% dos seus orçamen-
tos em saúde e assistência, dado considerado significativo pelo chefe dos Serviços de Sa-
neamento Rural na Bahia, diante dos muitos anos de desprezo para com o problema (Barreto,
1927). Os estados com percentuais maiores do que 4% eram, por ordem crescente, PR
(4%), AM (4,1%), SP (4,4%), MT (4,5%), PE (6,4%), BA (6,6%) e RN (7,7%), ao passo
que os que gastavam menos de 2% eram RS (1,9%), GO (1,7%), CE (1,3%), RJ (1,1%),
ES (0,8%), SC (0,5%) e PI (0,4%). Em termos absolutos, os estados que mais despendiam,
pela ordem decrescente, eram SP, BA, MG, PE, RS e PR. O total das despesas desses
estados correspondia a quase 90% do total dos gastos pelos vinte estados, com saúde. Os
gastos de São Paulo correspondiam, aproximadamente, a 50% desse total, e equivaliam a
cerca de 60% do total da despesa orçamentária dos serviços federais reunidos no DNSP
em 1926 (cf. informações sobre o DNSP em Labra, 1985, p. 154). Os menores valores
eram os do PI, GO, SC e CE (ibidem, pp. 122-3). Comparativamente eram PE, BA e PR
que, com orçamentos muito menores que SP, MG e RS, combinavam os maiores valores
absolutos e os maiores percentuais. Apesar do entusiasmo com que Barreto organizou e
apresentou esses dados, como indicadores do crescente envolvimento dos governos esta-
duais com a questão sanitária, é flagrante a desigualdade entre os estados da Federação.
189
28
O retorno de surtos de varíola e de febre amarela, entre 1926 e 1928, no Distrito
Federal, alertava o Governo Federal sobre a necessidade de garantir a compulsoriedade
da vacinação antivariólica, no plano nacional, e o lembrava da fragilidade do país em
relação à ameaça da febre, alvo de ações da Comissão de Febre Amarela sob comando da
Fundação Rockefeller. Segundo vários autores, o retorno da febre amarela teria sido um
importante fator no abalo do prestígio da fundação norte-americana (Barros Barreto,
1929; Cueto, 1996; Faria, 1994).
29
Os recursos do Tesouro alocados no DNSP tiveram incremento de cerca de
180%, entre 1920 e 1925, e de aproximadamente 50%, entre 1925 e 1930, isso sem contar
os créditos extraordinários, destinados a combater surtos epidêmicos em vários estados
(cf. percentuais obtidos de informações coletadas e organizadas por Labra, 1985, p. 154).
30
Segundo dados de João de Barros Barreto, entre 1919 e 1926 foram realizadas
4.137 conferências (45 em 1919 e 2.189 em 1926), pelo pessoal dos serviços de sanea-
mento nos estados, e por estes distribuídos cerca de 590.000 impressos educativos (ver
Saneamento, ano 2, n.o 3, 1927). Os Cursos Livres de Higiene em 42 lições eram ministrados
sob os auspícios da Diretoria de Saneamento (ver Saneamento, ano 1, n.o 2, 1926), e várias
conferências sobre higiene eram transmitidas pela Rádio Clube do Brasil (Autran, 1926).
190
31
Essa formação de médicos sanitaristas era feita com o auxílio da Fundação
Rockefeller, que concedeu em torno de setenta bolsas de estudos nos EUA (para a The
Johns Hopkins University) e incentivou a criação do Instituto de Higiene na Faculdade
de Medicina de São Paulo (Cueto, 1996; Faria, 1994; Labra, 1985).
32
Nas propostas da ANM e da Liga Pró-Saneamento do Brasil entre 1917 e
1920, reivindicava-se simplesmente os principais cargos para os médicos. Em 1929, du-
rante o V Congresso da Sociedade Brasileira de Higiene, defendia-se a criação do Minis-
tério da Saúde, assegurando o monopólio dos cargos de ministro e de diretores a sanitaris-
tas de profissão, além da adoção da dedicação exclusiva em regime de tempo integral para
os médicos sanitaristas (Barreto, 1929).
191
e Pernambuco. Por exemplo, acordos entre chefes dos serviços nos estados
e respectivos governos foram celebrados para que estes adotassem o mode-
lo de declaração de óbito utilizado pelo DNSP, na Capital Federal (Fra-
ga, 1928). Enfim, estabelecia-se um primeiro passo na produção nacio-
nal de informações essenciais para a tomada de decisões políticas, para a
alocação de recursos e para o planejamento das ações de saúde pública.33
O estabelecimento da autoridade sanitária permitiu que, continua-
mente, novos e velhos problemas fossem reintroduzidos na agenda sani-
tária, alargando as preocupações, as responsabilidades e as atividades da
autoridade pública em todos os níveis e em todo território nacional. Do
ponto de vista analítico, o importante é ressaltar a expansão do Poder
Público, independentemente do seu locus. A esfera para a qual foram
transferidas as responsabilidades sanitárias dependeu de um acordo cujas
bases foram sendo modificadas no decorrer do próprio processo. Analitica-
mente, seria possível afirmar que, em um dado momento, os custos exter-
nos poderiam declinar, até pelos benefícios das ações da autoridade sani-
tária, podendo ser superados pelos custos da presença do poder central.
Assim, sugiro fortemente que as ações de saúde e saneamento fo-
ram veículos importantes no processo de constituição do Poder Público
no Brasil da Primeira República. O começo da transformação dos servi-
ços nos estados em serviços dos estados, ao invés de significar um recuo e
o descompromisso do Governo Central, ou uma vitória das posições au-
tárquicas e um retorno ao mundo de 1891, seria um indício de sucesso da
formação da autoridade pública. A diferença é que o poder central esta-
beleceu uma enorme capacidade de definir e executar políticas de largo
alcance, a qual, pelas suas características institucionais, não teria concor-
rentes. A consciência e os interesses geraram decisões políticas que, nesse
processo, ao serem implementadas, modificaram os fatores do cálculo
inicial e alteraram as próprias unidades decisória relevantes.
33
Parece-me pertinente observar que, nas experiências inglesa e norte-americana,
o movimento pela responsabilidade governamental na área de saúde teve como elemento
importante a consolidação institucional e legal das chamadas estatísticas vitais (Metz,
1984; Schwartz, 1977, pp. 8-20). No caso brasileiro, a necessidade de organização e
normatização dessas estatísticas é uma demanda posterior, uma consequência da amplia-
ção da autoridade pública. As estatísticas demográfico-sanitárias de muitos estados fo-
ram, no início, organizadas a partir de acordos com a União.
192
6. Considerações finais
193
194
195
Capítulo 5
À EXCEÇÃO DE SÃO PAULO: AUTONOMIA
POLÍTICA, INTERDEPENDÊNCIA SANITÁRIA
♦♦♦
1. Introdução
Enquanto no Rio a ideia do saneamento
gira no ciclo da propaganda pela pala-
vra, em São Paulo gira no terreno dos
fatos.
— M ONTEIRO L OBATO, 1918.
A
afirmação do escritor Monteiro Lobato (1956, p. 300), mili-
tante e publicista da campanha pelo saneamento rural, revela
uma interpretação do processo de formação das políticas sani-
tárias no Brasil: a singularidade, excepcionalidade e anterioridade da expe-
riência paulista em saúde pública vis-à-vis o restante do país, aí incluída
a sede do Governo Federal. Definitivamente, para Lobato, a realidade pau-
lista contrastaria com a retórica carioca. Mais ainda, as realizações dos ser-
viços sanitários paulistas serviriam como exemplo e estímulo para o desen-
volvimento de políticas de saúde em outras partes do país. São Paulo não
poderia parar, porque, se parasse, diria um então diretor do serviços sani-
tários paulistas, “[. . .] o pouco que se faz em outra, paragens brasileiras
cessará” (Neiva, 1940, p. 25). O pioneirismo e a liderança paulista foram
constatados também por algumas análises mais recentes, que apontam os
esforços paulistas em saúde pública como sem paralelo na América Lati-
na e difíceis de serem observados, no período, até mesmo em países mais
avançados da Europa e América do Norte (Blount, 1971, p. 2).
Uma política estadual de saúde pública tão destacada não deve ser
compreendida separadamente da concepção que conferiu a São Paulo
196
1
Essa imagem tem sido atribuída a Artur Neiva, ativo militante da campanha
pelo saneamento e diretor dos serviços sanitários paulistas de 1917 a 1920. Desconheço o
texto onde aparece pela primeira vez, mas reproduzo aqui um trecho onde Neiva a desen-
volve e se atribui a autoria: “Aliás, de há muito observo que a consciência da responsabi-
lidade que cabe a S. Paulo em relação ao Brasil, ele já a tomou sobre os seus ombros, co-
rajosamente. De há tempos a esta parte, já o disse uma vez, S. Paulo é a locomotiva que arrasta
20 vagões, constituídos pelos estados, e cujos passageiros bramam e reclamam da máquina,
quando esta solicita dos poderes centrais combustível para arrastar o trem pesadíssimo
que ela, a arfar, vai puxando em rampa forte” (Neiva, 1940, p. 26, ênfases minhas).
197
2
Segundo Love, “[. . .] entre 1889 e 1937 os líderes paulistas puseram todo
empenho em controlar as orientações financeiras e fiscais do Governo Federal em todos
os aspectos em que a ação do governo estadual não fosse possível ou fosse insuficiente.
Entre tais aspectos contavam-se a política monetária e cambial, o endosso de emprés-
timos externos, a legislação referente a tarifas e à imigração, a representação diplomá-
tica, crucial na condução de transações financeiras e econômicas. Os políticos paulistas
não buscavam obter favores clientelísticos ou recursos para a realização de obras públi-
cas (o que acabava criando obrigações recíprocas), ganhos esses essenciais à estratégia
dos mineiros. Dentro da Federação, somente São Paulo podia tomar a iniciativa de
intervir na dinâmica da economia [. . .]” (ibidem, p. 363).
198
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
3
A narrativa desta parte utiliza fontes secundárias sobre São Paulo, em especial os
trabalhos de Blount (1971; 1972) e Castro Santos (1987; 1993). Um trabalho que serve
de fonte para quase todas as análises mais recentes é o de Mascarenhas (1949).
199
DIVULGAÇÃO HUCITEC EDITORA.
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
4
Além desse fluxo, Castro Santos também chama a atenção para a importante
corrente migratória interna na direção de São Paulo (1993, pp. 364-5).
200
5
A autonomia local, base do Federalismo brasileiro, encontrava dificuldades le-
gais mesmo no estado que, a princípio, seria seu maior defensor. A Constituição de São
Paulo dava ao Congresso estadual competência expressa, mas não privativa, para legislar
sobre saúde pública, mas era completamente omissa em relação à competência municipal
no assunto (Barroso, 1919, p. 27).
201
202
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
7
Sobre o Instituto Pasteur, ver Teixeira (1995), sobre o Instituto Butantã, ver
Benchimol & Teixeira (1993). Para a atuação da IHB da Fundação Rockefeller São Paulo
na penetração da medicina experimental e na consolidação do ensino da saúde pública no
currículo médico, ver Faria (1994, pp. 97-102 e 127).
203
DIVULGAÇÃO HUCITEC EDITORA.
PROIBIDA REPRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO.
PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS.
204
Poder Público, para abranger as áreas rurais do estado. Esse serviço pas-
sou a implementar políticas de combate à malária e à ancilostomose,
endemias rurais, por excelência, além de ações contra o tracoma que, ao
incidir intensamente sobre os trabalhadores imigrantes e, portanto, sobre
a economia do café, sensibilizava os representantes das oligarquias. De-
pois de acirrado debate político, declinaram, em parte, as resistências dos
representantes da economia do café às ações governamentais (Blount,
1971, pp. 143-51; Castro Santos, 1993; Ribeiro, 1993). Cabe adiantar
que o serviço sanitário paulista, desde 1917, concordara com a colabora-
ção da Fundação Rockefeller, inicialmente para trabalhos de profilaxia
da ancilostomíase, posteriormente estendendo o acordo para o ensino
médico e a pesquisa (Fontenelle, 1922, p. 51; Faria, 1994).
A aceitação do papel da autoridade pública nas áreas rurais foi pos-
sível graças a acordos previamente estabelecidos sobre os limites da sua
interferência. O exemplo mais claro é a determinação de que a autori-
dade dos serviços sanitários estaduais estaria restrita às fazendas estabele-
cidas depois da entrada em vigor da lei de 1917 (Blount, 1971, p. 141).
Apesar das suas limitações, a fixação de postos rurais de saúde, as políti-
cas de saneamento em fazendas e de controle sobre a saúde dos trabalha-
dores rurais, além de políticas para as áreas urbanas, consolidaram o po-
der dos serviços públicos de saúde e de saneamento do estado de São
Paulo, em face das chefias locais e sua posição de destaque vis-à-vis o
restante do país (Blount, 1971; 1972; Castro Santos, 1993). Castro San-
tos (1993, p. 384) assinala que, ao longo do tempo, os próprios fazendei-
ros solicitaram obras de saneamento rural, legitimando e consolidando a
autoridade pública estadual, quando a ação pública era percebida como
vantajosa para os interesses privados.
Calcula-se que, em 1920, mais da metade dos municípios paulistas
possuía sistemas de esgotos, e que a grande maioria contava com serviços
públicos de distribuição de água (Love, 1982, p. 39). Alguns autores in-
dicam que a saúde pública dispunha de recursos suficientes para suas ati-
vidades e os gastos com saúde pública per capita eram comparáveis com
os de cidades norte-americanas (Blount, 1971, pp. 166-7).
Segundo Castro Santos, a consolidação do Poder Público estadual
no campo da saúde e do saneamento permitiria uma certa descentralização,
205
206
207
que o sucesso fora obtido pelo serviço sanitário paulista, “[. . .] que é
absolutamente autônomo em relação ao Departamento Nacional de Saúde
Pública [. . .]” (Oliveira, 1928, p. 37, ênfases minhas).
A experiência paulista em saúde pública e saneamento é percebida,
desde o início da República, como um exemplo de construção de um
serviço sanitário sem paralelo no país. Desde essa época, São Paulo vinha
realizando reformas que aprimoravam e expandiam esses serviços. Tal
constatação trazia embutida a assunção de que qualquer rearranjo nos
serviços federais de saúde e saneamento não poderia avançar sobre o ter-
ritório paulista. Isto não seria necessário, porque o Governo Estadual se
apresentava, e era reconhecido, como técnica e financeiramente capaz de
implementar políticas públicas de saúde.
O mais ardoroso defensor do saneamento do Brasil e da centrali-
zação administrativa e técnica da saúde pública reconhecia que São Pau-
lo, por desenvolver ações em saúde e educação, se constituía em “[. . .]
um povo à parte na comunhão nacional” (Penna, 1923, p. 30). O próprio
diretor dos serviços sanitários paulistas, Artur Neiva, em texto redigido
para o então candidato à Presidência da República Rodrigues Alves, es-
crevia orgulhoso que
208
8 Para Merhy, São Paulo é escolhido como caso por ser “um lugar estratégico para
que a sociedade brasileira — no período que vai de 1920 a 1945 — se dirigisse para o
processo de formação do capitalismo no Brasil, calcado no processo de industrialização”
(1992, pp. 24-5).
209
que São Paulo teria a ver com tudo isso? Pouco, se o critério for o espaço
dedicado pelos autores a essas relações, talvez com a mesma certeza de
Monteiro Lobato de que o saneamento do Brasil se realizava na prática
em e a partir do estado de São Paulo.
Um trabalho detalhista como o de Blount (1971) documenta a
mudança de percepção de brasileiros e estrangeiros sobre as condições
sanitárias de São Paulo, na Primeira República. Inicialmente considera-
do um lugar desaconselhável para viver e visitar, devido aos problemas de
saúde pública, transforma-se aos poucos em um modelo de organização
sanitária na América Latina (ibidem, pp. 177-84). O problema, mais
uma vez, é que os observadores do período são citados para constatar o
caráter progressista da saúde pública em São Paulo e sua singularidade
dentro do país. Continuariam sem merecer maiores atenções as relações
entre a política sanitária paulista e as políticas federais.
De outro lado, alguns trabalhos que analisam o movimento sanita-
rista da Primeira República não incorporaram a experiência paulista como
elemento importante e constituinte, ainda que diferenciado, da formação
de uma política nacional de saúde e saneamento. Assim, de maneira in-
versa, esses trabalhos trataram a saúde pública no Brasil, enfocando, prin-
cipalmente, as ações do Governo Federal na Capital da República (Cos-
ta, 1985; Labra, 1985).
Por fim, uma vez que esses trabalhos não pretendem questionar
essas relações, mesmo que de forma secundária, suas análises e escolhas
acabam convergindo para um consenso tácito de que as experiências
paulista e federal não se comunicam. Quando essa relação aparece, acaba
acentuando uma disputa e conflito entre indivíduos pelo controle da saú-
de pública — Artur Neiva versus Carlos Chagas — ou de instituições e
projetos científicos — Instituto Butantã versus Instituto Oswaldo Cruz
—, insinuando a tradicional oposição entre São Paulo e Rio de Janeiro
(Benchimol & Teixeira, 1993).
Uma segunda questão enfatizada pela literatura diz respeito a algu-
mas diferenças nas avaliações sobre o sucesso paulista na área de saúde.
Alguns autores consideram fracassadas as reformas sanitárias paulistas, ao
longo da Primeira República, porque assumem como critério central de
avaliação a permanência de problemas sanitários pós-reformas (Ribeiro,
210
211
212
213
214
215
paulista para uma política sanitária nacional. Logo de início, Neiva esta-
belecia uma ponte entre a reforma sanitária realizada em São Paulo e as
necessidades do restante do país:
216
10
Descrevendo entusiasticamente o trabalho dos serviços sanitários comandados
por Neiva no interior de São Paulo, o escritor Monteiro Lobato indicava que a ação
inicial deveria partir do governo estadual “[. . .] já dotado do aparelhamento necessário
[. . .]”, coordenando os trabalhos que caberiam aos municípios. Trata-se de uma perspec-
tiva corrente, na época, sugerindo que a organização da autoridade sanitária viesse do
centro para depois ser devolvida às municipalidades, que continuavam a ser consideradas
legalmente competentes para promover saúde e saneamento, mas financeiramente inca-
pazes e dominadas por “coroneloides” que lesariam a saúde pública com “suas opiniões
pessoais” (Lobato, 1956, pp. 297-302).
217
218
11
Love (1982, p. 279) assinala que Mato Grosso e Paraná eram satélites econômi-
cos de São Paulo, o que provavelmente facilitava ações de defesa sanitária em sua frontei-
ra oeste.
219
12
Algumas análises tendem a ver o IHB como instrumento do imperialismo ame-
ricano, outras valorizam a ação filantrópica da Fundação Rockefeller, correspondendo a
traços da cultura norte-americana, e, por último, e mais recentemente, alguns autores
buscam acentuar a interação da Rockefeller com as especificidades de cada país onde
atuou. Para um balanço dessa literatura, ver Cueto (1994; 1996) e Faria (1994).
13
Por exemplo, uma carta do diretor de saúde pública da Bahia, Gonçalo Moniz,
ao cônsul americano no estado, para que este entrasse em contato com a missão médica
da Fundação Rockefeller para possível auxílio, já que não estava sendo possível implementar
quaisquer medidas de prevenção de doenças infecciosas nas áreas rurais. Vários outros
convites e pedidos de auxílio à Rockefeller foram feitos por governos estaduais, a partir de
1916. Ver Arquivo Rockefeller: Banco de Dados, Uerj/IMS.
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14
A obrigatoriedade de incluir a malária nos convênios, originalmente dedicados
somente à ancilostomíase, foi uma decisão unilateral do Governo Federal, de certa forma
imposta ao IHB, indicando que as ações da Fundação não eram nem livres nem baseadas
em decisões autônomas. Pelo menos duas cartas de L. Hackett, diretor do IHB no Brasil
a W. Rose, diretor-geral do IHB com sede na cidade de Nova York, indicam as insatisfa-
ções e dificuldades do IHB em cumprir essa determinação legal. Ver cartas de L. Hackett
a W. Rose de 28-4-1919 e 1.o-8-1919 no Arquivo Rockefeller: Banco de Dados, Uerj/IMS.
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Ver correspondência de L. Hackett a W. Rose de 28-4-1917 no Arquivo
Rockefeller: Banco de Dados, UerjJ/IMS.
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Ao solicitar a ajuda da Rockefeller, os serviços sanitários paulistas também utiliza-
vam esta agência internacional para demonstrar sua capacidade e independência
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5. Considerações finais
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peste. A condição para sua participação era que a adesão não fosse com-
pulsória. Terceiro, a fórmula dos acordos voluntários para a realização de
serviços de profilaxia rural, instituída em 1918 e ampliada a partir de
1920, foi a chave para a emergência de uma política nacional de saúde e
saneamento. Ao colaborar para que os outros estados pudessem abrigar
serviços federais de profilaxia rural, São Paulo participou de um arranjo
que seria compulsório para todos e voluntário para si, mantendo-se sua
posição mais autárquica. O seu consentimento significava a possibili-
dade de permanecer singular. Esse modelo de relacionamento permitia
às elites paulistas maximizarem sua autonomia política e administrativa,
minimizando os custos impostos pelos problemas sanitários de outras
unidades federativas.
Os estados, que como vimos não podiam ter muitas veleidades
autonomistas, obteriam recursos técnicos e financeiros federais para a
solução de seus problemas sanitários, com o aval interessado da locomo-
tiva da Federação. O resultado imediato seria que São Paulo minimizaria
seus custos de interdependência, sem arcar com o ônus da presença fede-
ral, enquanto os demais interessados poderiam usufruir dos benefícios
do poder central, assumindo, porém, os custos da sua presença. A políti-
ca de saúde pública seria o produto de escolhas fundamentadas em uma
interação tensa e peculiar, envolvendo a pátria paulista, os demais estados
e o poder central, ao longo da Primeira República. A política nacional de
saúde pública foi o resultado de uma combinação específica entre autono-
mia estadual e interdependência sanitária, e não o simples isolamento e
singularização de São Paulo, derivado de uma leitura que anteporia auto-
nomia estadual e poder central. Utilizando os termos de Love, foi uma
síntese entre regionalismo, interpenetração e integração (1982, p. 12-3).
O argumento desenvolvido é complementar à interpretação de Reis
(1982; 1991) sobre a opção das elites paulistas de recorrer ao Gover-
no Federal para a regulação das atividades econômicas de seu interesse,
em oposição ao recurso do mercado, e às consequências não previstas
dessa decisão. São Paulo valia-se do poder central na economia, afastava-
o nas políticas de saneamento e saúde, mas concordava com a sua fran-
quia aos demais estados. A presença federal nos outros estados, para ad-
ministrar os efeitos da interdependência sanitária, seria como o recurso
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Capítulo 6
CONSIDERAÇÕES GERAIS
♦♦♦
[. . .]
— Quero vê-lo, doutor.
Houve uma pausa grave.
— É vacinado?
— Sou.
— Já viu um varioloso?
— Não.
— Gosta desse rapaz?
— É meu amigo.
— O diretor [do hospital São Sebastião]
pensou. Depois:
— É melhor não vê-lo. Aceite o meu
conselho. A ele nada falta. O senhor pa-
rece tão comovido. Tenha esperança, vá
descansar. As emoções fazem mal neste
período [. . .]
— J OÃO DO R IO , 1910
É
difícil tratar de forma neutra e exclusivamente analítica as polí-
ticas de saúde pública no Brasil, um objeto que nos aproxima do
sofrimento e da destituição humana. Ao longo de minha pes-
quisa, procurei seguir o conselho do diretor do hospital — por sinal, um
conselho que não foi aceito pelo seu interlocutor, na sequência da crônica
de João do Rio (1978, pp. 193-205). Não me envolver com o objeto de
estudo implicava evitar tanto uma avaliação dos resultados concretos do
crescimento das responsabilidades governamentais para com a saúde da
população, como o julgamento das decisões tomadas, diante das alterna-
tivas existentes, ou mesmo dos principais atores e instituições. Significa-
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BIBLIOGRAFIA E FONTES
♦♦♦
2. Periódicos
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3. Legislação e anais
BRASIL (1907), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Bra-
sil de 1904.
Atos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
—— (1916), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1914. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
—— (1919), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1918. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
—— (1919a), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1918. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
—— (1920), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1919. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro, Imprensa nacional.
——. (1921), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1920. Atos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
——. (1921a), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1920. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
——. (1924), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1923. Atos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
—— (1927), Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de
1926. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional.
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. (1917), Anais da Câmara
dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 14 vols.
—— (1918), Anais da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 14 vols.
—— (1919), Anais da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 14 vols.
—— (1920), Anais da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 15 vols.
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5. Referências bibliográficas
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