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O que o movimento antipsiquiatria não entendeu sobre saúde mental

MADELEINE RITTS - TRADUÇÃO ANDRÉ NASCIMENTO E DÉBORA CUNHA

Em uma tentativa de avançar a crítica do movimento antipsiquiátrico sobre as relações de poder entre capitalismo e
profissão médica, a ativista Madeleine Ritts argumenta pela necessidade de superarmos o dualismo para encontrar as
melhores formas de tratar e aliviar o sofrimento psicológico.
A saúde mental é conhecida por sua difícil categorização ou definição. Com mais de dois séculos de pesquisa, seguimos
longe de alcançar explicações satisfatórias — científicas ou não — para as várias formas de sofrimento e perturbação
mental que as pessoas podem vivenciar.
Agravando a dificuldade em lidar com o sofrimento psicológico, as adversidades sociais e pessoais — tais como
pobreza, desigualdade, precariedade econômica e experiências de violência ou abuso — influenciam significativamente
nossa saúde mental. No entanto, a experiência de trabalhos semelhantes impacta cada indivíduo e sua saúde mental de
maneira diferente. Por que alguns sobreviventes de guerra desenvolvem sintomas de transtorno de estresse pós-
traumático e outros não?
Impulsionados pelo desejo humanista de aliviar o sofrimento e pela suspeita fundamentada de suas justificativas
ideológicas, a esquerda busca a explicação das doenças mentais na miséria cotidiana das sociedades capitalistas. A
precariedade econômica e a baixa renda por si só não explicam a depressão — nem todo mundo que vive com baixa
renda está deprimido, e nem todo mundo com depressão tem baixa renda.
Outras formas de perturbação mental, como mania ou psicose, são ainda mais difíceis de atribuir apenas a questões de
justiça econômica. Ainda assim, salvo alguns avanços científicos modestos quanto a fatores de riscos sociais e genéticos
(no caso da esquizofrenia), estamos longe de entender suas causas.
É difícil abordar o aspecto da causalidade quando as próprias questões que tentamos explicar são definidas de forma tão
tênue. A terminologia diagnóstica tenta impor ordem a uma grande diversidade de experiências que simplesmente
somos incapazes de entender.
Algumas pessoas com esquizofrenia ouvem vozes e continuam a levar uma vida próspera e plena. Outros experimentam
alucinações debilitantes e, às vezes, violentamente perturbadoras ou uma profunda desarticulação da capacidade
discursiva e de pensamento.
Esses indivíduos podem ser severamente limitados em sua capacidade de completar as tarefas diárias mais básicas. Uma
combinação de psicoterapia e medicação antipsicótica pode atenuar as características angustiantes da psicose em alguns
casos, mas não em todos. Para alguns desafortunados, os efeitos colaterais farmacológicos podem ser tão graves a ponto
do dano superar os potenciais benefícios.
Para cuidar de qualquer doença humana com compaixão apropriada e adequação de tratamento, precisamos de uma
compreensão compartilhada, por mais ampla que seja, da natureza do problema que visamos abordar.
Muitas das críticas bem-intencionadas ao tratamento do sofrimento psíquico pela profissão médica têm se concentrado
exclusivamente em suas causas sociais, fechando a possibilidade de uma aproximação entre uma crítica socialista da
sociedade capitalista e uma tentativa científica de remediar o sofrimento desnecessário.
A natureza controversa da psiquiatria
De modo geral, atribuímos aos psiquiatras a dupla tarefa de compreender e responder ao sofrimento mental. Se não for a
área cientificamente mais primitiva da medicina ocidental moderna, a psiquiatria é facilmente a mais polarizadora. Um
estudo da história da psiquiatria apresentará descrições surpreendentemente divergentes da profissão.
Em seus duzentos anos de história, a psiquiatria passou por muitos períodos de crise e reinvenção — e, a cada
transformação, surgem novos paradigmas, padrões de evidência e métodos de pesquisa. A saúde mental é definida não
por quão bem um indivíduo pode se adaptar à sua sociedade, mas por quão bem a sociedade se ajusta às necessidades de
seu povo.
Seja você um proponente ou crítico da disciplina, a identidade em constante mudança da psiquiatria representa um
desafio significativo para quem tenta tecer uma narrativa coerente de sua história institucional e intelectual. Seus
defensores afirmam que os psiquiatras são idealistas teimosos ou soldados sitiados da ciência médica. Os notáveis
escândalos do campo, as reformas fracassadas, os grandes pronunciamentos e as derrotas públicas são todos etapas ao
longo do já familiar caminho científico do progresso incremental.
Os críticos, por outro lado, descrevem a história da disciplina como repleta de violência desde o início. Deste ponto de
vista, a psiquiatria é caracterizada pela repressão e conspiração — os psiquiatras são agentes calculistas que tanto se
beneficiam quanto contribuem para a punição daqueles que ameaçam a moralidade burguesa e a ordem rotineira.
No entanto, em meio a esses profundos cismas de desacordo, encontra-se um frágil consenso entre os apologistas da
psiquiatria e muitos de seus críticos: a loucura continua a escapar a uma compreensão básica. Os críticos do status quo
ofereceram objeções valiosas às nossas suposições mais preciosas sobre o que constitui a doença mental. Mais
importante, eles dedicaram atenção crucial às graves questões de integridade moral e científica no campo.
Na esquerda, a crítica comum visa apontar como a psiquiatria pode inadvertidamente medicar a injustiça. Essa crítica
destaca a incriminadora relação de interdependência entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica e as formas pelas
quais a psiquiatria pode ser usada para legitimar a violência e a opressão social.
Críticos como Michel Foucault, RD Laing e David Cooper ofereceram uma lente política inestimável para lidarmos
com questões de diagnóstico, tratamento e detenção. No entanto, eles também estabeleceram a base da visão de que
outras intervenções que visam o sofrimento mental são equivocadas, fúteis ou desumanas.
O capitalismo é o distúrbio, a doença mental é o sintoma
As ligações íntimas entre desigualdade social e sofrimento mental já foram documentadas e compreendidas por liberais
e militantes de esquerda. O The New York Times, o Financial Times e o canadense Globe and Mail associaram as taxas
crescentes de depressão, ansiedade e “mortes por desespero” às redes de segurança social precárias e aos sistemas de
saúde lamentavelmente sucateados ou extremamente inacessíveis.
Setores da esquerda, por outro lado, há muito destacam a tensão estrutural entre os programas de bem-estar social e o
funcionamento básico do capitalismo. O privilégio sistemático da acumulação sobre a necessidade humana garante que
nada — incluindo o trabalho de cuidado — possa ter precedência sobre os imperativos da mercantilização e do lucro.
Se pobreza, exploração e alienação são características inerentes ao capitalismo, a degradação da saúde física e mental é
inevitável enquanto continuarmos a viver sob o domínio do mercado. Para alguns, tanto os sentimentos episódicos
quanto os crônicos de tristeza, ansiedade e estresse são melhor compreendidos enquanto respostas lógicas às forças
estruturais em jogo na vida cotidiana sob o capitalismo.
A medicina psiquiátrica pode funcionar para legitimar e fazer valer os interesses da elite dominante, seja por costume ou
por iniciativa própria. Como o grande Mark Fisher uma vez escreveu: “A atual ontologia dominante nega qualquer
possibilidade de uma causalidade social da doença mental. A químico-biologização da doença mental é, obviamente,
estritamente proporcional à sua despolitização”.
Essa visão, é preciso dizer, é sustentada por alguns psiquiatras e profissionais clínicos de saúde mental. De qualquer
forma, o sentimento geral por trás dessa ideia está certo: quando o sofrimento político é diagnosticado como disfunção
pessoal, nosso senso de solidariedade social e poder político coletivo também sofre.
Em The Sane Society, o filósofo marxista Erich Fromm tenta oferecer uma formulação corretiva para o paradigma
médico dominante em saúde e doença mental. Para Fromm, a saúde mental é definida não por quão bem um indivíduo
pode se adaptar à sua sociedade, mas por quão bem a sociedade se ajusta às necessidades de seu povo. Uma sociedade
saudável é aquela em que as pessoas têm os meios, a liberdade e a segurança para florescer como indivíduos enquanto
sentem solidariedade e pertencimento como parte de um todo maior. O ethos corrosivo da competição e atomização da
vida sob o capitalismo corrói nossa psique coletiva e ninguém, nem mesmo a classe dominante, é poupada de sua
produção de miséria existencial.
“A saúde mental é definida não por quão bem um indivíduo pode se adaptar à sua sociedade, mas por quão bem a
sociedade se ajusta às necessidades de seu povo.”
Esforços para expor os fundamentos socioeconômicos do sofrimento mental normalmente tomam como estudo de caso
estados mentais onde as linhas entre saúde e doença não são facilmente diferenciadas. Depressão, ansiedade, pavor
existencial — ou “transtornos de humor e ansiedade” — são tão prevalentes quanto diferentes em grau. A quase
impossibilidade de estabelecer conexões causais entre fenômenos sociais concretos e transtornos de humor e ansiedade
mal definidos é uma das limitações das explicações socioeconômicas da doença mental.
É duvidoso que todas as formas de sofrimento e desorganização mental — como a psicose — possam ser explicadas
igual e satisfatoriamente pelas misérias da vida sob o capitalismo (embora se possa ver facilmente como elas podem ser
pioradas).
As discussões sobre o grau em que o socialismo pode ser uma panaceia para a depressão, ansiedade e trauma —
especialmente aqueles que são mais crônicos e graves — são geralmente especulativas. Parece mais razoável presumir
que, assim como a tristeza existiria em um mundo pós-revolucionário, também existiria a doença mental.
As discussões populares da psiquiatria muitas vezes atribuem à profissão uma compreensão sem nuances de nossa vida
psíquica. Pode-se certamente encontrar fanatismo neurobiológico na indústria farmacêutica e em certos cantos do
campo. No entanto, nas últimas duas décadas, o “modelo biopsicossocial” emergiu como o paradigma dominante da
psiquiatria contemporânea. Isso representa uma mudança significativa na forma como a complexa interação entre
fatores sociais, desenvolvimento psicológico e genes é considerada pelos clínicos de saúde mental.
Não obstante, há críticas importantes quanto à aplicabilidade e coerência do modelo biopsicossocial. A principal delas é
que o modelo não possui uma estrutura sistemática para elencar prioridades entre fatores biológicos, psicológicos e
sociais. Isso deixa amplo espaço para que os médicos ignorem ou exagerem a importância de determinantes específicos
e, ao fazê-lo, impactem significativamente a prestação de cuidados.
Como exemplo, considere o caso hipotético de alguém que está passando por extrema angústia devido à sua crença de
que espíritos poderosos e malévolos estão tentando possuir o seu corpo. Quando interpretado através de uma estreita
lente biológica, seu sofrimento pode ser atribuído à esquizofrenia mal tratada — segue-se que encontrar um
medicamento antipsicótico mais eficaz seria o melhor curso de ação. Um médico diferente, no entanto, explorando a
história de desenvolvimento desse paciente, pode encontrar um histórico de abuso infantil pelas mãos de um membro
respeitado da comunidade religiosa do paciente.
“A história é rica em exemplos de como a psiquiatria patologizou a resistência política, descartando atos de oposição
como casos de transtorno mental”.
Enquanto a experiência atual do paciente está enraizada no trauma psicológico, uma intervenção psicoterapêutica pode
ter prioridade sob testes de medicação. Outro médico pode explorar elementos biológicos e psicológicos, mas dar mais
atenção ao ambiente social do paciente.
Se, por exemplo, esse paciente reside em um internato sombrio, violento e caótico, os médicos têm muito menos
probabilidade de abordar as barreiras que o impedem de buscar a psicoterapia, lembrar-se de tomar seus medicamentos
e construir relacionamentos de confiança.
A formulação de casos clínicos é uma das muitas áreas em que uma análise política, guiada pela justiça social e
econômica, ainda é extremamente necessária para evitar o tipo de psiquiatrização da vida cotidiana com a qual Fisher,
Fromm, membros da Critical Psychiatry Network e muitos outros se preocuparam, com razão.
No entanto, avançar uma crítica à confiança excessiva da psiquiatria em explicações químicas do sofrimento humano
não deve fechar a possibilidade de investigar suas causas biológicas.
Transtorno Repressivo Maior: loucura e controle social
A doença mental assumiu muitos nomes, significados e definições diferentes ao longo da história. Descrições de
“loucura” e “melancolia” datam de até a antiguidade. Como os entendimentos de “loucura” parecem ser historicamente
contingentes, o próprio conceito de doença mental é controverso.
Poucos pensadores foram tão influentes na construção de um arcabouço teórico para a loucura quanto Michel Foucault.
Loucura e Civilização (1988), as análises histórico-filosóficas de Foucault, traça a emergência da “loucura” como
objeto de estudo científico e como fenômeno social que requer intervenção e controle do Estado.
De acordo com seu relato, desenvolver uma “ciência mental” da loucura — isto é, a psiquiatria — não tinha relação
com o aprimoramento de nossa compreensão da natureza humana, mas tinha muita relação com os novos modos de
governança. Nessa visão, as ciências da mente são elas próprias estruturas de controle — um “monólogo da razão”
abafando todas as vozes que ameaçam a autoridade da classe dominante ou a ordem social.
A teoria de Foucault de que os governantes dos primeiros períodos modernos e industriais viam os loucos como
ameaças à ordem social é, no mínimo, duvidosa. Historiadores encontraram praticamente nenhuma evidência para
fundamentar essa ideia, que devemos ver como conjectura. No entanto, o relato de Foucault ainda tem mérito.
Seu tratamento cuidadoso dos valores políticos e culturais associados à loucura estendeu ferramentas teóricas bem-
vindas a “ativistas loucos” e grupos de antipsiquiatria. Seu trabalho também inspirou gerações de estudiosos e clínicos a
questionar o que consideramos normal e por que e como comportamentos desviantes são transformados em distúrbios
que precisam ser corrigidos.
Essas são perguntas úteis. A história é profícua em exemplos de como a psiquiatria patologizou a resistência política,
descartando atos de oposição como casos de transtorno mental. Para citar dois exemplos: drapetomania, ou “a doença
que faz os escravos fugirem”, é um exemplo assustador de diagnóstico que dá cobertura a práticas sociais ultrajantes, e
transtorno opositor-desafiador, ou TOD) é um diagnóstico normalmente aplicado a crianças e adolescentes que parecem
incomumente hostis e são insuficientemente obedientes ou deferentes a adultos em posições de autoridade.
Como muitos críticos apontaram, o TOD é um diagnóstico carregado de valores e mal definido que arrisca medicar os
fatores ambientais e contextuais que moldam o desenvolvimento e o comportamento infantil. Mais uma das falhas da
psiquiatria, como as campanhas e movimentos LGBTQ+ mostraram, é a maneira como a orientação sexual e as
expressões não normativas de gênero foram alvo da patologia médica de maneiras indescritivelmente prejudiciais.
No entanto, argumentos que equiparam a psiquiatria a um controle social quase ditatorial apresentam uma compreensão
redutora da profissão e creditam aos psiquiatras muito mais poder do que se justifica. Falta a essas narrativas uma visão
dos pacientes como receptores de cuidados e não como vítimas.
Como então podemos compreender pacientes atuais e antigos que relatam resultados positivos de seus tratamentos
psiquiátricos que, em alguns casos, mudaram suas vidas? A visão de vitimização e sobrevivência não apenas
desconsidera as experiências de cura de algumas pessoas — ela também sugere que as pessoas precisam apenas ser
libertas do vício da psiquiatria para florescer.
Levadas ao seu destino final lógico, teorias de controle social — teorias geralmente chamadas de antipsiquiatria —
argumentam que doença mental é um mito. Esta é uma proposta profundamente controversa, especialmente para
profissionais de saúde mental que trabalham na área, ou qualquer pessoa que já tenha experimentado ou observado
alguém lutando com um comportamento obsessivo debilitante, distúrbios visuais e auditivos incompreensivelmente
horríveis ou com decisões radicalmente inconcebíveis e perigosas tomadas na agonia de um estado maníaco.
Para os membros mais intransigentes do movimento anti-psiquiátrico, o mito da doença mental é uma tentativa por
parte das estruturas sociais opressivas de liquidar o poder revolucionário do desejo e do desvio.
O conceito de esquizofrenia, para alguns pensadores franceses que escreveram na esteira da revolta parisiense de maio
de 1968, foi uma estrela-guia para o poder libidinal que poderia reconstruir a sociedade.
Os revolucionários, de acordo com essa escola de pensamento, poderiam desmantelar estruturas de hierarquia e
opressão abraçando a loucura e o desejo. Embora a força libertadora do indivíduo louco ou desviante tenha falhado em
alcançar uma mudança social revolucionária, os arquitetos do neoliberalismo implantaram um ethos de individualismo
radical com sucesso considerável. Ronald Reagan e Margaret Thatcher ficaram muito felizes em dar ênfase a uma
ordem social baseada no interesse próprio e na autogratificação.
Historicamente, aqueles que negam a existência de doenças mentais encontraram estranhos apoiadores em políticos de
direita. A direita, ansiosa para justificar sua abdicação da responsabilidade de fornecer estruturas de suporte à saúde
mental humanas e financiadas publicamente, está muito feliz em explorar os erros manifestos da psiquiatria. No Canadá
e no Reino Unido, a desinstitucionalização — o processo histórico de desmantelamento do sistema de tratamento
psiquiátrico — ocorreu com o objetivo explícito de reduzir os gastos com saúde.
“Historicamente, aqueles que negam a existência de doenças mentais encontraram estranhos companheiros de cama
com políticos de direita.”
Nas últimas décadas, os serviços e estruturas de saúde mental baseados na comunidade desenvolveram-se através de um
processo de path dependency (apoio mútuo em pesquisa institucional), sem um plano ou visão coerente. As frágeis
redes de serviços privados, de caridade e governamentais que agora formam a base dos cuidados comunitários em
grande parte dos Estados Unidos e Canadá são incapazes de fornecer cuidados contínuos a muitas pessoas que lutam
com doenças mentais graves.
As vidas daqueles que sofrem de doença mental são muitas vezes marcadas pela violência, pobreza, falta de moradia e
encarceramento. Os ativistas anti-psiquiátricos caracterizam a psiquiatria como parte integrante dessa dominação para
alegar que ela faz mais mal do que bem, defendendo assim a abstenção do tratamento. Em que ponto a luta contra o
controle social se alinha com uma política de descaso social?
O complexo farmacêutico-industrial
A influência da indústria farmacêutica sobre a educação médica, a pesquisa clínica e a prática clínica é não se dá
somente na psiquiatria. No entanto, é verdade que o papel da psiquiatria em impedir uma compreensão completa das
próprias condições que os medicamentos da indústria farmacêutica pretendem tratar é perturbador.
As empresas farmacêuticas exercem um grau preocupante de poder e autoridade em definindo transtornos mentais,
realizando pesquisas sobre as causas do sofrimento mental e determinando a melhor forma de lidar com ele.
Em meados do século XX, à medida que a psiquiatria se tornava cada vez mais dependente das intervenções
farmacêuticas, a indústria farmacêutica reconheceu o quão lucrativa essa aliança poderia ser e nasceu uma relação de
inquietante dependência.
Em Anatomy of an Epidemic (2010), Robert Whitaker traça a luta da psiquiatria por legitimidade ao lado dos interesses
da indústria farmacêutica para expor os laços profundos de dependência entre eles. Essa relação, após o surgimento de
drogas psicoativas “inovadoras” na década de 1950, é claramente ilustrada pela transição da terapia da fala para a
terapia farmacologicamente orientada como o método dominante de tratamento.
Embora inicialmente desenvolvidas para tratar infecções, drogas como Thorazine e meprobamate mostraram-se, por
acaso, úteis para alterar estados mentais e atenuar a presença de sintomas agudos de psicose, ansiedade e depressão.
Mesmo que ninguém soubesse como funcionavam, rapidamente seu uso generalizado ganhou espaço em hospitais
psiquiátricos e ambulatórios.
Ao longo do tempo, os pesquisadores puderam observar que as drogas psicoativas afetavam o equilíbrio de vários
mensageiros químicos (neurotransmissores) no cérebro e raciocinaram que as drogas deveriam estar corrigindo os
desequilíbrios químicos.
Por exemplo, porque o Thorazine bloqueia os receptores de dopamina no cérebro — cujo efeito reduz a agressão e os
sintomas psicóticos, como alucinações — postulou-se que as psicoses devem ser causadas por um excesso de dopamina.
A partir desse tipo de observações, nasceu a infame teoria do “desequilíbrio químico” da doença mental.
As décadas seguintes de pesquisa sobre a fisiologia das doenças psicóticas abriram importantes linhas de investigação
para a compreensão dos elementos neurobiológicos envolvidos no sofrimento e distúrbio mental. O problema com toda
essa pesquisa, no entanto, é o mesmo problema que inibe a maioria das bases e experimentações psiquiátricas — ela é
amplamente controlada por interesses farmacêuticos.
Trabalhando na matriz de incentivos de mercado, as empresas farmacêuticas fazem pronunciamentos ousados e
afirmações redutoras sobre as causas da doença mental. A teoria do desequilíbrio químico foi vendida aos pacientes e ao
público porque era uma ferramenta de marketing conveniente. Mas sua promessa de curas químicas foi muito
exagerada.
As empresas farmacêuticas têm meios explícitos de vender seus produtos — como publicidade direta ao consumidor —
e estratégias mais secretas. O lobby industrial tem um impacto significativo na saúde pública e na política de drogas,
enquanto o financiamento corporativo de atividades acadêmicas e pesquisas clínicas enviesa seriamente a educação
médica e as diretrizes de prática clínica.
Em geral, a psiquiatria se baseia em uma base de conhecimento que foi comprometida pelo envolvimento da indústria,
mas esse fato por si só não explica preocupações legítimas com o excesso de psiquiatria.
Médicos familiares — responsáveis pela maioria dos medicamentos psico farmacêuticos disponíveis para as populações
ambulatoriais — recebem muito menos treinamento em psicoterapia do que deveriam. Seus esforços de boa-fé para
ajudar as pessoas são muitas vezes comprometidos por uma confiança excessiva no bloco de receitas.
À medida que os prescritores continuam a usar ferramentas psicofarmacológicas brutas, a pesquisa e o desenvolvimento
de novas intervenções psicofarmacêuticas sofreram uma interrupção virtual. É muito mais lucrativo para as empresas
ajustar, re-patentear e renomear medicamentos existentes do que se engajar no negócio muito mais arriscado de criar
teorias e tratamentos.
Isso explica, em parte, por que as empresas farmacêuticas gastam muito mais dinheiro em marketing do que em
pesquisa e projetos. Aqueles que defendem e promovem a psicofarmacologia o fazem em grande parte porque seus
medicamentos, embora imperfeitos, geralmente são eficazes. No entanto, dificuldades surgem ao avaliarmos a
veracidade das alegações da empresa farmacêutica.
A quantidade excessiva de dinheiro da indústria farmacêutica envolvido em estudos médicos compromete gravemente a
qualidade e a confiabilidade das informações que tornam públicas. O fato de que estudos com financiamento da
indústria farmacêutica são muito mais propensos a relatar resultados positivos já está bem documentado.
“É muito mais lucrativo para as empresas ajustar e renomear os medicamentos existentes do que se envolver no negócio
muito mais arriscado de criar novas teorias e tratamentos”.
Além disso, os processos de aprovação de medicamentos da US Federal Drug Administration e da Health Canada —
que geralmente segue as decisões tomadas nos Estados Unidos — são drasticamente distortos em benefício das
empresas farmacêuticas.
Para levar um medicamento ao mercado, as empresas farmacêuticas devem enviar todos os ensaios clínicos que
patrocinaram (não são obrigadas a enviar análises independentes de seus produtos). Embora as empresas farmacêuticas
possam realizar quantos ensaios quiserem, eles só precisam produzir dois ensaios mostrando que um medicamento é
mais eficaz do que um placebo para que ele seja aprovado.
Ensaios negativos raramente verão a luz do dia, enquanto os estudos positivos são promovidos em conferências e
publicados em revistas médicas. O público, e até certo ponto os médicos que nos tratam, desconhece grande parte do
processo.
Por uma política de cuidados mentais de esquerda
É fácil selecionar os abusos conspícuos da psiquiatria para lançar todo o campo — passado, presente e futuro — sob
uma luz negativa. Deve-se notar, no entanto, que os defensores da psiquiatria também conseguiram produzir suas
próprias histórias seletivas que lançam uma luz muito menos negativa sobre sua disciplina. Uma abordagem mais
imparcial seria manter nossas críticas à medicina psiquiátrica, ao mesmo tempo em que reconhecemos a tarefa
profundamente difícil de responder ao sofrimento mental.
Figuras proeminentes no campo como Leon Eisenberg e Allen Frances ofereceram avaliações muito públicas das
capacidades cronicamente limitadas da psiquiatria e seus muitos fracassos. Em 1982, em meio às promessas frenéticas
de uma “revolução neurobiológica” na psiquiatria, Roberto Mangabeira Unger destacou os desafios da disciplina em um
emocionante discurso à American Psychiatry Association:
Nada prejudica mais a ciência do que a negação ou a banalização do enigma. Ao manter as falhas explicativas da
ciência psiquiátrica bem diante de nossos olhos, também somos capazes de descobrir o elemento de compreensão válido
até mesmo nos ataques mais extremos e menos cuidadosos à psiquiatria contemporânea: transformar até mesmo seus
críticos mais confusos e implacáveis em fontes de inspiração é o sonho de um cientista.
A ciência está longe de ser politicamente neutra, mas a esquerda pode e deve empregar seus métodos para promover
fins políticos emancipatórios e transformadores. Há várias dimensões para a política do sofrimento mental.
Sabemos que as pessoas estão passando por um sofrimento mental significativo que pode ser reduzido ou resolvido.
Entretanto, carecemos de explicações sociológicas, psicológicas e biológicas satisfatórias para as várias formas de
sofrimento e distúrbio mental que as pessoas podem experimentar.
Os psiquiatras não têm o monopólio desse estado de ignorância — todos nós o compartilhamos. Mas cedemos
autoridade e poder significativos a pesquisadores médicos e empresas farmacêuticas para promover nosso entendimento
público sobre assuntos de grande preocupação e complexidade. Mais estudos devem ser realizados para elevar os
padrões de transparência e responsabilidade democrática.
O trabalho de cuidado é uma parte importante da luta mais ampla pela conquista de liberdades sociais e econômicas
universais. A oferta pública de programas sociais e terapêuticos cuidadosamente planejados — como clubes, grupos de
apoio, alojamento de apoio, gerenciamento de casos e terapias psicológicas e médicas verdadeiramente acessíveis — é
desesperadamente necessária para possibilitar que as pessoas vivam bem e em segurança.
Arrancar o poder das corporações e instituições que atualmente lucram com seu monopólio sobre o sofrimento mental
não é fácil nem simples. O caminho para democratizar a pesquisa científica certamente será uma batalha difícil. No
entanto, é fundamental que ultrapassemos a censura e a rejeição total da psiquiatria em direção a um envolvimento mais
ativo com essas questões. Isso começa com humildade e uma apreciação diferenciada dos desafios epistemológicos e
políticos que enfrentamos.
Uma política de esquerda de cuidado mental deve exigir uma investigação democrática e financiada publicamente sobre
a natureza do sofrimento mental e possíveis tratamentos, avaliações contínuas do que é importante para as pessoas que
sofrem e um compromisso com a prestação de tratamento e solicitude no cuidado. As respostas sociais à doença mental
têm sido caracterizadas por extremos de paternalismo ou negligência. A esquerda tem muito a contribuir para traçarmos
um novo caminho.
Sobre os autores
MADELEINE RITTS trabalha como líder de equipe em um programa comunitário de saúde mental e vícios em um
hospital no centro de Toronto. Ela está envolvida na organização do trabalho em torno da pobreza e dos sem-teto e
ocupa um cargo de pesquisa prática no Li Ka Shing Knowledge Institute.
https://jacobin.com.br/2023/01/o-que-o-movimento-antipsiquiatria-nao-entendeu-sobre-doenca-mental/

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