Você está na página 1de 253

gaarg lukács

EXISTENCIALISMO
ou MARXISMO

Tradução de JOSÉ CARLOS BRUNI

LIVRARIA EDITORA cmNCIAS HUMANAS LTDA.


SÃO PAULO
1979
ÍNDICE

Apresentação do Tradutor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Nota do Autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . 13
Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Capítulo I
A Crise da Filosofia Burguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1. O pensamento fetichizado e a realidade . . . . . . . . . . . 27
2. A evolução do pensamento burguês . . . . . . . . . . . . . . 30
3. A filosofia do imperialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
4. A pseudo-objetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
5. O "terceiro caminho" e o mito . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
6. Intuição e irracionalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
7. Os sintomas da crise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

Capítulo II
Da Fenomenologia ao Existencialismo . . . . . . . . . . . . . . 65
1. O método enquanto comportamento . . . . . . . . . . . . . 66
2. O mito do nada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
3. O mundo fetichizado e o fetiche da liberdade . . . . . . . 89

Capítulo III
O Impasse da Moral Existencialista . . . . . . . . . . . . . . . . 101
1. A situação histórica do existencialismo. . . . . . . . . . . . 101
2. Moral da intenção e moral do resultado . . . . . . . . . . . 110
3. Sartre contra Marx . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
4. A moral da ambigüidade e a ambigüidade da moral
existencialista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
5. A ética existencialista e a responsabilidade histórica . . . 164

.,
Capítulo IV
A Teoria Leninista do Conhecimento e os Problemas da
Filosofia Moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
1. A atualidade ideológica do materialismo filosófico . . . . 207
2. Materialismo e dialética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
3. Significação dialética da aproximação na teoria do
conhecimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
4. Totalidade e causalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
5. O sujeito do conhecimento e ação prática. . . . . . . . . . 245
APRESENTAÇÃO DO TRADUTOR

É sem dúvida na França que se têm mostrado


mais ricas e complexas as relações entre as duas
filosofias mais representativas dos problemas huma­
nos de nossa época. Os existencialistas sempre fize­
ram questão de tomar posição em relação ao marxis­
mo ( aproximando-se ou afastando-se dele), até che­
gar, em Sartre, a um determinado tipo de adesão
f."xplícita, enquanto, por outro lado, os próprios mar­
xistas nunca se furtaram ao debate e sempre procura­
ram "conquistar" os existencialistas, principalmente
após o XX Congresso.
Mas até onde realmente pode o existencialismo
filiar-se ao marxismo? Essa questão, permite dois
níveis de resposta: do ponto de vista prático, as po­
sições do existencialismo francês, enquanto atitudes
políticas concretas, são. inegavelmente progressistas
e democráticas - e existem numerosos exemplos dis­
so, desde a Resistência até hoje; mas do ponto de
vista teórico é possível a sua, para não dizer integra­
<;ão, aproximação? Sartre é dos que dizem sim, Lu­
kács um dos primeiros a dizer não.
Na Crítica da ·Razão Dialética, Sartre acusa o
marxismo atual, seus representantes franceses, - e
chega a nomear também Lukács - de esclerose, de
incapacidade de apreender o particular, de esquemá­
tico, fácil, em suma de "idealismo", porquanto
se deixa levar antes por esquemas preconcebidos
( "idéias") gerais e abstratos, ao invés de proceder,
7
p<·la sính'se de todas as mediações, à representação,
t·omo o faz Marx, do homem na sua vida concreta,
do 111ovi111ento de sua totalização.
1 ,ukftcs, por sua vez, aponta o "ser social" em
que está apoiado o existencialismo, cujas conclusões
''poderiam ser feitas por qualquer pequeno-burguês'',
mas cujo auditório não estaria apenas "entre os esno­
bes, mas também nos meios reacionários". Para
Lukács, o existencialismo francês está definitivamen­
te comprometido com certa camada social e mesmo
aparentando ser uma ideologia democrática e pro­
gressista, não se pode conciliar, sob hipótese alguma,
com o marxismo.
Ora, Questão de Método e Existencialismo ou
Marxismo? são antes de mais nada escritos essen­
cialmente polêmicos e portanto não podemos esperar
de seus autores a necessária imparcialidade, obrigató­
ria numa análise rigorosamente científica. Assim, as
discussões, os ataques muitas vezes situam-se em ní­
veis diferentes, e até opostos. Sartre, ao exigir dos
marxistas atuais instrumentos para a análise de si­
tuações particulares concretas, e propondo para tanto
seu próprio método, que seria diretamente fundado
em Marx, aponta deficiências antes de mais nada
metodológicas. Lukács, ao querer apreender a sig­
nificação do existencialismo- como um todo, na sua
generalidade e não de cada existencialista em parti­
cular, refere-se ao conteúdo ideológico próprio a certa
camada social, num determinado momento da evolu­
ção da sociedade. Daí a rudeza das acusações mú­
tuas e a mesma certeza de falar em nome de Marx.
Na história das relações entre as duas filosofias,
Lukács tem-se mantido mais constante que Sartre.
Aliás, o próprio Sartre reconhece que sua primeira
posição continha contradições que o levaram conti-

n
nuamente a reformular suas idéias e se aproxim.ar
cada vez mais do marxismo. Lukács, inflexível, vem
mantendo as críticas expostas em Existencialismp ou
Marxismo?, que data de 1947. Na segunda edição
da tradução francesa, publicada em 1960, escreve:
"Impossível dissimular que a intenção do meu editor
de reeditar antigos estudos meus, publicados há mais
de uma década, causa-me alguma hesitação." Mas
"não a propósito do fundo filosófico dessa pequena
obra: ainda hoje mantenho minha crítica de princípio
em relação ao existencialismo". E mesmo reconhecen­
do que "Sartre e Merleau-Ponty tenham mudado fun­
damentalmente nesse lapso de tempo" e que os gran­
des processos de 1938 na Rússia tivessem sido "inú­
teis", mantém o ponto de vista de 1947, pois tais dados
novos do problema "não tocam nem as bases do mar­
xismo, nem sua oposição ao existencialismo". O má­
ximo que tais fatos novos poderiam acarretar seriam
alguns resultados diferentes, no que diz respeito a cer-
, tas reflexões filosófico-históricas e éticas, e a certos
desenvolvimentos particulares, que nunca atingiriam a
essência mesma da crítica.
Mais recentemente, Lukács, numa entrevista que
concedeu a Naim Kattan, publicada em La Quinzaine
Littéraire (1-12-1966), mantém novamente seu ponto
de vista em relação ao existencialismo: "Não tenho
muita confiança nas tendências do pensamento oci­
dental contemporâneo, quer se trate de neopositivis­
mo ou de existencialismo. Acho mais útil reler Aris­
tóteles pela vigésima vez." E referind_o-se especial­
mente a Sartre, afirma: " . .. é um homem muito vi­
vo. Passei a compreendê-lo ben1 melhor depois que
li As Palavras, uma obra admirável, que demonstra
que este homem jamais teve contacto com a realidade.
Como filósofo, fez progressos depois de O Ser e o
9
Nada. aproximando-se do marxismo. Entretanto há
m·lt· uma debilidade: quando a vida o obriga a mudar
dl· ponto de vista, não se sujeita a modificá-lo radi­
calmente e procura dar-nos uma ilusão de continui­
dade. Em sua Crítica da R.azão Dialética aceita
Marx, mas quer conciliá-lo com Heidegger. A con­
tradição é clara. Há um Sartre número um no co­
meço da página e um Sartre número dois no fim da
mesma página. Que confusão de método e de pen­
samento!"
Assim, seu ceticismo mantém-se de· 1947 até hoje.
Por quê? Por que não lhe basta a declaração de
Sartre, segundo a qual o marxismo é a filosofia do
nosso tempo, por que não se impressiona com as po­
sições de Sartre e seus amigos durante a guerra da
Argélia ( se bem que reconheça a sua coragem na
ocasião), por que essa desconfiança mesmo quando
Sartre aceita o fundamento econômico da história, a
verdade da luta de classes etc. etc.?
Ora, Sartre é um dos existencialistas e não o
existencialismo. Se reconhece como positiva a apro­
ximação com o marxismo, isto não o impede de con­
tinuar a afirmar a oposição das duas filosofias, no
seu conjunto e na sua essência. Cremos que ficéi.rá
mais clara a posição de Lukács, se a leitura de Exis­
tencialismo ou Marxismo? for completada pela leitu­
ra de outra obra sua, A Destruição da R.azão, em que
trata especificamente do existencialismo alemão, es­
tmlando em pormenor Heidegger e Jaspers, as fontes
do e:--istcncialismo (Kierkegaard e Nietzsche), os fi­
l1',sofos que influíram decisivamente para o seu apa­
rt·cinwnt o 0-Iusserl e Scheler) e na qual ainda situa
11 <"xistcnrialismo no quadro geral do panorama filo­

.., •. ,firn-cttltttral da época.

10
Em suma, A Destruição da R.azão é a análise
do existencialismo alemão, enquanto Existencialis­
mo ou Marxismo? é a análise do existencialismo
francês. Ora, Lukács assinala nesta última a di­
ferença profunda que existe entre os dois existen­
cialismos: o primeiro, como demonstra com detalhes
em A Destruição da R.azão, é antes de mais nada a
filosofia da pura subjetividade, do isolamento, da dis­
tância de qualquer compromisso com a história e a
sociedade, ideologia típica dos intelectuais pequeno­
burgueses do período entre-guerras, e cuja irraciona­
lidade muito bem se prestou para compor na assim
rhamada "concepção nacional-socialista do mundo"
Mas o existencialismo francês demonstrou logo uma
preocupação pelos problemas sociais e políticos, ten­
do de se haver de imediato com o marxismo. Assim,
quando se fala na polêmica existencialismo-marxismo,
é antes ao existencialismo francês que se refere, se
bem que, segundo Lukács, o próprio Ser e tempo de
Heidegger é uma obra destinada especificamente a
combater o materialismo histórico, mesmo que Hei­
degger nunca o tenha confessado.
No presente trabalho, Lukács, após caracterizar
a filosofia burguesa de hoje como uma filosofia em
crise ( ensaio I), e apontar as origens metodológicas
elo existencialismo ( ensaio 11), analisa o existencia­
lismo francês em particular ( ensaio III), dado o seu
caráter acentuadamente político que o leva a se re­
lacionar abertamente com o marxismo. E, finalmente
( ensaio IV), Lukács expõe os princípios norteadores
ele sua crítica, princípios estes que ao mesmo tempo
constituem uma resposta ao seu próprio História e
Consciência de Classe, cuja teoria do conhecimento
considera superada.
11
A idéia do presente livro nasceu em l 94<i, 1111s
Encontros Internacionais de Genebra, em que sua in­
tervenção foi particularmente notável nos debates
que travou com Merleau-Ponty e com Jaspers. E
constitui um dos textos indispensáveis para a eluci­
dação da questão: o existencialismo é compatível com
o marxismo? Se a recente adesão de Sartre pode
tentar os mais apressados a dar a sua afirmativa,
não podemos esquecer, como o faz Lukács, de que o
existencialismo, na pessoa de seus vários represen­
tantes, em outras oportunidades, como em Heidegger,
para citar o ex.emplo mais conhecido, não só ignora
(ou finge ignorar) o marxismo, como o combate na
prática. Desta forma, antes mesmo do aparecimento
<la Crítica da ,Razão Dialética, Lukács aponta como
pode haver essa aproximação e aparente compatibili­
dade: à custa da coerência do sistema; a noção sar­
treana de liberdade sofre uma substancial modifica­
ção e serve de ponte para a ação política concreta.
Em suma, tanto aos existencialistas como aos
marxistas, ainda hoje é válido o desafio de Lukács
para resolver a questão: trata-se antes de tudo de
procurar, se houver, os elementos comuns aos funda­
mentos teóricos dessas duas concepções do mundo.
Se bem que apenas esboçado, o confronto que Lukács
estabelece lança novas luzes sobre um problema que,
por não ter ainda sido resolvido, merece toda a aten­
ção e nos obriga a pesquisar as justificativas de todas
as posições, e principalmente daquele que é conside­
rado o maior filósofo marxista do nosso século.

José Carlos Bruni

12
NOTA DO AUTOR

J mpossível dissimular que a intenção de meu edi-


1 or de reeditar antigos estudos meus, publicados há
mais de uma década, causa-me alguma hesitação. Não
a propósito do fundo filosófico desta pequena obra:
ainda hoje mantenho minha crítica de princípio em
relação ao existencialismo. Mas, nesse meio tempo,
minhas convicções sobre certos fatos históricos mu­
daram. Sei, por exemplo, depois do discurso de Krut­
r·hev, de 1956, que os grandes processos do ano 1938
foram inúteis. Portanto, as reflexões filosófico-his­
tóricas e éticas que, no meu livro, estão ligadas a
estes fatos, podem ser justas de um ponto de vista
ttbstrato; mas os exemplos históricos são caducos.
ft evidente que essas novas concepções podem engen­
drar igualmente conseqüências filosóficas. Mas, sen­
do dado que elas não tocam nem as bases do marxis­
mo, nem sua oposição ao existencialismo, podemos
deixá-las de lado.
O mais importante é que Sartre e Merleau-Ponty
tenham mudado fundamentalmente, nes�e lapso de
tempo, sua posição política, e portanto filosófica. Uma
polêmica atual levaria, sob vários aspectos, a resul­
tados diferentes.
13
Estando muito ocupado em terminar minha obra
sôbre estética, não posso pensar numa transformação
completa do "Existencialismo ou Marxismo?". Ao
contrário, espero poder voltar à maioria dos proble­
mas atuais da filosofia de Sartre, na minha obra sobre
ética, que empreenderei após ter terminado a estética.

Budapeste, 11 de abril de 1960.

Oeorg Lukács

14
O estudo que apresentamos hoje não tem a pre­
tensão de esgotar - nem do ponto de vista metodo­
lógico nem do ponto de vista histórico - os proble­
mas que evoca.
Os debates entre o materialismo dialético e o
existencialismo têm lugar, em geral, num terreno
muito estreito ou muito largo. Na realidade, não se
trata de uma preocupação efêmera nem tampouco
de um combate filosófico "eterno", se bem que nume­
rosos são aqueles que afirmam uma ou outra coisa.
De fato, o objeto do debate é um problema ideo­
lógico próprio do estágio do imperialismo; somente,
como todos os problemas desta ordem, o nosso tam­
bém remonta, quanto às suas origens, ao período con­
secutivo à Revolução Francesa. Num sentido mais
g-eral, trata-se do choque de duas orientações do pen­
samento: de um lado, daquela que vai de Hegel a
Marx, e de outro lado, daquela que liga Schelling (a
partir de 1804) a Kierkegaard. Pôr em paralelo Marx
t· Kierkegaard é, certamente, um processo muito em
moda e filosoficamente indefensável, mas que se jus­
tifica por um p�no de fundo muito real: a derrota do
idealismo objetivo. Sua herança constitui o ponto de
partida do debate entre a esquerda, isto é, a dialética
materialista, e a direita, representada pelo existen-
1·ialismo. Em Kiekegaard, como do último período
de Schelling, a concepção do existencialismo é teo­
lógico-mística. Isto explica porque o existencialismo

15
11:.11 11111•,q:11r 1•11tao t·stt•mlcr sua influência e que aca­
l1i1, na Mlil lorn1a original, num impasse de caráter
111111,i frs ta 111t·11 t t� reacionário.
t\ clcrrota da revolução de 1848 foi seguida de
11111 longo período de "segurança" econômica e polí­
tit-a, graças ao reino da burguesia. No plano da filo­
sofia, esse período podia, portanto, satisfazer-se com
um agnosticismo oscilante entre o "materialismo en­
vergonhado" (Engels) e o solipsismo.
Uma mudança dever-se-ia produzir somente no
início do estágio do imperialismo. Uma oportunidade
de salvar o idealismo filosófico aparecia então, sob o
aspecto desse "terceiro caminho", que vai de Mach
e Nietzsche até o existencialismo e que consiste em
se proclamar neutro também frente ao materialismo
e ao idealismo, que se pretende ultrapassar, do ponto
de vista da teoria do conhecimento. De um outro la­
do, o revisionismo filosófico combate. o materialismo
e a dialética, orientando a ideologia da classe operária
para as concepções burguesas. Essa "adaptação"
vai desde a aceitação pura e simples da ideologia bur­
guesa do período da "segurança" até o serviço das
ideologias reacionárias extremas : a carreira de um
de Man, por exemplo, está longe de ser fortuita. Face
a essa evolução, encontramos a renovação leniniana
da dialética, a partir de um materialismo conseqüente.
Aqui, os fatos novos da história e os problemas filo­
sóficos novos, trazidos pela evolução das ciências na­
turais, recebem uma definição exaustiva.
É assim que se constitui essa tensão particular,
que caracteriza a situação do pensamento atual: o
idealismo objetivo, após sua derrota definitiva, sobre­
vive apenas sob o aspecto de mitos reacionários; o
idealismo subjetivo, que perdeu suas perspectivas,
encontra-se em plena retirada para o pessimismo; o
16
111att-rialismo antigo está ultrapassado. O grande
rnmhatc da filosofia desenrola-se essencialmente en-
1 rc- o "terceiro caminho", do qual o existencialismo
IC'prcsenta a forma mais up to date e o materialismo
dialético.
ÍTrês principais grupos de problemas resultam
1lt•sta situação histórica. No domínio da teoria do
l'llnhccimento, é a pesquisa da objetividade que do­
mina; no plano da moral, tenta-se salvar a liberdade
e· a personalidade; do ponto de vista da filosofia da
história, enfim, a necessidade de perspectivas novas
se faz sentir no combate contra o niilism�
Entre esses três grupos de problemas, a ligação
é muito estreita; filosoficamente, devemos resolvê-los
_iuntos.
A base comum, sobre a qual repousam esses três
g-rupos de problemas, é fornecida pelo caráter mani­
festamente transitório da realidade social e histórica
anterior à atual. A filosofia anterior à Revolução Fran­
n•sa ignorava esse problema. Para ela, a luta histórica
c social tinha lugar entre a razão (a sociedade bur­
g-ucsa ascendente) e a não-razão ( o absolutismo feu­
<lal decadente). As contradições entre a situação his­
túrica real e sua definição filosófica aparecem apenas
no fim desse período e mesmo então sob formas filo­
súficamente inconscientes. Em Kant, por ex,emplo,
apresentam-se como a antinomia entre o dogmatismo
( a objetividade injustificada) e o ceticismo (relativis­
mo). Mas porque Kant não era consciente da base
real do problema que se lhe colocava, não pôde chegar
senão a pseudo-soluções, que deveriam, notadamente
<lurante o periodo de "segurança" filosófica, influen­
riar todo o pensamento europeu. O problema dialé-
1 ico da relação entre o relativo e o absoluto não pode
�;t•r colocado corretamen·te e resolvido senão mais tar-
17
de, quando a consciência tivesse realizado o caráter
histórico do conjunto da realidade e, antes de tudo,
o caráter transitório do presente capitalista.
Criada por Hegel e colocada sobre fundamentos
justos por Marx, somente a concepção da interpene­
tração mútua e da inseparabilidade do absoluto e do
relativo pode trazer a solução 2.QS três grupos de pro-
blemas de que falamos acima.\ O problema da oh jeti­
,·idade do conhecimento só é resolvido pela teoria dia­
lética da consciência humana que reflete um mundo
exterior a existir independentemente do sujeito. É
_ essa doutrina ainda que responde ao problema colo­
\J cado na teoria do conhecimento pela função da sub­
jetividade (papel ativo do sujeito do conhecimento,
em razão da unidade inseparável da teoria e da prá­
tica, e da situação histórica subjetiva no conhecimen­
to da realidade) e o caráter absoluto de seu conhe­
cimento, sem suprimir a objetividade do mundo exte­
rior. ;:: A posição concreta, materialista-dialética da
questão, ressalta, além disso, a função da subjetivida­
de na História, enquanto função da atividade humana
concreta na evolução e autocriação da humanidade.
É assim que o problema da personalidade aparece co­
mo um elemento de uma sociologia histórica geral.
Esta demonstra, até nos seus detalhes mais sutis, os
riscos, a ameaça de aniquilamento que o capitalismo
estende à personalidade humana, desde sua existência
econômica até seus aspectos ideológicos mais matiza-
i dos. Oferece, igualmente, em ligação íntima com essa
descrição, soluções concretas. (Problemas da vida pú­
blica, crítica do particularismo individualista, enquan­
to sufocamento e mutilação da personalidade etc.).
A liberdade humana aparece então em união dialética
com a necessidade e não mais como o antípoda abs-
18
trato de uma necessidade inumana, fatalista e des­
provida de vid�
A pesquisa de uma perspectiva leva, também, a
11111 resultado concreto. O leninismo dotou, com efeito,
o problema da perspectiva de um conteúdo concreto.
Não se trata mais, agora, das perspectivas do socia­
lismo somente, mas da determinação da evolução his-
1 /,rica concreta da sociedade - e dos indivíduos que
a compõem - pelas ações concretas a realizar, em
função da significação concreta que possui a perspec­
tiva do socialismo para o presente do conjunto social
e dos indivíduos que o compõem.
Mas o socialismo é possível somente' - propo­
mo-nos demonstrá-lo nos quadros da presente obra -
súbre a base do materialismo dialético. A ligação des­
sa filosofia com o socialismo reveste-se, portanto, de
11111 caráter de necessidade essencial.

Ocorre o mesmo no campo oposto do pensamen­


to: a resistência à epistemologia materialista e à dia­
lética materialista está em ligação íntima com a re­
sistência da ideologia burguesa ao socialismo. A con­
t rihuição nova da nossa época consiste somente no
ia to de que a aprovação do socialismo em geral eEJUi­
valc a um aspecto preciso da oposição intelectual à
perspectiva concreta e real do socialismo. Quanto
mais essa aprovação se faz sob uma forma "elevada",
mais isto ocorre. E eis porque essa aprovação - se
hem que ao preço de ecletismos e de contradições -
pc ,de revestir as formas atuais do idealismo filosófico.
É assim que o existencialismo aparece como a
última variante - e também a mais evoluída - des­
sa oposição. Sua ontologia, baseada na fenomenolo­
Kia, representa o cume atual e o aspecto mais extremo
19
do "terceiro caminho" filosófico, próprio do estágio
do imperialismo.
� No que concerne ao problema da personalidade e
da liberdade, a burguesia tem um interesse vital -
interêsse que corresponde aliás à sua inteligência es­
pecífica e a seus instintos imediatos - em não con­
siderar as ameaças que a estrutura da sociedade faz
pesar sobre a personalidade corno um fenômeno pró­
prio ao capitalismo. Ao contrário, concorda em ver
no socialismo o perigo principal. A burguesia consi­
dera instintivamente seu poder de exploração corno
fazendo organicamente parte de sua concepção da
personalidade a da liberdade. A inteligência burgue­
sa está aliás profundamente imbuída desse sentimen­
to geral, que considera corno a forma original da li­
berdade essa liberdade aparente, própria ao capita·
lisrno, que concorda muito bem com a opressão total,
até a prostituição da personalidade. É assim que se
constitui urna concepção puramente formal e subje­
tiva da liberdade, em (_)posição com a noção de liber­
dade concreta e objetiva, que nos legaram os antigos,
corno também Hegel e Marx.i1
Nesse domínio igualmente, o existencialismo re·
presenta o cume da evolução burguesa, ainda que
seus resultados sejam do tipo de um "terceiro cami­
nho". O estágio do imperialismo dá origem, um
pouco em cada lugar, a uma luta contra certos aspec­
tos - antes de tudo culturais - do capitalismo, que
se identifica com a perspectiva do socialismo. A gros­
seira demagogia do fascismo traçou um "terceiro ca·
minho" da moral: capitalismo e socialismo são, a seus
olhos, idênticos. Essa demagogia foi, parcialmente,
derrotada. Seus adversários quase não ultrapassaram
seu nível, porque confundem fascismo e bolchevismo,

20
enquanto aspectos diversos do mesmo "totalitarismo"
t• enquanto adversários e destruidores, um e outro,
ela liberdade e da personalidade. (Ver o caso Silone.)
Idéias desse gênero são responsáveis pelo caos
111onstruoso que reina na filosofia, em torno da noção
cll' liberdade. O que aumenta ainda esse caos, é a
incompreensão de amplos setores da "intelligentzia"
hurguesa para o problema social essencial de nosso
1 cmpo, sob seu aspecto concreto: a luta das formas
novas da democracia contra suas formas antigas,
que servem o capitalismo e que lhe são subordinadas.
Nisto ainda, o existencialismo representa a forma
mais evoluída do "terceiro caminho", porque opera
com uma concepção extrema, abstrata e subjetiva da
liberdade, em ligação com uma aprovação - abstrata
ainda - do socialismo e com um protesto contra a
:1usência de liberdade nas mais notadas manifesta­
çiies do capitalismo. O existencialismo reflete, assim,
no plano da ideologia, o caos espiritual e moral da
inteligência burguesa atual.
\No que concerne, enfim, ao niilismo, acha-se es­
treitamente ligado a todas essas questões e primeira­
mente à tomada de consciência, que a evolução his­
t úrica tende cada vez mais impor aos homens, do
raráter transitório das bases de sua existência social
t' individual. É essa tomada de consciência, despro­
vida de tôda perspectiva concreta e verdadeira que
<lft nascimento ao niilism2.J As perspectivas míticas,
rnja eclosão maciça caracterizou o estágio do impe­
rialismo, estiveram e permanecem ainda ligadas ao
niilismo. Essas tendências são fáceis de constatar já
c·m Nietzsche, melhor ainda em Spengler ou em
K lages, para atingir seu ponto culminante na pre-
1 t•nsa concepção do mundo do fascismo.

21
No plano ideológico, a necessidade social do nas­
cimento dos mitos explica-se pela incapacidade dos
pensadores de romper radicalmente com as sobrevi­
vências teológicas da filosofia. A conservação dessas
representações de origem teológica faz, aliás, parte
do esfôrço - freqüentemente inconsciente - que de­
ve impedir a realização, pela ideologia, das conse­
qüências decorrentes do caráter transitório das bases
sociais da pessoa humana. Dostoievski formulou es­
se sentimento de uma maneira surpreendente, colo­
cando a questão seguinte na boca de um de seus per­
sonagens: "Que capitão sou eu, se Deus não existe?"
O existencialismo não soube, ao menos, vencer
essas sobrevivências teológicas. O ateísmo de Hei­
degger e de Sartre é tão religioso quanto o de Niet­
zsche, se bem que deva suas bases a Kierkegaard. O
horizonte religioso, que se forma assim, aproxima-se
perigosamente de todos os mitos modernos. O exis­
tencialismo leva, portanto, a marca do mesmo niilismo
espontâneo de toda ideologia burguesa moderna. Ve­
remos a seguir que o existencialismo - sobretudo nas
definições mais recentes - não pode superar esse
abismo senão às custas de um certo ecletismo.
O que foi esboçado aqui, representa apenas um
apanhado dos problemas que surgiram. Não consi­
deramos de forma alguma a obra que se vai ler como
uma resposta exaustiva a todas as questões colocadas.
Os estudos que a compõem representam apenas es­
boços polêmicos e os problemas não são aí tratados
nem do ponto de vista histórico, nem do ponto de
vista sistemático. Eis porque, no momento de pu­
blicar esse livro, não podemos defender-nos de uma
certa resignação. Nasceu em pleno combate pela de-
22
mocracia nova, combate que não nos deixou o des­
canso que teria sido necessário para o levar a cabo,
no sentido indicado. Representa, apenas, portanto, um
t•nsaio, uma tentativa em vista de definir os proble­
mas mais importantes e de indicar o caminho de sua
solução.

Matrahaza (Hungria), julho de 1947.

23
Capítulo I

I. A CRISE DA FILOSOFIA BURGUESA

Nós, marxistas, não somos os únicos a constatar


a crise da filosofia burguesa. Essa noção tornou-se
de há muito moeda corrente na própria filosofia bur­
guésa. Assim, por exemplo, o neo-hegeliano Siegfried
Marck, querendo determinar o lugar de Rickert na
evolução da filosofia, declara que ele pertence ao pe­
ríodo anterior à crise. Com efeito, se nos dermos ao
trabalho de estudar atentamente a evolução da filo­
sofia burguesa destes últimos tempos, veremos que
suas próprias bases são periodicamente postas em
questão. E não é por acaso que no ponto de partida
dc.-;sa evolução encontra-se o programa de Nietzsche:
refazer a escala dos valores. ?ode-se dizer que o
ano no qual um domínio qualquer do pensamento
não conhece uma crise aguda, perde-se na banalidade.
25
Mas o signo mais sério da crise é, sem dúvida,
o fato de que sua evolução chega àquilo que se de-
nomina, com algum exagero, a concepção do mundo
do fascismo. É aliás fácil constatar que a resistência
que lhe opõe a filosofia burguesa é igual a zero. Nu­
merosas escolas filosóficas nas quais o fascismo am­
parou-se (Nietzsche, por exemplo) continuam a be­
neficiar-se de uma popularidade inalterada nos am­
plos meios antifascistas burgueses.
O fato da crise é, portanto, quase indiscutível. Sua
descrição e seu estudo crítico constituem já uma ta­
refa bem complexa, tanto no plano histórico como
de um ponto de vista particularmente filosófico. É
aí, com efeito, que desde já se coloca a questão: o
que há de especificamente novo na filosofia do perío­
0

do imperialista? É na verdade radicalmente nova?


E, em caso afirmativo, em que reside sua novidade?
No estudo das questões desse gênero, a prudên­
cia é de rigor. Durante a discussão do programa do
imperialismo, fazendo abstração da evolução geral do
partido comunista russo, Lenin levantou-se contra a
tendência representada por aqueles que se propunham
estudar a estrutura econômica e as leis internas do
capitalismo. Pensamos que esse princípio metodoló­
gico aplica-se �rfeitamente ao domínio da ideologia
e da filosofia. 1 A filosofia do imperialismo não pode
ser compreendida e criticada senão à luz das leis fun­
damentais da sociedade capitalista, porque é evidente
que a influência da estrutura econômica manifesta-se
igualmente no domínio da filosof�j
A
Sintomas que nada tem de profundo revelam a
crise: esta se traduz na filosofia moderna pela pro­
cura incansável de suas fontes no passado. É fácil,
por exemplo, seguir a influência de Kant até H. St.
Chamberlain e, através deste, até Rosenberg. Sartre,

26
por seu lado, remonta até Descartes, enquanto que,
de acordo com o irracionalismo alemão, é de Des­
cartes que começaria o desvio da filosofia moderna.
Poderíamos multiplicar estes exemplos ao infinito.
Nessa busca desordenada e incessantemente retoma­
da de fontes antigas sempre diferentes, manifestam­
se ainda uma vez os sinais da crise no plano histórico.
Essa crise exprime um mal-estar profundo: a filoso­
fia perdeu seu caminho. Onde e quando perdeu-se?
Até onde é necessário retroceder para reencontrar o
bom caminho?

1.

O PENSAMENTO FETICHIZADO E
A REALIDADE

O que há então de novo na filosofia do perí9do


imperialista? No seu conjunto, essa filosofia é o re­
flexo, no plano do pensamento, do imperialismo mes­
mo, isto é, do estágio supremo do capitalismo, que é
também o mais rico em contradições. As contradições
próprias à sociedade capitalista, que determinam a
evolução, a forma e o conteúdo da filosofia burguesa,
aparecem no imperialismo sob uma forma objetiva
levada ao extremo. É entretanto de interesse vital
para a burguesia não reconhecer esse caráter funda­
mentalmente contraditório de seu pensamento. Dito
ele outra forma, quanto mais essas contradições são
profundas e irreconciliáveis, tanto mais nítida é a rup­
tura - a causa mesma da crise da filosofia - entre
n pensamento filosófico burguês e a evolução da rea­
lidade social. Mas o problema não consiste somente
em uma contradição entre o pensamento burguês e
a realidade social do imperialismo, pois acrescenta-se
27
ainda uma outra contradição: a que subsiste entre a
evolução efetiva e a superfície diretamente perceptí­
vel dessa realidade social. É essa contradição que
explica que certos pensadores, que são, no entanto, de
boa fé, nos dêem uma representação completamente
falseada da realidade social, simplesmente porque se
limitam ao exame dessa superfície diretamente per­
ceptível.
· Essa contradição constitui naturalmente um pro­
blema constante para o pensamento burguês. Na so­
ciedade capitalista, o fetichismo é inerente a todas as
manifestações ideológicas. Isto quer dizer, sumaria­
mente, que as relações humanas, que se mantêm na
maior parte dos casos, por intermédio de objetos, apa­
recem, para esses observadores enganados pela mira­
gem superficial da realidade social, como coisas; as
relações entre os seres humanos aparecem, portanto,
sob o aspecto de uma coisa, de um fetiche. É o ele­
mento fundamental da produção capitalista, a merca­
doria, que fornece o exemplo mais claro dessa alie­
nação. Tanto quanto por sua produção como por sua
circulação, a mercadoria é, com efeito, o agente me­
diador de relações humanas concretas ( capitalista­
operário, vendedor-comprador etc.), e é necessário o
funcionamento de condições sociais e econômicas -
isto é, de relações humanas - muito concretas e
muito precisas para que o produto do trabalho do
homem se torne mercadoria. Ora, a sociedade capi­
talista mascara essas relações humanas e as torna
indecifráveis: dissimula cada vez mais o fato de que
o caráter de mercadoria do produto do trabalho hu­
mano é apenas a expressão de certas relações entre
os homens. Assim, as qualidades de mercadori.f do
produto (seu preço, por exemplo) dele se destacam
e se tornam qualidades objetivas, como o gosto da
28
111açá ou a côr da rosa. O mesmo processo de aliena­
çiio ocorre no caso do dinheiro, no do capital e no
de todas as categorias da economia capitalista: as
relações humanas tomam o aspecto de coisas, de qua­
lidades objetivas de objetos. Quanto mais uma dessas
categorias está distanciada da produção material efe­
tiva, mais o fetiche está vazio, desprovido de todo
conteúdo humano. É evidente que, para o pensamento
burguês, seu efeito de fetiche é apenas o mais pro­
fundo. Eis como a evolução do capitalismo no estágio
imperialista não faz senão intensificar o fetichismo
geral, pois, do fato da dominação do capital financei­
ro, os fenômenos a partir dos quais seria possível des­
vendar a reificação de todas as relações humanas,
tornam-se cada vez menos acessíveis à reflexão da
média .das pessoas.
Do ponto de vista da filosofia, importa notar que
esta intensificação cio fetichismo ex.erce um efeito
antidialético sobre o pensamento. Cada vez mais, a
sociedade se apresenta ao pensamento burguês como
um amontoado de coisas mortas e de relações entre
objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou seja,
como a reprodução inintetrrupta e incessantemente
cambiante de relações humanas. O clima mental as­
sim criado é muito desfavorável para o pensamento
dialético. O parasitismo próprio ao estágio imperia­
lista só intensifica essa evolução. A maior parte dos
intelectuais encontra-se, com efeito, muito afastada
do processo de trabalho efetivo que determina a es­
trutura verdadeira e as leis de evolução da sociedade;
c•stão tão profundamente ajustados na esfera das ma-
11ifcstações secundárias da produção social - que con­
�.ich-ram aliás como fundamentais - que a descoberta
das relações humanas mascaradas pela alienação, tor-
11a se para eles coisa impossível.

29
Em definitivo, é tão grande o abismo entre a rea­
lidade e o pensamento, que só reflete suas manifesta­
ções superficiais, que toda transformação na evolução
social se apresenta para o pensamento sob o aspecto
de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar
uma série contínua de crises. É evidente que, se fa­
lamos de uma crise constante da filosofia no estágio
do imperialismo, é necessário distinguir várias etapas
dessa crise. Até 1914, a crise da filosofia é de na­
tureza latente; tornar-se-á evidente apenas depois
de 1918.

2.
A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO BUROUÊS

Mas tudo o que precede não resume as caracterís­


ticas gerais do estágio imperialista, do ponto de vista
ideológico. A filosofia constitui, entretanto, uma ma­
nifestação ideológica particular, cuja evolução não
é sempre exatamente paralela à das outras manifesta­
ções ideológicas, das ciências exatas ou da literatura,
por e:x.emplo. \"Essa particularidade da filosofia reside
no fato que tem por objeto as questões últimas da
existência e do conhecimento: isto é, a concepção do
próprio mundo, sob suas formas abstratas e gerais.!Ao
contrário, onde a manifestação ideológica tem por ob­

-=-
jeto imediato a realidade social diretamente dada - e
não sua soma abstrata ou seus princípios gerais a
visão corajosa e imparcial da realidade compensa fre­
qüentemente os defeitos da concepção ideológica. A
literatura oferece-nos numerosos exemplos de escrito­
res com idéias pessoais influenciadas pelo fetichismo
e que sabem, em larga medida. dele se desembaraçar
na sua criação literária. Em outros termos. esses
30
t'!'il'rÍtorcs sabem representar, nas suas obras, as rc­
laçc-,t·s humanas enquanto tais, a despeito de suas
i<ll"ias individuais contrárias. Mas, na filosofia, onde
11s prc'>prio·s princípios últimos são postos em questão,
11 ohjcto de estudo não poderia exercer esta influência
salutar.
Partindo dessas considerações, seria talvez pos­
s í n·l delimitar sumariamente os principais períodos
dl' evolução da filosofia burguesa, a fim de melhor
poder examinar em seguida, auxiliando-nos deste re­
sumo histórico, as características essenciais da filo­
s, ,f�o decorrer do período imperialista.
1 O primeiro período é o da filosofia burguesa dás-
,ica, que vai até cerca do fim do primeiro terço do ,
sfrulo XIX ou, no máximo, até 1848. \ É esta época
qlll' <lá origem à expressão mais elevããa da concepção
, I,, mundo da burguesia, isto é, revolta da burguesia
,·1111 t ra a sociedade feudal em declínio. A filosofia des-

1 a t:p,1ca codifica os princípios últimos e a concepção


pl'ral do mundo, próprios a este vásto movimento
pr11grcssivo e libertador, que tão profundamente re­
l11r111ou a sociedade. Assistimos agora à transforrna-
1;,\11 revolucionária da lógica, das ciências naturais e

1
, la, rii·ncias sociais. \Ãs intervenções da filosofia nos !
�'. ra nclt·s problemas concretos das ciências naturais e
•., 1l'iais mostraram-se férteis e é então que ela se
1·l1·,·a à região das abstrações mais elevadas. É assim
q111· s1· manifesta seu caráter de universalidade e seu
1,,q1l'l de fermento das ciências, que lhe permite des-
11,hrir tantas perspectivas nov�·\
\' 1·jamos agora o que estatilosofia representa,
rl11 p1111t11 de vista das classes sociais em presença .
. \ pri1111·ira vista, a resposta parece muito simples;
111.i., t'· l,astante mais difícil de formular no plano
il,1 11·aliclaclc concreta. São os vastos interesses gerais
31
de uma classe, colocados no palco da história mundial,
objetivamente chamados a transformar no sentido do
progresso o conjunto da sociedade, que recebem sua
ex.pressão adequada nas obras da filosofia clássica.
Eis porque esta filosofia está tão intimamente ligada
a esses imensos interesses e aos conflitos que devem
ocasionar. Os pensadores desta época têm ao mesmo
tempo um senso sutil e robusto da realidade, e seus
próprios erros dependem da história mundial, porque
são oriundos de ilusões heróicas que correspondem a
necessidades históricas.
Desta unidade profunda e íntima entre a filoso­
fia e os interesses gerais da burguesia ascendente, re­
sulta uma independência considerável dos filósofos,
frente à tática momentânea de sua classe e, sobre­
tudo, de certas camadas desta. Esta independência
confere-lhe a possibilidade de uma crítica muito séria:
a crítica vem do interior, porque se funda sobre a
grande missão histórica da burguesia, e a situação
do filósofo é tal que o autoriza a tomar a posição
mais nítida, mais decidida e mais corajosa. E, enfim,
por não ser esta coragem somente uma virtude indi­
vidual, mas, sim, função precisamente desta relação
com sua classe, o filósofo se sente com direito de
criticar da maneira mais radical o menor desvio da
missão histórica, em nome dessa própria miss�o.
Mas, as revoluções de 1830, e ainda mais as de
1848, atestam que a burguesia perdeu seu lugar à
frente do progresso social. Em 1830 começa o pro­
cesso de decomposição da filosofia burguesa clássica,
que termina com a revolução de 1848. Esta data
forma, na evolução da filosofia, o limiar de um novo
período que termina mais ou menos no início do pe­
ríodo imperialista. O combate ofensivo da burguesia
contra as sobrevivências do feudalismo está então

32
acabado: sucede-lhe a defensiva contra o proletariado
ascendente. Outro grande processo histórico da épo­
ea das revoluções burguesas, o da formação dos Es­
tados nacionais, termina igualmente pela realização
ela unidade nacional alemã e italiana, no quadro dos
Estados reacionários. É a era dos compromissos so­
ciais asfixiantes, a era de Napoleão III e de Bismarck.
A antiga democracia burguesa periclita e se des.faz
continuamente depois de 1848. Liberais e democratas
separam-se e terminam por se voltar uns contra os
outros: o liberalismo se transforma em um "libera­
lismo nacional" de caráter conservador.
O desenvolvimento tumuituoso da produção ca­
pitalista em toda a Europa Ocidental e Central forma
o pano de fundo econômico desta corrupção da de­
mocracia. O capitalismo continua sua ascensão, apa­
rentemente ilimitada, desembaraçado de todo pro­
blema. (Notemos, de passagem, que estas observa­
ç<ics não se aplicam à Rússia. Na evolução política
<' econômica da Rússia e, portanto, da luta ideológica,
1 <)()5 corresponde àquilo que o ano 1848 significa para
a Europa Ocidental e Central. Eis porque poderia
ainda haver na Rússia da segunda metade do século
XI X pensadores tais como Tchernichevski e Dobro­
liubov.)
A filosofia deste período constitui reflexo exato,
110 plano do pensamento, do compromisso social. Re­
nuncia à missão de dar resposta às últimas questões
do espírito. No plano da teoria do conhecimento:
1•sta tendência se manifesta pelo agnosticismo, o qual
pretende que não podemos nada saber da essência
vl'rcladeira do mundo e da realidade e que este co-
11hccimento não teria aliás nenhuma utilidade para
nús. Só temos que nos preocupar com as aquisições
das ciências, especializadas e separadas umas das ou-
33
tras, conhecimentos indispensáveis do ponto de vista
da vida prática de todos os dias. O papel da filosofia,
segundo o agnosticismo, deve limitar-se a vigiar para
que ninguém ultrapasse os limites definidos pelas
ciências e para que ninguém ouse tirar das ciências
econômicas e sociais conclusões que poderiam desa­
creditar o regime. No mesmo sentido, o agnosticismo
proibe-nos de explorar as descobertas das ciências na­
turais contrárias aos dogmas religiosos. Esta filoso­
fia repudia por princípio todas as pesquisas que ten­
dem a elaborar uma concepção coerente do mundo,
pois uma visão de conjunto definiria os limites traça­
dos pela ciência, que considera como autoridade su­
prema.
Esta filosofia que se apresenta na maioria das
vezes sob os traços de um neokantismo ou de um
positivismo, não é a única filosofia da época. Mas
essas duas tendências são dominantes. Paralela­
mente à sua evolução, podem-se registrar certas ten­
tativas de renovar o antigo materialismo mecanicista,
tentativas às vezes assaz medíocres (Moleschott,
Büchner etc.). A influência de Schopenhauer, sobre­
tudo entre os intelectuais independentes, é igualmen­
te assaz profunda. Filósofo do pessimismo, gozou
do prestígio de ser apóstolo do desprezo por uma exis­
tência completam�nte desprovida de sentido.
A filosofia dominante da época é uma filosofia
de professores. Fora da psicologia, que apenas se
inicia, tem por objeto quase exclusivo a teoria abstra­
ta do conhecimento. Torna-se ciência especializada.
Renuncia à sua antiga missão social: cessa de ser
expressão, no plano do pensamento, dos grandes in­
teresses históricos da burguesia e abandona o exame
de todo problema ideológico. Aceita encarregar-se
da função de "guarda-fronteira", função indispensá-

34
vt·l à burguesia da época, pois que assegura a estabi­
lidade de um compromisso social durável com as for­
ças ela reação. Em compensação, os métodos e os
nhjl'tos, a evolução e os frutos dessa filosofia, con­
vertida ·em uma ciência especializada como as outras,
tornam-se cada vez mais indiferentes à burguesia.
Esta cede aos intelectuais burocratizados, que fazem
parte do aparelho de Estado, o direito de explorar
Sl'llS métodos e seus resultados. É assim que, em
1n·rfeita conformidade com a divisão do trabalho, pró­
pria do capitalismo evoluído, esta camada de intelec­
t 11a is, beneficiária de uma independência relativa, tor­
na-st• depositária da filosofia nova.
Mas essa independência é completamente relati­
va. Tem por condição a execução estrita das obriga­
t:1·1t·s que resultam da função de "guarda-fronteira".
F, 1rma e objeto da filosofia são então determinados
pt·lns problemas especiais dessa camada de intelectuais
q11t•, mesmo gozando de uma certa independência, tor-
111 ,u-se, nesse novo período da evolução da filosofia
l,11 rgucsa, o depositário social do pensamento. Do
p1 •nto de vista sociológico, há, ao menos à primeira
VÍ!->la, uma certa contradição, porque é essa mesma ca-
111ada social que se encontra igualmente na origem da
lil11s11fia clássica. l\Ias, se o espírito da filosofia era
1•111 :·111 radicalmente diferente, a função social dos in­
t1·l1·cl 11ais, autores diretos dessa filosofia, era tam­
l,1'·111 diferente, e é essa diferença que explica a mu-
1L1111.;:1. .\ camada de intelectuais, da qual a filosofia
lt11•��11t•sa era a emanação direta, falava então em
111 ,1111· das perspectivas universais da burguesia ascen­
d1·11t1·. < lra, essas perspectivas deviam perder-se e
,111iq11ibr-se na luta defensiva contra o proletariado e
1111 1·11111pr11misso das classes que seguiram 1848. As
,1·,piraç11l'S filosóficas da burguesia estreitaram-se:
35
tornaram-se mesmo negativas, para acabar por se
transformar em princípios puramente limitativos. A
partir da segunda metade do século XIX os intelectuais
têm, dentro de certos limites, uma perfeita liberdade
de movimento: a filosofia torna-se de seu interesse
exclusivo. A burguesia se desinteressa completamen­
te de conhecer o que ensina tal ou tal professor de
filosofia, co111 a condição de que a filosofia realize
sua função de "guarda-fronteira". O ensino univer­
sitário da filosofia transcorre, cada vez mais, em meio
à indiferença da sociedade.
Vejamos agora o que distingue a filosofia do es­
tágio imperialista daquela das épocas precedentes. A
primeira vista, há um desenvolvimento. A filosofia
torna-se de novo "interessante" - somente para os
meios intelectuais, bem entendido - enquanto a indi­
ferença geral da burguesia persiste a seu respeito. En­
tra em cena, em numerosos casos, sob o aspecto de uma
oposição à filosofia universitária, qm: não acusa quase
nenhuma mudança. Numerosos são aqueles, entre os
grandes pensadores do estágio imperialista, que se
encontram fora do ensino oficial (Nietzsche, Spengler,
Keyserling, Klages etc.); Simmel e Scheler, também,
permanecem muito tempo fora das Faculdades. Pou­
co a pouco a nova orientação se impõe a uma parte
do ensino oficial, que acaba por admitir que a filosofia
deve ser "interessante" (Croce, Bergson, Huizinga
etc.).
Assistimos a uma mudança radical? Não o cre­
mos. Examinando o problema de mais perto, cons­
tatamos um impulso no sentido afirmado após 1848,
porque é sempre uma camada de intelectuais que faz
a filosofia para seu próprio uso. Vemos igualmente
que o determinismo social mais rigoroso não deixa
de exercer-se �m nenhum momento. Somente esse
36
dl•tcrminismo não equivale à definição direta da for­
ma e do objeto da filosofia, mas manifesta-se pela
criação de uma margem de liberdade de acordo com
os interesses da burguesia e se encontra delimitado
por esses mesmos interesses. No interior dessa mar­
g·em, a "intelligentzia" pode elaborar suas doutrinas
ideológicas com toda liberdade.
Esse rigor extremo do determinismo social toma
sua forma concreta no fascismo. Com efeito, o fas­
cismo traduz para a linguagem do capitalismo rea­
donário dos trustes, ou melhor, para a linguagem
tia demagogia nacional e social da reação, todas as
"conquistas" da filosofia do estágio imperialista.
Transpõe para o vocabulário da rua as abstrações
ideológicas que essa filosofia difunde do alto da cá-
1 edra, nos salões e nos cafés.

3.
A FILOSOFIA DO IMPERIALISMO

A filosofia, tornando-se "interessante", conquis­


t11u uma certa independência. Essa constatação sig­
nifica que, partindo de sua próprja situação particular,
os intelectuais burgueses colocam seus próprios pro­
lilt·mas particulares de uma maneira mais concr�ta e
mais consciente que no período precedente. É uma
ço11seqüência do fato de que o papel dos intelectuais
i11dl'pcndentes é mais considerável que o dos intelec-
111ais burocratizados. Esses intelectuais não colocam
111a is os grandes problemas universais da burguesia
11a sua fase ascendente, mas limitam sua reflexão aos
í111t•rcsses defensivos da burguesia, por volta do fim
ele I século XIX.
37
Que se pode concluir de tudo isto quanto ao con­
teúdo e à forma da filosofia nova? É fácil ver, pri­
meiramente, que os fundamentos burgueses persistem,
sem ter sofrido nenhuma crítica séria. Além disso,
a camada social que se tornou depositária da filoso­
fia nova, conhece cada vez menos a estrutura econô­
mica da sociedade burguesa e se mostra mesmo cada
vez menos inclinada a estudá-la enquanto problema
filosófico. Certamente, o tom da crítica torna-se apa­
rentemente mais agressivo, mas quase diz respeito
somente à cultura propriamente dita e à moral in­
dividual, isto é, problemas que interessam diretamente
aos intelectuais enquanto camada social. Essa "in­
telligentzia" afasta-se, portanto, voluntariamente, dos
problemas econômicos, políticos e sociais e é precisa­
mente esse abandono que equivale ao respeito muito
escrupuloso dos limites que foram traçados à filosofia
pela burguesia imperialista. Esse respeito, aliás, vale
por uma margem de liberdade que lhe permite tor­
nar-se "interessante" e esboçar mesmo, às vezes,
um gesto de revolta.
Acrescentemos, de passagem, que esse afasta­
mento das questões sociais, dos problemas da eco­
nomia e da vida política, coincide objetivamente com
as exigências de classe da burguesia imperialista e
que é, ao mesmo tempo, a conseqüência necessária
da posição social da "intelligentzia" desse período.
Se o respeito escrupuloso das barreiras das quais
falamos não significa necessariamente, nos filósofos
enquanto indivíduos, uma sujeição consciente às exi­
gências da burguesia imperialista, não lhe equivale
menos na realidade, apesar de toda inconsciência e
toda boa fé pessoais.

38
Eis porque a independência essencial da filosofia
t· sua atitude crítica fundamental sofrem uma dege­
nerescência que nada pode interromper. Bastaria
invocar, para exemplo do contrário, Hobbes, Rousseau
ou Fichte. Não são as construções utópicas que fal­
tam, visando à transformação da cultura, mesmo pelos
meios revolucionários, como, por exemplo, em Nietz­
sche, mas a intangibilidade da base social e econômica
do capitalismo é sempre respeitada. Nietzsche critica
severamente os sintomas culturais d� divisão capita­
lista do trabalho, sem considerar a menor transfor­
mação da organização social.
É a idéia de progresso que se encontra no centro
da crítica filosófica, e: esta não prescinde de um élan
quase revolucionário. Ninguém sonha em dizer, bem
entendido - o que na maior parte dos casos o filósofo
e seu público de intelectuais ignoram pela mesma
razão - que essa posição "audaciosa" do problema
é apenas o reflexo ideológico da evolução da burgue­
sia, evolução que a opõe ao progresso. Trata-se ai,
simplesmente, do reflexo ideológico do compromisso,
intervindo entre a burguesia e as forças reacionárias
da sociedade. Ninguém diz tampouco que, se esta
questão se coloca com tanta acuidade na filosofia do
imperialismo, é porque o pacto dos dirigentes da pro­
dução capitalista com todas as forças reacionárias da
sociedade faz-se cada vez mais íntimo sob o reino do
c·apitalismo dos trustes. Numerosos pensadores vin­
clos dos mais diferentes horizontes não hesitam em
realizar esse casamento "interessante" do conteúdo
reacionário e do gesto revolucionário: Lagarde,
Nietzsche, Sorel, Ortega y Gasset e muitos outros.
I•:, na véspera da tomada do poder pelo fascismo,
Freyer lança o grito de união da "revolução de di­
reita" ( R evolution von rechts).
39
Paralelamente a essa evolução, no curso da qual
as questões propriamente ideológicas ganham terre­
no, as relações entre a filosofia e a religião sofrem
uma transformação profunda. As barreiras levanta­
das pelo agnosticismo do período precedente estavam
destinadas a desacreditar, antes de tudo, o materialis­
mo ateu. A orientação para uma concepção mais po­
sitiva conduzirá uma parte dos filósofos a uma nova
justificação da religião e outra a um ateísmo religioso
novo, mas cujo conteúdo ideológico e moral será dia­
metralmente oposto ao do ateísmo materialista. É
fácil acompanhar essa evolução que vai de Nietzsche
até o existencialismo de Heidegger e de Sartre.
Acrescentemos que, no estágio do imperialismo,
a vulgarização das ciências naturais_ torna-se essen·
cialmente uma arma a serviço da ideologia reacio­
nária. No decorrer do período precedente, a filosofia
limitava-se ainda à defensiva. O agnosticismo de
Du Bois Reymond sen·ia antes de mais nada para
neutralizar as conseqüências ideológicas do materia­
lismo de Haeckel. A escola de Mach, Avenarius e de
Poincaré constitui já uma plataforma para a defesa
aberta das concepções reacionárias. Doravante, essa
tendência não deixa de intensificar-se e a filosofia
interpreta todas as novas descobertas das ciências
naturais como outros tantos argumentos em favor
das ideologias da reação.
Do ponto de vista do conhecimento, é necessário
constatar que o idealismo subjetÍ\·o do período pre·
cedente permanece, sem alteração, a base mesma da
teoria do conhecimento no estágio imperialista. Esse
fato não é devido ao acaso porque o idealismo cons·
titui a ideologia espontânea, por assim dizer natural,
da "intelligentzia". O trabalho material, que deter·
mina em última instância a relação entre o indivíduo
40
e o mundo, fornece a esse respeito um dupla indicação.
De um lado, demonstra que o mundo material existe
independentemente da consciência. De outro lado,
todo processo de trabalho é teleológico, o que quer
dizer que seu fim é dado na consciência do trabalha­
dor, antes do seu começo efetivo. Ora, a consciência
da "intelligentzia" está dominada por seu afastamen­
to crescente do trabalho material. É essa evolução
que explica que numerosos cientistas se comportam,
dentro de sua especialidade, como materialistas es­
pontâneos, o que é completamente contrário à sua
atitude no domínio da filosofia. Assim, por exemplo,
Rickert lamenta ver certos grandes cientistas decla­
rarem-se adeptos de um "realismo ingênuo", no ter­
reno de sua especialidade. Quanto mais ganha em im­
portância o papel independente e específico da "in­
telligentzia" na filosofia tanto mais forte se torna
a posição do idealismo subjetivo no domínio da teoria
do conhecimento.

4.
A PSEUDO-OBJETIVIDADE

A-base da .. teoria do conhecimento continua a


tnestúa, portanto, mas a filosofia do período imperia­
lista não deixa de representar uma evolução conside-
1·{tvel cm relação à do período precedente. As carac­
terísticas mais importantes dessa evolução resumem­
Sl' mais ou menos assim: tendência ao objetivismo e
11ascimênto de uma pseudo-objetividade; luta contra
o formalismo na teoria do conhecimento - o que
vai a par com a apologia da intuição da qual se fará
o instrumento novo de uma filosofia nova - e, enfim,
retomada do estudo das questões ideológicas, no lu-
4l
gar do agnosticismo conseqüente do período prece­
dente.
Todos esses temas correspondem às necessidades
particulares dessa fase da evolução social. São todos
outros tantos sintomas da crise da filosofia. A pre­
tensa segurança, o equilíbrio das condições sociais
que tinham toda a aparência de estabilidade e que
pareciam poder durar eternamente, assim como a
ilusão de uma prosperidade econômica e política, ti­
nham criado um clima filosófico que permitiu aban­
donar todos os problemas objetivos, isto é, toda a
realidade, e confiar seu exame às ciências especiali­
zadas, à técnica industrial e enfim à "sábia adminis­
tração" das "autoridades superiores", no respeito es­
crupuloso às barreiras traçadas pela teoria do co­
nhecimento.
A necessidade de uma ideologia faz-se sentir
cada vez mais e isto é ainda um signo, ou ao menos
um signo precursor, da crise. Essa procura revela
o pressentimento de um abalo geral das bases, a des­
peito de toda estabilidade aparente e mesmo de toda
consolidação da superfície. A vanguarda da "intelli­
gentzia", sensível às abstrações filosóficas, pressente
a crise que se prepara: uma boa parte da filosofia
acusa esses signos precursores já bem antes de 1914.
É evidente que estes são, até essa data, completa­
mente abstratos: não se trata, no momento, senão
de veleidades que se propõem salvar a integridade da
pessoa humana isolada, diante do retalhamento criado
pela divisão capitalista do trabalho; trata-se apenas,
agora, de comentar longamente as contradições inso­
lúveis, produzidas pela cultura capitalista e imperia­
lista. É necessário dizer que não se fala nunca das
contradições da cultura capitalista, mas das da cul­
tura em geral, da cultura simplesmente? É talvez

42
Georg Simmel o representante mais eminente dessa
filosofia da crise latente.
Dissemos que a necessidade da ideologia constitui
um signo da crise. Essa afirmação, à primeira vista,
pode passar por piada ou paradoxo. Mas a verdade
é apenas concebível sob o aspecto de uma verdade
concreta. Eis porque é necessário examinar rapida­
mente a função social da ideologia no decorrer dos
três períodos do pensamento burguês que precedente­
mente delimitamos.
A filosofia burguesa clássica deu lugar ao nasci­
mento e ao desenvolvimento de uma ideologia uni­
versal e potente, colocada sob o signo do progresso.
Nessa época, a filosofia ocupava o cume das ciências
humanas ; era o termo, a base e o quadro de todo
o conhecimento. A ideologia constituía então o objeto
propriamente dito da filosofia, ela própria produto
orgânico do progresso social ininterrupto, término e
corolário do conjunto da atividade científica de cada
etapa da evolução social.
O período economicamente repleto de compro­
missos sociais desviou-se com preguiça e covardia
de toda questão ideológica, cujo estudo julgava i�útil,
declarando anticientíficas as grandes realizações ideo­
lógicas do período precedente. Quanto à "intelli­
gentzia" do período de crise, aspira à resignação e
ao reconforto que uma ideologia nova devia forne­
cer-lhe.
Mas estamos ainda - aparentemente ao menos
- em pleno paradoxo: como se pode esperar, .com
efeito, um reconforto do sombrio pessimismo de
Nietzsche, de Spengler, de Klages ou de Heidegger?
Digamos logo que esse paradoxo só é de tal natureza
porque está implicitamente contido no ideálismo filo­
sófico, que apresenta, com um aspecto anti-histórico
43
e abstrato, o destino do homem do período do impe­
rialismo, como sendo o destino humano em geral.
Cria, assim, sem o saber, um clima onde nosso juízo
parece ser um paradoxo. O reconforto reside, com
efeito, precisamente nessa fatalidade (bastará evo­
car o amor fati de Nietzsche, o ser-para-a-morte de
Heidegger, o pessimismo heróico do pré-fascismo e
do fascismo etc.). Os precursores de toda essa ten­
dência são Schopenhauer e Kierkegaard. Não é o
contentamento que opomos a essa doutrina da fatali­
dade, porque nada motivaria um tal contentamento.
Queremos entretanto chamar a atenção sobre o fato
de que certos pensadores modernos, tais como Key­
serling ou Jaspers, preconizam uma existência volta­
da sobre si mesma, isolada de toda a vida pública e
cujo equilíbrio repousa precisamente num pessimismo
total a respeito do mundo exterior.
A finalidade verdadeira dessa tendência é im­
pedir o descontentamento engendrado pela crise, de
se voltar contra as bases da sociedade capitalista
e proceder de tal forma que a crise não possa fazer
com que a "intelligentzia" se levante contra a socie­
dade do imperialismo. Não se trata mais de fazer
o elogio direto e grosseiro da sociedade capitalista,
como o fizeram os turiferários assalariados ou vo­
luntários no passado. A crítica da cultura capitalista
constitui, ao contrário, o tema central dessa filosofia
nova. A medida que a crise se prolonga, a concepção
de um "terceiro caminho" progride cada vez mais
no plano social : é uma ideologia segundo a qual nem
o capitalismo nem o socialismo correspondem às ver­
dadeiras aspirações da huma�idade. Essa concepção
parece a�eitar tacitamente o fato de que o sistema
capitalista é teoricamente indefensável tal como exis­
te. Mas assim como o "terceiro caminho" na teoria
44
do conhecimento tinha por m1ssao readmitir direta­
mente em seus privilégios o idealismo filosófico, não
mais defensável, o "terceiro caminho" filosófico es­
tá investido da missão social que consiste em impedir
a "intelligentzia" de tirar da crise a conclusão socia­
lista. Por ser indireto, o "terceiro caminho" não
deixa de ser uma apologia do capitalismo.
Assim, a luta contra o socialismo torna-se, numa
medida cada vez mais considerável, a questão ideo­
lógica fundamental. É uma luta filosófica contra o
materialismo dialético, isto é, tanto contra o mate­
rialismo como contra a dialética. No plano da ideo­
logia, essa tendência significa a eliminação conse­
qüente de toda consideração econômica ou social. A
filosofia não está em condições de produzir argu­
mentos sérios contra as concepções do socialismo;
aparenta crer e esforça-se por fazer crer que a ciên­
cia especializada da economia nacional burguesa des­
de há muito despedaçou a doutrina econômica do mar­
xismo. Sua tarefa limita-se, portanto, aqui, a desa­
creditar todo ponto de vista social e econômico e a
atenuar sua importância no plano da ideologia.
Como também a sociologia burguesa especiali­
zou-se para se tornar uma ciência independente da
economia, a filosofia mudou de atitude frente a ela.
Enquanto a filosofia do período precedente contes­
tava o lugar da sociologia entre as ciências, a do
período novo abre-lhe as portas e admite mesmo,
no momento da crise aguda, a "Wissenssoziologie"
de Scheler e de Mannheim como uma arma de pri­
meira ordem a serviço do relativismo. A sociologia
da reação aberta, que daí deriva diretamente,· encar­
regar-se-á em seguida de lançar as bases das con­
cepções fascistas, por intermédio de Freyer e de C.
Schmitt.
45
O desenvolvimento das filosofias antiprogressis­
tas constitui a segunda grande ofensiva ideológica
contra o socialismo. A filosofia burguesa, por não
estar em condições de produzir argumentos sérios
contra a concepção socialista do progresso, é obri­
gada a combatê-la no domínio das ciências naturais
e das ciências sociais. Por outro lado, tenta esboçar
perspectivas suscetíveis de satisfazer os desejos da
"intelligentzia" imersa na crise. A fusão dessas duas
orientações - mistificação da idéia do progresso de
um lado e sua negação pura e simples do outro -­
faz nascer entre os precursores do fascismo a teoria
do racismo, que antecipa uma teoria mítica à guisa
de solução dos "mistérios" da sociedade e da história.
É evidente que todas essas tentativai- fazem par­
te do grande combate contra o materialismo histó­
rico, mesmo se a maior parte dos protagonistas se
abstiverem de toda polêmica expressa. Na Europa
ocidental e central, o socialismo não conquistou os
intelectuais numa medida que estivesse em relação
com a influência real do movimento operário. Essa
eficácia relativa dos filósofos burgueses é devida, em
grande parte, aos serviços que o reformismo lhes
prestou. Este último contesta ao marxismo seu ca­
ráter de uma ideologia; para ele, Marx é um "cien­
tista especializado" em economia e em sociologia,
cientista cujo método e descobertas foram em parte
ou no conjunto ultrapassadas pela evolução científica.
Nada mais natural que ver os reformistas quererem
"completar" o marxismo pela junção de Kant (Max
Adler) ou de Mach (Friedrich Adler). Quanto a
Bernstein, que é sem dúvida o representante mais
consciente do reformismo, toma muito nitidamente
posição contra a dialética, método "superado e en­
ganador". Certamente, as concepções políticas do
46
reformismo encontraram na Europa ocidental e cc.-11-
tral uma oposição considerável, mas esta não estava
em condições de devolver ao materialismo dialético
seus direitos. Esta fraqueza ideológica do movimento
operário na Europa central e ocidental reflete-se nas
carências ideológicas da oposição democrática e anti­
imperialista, aliás fraca e incapaz de· combater sena­
a
mente filosofia reacionária do imperialismo.

5.
O "TER.CEIR.O CAMINHO" E O MITO

As considerações precedentes permitem-nos pas­


sar agora ao exame dos principais problemas colo­
cados pela filosofia do período imperialista. Iremos
estudar primeiramente a noção de objetividade, ba­
seada na teoria do conhecimento do idealismo sub­
jetivo.
Já falamos do "terceiro caminho" na teoria do
conhecimento. Sua origem remonta em parte a
Nietzsche, em parte a Mach e Avenarius e vai, pas­
sando por Husserl, até a ontologia existencialista,
que reconhece uma existência independente da cons­
ciência, mas persiste em seguir o antigo método idea­
lista quanto à definição, o conhecimento e a inter-.
pretação dessa existência. As teorias do conhecimen­
to dominantes do período precedente negam a inteli­
gibilidade da realidade objetiva. O "terceiro cami­
nho", que mantém intactos todos os princípios da
teoria do conhecimento do idealismo subjetivo, esca­
moteia seus limites, apresentando a questão de uma
maneira a parecer admitir implicitamente que as idéias
e as noções que existem apenas na consciência são
elas mesmas realidades objetivas.
47
Vejamos, portanto, qual é a realidade de que fala
esta filosofia. (Notar, de passagem, que a filosofia
burguesa fala sempre da polaridade idealismo-realis­
mo, sem mesmo pronunciar a palavra materialismo.)
Mach e os neokantianos elaboram uma teoria do co:
nhecimento que se limita a fazer concessões termino­
lógicas às ciências naturais e esforça-se por aparar
as arestas do "realismo ingênuo" dos sábios. Assim
como para Berkeley, idéias e realidades são idênti­
cas para eles. A realidade de que falam torna-se as­
sim efetiYamente una e indivisível - mas é a reali­
dade do idealismo subjetivo. Esse novo agnosticismo
está entretanto longe de ser semelhante ao do período
precedente, ao qual Engels pôde com razão chamar de
"ateísmo envergonhado", porque a doutrina segundo
a qual a realidade é incognoscível significava sim­
plesmente a recusa da filosofia em tirar conseqüên­
cias ideológicas das descobertas das ciências naturais.
A escola de Mach ultrapassa de muito essa aspiração
puramente negativa, pois seu agnosticismo volta a
afirmar que as descobertas das ciências naturais estão
em perfeita harmonia com qualquer ideologia reacio­
naria.
Mas, chegada a esse ponto, a evolução da filo­
sofia não parou. A variante moderna do agnosti­
cismo torna-se mística e criadora de mitos. É impos­
sh·el subestimar aqui a influência decisiva de Nietzs­
che na eyolução do conjunto do pensamento imperia­
lista: poder-se-ia mesmo dizer que ele criou o ar­
quétipo da 1úitificação. Sem nos querer estender
longamente sobre os temas principais desses mitos,
insistiremos no papel que neles desempenham o corpo
e a carne. Nietzsche rompe efetivamente com a es­
piritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa

48
da filosofia oficial. Sua teoria do conhecimento ,.
sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo,
sem fazer nenhuma concessão ao materialismo filo­
sófico. Ora, o aspecto filosófico de um corpo assim
privado de toda matéria só pode ser mítico. Aí está
um elemento desse biologismo particular e dessa psi­
cologia que repousam em pretensas bases biológicas,
que tomam em Nietzsche o lugar de uma concepção
social. Essa introdução está completa e por assim
dizer coroada pela perspectiva mítica da evolução da
lunnanidade, pela aceitação do imperialismo, pela cria­
ção da noção de uma aristocracia nova e pela negação
do socialismo, ao qual opõe seu mito biológico. Todas
as bases filosóficas do racismo encontram-se assim
preparadas.
Contentar-nos-emos igualmente em fazer algu­
mas observações de princípio a respeito de alguns ou­
tros mitos (Bergson, Spengler, Klage; etc.), sem
comentá-los em detalhe. Digamos logo que não é
preciso confundir os mitos assim formados com certos
elementos de sistemas filosóficos antigos, a despeito
do apecto às vezes também mítico desses últimos.
Desde que abandona o agnosticismo, o idealismo,
qualquer que seja, cai na fabricação de mitos, porque
está forçado a atribuir às construções puras do espí­
rito um papel de realidade na explicação dos fenô­
menos reais.
Quanto mais um sistema filosófico se aprox.ima
do idealismo objetivo, mais denota essa tendência de
fabricar mitos: o "lch" de Fichte mostra-o mais for­
temente que o "Bewusstsein überhaupt" de Kant e
o "Weltgeist" de Hegel ainda mais claramente que
a construção fichteana. Só que essas construções do
espírito tomadas por realidades contêm ainda, nesse
49
estágio, os elementos de uma exploração completa·
mente leal da realidade. É ainda perfeitamente pos­
sível reconhecer em toda parte os elementos de rea­
lidade dos quais essas construções do espírito são
ao mesmo tempo a primeira revelação e a represen­
tação desfigurada no plano do pensamento. Essas
construções de aparência mítica são apenas, na ver­
dade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do
sol do conhecimento.
A situação é completamente diferente quando
consideramos a filosofia do período imperialista.
Aqui, a construção do espírito, o mito, opõe-se pri­
meiramente ao conhecimento científico; a primeira
missão do mito é dissimular e tornar obscuras as
conseqüências sociais das aquisições da ciência. Desde
o início desse período da filosofia, a mitificação nietz­
scheana assume esse papel em relação às descobertas
do darwinismo. Na época da filosofia clássica, o mito
se apresentava sob o aspecto do próprio conhecimento
científico, ao passo que, na filosofia da fase imperia­
lista, representa uma atitude, uma relação com o
mundo, que seria, por assim dizer, de uma essência
superior à que é acessível ao conhecimento científico
e que vai até mesmo condenar a ciência. A função
social da ideologia, isto é, dos mitos, é, portanto, atual­
mente, a seguinte: sugerir uma concepção do mundo
que corresponda à da filosofia do imperialismo, onde
quer que a ciência se mostre incapaz de oferecer uma
visão de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida
pela ciência, cada vez que esta contradisser a con­
cepção proposta pela filosofia paradoxal do estágio
do imperialismo: a filowfia mantém de um lado a
teoria do conhecimento do idealismo subjetivo her­
dada do agnosticismo, mas, por outro lado, estamos
50
em presença de uma função completamente nova
desse agnosticismo, função que consiste em criar um
novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que
o separa do mito.

6.
INTUIÇÃO E IRRACIONALISMO

O novo objetivismo pressupõe a existência de


um instrumento novo de conhecimento. Umrt das
preocupações essenciais da filosofia moderna consiste
em opor essa nova atitude, esse novo instrumento
do conhecimento, que é a intuição, ao pensamento ra­
cional e discursivo, conquanto na realidade a intui­
ção faça parte, psicologicamente, de todo método cien­
tífico do conhecimento. No plano psicológico, a in­
tuição pretende ser, com efeito, mais concreta e mais
sintética que a reflexão discursiva, que trabalha com
noções abstratas. Sem dúvida, isto é apenas uma
ilusão, porque a intuição, considerada à luz da psico­
logia, nada mais é do que a entrada brusca na cons­
ciência de um processo de reflexão até então sub­
consciente. É evidente que todo pensamento cientí­
fico escrupuloso deve ter por principal missão integrar
esse processo inconsciente no seu próprio sistema ra­
cional. Essa adoção deve ser completamente orgâ­
nica, para que seja quase impossível distinguir a pos­
teriori os resultados da reflexão discursiva dos da
intuição. Estabeleçamos, portanto, de uma vez por
todas, que na realidade a intuição não é o contrário,
mas o complemento do pensamento discursivo e que
seu emprego não poderia ser jamais um critério da
verdade. A observação psicológica superficial da
reflexão científica é que engendra a ilusão seg-uml,,
!, 1
a qual a intuição seria um instrumento independente
do pensamento discursivo e destinado à compreensão
das verdades superiores.
Essa ilusão, que consiste em confundir um método
·subjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva
e que é mantida pelo subjetivismo geral próprio da
filosofia do estágio imperialista, servirá portanto de
base a todas as teorias modernas da intuição. En­
contra-se ainda reforçada por certas falsas referên­
cias ao método dialético. A filosofia subjetiva admite
com efeito de bom grado a origem da polaridade dia­
lética pela via discursiva, conquanto atribua a solução
( devida à síntese) à intuição, que opera num plano
mais elevado. É evidente que é um erro, porque a
verdadeira dialética dá a toda síntese uma expressão
perfeitamente racional e não reconhece a nenhuma
síntese um caráter definitivo e absoluto. O pensamen­
to dialético, que reflete a realidade efetiva, constitui
sempre, por essa mesma razão, tlm sistema discursi­
vo. Eis porque a intuição, enquanto instrumento do
conhecimento ou elemento de uma metodologia cien­
tífica, não poderia encontrar nenhum lugar na dia·
lética. Tudo isto foi aliás explicado claramente por
Hegel, em resposta a Schelling, na introdução da
Fenomenologia.
A filosofia do estágio do imperialismo atribui à
intuição um lugar central na sua metodologia obje­
tiva. A intuição adquiriu esse lugar prepondera11tc,
antes de mais nada porque os filósofos abandonaram
o •formalismo do conhecimento, próprio ao período
precedente. Estavam de fato obrigados a afasta·r-se
dele, porque a própria procura de uma ideologia obri­
gava-os a colocar a questão do conteúdo da filosofia,
enquanto a teoria do conhecimento própria ao idea­
lismo subjetivo esgota-se fatalmente na análise não

52
dialética de noções puramente especulativas. Desdl'
que a reflexão pretenda ultrapassar esses limites, e
almeje o conhecimento filosófico concreto, deve ne­
cessariamente recorrer de um lado à teoria materia­
lista, segundo a qual o pensamento é capaz de refletir
o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema
discursivo universal da dialética. Deve considerar
esse sistema não somente como uma doutrina da cor­
relação estática de entidades do mundo exterior, mas
como uma lei universal da evolução progressiva e
da história racional. A filosofia moderna serve-se do
falso aspecto da intuição para abandonar aparente­
mente tanto o formalismo do conhecimento como o
idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto con­
servando-os sobre bases que parecem inatacáveis.
Nessas condições, o objeto dessa filosofia, a fi­
nalidade ideológica que se propõe atingir, dar-se-á
sempre como uma realidade de essência superior e
qualitativamente diferente daquilo que é acessível à
reflexão discursiva. Graças a esse subterfúgio, a
própria noção da intuição parecerá ser a prova irre­
futável de um conhecimento superior. É aqui que
a negação de toda crítica analítica torna-se uma
questão de vida ou de morte para a filosofia nova.
Nos sistemas filosóficos antigos desse gênero e mes­
mo em certa místicas religiosas antigas, a defesa da
i�tuição estava assegurada por uma teoria aristo­
crática do conhecimento. Essa última afirma, desde
o início, que todo o mundo não é suscetível de com­
preender a realidade superior de uma maneira intui·
tiva. Aquele que procura encaixar as descobertas in­
tuitivas num quadro racional prova, por consegumte,
que não é capaz de ascender à realidade superior por
via intuitiva.
53
Como não pensar no conto de Andersen, onde
os que não vêem o traje maravilhoso do rei - que
na verdade passeava completamente nu - eram pro­
clamados desonestos? A teoria do conhecimento da
intuição presta aliás serviços apreciáveis, porque as
"realidades" apreensíveis pela intuição são de na­
tureza arbitrária e incontrolável. Órgão de um co­
nhecimento pretensamente superior, a intuição serv·e
ao mesmo tempo para justificar o arbitrário.
Uma rápida recapitulação nos permitirá melhor
compreender o essencial da filosofia no estágio do im­
perialismo. A filosofia do período clássico colocava
o problema da ideologia sob o signo do conhecimento
científico. Em outras palavras, sua ideologia era a
ideologia da ciência. A filosofia do período de tran­
sição traçava-se limites intransponíveis justamente
onde terminava o conhecimento registrado pelas ciên­
cias especializadas. A filosofia no estágio do impe­
rialismo aceita êsses limites, pretendendo criar uma
nova ideologia supracientífica ou anticientífica, gra­
ças à intuição, novo instrumento do conhecimento.
Essa nova ideologia procura antes de tudo des­
tronar a razão. Os precursores dessa orientação são
Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o roman­
tismo filosófico. Dilthey é o homem da transição
para a nova época da qual Nietzsche, Bergson, Spen­
gler, Klages e enfim o existencialismo marcam as
etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base,
no plano da teoria do conhecimento, é sempre o ag­
nosticismo e o relativismo que o acompanha. A única
diferença é que a nova filosofia vai mais longe que
a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racio­
nal. Simmel, em um dos seus livros, esboça uma crí­
tica do conjunto dos últimos resultados da ciência
atual, para compará-la às críticas que formulava o

54
racionalismo nascente contra as superstições da Ida­
de Média e conclui que temos todas as razões para
crer que os séculos que virão terão de nossas ciências
uma opinião análoga àquela que temos das crenças
supersticiosas da Idade Média. Esse agnosticismo
relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz
em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor
central é o anti-racionalismo, e até o irracionalismo
ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidades
supra-racionais. Antes da primeira guerra mundial,
Bergson foi o precursor em maior evidência dessa
filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, trans­
formou o irracionalismo em uma filosofia concreta
da história, a qual terminou por levar, através de
Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do
fascismo.
Analisando os objetos propriamente ditos desse
supra-racionalismo, veremos os laços estreitos que o
ligam a sistemas filosóficos mais antigos. Veremos
também que no fundo apenas atualiza certos pontos
fracos da filosofia burguesa. Toda filosofia antidia­
lética, portanto desprovida de compreensão verdadei­
ra para a história, engana-se sobre a realidade ao
fazer do presente uma "lei eterna" ou uma "exis­
tência eterna". Na época em que florescia a fé em
um capitalismo eterno, era regra, mesmo para os
historiadores com tendências empiristas, projetar so­
bre toda a história as noções essenciais do capitalismo
(por exemplo Mommsen). A moral abstrata da filo­
sofia kantiana reforçava estas concepções. No mo­
mento da crise do imperialismo, quando tudo vacila
e tudo está em vias de desmoronar, a "intelligentzia"
burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela
acreditava eternas, encontra-se diante de uma alter­
nativa filosófica. De um lado, deve reconhecer-se

55
incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade.
Neste caso, a própria realidade não estaria privada
de seu caráter racional, o que provaria a falência do
pensamento burguês. Ora, a burguesia não pode
reconhecer sua falência porque seria preciso então
aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa
deve fatalmente se orientar em direção ao outro ter­
mo da alternativa e declarar a falência da razão. A
filosofia está em condições de cumprir esta operação,
considerando a razão como urna atitude subjetiva
relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado,
abriria a todo instante brechas nesta razão subjetiva
(cf. Scheler, Benda, Valéry, "a impotência da ra­
zão"). É necessário entretanto reconhecer que este
esquema não corresponde à orientação geral da filo­
sofia da crise. Segundo os pensadores em maior evi­
dência, nessa época, na verdade a razão não existe,
a verdadeira realidade, a realidade superior, é irra­
cional e supra-racional. O dever da filosofia é antes
de tudo levar em conta este dado fundamental da
existência humana e é assim que se constitui o irra­
cionalismo, ideologia da filosofia da crise.
A evolução em direção a este objetivo está tam­
bém sublinhada e acelerada pelo fato de que o capi­
talismo, e em particular o imperialismo, destrói ou
pelo menos restringe de uma maneira extrema toda
margem de liberdade necessária ao desenvolvimento
da personalidade. O exame abstrato deste problema
abre possibilidades a duas reações diferentes. É, de
um lado, perfeitamente possível explicar esta situação
a partir da ordem social e econômica do capitalismo
e daí tirar as conseqüências que se impõe. Nos pri­
mórdios do período imperialista, esta atitude está
presente, se bem que sob formas bastante incertas,
como por exemplo no ataque romântico de Nietzsche

56
contra a cultura capitalista, na "Kulturkritik" geral
de Simmel e em sua teoria do "trágico da cultura".
Mas todas estas formas incertas terminam por atin­
gir um "terceiro caminho", isto é, uma apologia indi­
reta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a
visão mítica de uma sociedade nova ocupa o primeiro
plano, em Simmel o retorno do indivíduo sobre si mes­
mo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se
facilitados pelo fetichismo rígido que reina na socie­
dade capitalista. Simmel utiliza-se desse "racionalis­
mo" frio do mundo capitalista fetichizado, como de um
trampolim, para chegar ao irracionalismo pretensa­
mente superior de uma existência puramente indivi­
dualista.
É aqui que encontramos o elemento mais impor­
tante da ideologia irracionalista: transformar, misti­
ficando-a, a condição do homem do capitalismo impe­
rialista em uma condição humana geral e universal.
O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento
do método. Tudo que é social, racional e conforme
às leis da evolução será declarado inumano e inimigo
da personalidade. A personalidade será declarada
anti-racional e irracional por sua própria natureza.
Notemos de passagem, que as origens desta atitude
já se encontram entre os primeiros neokantianos,
tais como Windelband e Rickert. As diversas varian­
tes mistificadas desta atitude correspondem por sua
vez perfeitamente às necessidades universais da épo­
ca, que se resumem sob o signo do "terceiro cami­
nho". Com efeito, desde que se conseguiu opor a
razão, inumana e inferior, à realidade superior, hu­
mana e irracional, capitalismo e socialismo apresen­
tam-se como duas entidades inteiramente semelhan­
tes, que se colocam num mesmo plano, posto que am­
bas foram criadas pela fria razão. Ambos, contudo,
57
devem ser combatidos, em nome da personalidade,
categoria puramente individual ( cf. Klages, o círculo
de Stefan George). É necessário acrescentar que
o fascismo adota integralmente esta metodologia,
limitando-se somente a completá-la com algumas ex­
posições grosseiramente demagógicas? ...

7.
OS SINTOMAS DA CRISE

Examinemos agora, sumariamente, a metodolo­


gia do irracionalismo. Hegel já demonstrou que desde
que se descubram as contradições necessárias da razão,
isto é, do pensamento discursivo, o problema que se
coloca apresenta-se sob o aspecto imediato do irra­
cional. É à dialética que cabe agora a tarefa de colo­
car em evidência a síntese superior dos termos contra­
ditórios, e quando se des�ncumbe bem desta tarefa_
podemos verificar que a razão superior resulta pre­
cisamente das antinomias necessárias do raciocínio
discursivo, as quais haviam produzido uma aparência
d_e irracionalidade.
Mas, como vimos, o método dialético não tem
lug·ar na filosofia do período imperialista. Esta se
detém, com efeito, simplesmente na irracionalidade
que se manifesta nas contradições necessárias da ra­
zão discursiva. Transforma a questão colocada, des­
figurando-a, em resposta e, da contradição que en­
cerra a posição provisória do problema, fabrica dois
mundos distintos: de um lado, a razão impotente e
1 desumana e, de outro, a "realidade ininteligível e "su­
l perior" que só é acessível à intuição.

58
As relações das c1encias especializada-;, as qm·
foram produzidas pela divisão capitalista do trabalho,
apresentam o mesmo problema. Na sociedade em qttl'
vivemos, as ciências especializadas estão, com efeito,
rigorosamente separadas umas das outras. Cada uma
delas possui seu próprio método formalista, baseado
nas categorias não dialéticas do entendimento. Eis
porque certas correla�ões que qualquer uma das ciên­
cias especializadas pode perfeitamente bem tratar,
conquanto dependente de seu dominio, não podem
ser consideradas por uma outra ciência especializada
senão como dados irracionais. A filosofia do direito
do neokantiano Kelsen fornece um exemplo carac­
terístico deste fenômeno. Examinando o problema
do direito, problema que a sociologia da época podia
bem ou mal tratar, Kelsen viu-se obrigado a concluir
que as origens de toda legislação constituem para a
ciência do direito "um gr.ande mistério". A validade
formal do direito de que trata a dência jurídica tor­
na-se contudo um mistério inteiramente análogo para
os economistas burgueses ...
A necessidade social de uma ideologia unificada
dá origem, a fim de suplantar estas necessidades
especulativas, à teoria das ciências e ao seu quadro
histórico. Contrariamente aos filósofos menores do
período precedente, procura-se a totalidade e a uni­
dade. Mas, como o demonstramos, os pesquisadores
seguem um caminho falso. Na realidade, seria per­
feitamente possível estabelecer a base comum de to­
das as ciências pelo estudo da evolução da sociedade,
determinada pelo fator econômico. Ora, é evidente
que o pensamento burguês moderno não pode adotar
esse caminho, que conduziria à reforma de todas as
ciências pelo método da dialética materialista. ()
59
estágio do imperialismo não soube e não quis resolver
as contradições fundamentais, encontradas pelas
ciências especializadas oriundas da divisão capitalista
do trabalho, devido a sua metodologia antidialética.
Não pode resolvê-las porque, como já vimos, retomou,
sem modificação o idealismo subjetivo, que é a base
filosófica da metodologia das ciências especializadas.
É unicamente na mitificação das relações irra­
cionais que a síntese especulativa seria capaz de ofe­
recer qualquer coisa de novo. Desde a "intuição ge­
nial" de Dilthey, a intuição tornou-se o método es­
sencial da síntese especulativa. Deu origem a toda
uma série de símbolos míticos e fetichizados que
uma nova mitificação converterá em figuras preten­
samente reais, mas puramente individuais e irra­
c10na1s.
Afinal, tudo isto só leva a pseudo-soluções, às
vezes muito espirituais, de todos os problemas da filo­
sofia. O arbitrário "genial" da intuição, torna-se
o método geral da filosofia. Se Nietzsche não fez
nenhum esforço para camuflar este arbitrário, mais
tarde tudo foi tentado para dar-lhe uma aparência de
objetividade. Esse mascaramento atinge sua forma
mais refinada quando a fenomenologia puramente es­
peculativa torna-se a assim chamada contemplação
da realidade, isto é, a ontologia existencialista. A
solução é, entretanto, apenas uma pseudo-solução,
porque a despeito de todos os métodos novos, todos os
mitos brilhantes ou sombrios e "profundos", os gran­
des problemas da filosofia permanecem todos sem
resposta e pode-se mesmo dizer que, em relação ao
período clássico, a filosofia moderna representa, sob
muitos aspectos, um recuo considerável.

60
Entre as grandes questões que a filosofia 11111-
derna se mostra decididamente incapaz de resoln·r,
citamos em primeiro lugar o das relações entre o
pensamento e a realidade, questão inseparável ela
estrutura interna da lógica. O triunfo do irraciona­
lismo representa igualmente um recuo, porque, para
o irracionalismo, a contradição entre a reflexão ló­
gica não dialética e a realidade se apresenta como
uma contradição absoluta e insuperável. O irracio­
nalismo significa, então, de um lado, a justificação fi­
losófica dos mitos arbitrários, e de outro, a submersão
da filosofia especulativa na lógica formal. É precisa­
mente a reivindicação da superioridade da intuição
que encerra a filosofia na prisão dessa lógica formal.
da qual a dialética da filosofia clássica já havia con­
seguido escapar.
O problema da liberdade e do determinismo é
da mesma ordem. Conquanto a filosofia clássica e,
em primeiro lugar, Hegel tenham conseguido escla­
recer, em larga medida, as relações que unem esses
dois termos, encontramo-nos hoje em face de uma
noção abstrata, hipostasiada e absurda da liberdade,
oposta a um fatalismo rígido e mecânico. Nietzsche,
Spengler e ultimamente Sartre ilustram perfeitamen­
te nossa tese. A "concepção do mundo" fascista é
apenas a caricatura desta dualidade abstrata e rígida,
que se tornou absurda.
O fascismo representa, com efeito, a crise da
filosofia burguesa moderna. Só que esta cari­
catura foi ao mesmo tempo uma realidade sangrenta
que não durou muito tempo. E é talvez um dos
sintomas mais importantes da crise da filosofia bur­
guesa o ter dado origem à pretensa ideologia do fas­
cismo, da qual a única contribuição consiste em uma
61
vulgarização demagógica da filosofia burguesa do es­
tágio do imperialismo, tal como s� encontra origi­
nàriamente em Nietzsche. É ainda pela mesma razão
que, no plano ideológico, só o materialismo dialético
desenvolveu uma resistência ativa contra o fascismo.
Certamente, o humanismo antifascista levantou mui­
tas vezes seu protesto contra certos fatos do fascis­
mo e mesmo contra o fato bárbaro do próprio fas­
cismo, sem poder entretanto opor aos mitos arbitrá­
rios e à pretensa ideologia do fascismo uma ideologia
progressista e eficaz, que fosse verdadeiramente dig­
na desse nome.
No plano social, a única diferença entre o exis­
tencialismo francês e o pré-fascista Heidegger é a
seguinte: o existencialismo levantou seu protesto ar­
bitrário não contra o conjunto da crise, mas contra
o fascismo em particular. Mas seu protesto perma­
nece também abstrato, e isto não se deve ao acaso.
A maior parte dos pensadores antifascistas partem
com efeito, ideológica e metodologicamente, do mes­
mo plano que seus adversários. Salvar Nietzsche
ou Schopenhauer, tornando-os pensadores humanistas,
era uma operação destinada ao fracasso frente ao
fascismo, que tinha a vantagem, a despeito de toda
a sua vulgaridade, de ser seu verdadeiro continuador
espiritual.
A crise da filosofia burguesa ainda perdura. O
fato de que a libertação, o fim do terror intelectual
do fascismo, não pôde produzir uma mudança na
filosofia burguesa, denuncia a crise. Contrariamente
à vanguarda da literatura, a filosofia burguesa en­
contra-se exatamente no ponto em que estava no
momento do surgimento do fascismo. Desse ponto
de vista, o existencialismo é também uma das mani-
62
festações da crise. É somente o materialismo dialé­
tico que anima com vida real os problemas do mundo
novo e que os integra organicamente em sua ideo­
logia.
Ninguém poderá prever, no momento, quanto
tempo a sociedade capitalista pode ainda durar e em
que momento o socialismo a sucederá. Mas nada
indica que a burguesia seja ainda hoje capaz de criar
uma ideologia autônoma, universal e progressista.

63
Capítulo II

11. DA FENOMENOLOGIA AO
EXISTENCIALISMO
"Tudo se passa como se o mundo, o
homem e o homem-no-mundo conse­
guissem realizar apenas um Deus
imperfeito."
(J.-P. Sartre: L'Être et le N�ant)

Sem dúvida nenhuma, o existencialismo tornar­


se-á dentro em breve a corrente espiritual dominante
dos intelectuais burgueses de nosso tempo. Essa
evolução prepara-se há muito tempo. Depois do apa­
recimento de Seio und Zeit, de Heidegger, a vanguar­
da espiritual vê no existencialismo a promessa de
um renascimento da filosofia e a expressão adequada
da ideologia da nossa época. Desde antes do fim
da guerra, o existencialismo havia invadido o Oci­
dente. Durante os anos da luta sangrenta e sem
mercê contra a Alemanha, os existencialistas alemães
65
mais evidentes, assim como o precursor de seu mé­
todo, Husserl, fizeram grandes conquistas na França
e na América, e até na América Latina. A obra fun­
damental do existencialismo ocidental, a que citamos
em epígrafe neste capítulo, apareceu em 1943 e, desde
essa data, assistimos à marcha triunfal e irresistível
do existencialismo, nas discussões filosóficas, nas re­
vistas especializadas, assim como nos romances e pe­
ças de teatro.

1.

O MÉTODO ENQUANTO COMPORTAMENTO

Trata-se de uma moda passageira, destinada a


durar no máximo alguns anos, ou antes uma filosofia
nova, fadada a fazer época? A questão não poderia
ser decidida, em última instância, senão pelo exame
das razões de ser dessa nova filosofia; em outras
palavras, será necessário saber de início a profun­
didade, na alma dos protagonistas, da representação
do mundo que tomaram por base de sua nova ideolo­
gia e como esta coloca e apreende os problemas es­
senciais com os quais se debate a humanidade atual.
Será preciso portanto medir o lugar que o objeto
dessa filosofia nova pode e deve ocupar na vida do
homem; será preciso examinar seu método enquanto
comportamento humano. Qual é o ponto de partida
dessa filosofia, para quais objetivos se dirige, o que
apreende no caminho de sua evolução? Abarca a
totalidade da existência humana, como seria o caso,
nos limites específicos de sua época, para cada um
dos grandes sistemas filosóficos, ou antes oferece-nos
apenas uma representação fragmentária e desfigu­
rada do mundo, constituída sob o signo de um parti-

66
pris, próprio a uma camada social sem base profunda?
Tais são as questões às quais será preciso procurar
a resposta, pois é somente assim que saberemos se
nos encontramos em face de uma preocupação passa­
geira ou de uma filosofia nova, destinada a durar.
Uma crítica filosófica puramente universitária, que
não incorporasse as considerações que precedem, se­
ria apenas vã pedanteria. (Não queremos repetir o
exemplo daqueles que reprovam à dialética hege­
liana seus "erros de lógica".)
Todas as grandes filosofias que marcaram época
na história do pensamento fundavam-se no emprego
de um método original. Assim foi para Platão e
para Aristóteles, para Descartes, Spinosa, Kant, He­
gel e tantos outros. Vejamos portanto a originalidade
do método existencialista. Declarar que o existen­
_ciali-ª_llJO deriva da _f_enornenologia de Husserl não se-
ria urna resposta satisfatória à questão que coloca­
mos. Quem sonharia aliás contestar a originalidade
de Spinosa, invocando os empréstimos· que lhe fez
Descartes? Husserl não foi existencialista, mas o
método fenomenológico influenciou profundamente o
existencialismo.
A questão essencial é entretanto saber quais
foram as contribuições verdadeiramente novas des­
se método. Repetimos que esse problema não depende
da filosofia enquanto ciência especializada, mas do
exame da atitude da filosofia enquanto comporta­
mento humano abstrato, em face das grandes ques­
tões da humanidade de nosso tempo. Considerando
a questão desse ângulo, veremos que a fenomenologia
moderna é um desses numerosos métodos filosóficos
que se propõem ultrapassar tanto o idealismo como
o materialismo, engajando-se num "terceiro cami­
nho" do pensamento e fazendo da intuição a font1..·
67
de todo conhecimento verdadeiro. Desde Nietzsche,
passando por Mach e Avenarius até Bergson e mes­
mo além, a maior parte dos pensadores burgueses
modernos orientam-se nesse sentido. A Wesensschau
de Husserl representa apenas uma etapa dessa re­
volução.
Essa constatação por si própria não poderia en­
tretanto constituir um argumento decisivo contra o
método fenomenológico. Para poder responder à nos­
sa questão, é necessário primeiramente apreciar no
seu justo valor filosófico e histórico o "terceiro cami­
nho" e determinar o lugar da intuição no processo
do conhecimento.
Existe um "terceiro caminho" fora do idealismo
e do materialismo? Para quem considera a questão
de modo sério, no espírito das grandes filosofias do
passado, desdenhando as frases ocas de certos pensa­
dores modernos, a resposta só pode ser negativa. Há,
com efeito, duas possibilidades: primado da existên-
. eia sobre a consciência ou inyersamente primado da
consciência sobre a existência. 1 Os sistemas filosóficos
em voga, que se orientam para o "terceiro caminho",
colocam habitualmente a correlação da existência
e da consciência, proclamando que uma não poderia
existir sem a outra. Por essa afirmação chega-se a
expulsar o idealismo pela porta, para fazê-lo voltar
pela janela, porque admitindo-se que a existência não
pode existir sem a consciência, abandona-se o materia­
lismo, segundo o qual a existência é independente da
consc1enc��- \
Tal é a cruel realidade do período imperialista
que impôs aos pensadores burgueses o "terceiro ca­
minho" nas suas pesquisas filosóficas. O idealismo
intransigente não pode afirmar-se abertamente senão
68
em uma época de estabilidade sem choque. Lembre­
mo-nos da anedota de Goethe sobre o idealismo sub­
jetivo de Fichte. Um dia, no transcurso de uma
manifestação na Universidade, os estudantes quebra­
ram as janelas de seu professor e Goethe aproveitou
para declarar: "Eis uma ocasião bem desagradável
para Fichte convencer-se da realidade do mundo ex­
terior".
� Este incidente material anódino foi seguido, no
domínio espiritual, de destruições de uma amplitude
sem precedente na história. Uma das primeiras ví­
timas dessas destruições foi o idealismo filosófico
sincero. Abstração feita de alguns pensadores tão
oficiais quanto insignificantes, os últimos idealistas
foram freqüentemente invadidos por uma resignação
profunda e foram obrigados a reconhecer a falência
do idealismo em face do mundo real (Valéry, Ben­
da etc.).}.{
,; O ascetismo pequeno-burguês dos idealistas de
meados do último século deveria igualmente contri­
buir para preparar o declínio do antigo idealismo.
Vimos que desde Nietzsche, o corpo reconquistou di­
reito de cidadania na filosofia burguesa. Q_pensa­
�nento moderno exige um aparelho conceituai próprio
para demonstrar e para manter a realidade primor­
dial das alegrias terrestres e da vida corajosa, sem
entretanto fazer a menor concessão ao materialismo.
Essa reserva é de uma importância capital, pois ao
passo que florescia esse novo idealismo, o materialis­
mo deveria tornar-se a ideologia do proletariado re­
volucionário. A posição de um Gassendi ou de um
Hobbes tornou-se então indefensável para os pen­
sadores burgueses. Em suma, foi preciso abandonar
o método do idealismo, mas salvaguardando todos os
seus resultados e seus fundamentos: eis a necessidade
69
histórica do "terceiro caminho" na existência e na
consciência burguesa no decorrer do período impe­
rialista. i
-,... A fenomenologia, especialmente na sua evolução
após Husserl, acreditou descobrir na Wesensschau
um instrumento de conhecimento capaz de apreender
a essência da realidade objetiva, sem no entanto ul-
__trapassar a consciência humana, mesmo a individual.
\A Wesensschau é urna espécie de introspecção intui­
tiva, que não tem por objeto o processo de reflexão
em si mesmo, enquanto processo psicológico, mas a
estrutura dos objetos desse processo, e a natureza do
ato abstrato pelo qual a reflexão põe seu objeto. É
assim que se constitui a noção fenomenológica do ato
e do objeto intencionai�_:J�-
:)'!' Esse método convinha bem a Husserl, que se
consagrou exclusivamente às questões de lógica pura.
O emprego do método é muito menos justificável em
Scheler, que se volta para os problemas da moral e
da sociologia, ou em Heidegger e Sartre, que estudam
os últimos problemas da filosofia. Seria, com efeito,
perfeitamente possível perguntar-se se esse método
está ou não apto a apreender a realidade objetiva e
se não é em si mesmo subjetivo e arbitrário por sua
natureza�-1·
9' Quando se trata das questões decisivas da rea­
lidade social, os fenomenólogos facilmente resvalam
para os problemas essenciais da teoria do conheci­
rnen to. Têm o hábito de apaziguar seus escrúpulos
teóricos, declarando que o próprio do método fenome­
nológico consiste em "pôr entre parênteses" o pro­
blema da realidade do objeto intencional. A aplicação
rigorosa desse método mostra-nos que o conhecimen­
to da realidade é simplesmente inacessível à feno­
menologia.�

70
Em Heidelberg, onde Scheler veio ver-me duran­
te a primeira guerra mundial, tivemos uma conversa
muito interessante e muito característica sobre esse
-� assunto. Scheler dizia que sendo um método uni­
versal, a fenomenologia pode tomar tudo por objeto
intencional. Assim por exemplo, disse ele - pode-se
·proceder perfeitamente ao exame fenomenológico do
Diabo, colocando anteriormente entre parênteses o
problema de sua existência.
Muito bem, disse eu. Em seguida, quando a
análise fenomenológica do Diabo está terminada, res­
ta-lhe só suprimir o parênteses e eis que o diabo surge
diante de nós .. .
Scheler riu, ergueu os ombros e não respondeu
nada.
'< O que a intuição fenomenológica apreende é ver­
dadeiramente a realidade? Com que direito a feno­
menologia fala da realidade de seu objeto? Essas
questões esclarecem cruamente o arbitrário do mé­
todo. Como explicar que ninguém tenha sonhado
até o presente em ressaltar o fato espantoso de
que as "realidades" descobertas pelos representantes'
mais conhecidos do método intuitivo eram muito di­
ferentes umas das outras por seu tipo e sua estru­
tura? A intuição de Dilthey descobre, por exemplo,
a "cor" do processo histórico, a de Bergson identifica
a realidade à própria continuidade, isto é, à duração
que dissolve as formas rígidas da vida cotidiana; a
de Husserl, em compensação, chega a justapor de
maneira rígida, e por assim dizer espacial, as catego­
rias lógicas do existente. Contentavam-se com uma
harmonia relativa que reinava no interior de cada
escola sobre a natureza dessa realidade. Além do
mais, os partidários de intuições completamente
opostas cooperavam num espírito bastante amistoso...
71
:· Essa situação espantosa explicava-se tanto pela
necessidade do "terceiro caminho", quanto por ra­
zões ideológicas precisas. A tendência dominante
da filosofia no estágio do imperialismo consiste em
negligenciar as condições sociais, em considerá-las co­
mo dados secundários, não afetando quase "a es­
sência da realidade humana". A Wesensschau, que
toma por ponto de partida absoluto os dados ime­
diatos da experiência vivida, sem analisar sua estru­
tura e suas condições, para chegar às suas últimas re­
velações abstratas, podia facilmente aparentar total
objetividade científica. É assim que se constituiu um
mito lógico que convinha, magnificamente, à atitude
da "intelligentzia" burguesa de hoje: o mito de um
mundo que se pretende objetivo, do qual o pensador
proclama a existência independente da consciência -
um mundo que a consciência contenta-se em conhecer
e não em criar, como nos idealistas do passado -
mas um mundo cuja estrutura e essência não deixam
de ser determinadas pela consciência individual. '/.
Para esboçar uma crítica ao método fenomeno­
lógico, tentaremÓs uma análise sumária de um exem­
plo de sua aplicação� Escolhemos a obra intitulada
Wissenschaft ais Philosophie, de Wilhelm Szilasi,
· discípulo bem conhecido de Husserl e de Heidegger.
Escolhemo-lo de propósito, porque Szilasi é um pen­
sador sério, imbuído de objetividade científica, e não
um fabricante de mitos como Scheler.� Por outro
lado, o exemplo que oferece presta-se muito bem a
ser tratado brevemente.
-f Szilasi começa seu curso submetendo a um exame (0:,,
fenomenológico o "ser-com-outro" (Miteinandersein) \,.,;_\-,·
dele mesmo e de seus auditores. A Wesensschau t
dá-lhe a seguinte imagem "objetiva" do mundo exte-
rior, isto é, da sala onde se encontra: " ...esse espaço
72
com suas tábuas trabalhadas de diversas maneiras
não constitui uma sala de aula senão porque nós da­
mos esse sentido preciso a esse amontoado de ma­
deira. Fazêmo-lo porque esse sentido está a priori
em estreita correlação com nossa tarefa comum".
E, partindo dessas constatações, Szilasi deduz o que ,/í. ::,.i,.,\.�'·
segue: "A situação atual do Miteinanders�in deter- ��.,-;
mina sempre a priori o Wassein".Jr l''º -Jt
Seria útil submeter esses resultados da We -"·:�;:',\",
sensschau a um pequeno- exame metodológico. [Cons- · ,,
tatemos primeiramente que o fato de ver numa sala ".'
de aula "tábuas trabalhadas de diversas maneiras",
em lugar de dizer simplesmente que estão lá mesas
ou carteiras, é uma abstração artificial e primitiva.
É certamente inevitável do ponto de vista do método
empregado, pois se Szilasi declarasse simplesmente
que, por sua instalação, a sala de aula presta-se igual­
mente a ser o teatro de conferências lingüísticas, ma­
temáticas etc., destruiria automaticamente o efeito
mágico próprio à noção de experiência intencional,
isto é, a criação a priori do Wassein]
Apressemo-nos entretanto em acrescentar que o
que falta nessa análise é muito mais importante do
que o que nela figura. A sala de aula em questão
encontra-se em Zúrique e a conferência que nós ci­
tamos ocorreu por volta de 1940. Szilasi dá sua con­
ferência em Zúrique e esse fato é função de diversos
dados de ordem social. Antes do advento de Hitler,
Szilasi ministrava seus cursos em Friburgo. Em 1933,
foi suspenso, e alguns anos mais tarde, teve de deixar
a Alemanha,
' onde sua segurança pessoal estava amea-
çada. L_Por que a "contemplação da essência do Mi-
telnandersein" era incapaz de abarcar e de revelar
esse conjunto de dados que são entretanto ao m�nos
73
tão essenciais como as tábuas trabalhadas de diversas
maneiras?...l
Mas volt�mos um instante às nossas tábuas. '!b
fato de que estas puderam ser transformadas em me- ;), ,,,.
sas, carteiras etc., supõe um certo grau de desenvol- ·1 .-·

vimento da indústria e da própria s:::>ciedade. Seu , •


estado e a condição de conjunto da sala - aqueci­
mento, janelas, ventilação, iluminação etc. - são por
sua vez inseparáveis de outros fatos e conjuntos de
natureza social. ( Poderíamos continuar ao infinito.
,- Portanto não é necessário aprofundar muito a
· crítica especulativa do método fenomenológico para
constatar que, mesmo �tre seus partidários mais sé-
! rios e mais objetivos, esse método chega a opor a
consciência do indivíduo isolado ao pretenso caos das
coisas e dos homens, porque, sem confessá-lo, faz
abstração de todo elemento social. Portanto, somen­
te o sujeito pensante é suscetívei d� criar uma ordem
objetiva nesse caos. Em definitivo, o famoso "tercei­
ro caminhá" que julgou ultrapassar o materialismo e
o idealismo, assim como a não menos famosa objeti­
vidade da fenomenologia, levam-nos e:x;a.tamente ao
neokantismo.
A fenomenologia e a ontologia que dela deriva
ultrapassam apenas em aparência o solipsismo epis­
temológico do idealismo subjetivo. Contentam-se sim­
plesmente em substituí-lo por um solipsismo ontoló­
gico, graças a uma nova definição dos mesmos pro­
blemas. Exatamente como há quarenta anos, quan­
do os discípulos de Mach acusavam-se mutuamente
de tender para o idealismo e cada um deles estava
convencido de ser o único a ter realizado o famoso
"terceiro caminho", os existencialistas atuais acusam­
se, também, de tendências idealistas. Assim por
exemplo, segundo Sartre, Husserl - por quem tem

74
aliás a mais alta estima - não teria superado o kan·
tismo. Quanto a Heidegger - que estima igualmcntl'
-·- eis como fala dele: "0 "ser-com," (mitsein) conce­
bido como estrutura de meu ser, isola-me tão segura­
mente quanto os argumentos do solipsismo... Seri� inú­
til, conseqüentemente, procurar em Seih tJrid\ 'Z�it a
superação de todo idealismo e de todo realismo"
•.·,) t- (L'être et le Néant, p. 306). A palavra realismo pode
aliás ser substituída por materialismo, sem nenhum
risco de confusão.
O exame da filosofia de Sartre mostrará que esta
se expõe ao ataque das mesmas acusações por ele
dirigidas contra Husserl e contra Heidegger. Já em
,J) ' r �- Heidegger, o Dasein não é uma modalidade objetiva
da existência, mas uma forma da existência ( da cons­
ciência) humana. Ora, Sartre está preocupado bem
mais que seu predecessor com a relação vivida entre o
homem e a natureza, em muitas ocasiões a natureza
sob a dependência da consciência. Numa passagem
de sua obra, declara que a natureza ignora a destrui­
ção e conhece apenas a transformação. "E mesmo
essa expressão é imprópria, pois, diz ele, para pôr
a alteridade, é necessário um testemunho que possa
reter o passado de alguma forma e compará-lo ao
presente sob a forma de não-mais" (Ibid., p. 43). E,
noutra passagem: "Quando olho esse quarto-crescen­
te, a lua cheia está no meu futuro como "no mundo"
que se revela à realidade humana: é pela realidade
humana que o Futuro chega ao mundo" (lbid., p. 168).
Eis-nos aqui, portanto, por um desvio, de volta ao
bravo bispo Berkeley ...
Essa tendência perfeitamente idealista é ainda
sublinhada pela natureza das considerações de Sartre
que afetam bem mai,s freqüentemente que as de Hei­
degger as questões precisas do "ser-com-outro". Li-
75
vra-se da dificuldade, escolhendo seus exemplos entre
os "ser-com-outro" suficientemente fortuitos para
poderem ser reduzidos, de uma maneira bastante plau­
sível, a experiências vividas do eu ( encontro no café,
viagem no metrô etc.). Quando acontece-lhe aflorar
um dado efetivamente social ( o trabalho, a consciên­
cia de classe), descarta-se logo de seu próprio método
e declara: " ...que essa experiência é de ordem psico­
lógica e não ontológica" (lbid., p. 496). Em outrãs
palavras, se Scheler estava prestes a suprimir o pa­
rênteses no caso do Diabo, Sartre recusa-se a dar
esse passo em relação ao trabalho e à consciência de
classe. Só os iniciados da contemplação da essência
poderiam dizer com que direito um e outro agem
assim.
Não é portanto ocasionalmente que examinando
as relações que unem o indivíduo a seus semelhantes,
Sartre possa dar importância ontológica apenas ao
amor, à linguagem, ao masoquismo, à indiferença, ao
desejo, ao ódio e ao sadismo. É tudo. (A ordem des­
sas categorias é também a de Sartre.) São somente
essas as relações humanas, segundo Sartre, que fazem
parte do para-si. Tudo o que ultrapasse essas cate­
gorias no plano do ser-com-outro, isto é, a vida co­
letiva, o trabalho coletivo, a luta travada em conjunto,
são apenas, para Sartre, categorias psicológicas, ou
seja, que concernem só à consciência e não pertencem
à realidade humana, à ontologia.
Tudo isto, traduzido em linguagem clara, leva a
lugares comuns de uma banalidade perfeitamente pe­
queno-burguesa. No seu escrito polêmico intitulado
L'Existencialisme est un Humanisme, Sartre pergun­
ta-se em qual medida o homem que age livremente
pode contar com seus camaradas. E eis a resposta:
76
" ...contar com a unidade e com a vontade desse par­
tido é exatamente contar com o fato de que o trem
chegará na hora ou que o trem não descarrilará. Mas
não posso contar com homens que não conheço, fun­
dando-me na bondade humana ou no interesse do
homem pelo bem da sociedade, uma vez que o homem
é livre e que não há nenhuma natureza humana em
que eu possa confiar" (L'Existentialisme est un Hu­
manisme, p. 52). Salvo a terminologia um pouco es­
pecial e complicada, as considerações que acabamos
de citar poderiam ser feitas por qualquer pequeno­
burguês, pouco importando quem fosse.

2.
O MITO DO NADA
"É absurdo que tenhamos nascido, é
absurdo que tenhamos de morrer''.
(J.-P. Sartre: L'Être et le Néa,nt)

Seria um erro crer que esse estreitamento abstra­


to da realidade e essa desfiguração idealista pudessem
ser o efeito, num pensador de elite, de uma intenção
consciente de enganar seu mundo. Ao contrário:
pode-se dizer que as experiências vividas, sobre as
quais se funda o comportamento que se manifesta pe­
la intuição da Wesensschau, são tão sinceras e es­
pontâneas quanto possível. É evidente no entanto,
que essa sinceridade não poderia ser a garantia de
sua verdade objetiva. Sua espontaneidade atesta mes­
mo a sujeição absoluta, e desprovida de toda crítica,
dessas experiências vividas a esse fenômeno funda­
mental da sociedade capitalista que é o fetichismo.
77
A existência humana tornou-se insignificante. Os
laços profundos que mantêm a unidade da existência
se relaxam, o homem perde sua personalidade e a
própria vida obriga-o a tomar consciência desse fato.
É a história de Peer Gynt que descascando a cebola,
encontra apenas camadas sucessivas, sem poder che­
gar à "cebola em si mesma" ...
O indivíduo é, portanto, finalmente obrigado a se
colocar a seguinte questão: como dar um sentido à
minha existência? O homem que vive num mundo
fetichizado ignora que a riqueza, o valor e o conteúdo
verdadeiro de sua existência encontram-se em ramifi­
cações numerosas e profundas que o ligam à exis­
tência de seus semelhantes e à da sociedade. O indi­
víduo isolado e egocêntrico que vive só para si, vive
num mundo empobrecido. Quanto mais suas expe­
riências pertencem-lhe exclusivamente, mais são ex­
clusivamente interiores e mais correm o risco de per­
der todo conteúdo e de se perder no nada.
O homem que vive num mundo fetichizado não
pode vencer o vazio interior senão por uma espécie
de embriaguez contínua, assim como o morfinômano
não vê saída senão no aumento da dose, quando seria
o caso para ele de reorganizar sua vida de tal maneira
que não tivesse mais necessidade de seu veneno. Eis
porque o homem que vive num mundo fetichizado não
poderia reconhecer que foi a perda de todo contacto
com a vida pública, a reificação do processo do tra­
balho, o desligamento do indivíduo da vida social -
c:-onseqüência da divisão capitalista do trabalho - que
lhe inspirou a necessidade dessa embriaguez perma­
nente. Incapaz de reconhecer a realidade, persiste na
sua evolução fatal e sua atitude corresponde a uma
necessidade subjetiva, porque a sociedade capitalista
78
é necessariamente fetichizada, alienada e clesrn11:111a.
É então somente a atitude revolucionária, frl'ntt· aos
próprios fundamentos dessa sociedade, que pode dar
uma clara visão de conjunto da realidade. A fuga
para a interioridade leva a um impasse tragicômico.
Enquanto as bases da sociedade capitalista pa-·
reciam inabaláveis, isto é, até a época precedente à
primeira guerra mundial, a vanguarda da inteligên­
cia burguesa vivia no meio de uma espécie de car­
naval permanente da interioridade fetichizada. Cer­
tamente, mais de um grande escritor previu clara­
mente a catástrofe inevitável. Pensemos em Ibsen,
em Tolstoi, em Thomas Mann e em tantos outros.
Esse carnaval deslumbrante, em que se percebia no
entanto freqüentes ecos delirantes, exercia uma fas­
cinação irresistível. As filosofias de Simmel e de
Bergson, parte dominante da atividade da época, ilus­
tram claramente o que queremos dizer. O exemplo
mais eloquente é talvez o chiste de Oscar Wilde, se­
gundo o qual o nevoeiro de Londres não existiria sem
os quadros de Turner.
Mais de um grande escritor da época, mais de um
pensador, via claramente que o que sucedia era a
perda de substância do eu fetichizado. Mas o reco­
nhecimento dessa verdade só poderia ter como re­
sultado, no máximo, a projeção de certas perspectivas
trágicas ou tragicômicas, destinadas a servir de se­
gundo plano à festa cintilante do carnaval. Os fun­
damentos fetichizados da vida pareciam ser tão na­
turais e tão inabaláveis, que era impossível subme­
tê-los a uma crítica ou mesmo a um exame pouco
sério. A única dúvida que surgia às vezes era com­
parável à daquele hindu, convencido de que o mundo
repousava sobre o dorso de um elefante e que st·
79
permitiu um dia colocar a questão de saber sobre o
que se apoiava o elefante. Tendo aprendido que era
uma tartaruga que servia de pedestal àquele, nosso
hindu achou a resposta perfeitamente satisfatória. A
consciência individual estava a tal ponto submetida
à sugestão do fetichismo social, que quando a pri­
meira guerra mundial problematizou toda possibili­
dade de existência, quando esse abalo usiversal trans­
formou todos os objetos possveis do pensamento hu­
mano, revalorizando todos os princípios estabelecidos,
quando enfim a grande penitência sucedeu ao carna­
val do individualismo puro, a estrutura fundamental
dos problemas da filosofia permaneceu quase inalte­
rável.
A orientação e a missão da fenomenologia de­
viam entretanto sofrer uma transformação importan­
te e foi essa transformação que determinou as origens
desse existencialismo propriamente dito que é a filo­
sofia de Heidegger e de Jaspers. É relativamente fácil
resumir a experiência vivida que serve de base para
essa filosofia: o homem encontra-se em face do vazio,
do Nada; a relação fundamental entre o homem e o
mundo corresponde à situação do vis-à-vis de rien. 1
Essa situação decorre, segundo o existencialismo,
da essência da realidade humana. De fato, correspon­
de a um e_stado da consciência individual fetichizada,
que reflete a crise do imperialismo.
A originalidade da experiência vivida que aca­
bamos de resumir sumariamente é muito relativa.
Depois de Edgar Allan Poe, que foi sem dúvida o
primeiro a representar uma tal situação do homem
e as atitudes que dela decorrem, a literatura moderna
familiarizou-nos cóin a condição do homem levado à
beira do abismo, privado de toda saída, condição que
a fenomenologia resume na noção de face ao nada.
80
A representação dessa condição do ho111t"111 rnr­
responde nos grandes escritores ao reflexo suhjc..·t ivo
de uma situação objetiva. Mais exatamente, é a n·­
presentação de uma atitude precisa, ela mesma fun­
ção das circunstâncias e dos lados do caráter, em uma
situação concreta, perfeitamente real e muito bem
determinada. Bastará pensar na situação de Ras­
kolnikov após o assassinato, ou em Svidrigailov ou
Stavroguin compelidos ao suicídio. Trata-se, em ca­
da um desses casos, de uma forma particular da evo­
lução trágica, forma tomada à vida atual e que per­
mite a um escritor autêntico criar destinos e caracte­
res especificamente atuais, mas tão vivos e tão trá­
gicos como foram Édipo ou Hamlet na sua época.
São essas mesmas situações, enquanto situações­
tipo, que servem de ponto de partida para Heidegger.
A particularidade de sua filosofia consiste em inscre­
ver, com o auxílio do método extremamente complexo
da fenomenologia, o conjunto do problema na estru­
tura fetichizada da psicologia burguesa, ou mais exa­
tamente, no pessimismo niilista e sem saída da inte­
ligência burguesa do período entre guerras.
Quais são então as operações inspiradas pelo fe­
tichismo da fenomenologia e da ontologia às quais
Heidegger submete essa experiência vivida, fundamen­
tal, para dela derivar o sistema filosófico autônomo
do existencialismo? A primeira fetichização é a cria­
ção da noção do Nada. Tocamos aqui o problema
que se encontra no centro mesmo da ontologia, da ex­
ploração da realidade, tanto em Heidegger como em
Sartre. No primeiro, o Nada é um dado ontológico
·-tanto quanto a existência. No segµndo, o Nada não
tem existência independente do Ser, é absolutamente
inseparável dele.

81
Voltemos agora à nossa análise metodológica.
Examinando, à luz da fenomenologia, a personalidade
de Stavroguin e sua atitude na situação de "face ao
nada" em que se encontra ao fim do livro de Dos­
toievsky e, encerrando, conforme as prescrições do
método fenomenológico, o problema da realidade ob­
jetiva num parênteses para examinar somente os atos
psíquicos de Stavroguin e seus objetos intencionais,
veremos que o objeto intencional da experiência vivida
de Stavroguin é um vazio sem saída. Feito isto, res­
ta-nos apenas seguir o procedimento de Scheler no
caso do Diabo, isto é, suprimir o parênteses, para nos
encontrar diante do Nada, valor central da nova on­
tologia. Assim, teremos compreendido o passe de
mágica da fenomenologia que faz até o fim abstra­
ção de toda realidade objetiva e concreta, de que a
experiência vivida é a expressão no plano moral e
psicológico. Por conseguinte, a experiência vivida,
que é a de Stavroguin, numa situação objetiva dada,
torna-se, para a fenomenologia, um objeto isolado e
autônomo: um fetiche. Quanto à situação que deu
lugar a essa experiência vivida, perde todo caráter
de realidade. É assim que se constitui a categoria
do Nada, provido de uma existência real.
É evidente que não pretendemos ter reproduzido
fielmente a marcha do raciocínio existencialista. Se­
ria necessário, com efeito, um estudo volumoso para
citar as demonstrações, às vezes simplesmente erra­
das e às vezes manifestamente sofísticas, que apóiam
Sartre na teoria fenomenológica da interrogação e
do juízo negativo, sobre a qual repousa a construção
ontológica do Nada. Basta constatar que cada "não"
expresso por um juízo encerra tanta realidade con­
creta quanto um "sim" e que somente a fetichização
do comportamento subjetivo pode dotar essa negati-
82
vidade de um "ser" autônomo e real. Quando coloru,
por exemplo, a questão de saber quais são as leis que
governam o sistema solar, não ponho nenhum "ser
negativo", nenhum vazio, nenhuma solução de con­
tinuidade na realidade objetiva, como o imagina Sar­
tre. Minha questão indica tão-somente um vazio nos
meus próprios conhecimentos, uma lacuna da minha
erudição e não um vazio na realidade. Quanto à res­
posta,· pode ser negativa ou positiva, tanto gramatical
como logicamente. Que eu diga: "A terra gira em
torno do sol", ou: "O sol não gira em torno da ter­
ra", as duas sentenças exprimirão a mesma realidade
concreta e positiva e tudo o que se poderá dizer é
que a frase negativa é menos precisa que a outra.
Em todo caso, é impossível construir, a partir dessas
considerações, o ser ontológico do Nada, sem recorrer
a sofismas. A necessidade deste explica-se pelo fato
de que Sartre pressentiu a experiência vivida fetichi­
zada do Nada antes de construir sua justificação ló­
gica e metodológica.
O Nada é um mito; é o mito da sociedade capita­
lista condenada à morte pela História. Há algumas
décadas, a situação de "face ao nada" pôde ser vivida
por indivíduos-tipos como Stavroguin ou Svidrigailov.
Agora, é toda uma socieda�e, e :lasses sociais inteiras
\ que se encontram nessa s1tuaçao.
O próprio capitalismo pode muito bem passar
sem idéias filosóficas, considerações jdeológicas e vi­
sões históricas. Não sucede o mesmo ao intelectual,
ao qual, por toda sua maneira de viver, se impõe o
aparelho ideológico de que falamos. Ora, quando a
situação histórica concreta na qual nos encontramos e
a atitude de espírito - que é igualmente um produto
dessa situação histórica e social - levam a um im­
passe total onde qualquer orientação é impossível, as
83
consc1encias individuais sofrem o processo de fetichi­
zação. Os intelectuais, cuja existência individual está
privada de toda perspectiva, vêem a situação da se- .
guinte forma: o Nada é a perspectiva objetiva à qual
t.oda existência é conduzida. :Êsse mito é perfeita!­
mente compreensível, mesmo para aquêles que não
têm nem o desejo nem o tempo necessário para ler
as volumosas obras de Heidegger ou de Sartre. É
compreensível porque é o 1·eflexo de situações efeti­
vamente vividas.
Mas o processo de fetichização não termina aí.
Com efeito, se o Nada fosse apenas o precipício no
qual vou ( talvez, ou mesmo fatalmente) cair, o exis­
tencialismo não seria ainda um sistema filosófico uni­
versal, capaz de fornecer a solução de todos os pro­
blemas da existência. Heidegger, Jaspers e Sartre
estendem com efeito o mito do Nada a toda a exis­
tência. Para Heidegger, a própria vida é o estado de
derrelição - Geworfenheit - no Nada e todos os
instantes dessa vida manifestam a interação pseudo­
dialética dessa origem e dessa perspectiva final.
Por essa mesma razão, o existencialismo obsti­
na-se em ensinar que é totalmente impossível saber
o que quer que seja sobre o homem. Não que negue
a ciência em geral. O existencialismo reconhece o
valor prático do conhecimento científico. Mas con­
testa a todas as ciências o direito de ter acesso a um
conhecimento essencial em relação ao único problema
de importância: a relação real entre a pessoa humana
e a vida. Afirma, para empregar sua própria lingua­
gem, que o homem é sua própria realidade-humana.
A assim chamada superioridade do existencialismo
sobre as filosofias antigas consiste precisamente no
abandono radical da pesquisa de um tal conhecimento. /
"O existencialismo, disse Jaspers, estaria perdido no

84
momento mesmo em que pretendesse saber de 1111v1,
o que é o homem." Essa ignorância voluntária, ra­
dical e fundamental está sublinhada tanto em l-fri­
degger como em Sartre. Ora, - e isto está longe de
ser uma anedota - é precisamente esse niilismo ra-'\
1
dica!, esse abandono conseqüente do conhecimento \
mais importante, que é a explicação do enorme suces­
so do existencialismo. A doutrina que ensina que a
vida está por excelência privada de toda perspectiva
e que o sentido da existência é inacessível a todo co­
nhecimento é bem acolhida por todos aqueles que
acham que sua existência está privada de toda pers­
pectiva e que sua vida não tem nenhum sentido.
É aqui que o existencialismo encontra o irracio­
nalismo moderno, essa vasta corrente espiritual de
nosso tempo que se propõe destronar a razão. A
primeira vista, a fenomenologia e a ontologia s_ão
entretanto absolutamente incompatíveis com as ten­
dências correntes do irracionalismo, por causa de seu
caráter rigorosamente científico. Husserl era mesmo
discípulo da escola logística mais intransigente (Bol­
zano e Brentano). Basta no entanto examinar, mes­
mo não atentamente, seu método, para descobrir suas
ligações íntimas com Dilthey e Bergson, mestres do
irracionalismo moderno. Mais tarde, quando Hei­
degger tomou para si certas idéias mestras de Kier­
kegaard, essas ligações tornaram-se ainda mais evi­
dentes.
Estamos aqui em presença de um fato que é mais
importante que uma simples coincidência metodoló­
gica. A medida que o existencialismo faz da feno­
menologia seu método, toma por seu principal objeto
a irracionalidade fundamental do indivíduo e, conse­
qüentemente, do conjunto da existência. Seu parale­
lismo com as outras correntes espirituais anti-racio-
85
nalistas torna-se então cada vez mais evidente. "O
ser é irracional, sem causa e sem necessidade; a pró­
pria definição do ser nos mostra sua contingência ori­
ginal" (L'Être et le Néant, p. 713), diz Sartre.
Falamos até o presente somente do Nada. Ape­
nas afloramos o próprio Ser e sua pretensa impermea­
bilidade ao conhecimento. É portanto com justiça, pa­
rece, que poderiam perguntar-nos: onde está então
a existência no existencialismo? A resposta deve ser
procurada no sentido da negação. A existência, se­
gundo o existencialismo, é o que falta à realidade hu­
mana. O Ser humano, diz Heidegger, "só pode defi­
nir-se a partir de sua existência, isto é, de sua pos­
sibilidade de ser ou de não ser o que ele é".
Encontramos aqui o problema da perda da subs­
tância contínua da existência humana, da qual já fa­
lamos. Vimos o sentido antissocial e associai que as
correntes dominantes do pensamento moderno dão a
esse problema. Ainda aqui a obra de Heidegger si­
tua-se no topo dessa evolução. A existência cotidia­
na do homem nela está submetida a uma análise
muito detalhada, com a ajuda do método que já co­
nhecemos. Em Heidegger, a vida do homem, a "rea­
lidade-humana" é o "ser-com-outro" (Miteinander­
sein) e, ao mesmo tempo, "ser-no-mundo" (ln-der­
Welt-sein). Este "ser" está construído em torno da
figura central mitificada do "se" (das Man). Esse
pronome impessoal, que se tornou uma categoria mi­
tificada da ontologia heideggeriana, representa o
símbolo de todas as funções da vida social; é tudo
o que distancia o homem de sua própria existência,
desvia sua atenção da essência, priva a vida humana
de seu sentido profundo. As diversas manifestações
do "se" são, segundo Heidegger, o palavrório, a curio­
sidade, o equívoco, o descrédito. O que pretende viver
'
1
, 86
sua própria vida, deve, segundo Heidegger, viver para
sua própria morte: viver de tal maneira que a morh­
não seja uma ruptura inesperada, em relação ét sua
existência, mas antes "sua própria morte". A exis­
tência digna desse nome não encontra sua realização
verdadeira, para Heidegger, senão nessa morte pes­
soal.
Aqui ainda o arbitrário total, o subjetivismo sem
limite e mascarado por uma pseudo-objetividade, da
"ontologia fundamental" são evidentes. A obra de
Heidegger, essa "confissão de um burguês do período
entre guerras", é plena de interesse. Sein und Zeit
é uma leitura ao menos tão interessante quanto o
grande romance de Céline, Voyage au bout de la nuit,
mas - assim como o romance de Céline - não cons­
titui a "revelação ontológica" de qualquer "realidade
última". É simplesmente um documento revelador do
universo intelectual e sentimental de uma classe so­
cial e de uma época. Convém demasiado bem ao cli­
ma psicológico da "intelligentzia" atual, para que o
arbitrário dos pseudo-raciocínios sobre os quais se
funda possa tornar-se facilmente evidente. O ab­
surdo da vida e a imagem abstrata da morte
que lhe é oposta são para um grande número de
nossos contemporâneos uma experiência pessoal.
Constituem, por assim dizer, a base inconsciente de
sua concepção do mundo. Basta no entanto olhar
para trás, no universo filosófico de uma época que es­
tava ainda isenta dos germes da decomposição, para
ver que essa atitude face à morte não corresponde
a uma categoria ontológica do "ser", mas simples­
mente a um sintoma da época. Spinosa disse: "O
homem livre pensa muito mais em qualquer outra
coisa do que na morte; sua sabedoria é meditação não
sobre a morte, mas sobre a vida".
8/
Jaspers e Sartre estão no que concerne ao pro­
blema da morte bem longe do extremismo de Hei­
degger, sem que essa divergência possa modificar, no
entanto, o caráter fundamental de sua filosofia, fun­
cão de sua classe social e de seu tempo. Sartre até
mesmo recusou-se a dar à noção de morte pessoal,
no sentido heideggeriano do termo, um lugar no
existencialismo. Quanto a Jaspers, no qual o fantas­
ma do "se" apresenta-se sob uma forma menos pro­
fundamente mitificada que em Heidegger, contenta-se
em orientar o homem que encontrou o sentido de sua
existência, em direção a uma vida estritamente pri­
vada e voltada para si mesma. A ação política e so­
cial não poderia jamais levar a resultados essenciais,
dizia Jaspers ultimamente nos Encontros de Genebra,
e a humanidade não pode ser salva a não ser que
cada um se consagre apaixonadamente à sua própria
existência, para cultivar somente relações "existen­
ciais" com alguns indivíduos isolados e animados de
paixões semelhantes.
Aqui, também, as montanhas filosóficas termina­
ram por originar, com um sorriso cinzento, uma men­
talidade pequeno-burguesa. E o grande escritor anti­
fascista alemão, Ernst Bloch, tinha bastante razão
quando escreveu, a propósito da teoria heideggeriana
da morte, da qual a moral individualista de Jaspers
é apenas a diluição insípida, as linhas seguintes: "Fa­
ce à morte eterna, a condição social do homem não
tem nenhuma importância. Pouco importa que seja
capitalista. . . A aceitação da morte, enquanto des­
tino absoluto e única saída, tem a mesma significação
para a contra-revolução atual que a consolação do
além tinha outrora".

88
Escritas há mais de doze anos, essas ohscrvaç,-H·s
pertinentes esclarecem perfeitamente as razões ela p, 1-
pularidade grandiosa que usufrui o exjstencialisn10,
não somente entre os esnobes, mas também nos meios
reacionários.

3.
O MUNDO FETICHIZADO E
O FETICHE DA LIBER.DADE
"Construo o universal escolhendo-me."
(J.-P. Sartre: L'Existentialisme est
un Humanisme)
...--·
I O existencialismo não é sómente a filosofia da
V
f morte, mas também a da liberdade absolutajEis aí
\ uma das razões mais importantes da popularidade do
existencialismo ele J.-P. Sartre, mas é aí que reside
igualmente - por mais absttrdo que isso possa pare­
cer à primeira vista - o lado reacionário de sua in­
fluência atual. Heidegger, como vimos, considera que
o "ser-para-a-morte" é a única possibilidade da exis­
tência se realizar. Sartre, por sua vez, destrói essa
teoria por meio de raciocínios engenhosos.
Essa divergência, que separa Sartre de Heide­
gger, atesta não somente uma diferença entre a ati­
tude dos intelectuais franceses e a dos intelectuais
alemães frente às que·stões mais importantes da vida,
� mas reflete também a evolução dos acontecimentos.
1 A obra fundamental de Heidegger apareceu em 1927, 1,
nas vésperas do advento do fascismo, na atmosfera
sufocante que precede a tempestade. Ignoramos quan­
do o livro de J.-P. Sartre foi escrito, mas o ano de
sua publicação, 1943, situa-se numa época em que

89
era já possível prever o desmoronamento do fascismo
e onde - precisamente por causa da tirania que du·
rava há muito tempo - o desejo da liberdade era
a experiência mais intensa e mais profunda dos in·
telectuais europeus, em patricular nos países de ve·
lhas tradições democráticas. Convém sublinhar que
se tratava, para esses intelectuais, de urna liberdade
abstrata, isenta de toda diferenciação. Essa imagem
de uma liberdade mitificada, desprovida de todo con· i
1

torno preciso, convinha perfeitamente para atrair to· i


dos os inimigos do fascismo, sem a menor distinção\
de origem ou de tendênc� Antes de mais nada, so·:
mente uma coisa contava para esses homens vindos
de todos os horizontes: dizer "não" ao fascismo.
Quanto mais seu protesto era vazio de conteúdo, mais
se adaptava às suas aspirações inconscientes. Esse
protesto abstrato e seu reflexo teórico, a noção abs·
trata da liberdade, assumiam, para muitos, a função
do mito da Resistência. Veremos aliás que a noção
de liberdade é perfeitamente abstrata em Sartre. Eis
porque o existencialismo, reflexo fiel do clima espi­
ritual dessa época, pôde fazer repentinamente con·
quistas tão impressionantes.
Mas, depois da queda do fascismo, a edificação e
a consolidação da democracia encontram-se no centro
da preocupação da opinião popular de todos os paí·
ses. Todas as discussões sérias tendem a determinar
a natureza da democracia nova desse regime de liber·
dade que será edificado sobre as ruínas deixadas pela
barbárie fascista e que terá por missão impedir para
sempre o retorno do fascismo e da guerra.
O existencialismo conseguiu manter sua popula·
ridade nesse mundo transformado e parece mesmo
que está em vias - o de Sartre, bem entendido, e
90
não o de Heidegger - de partir para a conc1uista tio
mundo. O lugar central que atribui à libcrcla<lt• t'·
certamente nele muito maior. Somente, a libercladt•
não é mais um mito: o desejo de liberdade retomou
formas concretas e manifesta-se com vigor; a inter­
pretação da noção de liberdade desencadeia debatl's
apaixonados e lutas ferozes. Como explicar entáo
que, nessas condições, o existencialismo e sua liber­
dade rígida e abstrata possam pretender conquistar
o mundo? Mais exatamente: onde o existencialismo
recruta hoje seus partidários e qual é a força de per­
suasão que emana dessa nova filosofia da liberdade?
Para poder responder a essa questão e para melhor
compreender o segredo do sucesso do existencialismo,
é indispensável examinar de mais perto a noção de
liberdade, tal como é definida pela filosofia de Jean
Paul Sartre.
A liberdade é, segundo Sartre, o dado fundamen­
tal da existência humana. "De fato, diz Sartre, somos
uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser
livres: somos condenados à liberdade ..." (L'Être et
le Néant, p. 565). Estamos, diz ele ainda, lançados
na liberdade. Sartre aplica aqui à liberdade uma no­
ção criada por Heidegger, a Oeworfenheit ( derreli­
ção). A liberdade seria então, de alguma maneira, a
fatalidade da existência humana.
Esse caráter fatal da liberdade atravessa, segun­
do Sartre, toda a existência humana. O homem não
poderia escapar à liberdade de escolha; não escolher
é ainda escolher e a renúncia à ação é ainda uma
ação livremente escolhida. Desde os fatos mais terra­
a-terra da vida cotidiana até às questões últimas da
metafísica, Sartre sublinha sempre esse papel essen­
cial da liberdade. Faço uma excursão com alguns ami-
91
gos. Num dado momento sinto-me fatigado, minha
mochila me pesa muito e eis-me na obrigação de
uma escolha livre: posso continuar a caminhar ao
lado de meus amigos, ou posso escolher desembara­
<;ar-me de meu fardo e sentar-me à margem do cami­
nho. E é assim em Sartre, mesmo nos problemas mais
abstratos da existência humana, em todos os proje­
tos onde se manifesta a escolha livre do homem. O pro­
jeto é, aliás, uma categoria absolutamente essencial
da teoria da liberdade em Sartre. O objeto do pro­
jeto mais elevado do homem é nada menos do que
Deus. "Assim, pode-se dizer, escreve Sartre, que o
que melhor torna concebível o projeto fundamental
da realidade humana, é que lo homem é o ser que pro- !
jeta ser Deus . . . Ser homem é tender a ser Deus"
(ibid., p. 653). Esse ideal de divinização de si mesmo
significa, traduzido na linguagem da filosofia: atin­
gir ao grau do Ser que a antiga filosofia designava
pela expressão causa sui e que significa a autodeter
minação absolutamente soberana do Ser.\
Assim como podemos ver, a noção sartreana ela
liberdade é muito vasta. É aliás o que explica seu
caráter um pouco flutuante, que torna toda definição
exata impossível. Essa impossibilidade é ainda acen­
tuada pelo fato de que Sartre rejeita por princípio
todo critério objetivo que possa servir para a defi­
nição da liberdade. A essência da liberdade, que é
a escolha, reside para Sartre no fato ele que o homem
escolhe-se a si mesmo como ainda não existente e
incognoscível por princípio. Essa atitude está expos­
ta a um perigo permanente que é o de se tornar outro
daquilo que se é. Ora, aqui não existe mais em Sartre
nenhuma marca moral. A covardia, por exemplo, re­
sulta de uma escolha livre tanto quanto a coragem:

92
"Meu medo é livre, diz ele, e mantfesta minha liber­
dade; coloquei toda minha liberdade no meu medo e
me escolhi medroso em tal ou tal circunstância; numa
outra, existiria como voluntário e corajoso e teria
colocado toda minha liberdade em minha coragem.
Não há, em relação à liberdade, nenhum fenômeno
psíquico privilegiado" (lbid., p. 521 ).
Diga-se de passagem que aqui também Sartre
"abre um parênteses" e o faz de uma maneira total­
mente arbitrária. Coragem e covardia não são, com
efeito, somente fenômenos psíquicos, mas também
categorias morais. O capricho do filósofo basta para
determinar se tal ou tal noção pertence ou não à
realidade, pois o sadismo e o masoquismo são em
\Sartre fatos ontológicos, enquanto que a coragem e
� covardia são apenas fenômenos psíquicos subjetivos.
A noção sartreana de liberdade torna-se assim
completamente irracional, arbitrária e incontrolável.
Sartre esforça-se aliás continuamente para suprimir
toda limitação. Em Heidegger, o "ser-para-a-morte"
permite ainda uma classificação dos comportamentos
humanos que podem ser autênticos ou privados de au­
tenticidade. Esses comportamentos permitem ver se
o indivíduo chegou ou não a ultrapassar o plano do
"se" e o descrédito que lhe é inerente, para realizar
sua éxistência pessoal. Mas Sartre, como já vimos,
rejeita o critério heideggeriano da autenticidade da
existência humana, isto é, a morte pessoal. Rejeita
também toda definição racional e toda hierarquia dos
valôres éticos que Scheler, antes dele esforçara-se por
estabelecer pelos meios arbitrários da fenomenologia.
\Sartre rejeita também toda correlação entre a es­
colha livre e o passado do ser humano, isto é, o

93
princípio da continuidade do ser humano. E para
terminar, rejeita ainda o critério kantiano do impera­
tivo categórico.\
É verdade que ele parece ter recuado, um pouco as­
sustad0, pelas conseqüências possíveis de sua atitude.
No seu escrito polêmico, declara, com efeito, que "nada
pode ser bom para nós sem o ser para todos" (L'Exis­
tentialisme est un Humanisme, p. 25-26), e mais adian­
te: " ...sou obrigado a querer, ao mesmo tempo que mi­
nha liberdade, a liberdade dos outros; não posso to­
mar minha liberdade por fim, se não tomar igualmen­
te a dos outros por fim" (ibid., p. 83). Isto soa cer­
tamente muito bem, mas nada mais é para Sartre do
que um compromisso eclético com os princípios da
moral kantiana que precedentemente rejeitou. Não po­
demos deter-nos aqui para demonstrar porque Kant
não conseguiu a universalização formal da moral do
idealismo subjetivo; certos escritos da juventude de
Hegel fornecem aliás uma resposta muito perspicaz
a essa questão. Mas, se bem que a universalização
objetiva do imperativo categórico seja logicamente
indefensável em Kant, é certo que organicamente faz
parte dos fundamentos mais profundos da sua filo­
sofia e em particular da sua concepção da sociedade
e da história. Quanto a Sartre, essa generalização
corresponde apenas a um compromisso eclético com
a opinião filosófica adquirida no classicismo, pois se­
melhante objetivação da sua noção de liberdade con­
tradiz formalmente toda sua ontologia.
Em L'Être et le Néant, onde toda concessão aná­
loga está ausente, encontra-se o ponto de vista inte­
gral do solipsismo ontológico. Aí, o objeto e a finali­
dade da escolha livre só podem ser interpretados e

94
só têm sentido pelo próprio SUJetto que escolhe. As­
sim, é fácil constatar uma contradição formal entre
L'être et le Néant e L'Existentialisme est un Hu­
manisme. \E� L'être et le Néant notamos com efei­
to a seguinte passagem: "Assim, o respeito à liber­
dade de outrem é uma palavra vã: mesmo se proje­
tá,ssemos respeitar essa liberdade, cada atitude que
tomássemos para com outrem seria uma violação des­
sa liberdade que pretendíamos respeitar" (p. 480). E,
algumas linhas acima, um exemplo paradoxal mas
muito preciso vem esclarecer essa concepção: "Rea­
lizar a tolerância em torno de Outrem é fazer com
que Outrem seja atirado à força num mundo tole­
rante. É tirar-lhe por princípio suas livres possibili­
dades de resistência corajosa, de perseverança, de
afirmação de si que teria ocasião de desenvolver num
mundo intolerante" (ibid., p. 480lJ
A contradição é evidente. Certamente não nos
compete controlar a ortodoxia do existencialismo e
se houvesse aí apenas uma concessão feita para fa­
cilitar a expansão da doutrina, não insistiríamos. Mas,
parece-nos, essa contradição é inerente ao fundamen­
to mesmo do existencialismo. Pensemos no solipsismo
ontológico e no irracionalismo. O primeiro ensina-nos
que somente a liberdade individual existe, isto é, a
da escolha que adota, e todo o resto é apenas objeto
inerte em relação a esse único ato real. O segundo
nos diz que é absolutamente impossível saber o que
quer que seja a respeito dessa única realidade, que
não tem passado e cujo futuro, desde que se realize,
torna-se um passado imediatamente aniquilado. Es­
tamos portanto a cada instante em uma situação ra­
dicalmente nova, necessitando uma decisão radical­
mente nova, um novo ato de nossa liberdade.

95
Para evitar esse niilismo vizinho da loucura, Sar­
tre é obrigado a violar a lógica. Fj apenas assim que
lhe é possível aportar num mundo que ex,iste efetiva­
mente e que não poderia dispensar. O instrumento
desse passe de mágica é a lógica formal, a generali­
zação rígida de uma idéia. O procedimento é comum
a todas as escolas do irracionalismo moderno. É ele
que permite a Sartre construir sua concepção fatalis­
ta da liberdade.
Aceitemo-la por um instante, nem que seja para
tentar a experiência. Ela nos conduzirá a novas con-

,
tradições insplúveis. Com efeito, .se todo ato é liber-
) dade ( subo no trem, acendo um cigarro ou deixo de

1
fazê-lo), o mundo onde vivo será exatamente o do
determinismo extremo. Heidegger sabe muito bem
que não s·e poderia falar de um ato livre a não ser
\ que reconhecêssemos que existe igualmente atos que
não são livres. A nivelação sartreana de todas as
manifestações da existência humana assemelha-se à
concepção determinista, salvo que, para o determinis-
mo, essas manifestações inscrevem-se em sistemas
racionalmente construídos, enquanto que, em Sartre,
são, a priori, privados de todo sentido. · A hipótese ,
f sartreana da noção de liberdade esvazia todo sentido .,t_-·-
/da própria liberdade. r·, � \':' ��", ,,, " . \ 'e (.' �,.e ,_. :,\. )S'
Guardemo-nos entretanto de ver aqui apenas um
defeito fortuito do sistema de Sartre. Estamos,
ao contrário, em presença de um ponto essencial da
metodologia de tôdas as filosofias modernas. O pen­
samento irracionalista descobre, na .existência huma­
na, fatos de naturezá dialética. Mas, ao invés de
examiná-los à luz do método dialético, tenta tratá-los
por um irracionalismo impedido de cair aos pedaços
pelo colete de ferro da ló�ica formal. O que só pode

96
ter sentido enquanto elemento de uma relação dia­
lética torna-se assim absurdo. Toda verdade hip11s­
tasiada torna-se fatalmente absurda.
Vejamos agora onde se encontra em Sartre ess<'
elemento de verdade. Na nossa opinião, consiste na
acentuação da importância da decis-ão individual, que
o determinismo burguês e o marxismo vulgar subes­
timam habitualmente. 'Toda atividade social com­
põe-se de atos individuais e a influência que as con­
dições materiais exercem, por importante que seja,
não se realiza, como disse Engels, senão em "última
instância". Isso significa que no momento de tomar
uma decisão, o indivíduo encontra sempre diante dele
uma certa margem de liberdade, no interior da qual
a necessidade histórica determina, cedo ou tarde, a
decisão a tomar.\O simples fato da existência de par­
tidos políticos demonstra a realidade dessa margem
de liberdade. !As tendências essenciais da evolução
social são per eitamente previsíveis, mas - como já
disse Engels - seria um pedantismo ridículo querer
deduzir delas exatamente como Pedro e Paulo de­
cidirão em tal ou tal circunstância dada. A necessi­
dade histórica faz-se sempre valer através de uma
multidão de acasos interiores e exteriores. Reconhe­
cer a importância destes, analisar sua função, consti­
tuiria uma tarefa científica muito séria.\
É preciso dizer que Sartre não se dedicou a essa
tarefa? É evidente, porque nega a necessidade da
evolução assim como a própria evolução, tanto no
plano social como- no indivíduo, sendo dado que a esj
colha é independente, para ele, de todo o passado.
Nega as relações reais que unem o indivíduo à socie-
dade; faz um mundo à parte das relações objetivas
que envolvem o homem, e as relações humanas que
97
enriquecem a existência são para ele apenas relações
entre indivíduos isolados. A noção de liberdade fa­
talista e mecânica, construída nessa base, só pode
aniquilar-se a si mesma. Para dizer a verdade, quase
não se assemelha à categoria moral da verdadeira li­
berdade e não vai mais longe que essa constatação
ocasional de Engels, segundo a qual não há ato huma­
no onde a consciência não desempenhe um papel de
mediador.
Tudo nos leva a crer que Sartre dá-se perfeita­
mente conta daquilo que sua noção de liberdade pode
ter de problemática. Recusa entretanto abandonar
seu método e escolhe antes a solução que consiste
em salvaguardar o equilíbrio do seu sistema, opondo
à sua concepção sobrecarregada e absurda da liber­
dade uma outra concepção da mesma natureza: a de
responsabilidade. A noção de responsabilidade é com
efeito tão absoluta e ilimitada em Sartre quanto a
de liberdade. "Se preferi a guerra à morte ou à de­
sonra, diz ele, tudo se passa como se eu carregasse
toda a responsabilidade dessa guerra" (ibid., p. 640).
Uma vez mais, uma verdade relativa é levada
por Sartre ao absurdo, por meio da lógica formal. A
noção de responsabilidade tem a mesma sorte que
a de liberdade, isto é, perde seu sentido, porque uma
concepção assim rígida da responsabilidade nada mais
quer dizer teoricamente e equivale à irresponsabili­
dade total do ponto de vista da ação prática. Dos­
toievsky, esse mestre inigualável da psicologia, de­
monstrou várias vezes que os preceitos morais hiper­
tensos não exercem nenhuma influência sobre as
ações de seus autores e que em conseqüência os ho­
mens que os professam são moralmente muito mais
oscilantes do que aqueles que não têm princípios tão

98
ríg1d,,.,. Nada é mais fácil que cometer traiç:i,, sobn·
trai<:áo, com u cinismo mais irh·oln, sob a clllwrt11ra
de um sentimento de responsabilidade complcla111c11t t·
verbal, le\'ada ao extremo no plano teórico.
É preciso reconhecer aliás que esse problema n;w
é absolutamente estranho a Sartre. Ele o cntre\'ê, sem
querer tir.tr dele a menor conseqüência e u mitifica,
até esvaziá-lo de todo sentido. "Aquele que realiza
na angústia sua condição de ser lançado numa res­
ponsabilidade que se volta sobre seu abandono, não
tem nem remorso, nem queixa. nem desculpa ... " (lbid.,
p. 642). Da mesma forma que o sublime e o ridículo
estão freqüentemente separados apenas por um pas­
so. a grandeza moral, em certos casos, pode roçar o
cinismo e a frivolidade.
Se acreditamos útil insistir a tal ponto na falên­
cia filosófica da noção de liberdade em Sartre, é por­
que vemos aí o �edo_ do sucesso do existencialismo
em certos meios.\ O nobre desprezo das considerações
sociais e da vida pública, a interpretação abstrata, ir­
racional e absurda das noções de liberdade e de res­
ponsabilidade na defesa da integridade ontológica do
indivíduo: eis em que se constitui toda a atração do
mito do Nada aos olhos dos esnobes.}O que pode haver
de mais atraente, com efeito, do que esse estranho
casamento de um extremismo completamente verbal
dos princípios com o niilismo absoluto da moral?
A concepção sartreana da liberdade fornece, além
disso, uma excelente base ideológica aos intelectuais
sempre presos a um individualismo extremo para mo­
tivar sua recusa em participar na obra de construção
..... e de consolidação da democracia. Todos os que acei­
-tam a liberdade absoluta, todos os que defendem a
liberdade metafísica, mesmo quando é praticamente
99
a dos inimigos da liberdade, saudarão com alegria o
existencialismo.
A obra de J.-P. Sartre não é certamente fascista
nem pró-fascista. Entre seus adeptos, estamos con­
vencidos, há democratas sinceros. Somente, as gran­
des correntes espirituais desdenham, na sua orien­
tação, as intenções subjetivas dos pensadores. Para
parafrasear Moliêre, essas grandes correntes tiram
vantagem de onde querem, e o existencialismo ameaça
tornar-se um dia - se bem que involuntàriamente -
a ideologia da reação.

100
C a p í t u l o III

III. O IMPASSE DA MOR.AL EXISTENCIALISTA

1.

A SITUAÇÃO HISTóR.ICA DO
EXISTENCIALISMO

O existencialismo revela certos sintomas de uma


crise e isto não se deve ao acaso. A história do pen­
samento humano nos ensina, com efeito, que toda
filosofia leva a marca profunda de sua época, na sua
metodologia, em toda sua estrutura e até nas condi­
ções que lhe permitiram ·constituir-se. As inflexões
da História provocam, portanto, necessàriamente, cri­
ses na filosofia. Concepções que, durante muito tem­
po, pareciam indiscutivelmente evidentes, tornam-se
de repente problemáticas. O pensamento, então, en­
trega-se tumultuosamente, por toda parte, à procura
101
de justificações novas, de possibilidades de modifica­
ção, de perspectivas inéditas. Pois, em realidade, en­
quanto não se está em presença de uma sociedade no­
va, com uma estrutura social e econômica essencial­
mente nova, enquanto as antigas classes e frações de
classe dominantes guardam seu poder e sua influên­
cia - ainda que sua posição no conjunto da sociedade
tenha-se tornado um pouco vacilante - certos axio­
mas subentendidos, certas conc_!kões primeiras da
filosofia conservam sua validez. / As crises da filoso­
fia manifestam-se, então, em primeiro lugar, como
tentativas com vistas à concordância dos princípios
tradicionais aos fatos e aos problemas novos de uma
existência social transformada e ao comportamento
, humano modificado. 1 Tal foi a situação da filosofia
hegeliana após a �olução de junho, ou a do neo­
kantismo e do positivismo após a primeira guerra
mundial.
Seria totalmente espantoso que o desmoronamen­
to do fascismo e a luta pela democracia -. pela de­
mocracia nova, antes de tudo - não tivessem provo­
cado mudanças que exibissem todos os caracteres de
uma crise, nessa filosofia burguesa que soube pre­
servar sua existência e suas posições, desde a época
preparatória do fascismo, passando pelo reino de Hi­
tler, até a guerra mundial e a Libertação e que, além
disso, prepara-se atualmente para tornar-se a filo­
sofia dominante de nosso após-guerra imediato, da
mesma forma que o foi a filosofia de Spengler duran­
te os anos que seguiram 1918.
Os fatos sociais, que formam o pano de fundo
dessa crise, da mesma forma que as modificações es­
truturais da filosofia que provocam, são muito sim­
ples e ex.tremamente complexos ao mesmo tempo. É

102
evidente que o clima mórbido de Sein und Zeit, t· q11t·
o antigo existencialismo, com seu encorajamento :'t
passividade absoluta e sua noção abstrata de liht•r­
dade separada de toda ex.istência pública, não podl'­
riam satisfazer os intelectuais de esquerda do período
consecutivo à Libertação. Os elementos sociais e
históricos de que se compõµsse após-guerra nflO
são, certamente, homogêneos.\ O fascismo foi vencido,
não somente no plano militar e político, mas também
moralmente. Mas tudo isso foi realizado antes obje­
tivamente do que subjetivamente. Pois, enfim, os
fascistas existem ainda e não deixam de ser susten­
tados por certas forças que os consideram uma re­
serva suscetível de ser utilizada contra a esquen!a. 1
Essa política de espera exterioriza-se por uma ten­
dência à pacificação da luta ideológica contra o fas­
cismo e, antes de tudo, por uma tolerância integral
a respeito das ideologias que se encarregaram de pre­
parar, intelectualmente e moralmente, o caminho do
fascismo (Nietzsche, Spengler, Ortega y Gasset, Hei­
degger). A influência dessas correntes é aliás consi­
derável, mesmo entre os intelectuais que são politi­
camente de esquerda. A nova situação social e polí­
tica reflete-se portanto de uma maneira contraditória
e complexa no plano da ideologia. Está, em suma,
muito longe de corresponder a essa liquidação radical
da herança pré-fascista e fascista, que devia, segundo
a esperança dos otimistas, seguir a queda de Hitler.
A situação política na maior parte dos países,
assim como certos elementos das relações interna­
cionais reforçam ainda essas tendências. O equilíbrio
frágil desses anos, entre tentativas de preparação e
tentativas de prevenção de uma nova guerra mundial,
entre a edificação de uma democracia nova e a res­
tauração de um fascismo de vinte e cinco a setenta
103
e cinco por cento ortodoxo, não pode deixar de refle­
tir-se no plano ideológico. Exprime-se, antes de tudo,
pela confusão total do humanismo antigo, que consi­
dera as oportunidades de instauração de uma demo­
cracia nova, pelo menos com tanto temor quanto as
de uma restauração do fascismo, e que só pode, por
conseguinte, refugiar-se, cada vez mais profundamen­
te, num mundo feito de postulados abstratos, formu­
lados sob o signo de um pessimismo "sublime". Daí
resulta que as ideologias pré-fascistas, após terem
procedido a um reagrupamento interno, continuam a
agir e tentam adaptar-se às realidades novas, sem
ter de modificar suas bases. Certos indícios levam
a crer que são legítimas as promessas de uma in­
fluência considerável das doutrinas heideggerianas no
outro lado do Atlântico, enquanto filosofia nitida­
mente reacionária, e certos fenomenólogos america­
nos combatem essa expansão da reação, representada
por Heidegger e Scheler, em nome de uma ortodoxia
diretamente ligada a Husserl. O Velho Mundo, aliás,
está longe também de apresentar uma homogeneida­
de ideológica. Nele encontramos hesitações entre nu­
merosos intelectuais e, em particular, entre os que
encaram com desconfiança as transformações trazi­
das pelo após-guerra e proct.ram apoiar sua expecta­
tiva numa ideologia filosófica e moralmente "eleva­
da". Jaspers é considerado como um chefe espiritual,
tendo o mérito de adaptar o existencialismo, desde
o início, à mentalidade do burguês moderado.
O ramo especificamente francês do existencialis­
mo, representado por J.-P. Sartre e sua escola, en-
contra-se numa situação particular. Durante os anos
da Resistência, essa escola recrutou numerosos adep­
tos, graças às modificações relativamente leves da
doutrina, que não afetavam a essência da ontologia

104
fundamental de Heidegger. Para numerosos militan­
tes dos Movimentos da Resistência, esse próprio mo­
vimento, sua finalidade, isto é, a Libertação, assim
como seu adversário, isto é, o "nihil" social e moral
do hitlerismo, não era, afinal de contas, nada mais
do que um mito. A derrelição-no-nada, a abstração
do ser-com-outro, a liberdade e a responsabilidade
abstratas e individualizadas podiam perfeitamente in­
tegrar-se nesse mito. Mas quando a Resistência
tornou-se Libertação, quando, em razão do papel por
ele representado, o existencialismo manifestou a am­
bição de conquistar os intelectuais de esquerda e,
em particular, os jovens, uma transformação fêz-se
necessária. O conteúdo da noção de liberdade, o pro­
blema da orientação que devia tomar a Libertação, as
questões de moral e de filosofia da história adquiriram
então uma importância preponderante e o existen­
cialismo desenvolveu a batalha ideológica contra o
marxismo, para manter os fiéis nas suas fileiras e
para ampliar suas conquistas.
-, ., Já indicamos certas analogias históricas. Não
ignoramos, certamente, que a maior prudência é de
rigor no manejo de analogias dessa ordem, porque
as semelhanças abstratas de estrutura, que são ofe­
recidas com as situações às quais se referem, acom­
panham-se ordinariamente de diferenças históricas e
sociais, bem mais importantes e bem mais concretas.
Essas analogias só poderiam então esclarecer a si­
tuação geral do pensamento e não o conjunto dos
problemas concretos, que formam seu objeto. Man­
tidas todas essas reservas, não devemos entretanto
deixar de invocar uma outra analogia dessa ordem,
apta a esclarecer a posição atual do existencialismo.
Pensamos no pensamento de Nietzsche, enquanto
105
produto da crise da filosofia de Schopenhauer, nas
vésperas do estágio do imperialismo.
Tal como J.-P. Sartre atualmente, Nietzsche es­
tava preocupado - em circunstâncias certamente
muito diferentes e, portanto, de uma maneira com­
pletamente diferente - em transformar a filosofia
do a-historismo, ou do anti-historismo objetivo, uma
filosofia que pregava a mais estrita passividade, em
uma filosofia do ativismo, em uma filosofia da história
da sociedade, e isso sem ter de modificar os funda­
mentos de sua teoria do conhecimento. Sartre é,
portanto, em relação a Heidegger - mutatis mutan­
dis - o que Nietzsche foi, em relação a Schopenhauer.
Nietzsche resolveu o problema transformando o nii­
lismo passivo, reacionário e abstencionista de Scho­
penhauer em um niilismo ativo e cínico, fazendo do
mito da a-historicidade o da História bárbara. Esse
mito é, aliás, em Nietzsche, tanto o produto da subje­
tividade soberana quanto é, em Schopenhauer, a es­
camoteação integral da essência da historicidade.
Trata-se portanto de uma transformação político-so­
cial e ideológico-moral, que não afeta a teoria do
conhecimento da doutrina de Schopenhauer, transfor­
mação que Nietzsche devia realizar sob a forma de
uma radicalização subjetivamente sincera. Objetiva­
mente, isto é, na realidade social, essa operação fun­
dava-se sobre a evolução econômica, que avançava
no sentido do imperialismo, para a época das guer­
ras mundiais. No decorrer desse período, a filosofia
nietzscheana satisfez plenamente à missão que essa
evolução lhe atribuía: neutralizou, precisamente nos
intelectuais que se encontravam na oposição, nume­
rosas tendências efetivamente revolucionárias, serviu
de antídoto contra o marxismo e, nos intelectuais des­
contentes, preparou tanto a capitulação diante das

106
forças da reação como o sentimento de impotência
diante delas.
1 Considerando o pensamento nietzscheano, os la­
ços que o ligam ao de Schopenhauer, a tentativa de
superação do pessimismo e do niilismo que êle cons­
titui, a transformação de um e de outro em "pessi­
mismo heróico" e em "realismo heróico", glorificados
mais tarde pelo fascismo - considerando portanto
o pensamento nietzscheano como uma tentativa de
defesa contra o marxismo, impossível deixar de se
espantar com o protesto dos historiadores burgueses
da filosofia, que nele verão uma superestimação do
marxismo e de sua influência ..\ Mas, considerando a
evo_lução do pensamento alemão, mesmo que somente
no período de ascensão das idéias de Nietzsche, im­
possível deixar de constatar que essa defesa domina
o pensamento sociológico e filosófico, desde Tõnnies,
passando por Simmel, Sombart e Max Weber, até
Mannheim, e mesmo C. Schmitt e Freyer, quer sob
a forma de combate aberto contra o marxismo, quer
sob a forma de apropriação, desfiguração e má vul­
garização - portanto de imunização - de certos de
seus elementos.
É apenas sob esse ângulo e à luz dessas cons­
tatações que se chega a identificar a moral, a filo­
sofia social e a filosofia da história nietzscheana co­
mo formando um conjunto polêmico contra a ideolo­
gia do socialismo. Nietzsche acreditava ainda que
argumentos da ordem dos de Treitschke bastariam,
enquanto seus sucessores tiveram de levar bem mais
longe que ele a sublimação de seus problemas. Essa
evolução é fácil de constatar tanto em Simmel e em
vVeber quanto em Spengler e em Scheler - e acre­
ditamos firmemente em não nos enganar no plano
da objetividade ( qualquer que seja o aspecto da ques-
107
tão do lado subjetivo e filológico) que �in und Zeit '
de Heidegger nada mais é que um escrito polêmico
de dimensões imponentes contra a concepção mar­
xista do ,fetichismo e as conseqüências filosóficas e
sociais que daí decorrem. A formidável agravação
da luta de classes durante o período consecutivo à
primeira guerra mundial significa uma expansão inin­
terrupta da influência do marxismo. E hoje, toda
ideologia que aspira a uma validez universal, a uma
ampla influência social e que não se contenta em ser
apenas uma doutrina universitária, deve-se medir
abertamente com o marxismo.,
Tal é, para empregar uma das expressões preferi-
das pelo vocabulário existencialista, a "situação"
atual de J.-P. Sartre e de sua escola. E é assim que
nossa analogia de agora há pouco, colocando em pa­
ralelo i Schopenhauer-Nietzsche de um lado e Heide­
gger-Sartre, .de outro, ganha - com todas as reservas
de princípio que nós mesmos indicamos - uma signifi­
cação muito concreta. A analogia concerne primei­
ramente à função social - considerada no momento
de uma maneira muito abstrata - da filosofia. A
despeito de todas as diferenças que pode apresentar
a gênese social de seu respectivo pensamento, e a
despeito do antagonismo às vezes total de seus mé­
todos," Schopenhauer e Heidegger são, ambos, porta­
vozes de uma passividade niilista, da condenação de
princípio de toda atividade social do homem e da
glorificação do indivíduo isolado, voltado para si mes­
mQ: 1 Mas a analogia manifesta-se ainda no fato de
que, fatalmente, contradições e ecletismos surgiram
quando a teoria do conhecimento e a ontologia, inti­
mamente ligadas num e noutro a esse niilismo pas­
sivo, tornam-se o veículo de um ativismo. Este, foi,
108
indiscutivelmente, o caso de Nietzsche. Alifts, a fra­
gilidade dos fundamentos de seu pensamento - fra­
gilidade que somos obrigados a admitir mesmo an+
tando suas próprias premissas - não pôde jamais
diminuir seu prestígio universal. Essa fragilidade
é apenas, com efeito, o reflexo ideológico preciso da
fragilidade e do caráter contraditório do clima social,
cuja evolução suportava o edifício de seu pensamento
e favorecia sua expansão.
Transformar o existencialismo alemão em uma
filosofia ativista· não foi coisa muito difícil sob o
regime hitleriano. Lembremo-nos de Heidegger, rei­
tor da Universidade de Friburgo, conduzindo seus
estudantes em filas cerradas diante das urnas, onde
deveriam sancionar com seu voto o abandono da Liga
das Nações pela Alemanha. Pensemos também na
anedota, mais antiga, contada por Lõwith, relatando
a reação de um estudante diante da moral heidegge­
riana: "Estou perfeitamente resolvido, mas não sei
a quê". Não é ela suficientemente reveladora quanto
ao caráter psicológico e social desse ensino, sobretudo
se a completamos pelo "viver perigosamente", má­
xima própria ao niilismo fascista, e que marca a
passagem da angústia teórica, cara a Heidegger, à
atividade prática? Não, em Heidegger, o ativismo
não poderia ter nenhuma conseqüência filosófica.
Mas a situação d<;> existencialismo francês é com­
pletamente diferente. \-O existencialismo francês temí1
a ambição de tornar-se a filosofia dos intelectuais dé i
esquerda, socialistas, amigos do progresso e da dJ- \
mocraci.ª-1 Não poderia, portanto, à maneira de Nietzi­
che, "liquidar" o socialismo, proferindo algumas in­
vectivas a seu respeito, como não poderia, à maneira
de Heidegger. ignorá-lo oficialmente, abrigando-se
atrás do regime dos campos de concentração. De-
109
vc, ao contrário, medir-se com ele em combate
aberto; deve provar sua superioridade nos terrenos
da moral e da filosofia da História; de,·e proYar que
a doutrina do existencialismo é suscetível ele fornecer
a todas as questões que a História apresenta quanto
an comportamento do homem, respostas melhores,
mais claras e mais concretas que o marxismo.

2.
MOR.AL DA INTENÇÃO
E MOR.AL DO R.ESUL TADO

O problema consiste em constituir uma moral


existencialista, sendo dadas as condições concretas de
nossa situação atual. Basta colocar assim o problema,
para constatar que o existencialismo - mesmo acei­
tando suas próprias premissas - encontra-se obri­
gado, desde o início, a se aquartelar na defensiva e
que seus adeptos não podem participar do combate
senão num terreno que lhe é estranho.
Este único fato manifesta a ascensão vitoriosa
do marxismo. \ Há algumas dezenas de anos, podia-se,
com efeito, declarar altivamente que o marxismo
não tinha moral. Além disso, um tal juízo era então
perfeitamente justificável do ponto de vista da sa­
bedoria ex cathedra da época, para a qual a moral
era apenas um conjunto de postulados puramente for­
mais, intemporais e abstratos.1 Acrescentemos entre­
tanto que essa crítica não atinge só Marx, mas, com
ele, todos os verdadeiros grandes moralistas concretos
da história do pensamento, e antes de tudo, Aristó­
teles e Hegel. Mas, nessa questão, o existencialismo
coloca-se inteiramente ao lado da sabedoria ex cathe­
dra: seu ancestral Kierkegaard não ataca Hegel no

11 O
mesmo sentido, dando prova da mesma inco111pl'l'l't1·
são para os problemas de ordem moral proprianll'III<·
ditos, como mais tarde a filosofia universitária frente
a Marx? Para empregar a terminologia consagrada
por Max Weber, Kierkegaard é também um moralis­
ta da intenção como Kant, Fichte e igualmente -
sobretudo em L'Être et le Néant - J ean--Paul Sartre,
enquanto Marx, como Aristóteles e Hegel, ultrapassa
o dilema moderno entre a moral da intenção e a moral
do resultado.
Empregamos aqui de propósito os termos cien­
tíficos popularizados por Max Weber, para designar
esse dilema essencial da ética atual, de que Hegel
já denunciou o caráter ilusório. Esse falso dilema
recebeu, na literatura de segunda classe fabricada por
Koestler, uma expressão mística e pomposa, sob a
forma de confronto entre o Ioga e o Comissário. Te­
remos ocasião de ver que essa posição do problema,
que preocupou tanto os existencialistas, em nada con­
tribui para sua solução.
·uma moral que considera apenas o ato individual
do sujeito e para a qual a intenção que preside esse
ato constitui o critério decisivo da moral não pode
ser senão uma moral da intenção.1 Aos olhos dessa
moral, a ligação do ato com suãs conseqüências só
pode ter lugar numa esfera completamente diferente,
sob o regime de leis essencialmente distintas. Assis­
timos assim a uma separação entre o plano da moral
e o resto da realidade humana, "exterior", separação
impossível de remediar por meio de categorias ou do
método da moral da intenção, porque estas são pro­
dutos dessa separação.
Eis porque os radicais entre os adeptos da moral
de intenção - e só estes são conseqüentes - re­
cusam-se absolutamente a considerar as consequen-

111
c1as do ato ( o Sermão da Montanha, Kierkegaard,
J leidcg-gcr). Nenhuma moral, �ntretanto, cujo con­
teúdo e intenção não equivalem a uma recusa total
do mundo, a uma renúncia total à penetração da
realidade social, poderia abandonar toda tentativa
com vistas a restabelecer o laço entre o ato indivi­
dual e suas conseqüências. Ora, no momento mesmo
em que se empreende essa tentativa, percebe-se a
necessidade de restabelecer, de um modo ou de outro,
uma ponte entre a moral de um lado e a sociedade
e a filosofia da história de outro. Pergunta-se so­
mente como restabelecer essa ponte, quando a moral
da intenção tinha tomado o cuidado de eliminar do
comportamento moral original todo conteúdo social
e histórico, a fim de salvaguardar o primado decisivo
do ato subjetivo e da intenção individual!
Conhecem-se os destinos ela moral kantiana. Kant
tinha tentado sair do formalismo puro da moral ela
intenção e cio imperativo categórico, pondo, diante ele
cada ato moral concreto, o critério da ausência ele
contradição objetiva. Portanto, - para retomar seu
exemplo -fi1enhum depósito deve ser roubado, pois
o roubo contradiria a noção mesma de depósito, "por­
que um tal princípio teria por efeito anular-se a si
mesmo enquanto lei, pois faria que não existisse mais
, o clepósito:_'. l Hegel, na sua Crítica, responde: "Que
não haja depósito algum, e onde estaria a contradição?
Se não houvesse depósito, isto contradiria outros da­
dos necessários; da mesma maneira, a possibilidade
da existência ele um depósito está ligada a outros da­
dos necessários e torna-se assim ela própria possível.
Mas que não se faça apelo a outros fins e a outras cau­
sas materiais: a forma imediata do conceito deve deci­
dir da justeza da primeira ou da segunda suposição.

112
Mas, do ponto de vista da forma, os dados opostos
são indiferentes, tanto uns quanto os outros ... "
1
Hegel demonstra aqui que f"Kant abandona as
bases filosóficas da sua própria moral, ao qucn.•r
deduzir do imperativo categórico a existência ou a
justificação de uma categoria econômica e social e o
comportamento ético a seu respeito.\ Enquanto moral
da intenção formalista, a moral kantiana é incapaz
de colocar essa questão no seu próprio terreno. É
incapaz de colocá-la corretamente, porque Kant con­
sidera o conhecimento do conjunto da realidade obje­
tiva, - em nossa citação Hegel não se ocupa desse
aspecto da questão - isto é, o conhecimento do num­
do histórico-social, como conhecimento de fenômenos
somente, ao qual opõe, sob os auspícios do ato moral,
o acesso ao mundo em si, ao mundo nomenal. Assim,
a conclusão dessa tentativa de Kant teria como resul­
tado - por intermédio do ato moral isento de con­
tradição - tal como é aqui postulado -�á transfor­
mação do conhecimento do mundo histórico-social em
um conhecimento em si, finalizando pela supressão de
toda teoria do conhecimento de Kant•. .•.1.
É inter_essante e muito característico que o jovem
Hegel - que o fez em nome do idealismo objetivo -
não tenha sido o único a protestar contra essa tendên­
cia de Kant, que consiste em dotar o ético de um
conteúdo social, com a ajuda da lógica formal. Georg
Simmel, numa época mais recente, o fez também, em
nome do idealismo subjetivo kantiano. Simmel parte,
·como Hegel, do pretenso critério da ausência de con-
tradições lógicas do imperativo categórico. Somente,
segundo Simmel, esse critério não seria defensável
senão num sentido puramente moral, isto é, naquele
da moral da intenção, porque, diz ele, "a unidade ló­
gica interior de nossas ações forma também o critério
113
de seu valor moral". Assim, para retomar o exemplo
de Kant, o roubo do depósito pode ser tão moral como
sua vigilância, com a condição de que a "unidade ló­
gica interior" do ato moral permaneça integra]. ,
_
Se entramos a tal ponto no detalhe da discussão
sobre a possibilidade da extensão da moral da inten­
ção formal aos conteúdos sociais, é primeiramente
porque nos ofereceu a ocasião de evocar todas as
questões essenciais de nosso problema, mas é tam­
bém porque a posição que o próprio Sartre tomou,
na sua pequena brochura de popularização, aproxima­
se sensivelmente da moral de Kant. Na medida em
que é possível construir uma moral sobre os princí­
pios formulados no L'Être et le Néant, este atribuiria
ao ato subjetivo o primado absoluto. Já tive ocasião,
noutro lugar, de explicar as conseqüências que decor­
rem desse subjetivismo radical para as relações que
unem o sujeito aos seus semelhantes, de maneira que
creio poder limita:--me a citações, para caracterizar
a posição tomada por Sartre na sua principal obra.
Diz ele, notadamente: "As mais atrozes situações da
guerra, as piores torturas não criam um estado de
coisas desumano; não há situação desumana: é so­
mente pelo medo, a fuga e o recurso às condutas má­
gicas que eu decidirei do desumano: mas essa decisão
é humana e tomarei sua inteira responsabilidade"
(L'Être et le Néant, p. 639) (Sublinhado por mim,
G. L.). A brochura de popularização de Sartre já
leva em conta a situação geral depois da Libertação,
tal como a descrevemos, e aceita a parte de obriga­
ções que dela decorrem para o existencialismo. Assim,
nessa brochura, diz Sartre: " ... sou obrigado a querer
ao mesmo tempo que minha liberdade a liberdade dos
outros, não posso tomar minha liberdade por um fim,
a não ser que tome igualmente a dos outros por um

114
fim" (L'Existentialisme est un Humanisme, p. �3).
Noutra passagem, encontramos uma fórmula mais ra­
dical, e, ao mesmo tempo, ainda menos nítida: "o que
escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom
para nós sem o ser para todos". Para quem conhecer
a filosofia de Kant, é imediatamente evidente que a
posição de Sartre é totalmente vizinha da de Kant;
o postulado que formula aqui parece decorrer direta­
mente do imperativo categórico, segundo o qual tudo,
no mundo, pode ser tratado como meio, "só o homem
é um fim em si mesmo" (lbid., p. 25-26). Veremos
como essa concepção está destinada a desempenhar
um papel decisivo na gênese da moral existencialista.
Queremos saber entretanto com que direito Sar­
tre opera esse alargamento de sua concepção original
da liberdade. Essa moral inspirada em Kant faz parte
orgânica do existencialismo? Não que nos sintamos
obrigados a velar pela ortodoxia da doutrina exis­
tencialista, não. Mas temos o dever de protestar, quan­
do J.-P. Sartre e seus discípulos afirmam que sua
filosofia, de que já identificamos a base heideggeriana,
enquanto niilista e reacionária, representa uma ideo­
logia progressista e democrática. Indicamos então
uma contradição entre os fundamentos filosóficos e
os postulados éticos dessa doutrina; segue-se daí a
obrigação de abandonar, para todos aqueles que le­
vam a sério a filosofia e a moral, tanto os fundamen­
tos heideggerianos, como o edifício progressista e li­
beral construído sobre estes.
A inconseqüência de Sartre e o ecletismo de suas
novas posições manifestam-se, antes de tudo, pelo
fato de que seu novo conceito de liberdade está muito
longe de coincidir com aquele formulado na sua obra
principal. Nesta, o autor seguiu, com algumas diver­
gências de pormenor, os fundamentos elaborados por

115
Kierkegaard e por Heidegger. Assim, a liberdade sig· 1•
nifica o ato subjetivo de decidir e de agir, sem levar
em conta o conteúdo ou a direção do ato. Quer o
torturado fale ou guarde silêncio, quer o mobilizado
tome das armas ou deserte, trata-se, apenas e sem­
pre, da liberdade tal como surgiu do ato individual.
Para falar a verdade, pode-se querer ou não
querer essa liberdade para outrem? A resposta não
poderia ser outra senão negativa. Pois, quando violo
a liberdade de outrem da maneira mais direta ( sua
liberdade no sentido corrente da palavra), meu ato
pode ainda, segundo o existencialismo, ser um ato
de minha liberdade. Por outro lado, outrem terá
ainda - segundo o conceito de liberdade caro a Hei­
degger e a Sartre - sua liberdade absolutamente
ilimitada de reagir. É evidente que agindo assim,
crio para ele uma "situação", mas nessa situação,
será absolutamente livre para escolher entre a obe­
diência e a autodefesa. Qualquer que seja sua esco­
lha, pode - segundo Sartre - optar em liberdade
e manifestará sua liberdade pelo ato de obediência
ou de autodefesa que ele mesmo terá escolhido. As­
sim, o efeito mais profundo que eu pudesse exercer
sobre outrem consistiria somente em criar para ele
uma situação: isto não pode constituir, de minha
parte, uma intervenção na sua liberdade.
O postulado moral, formulado pela brochura de
popularização de Sartre, não perde entretanto seu
sentido. Está, ao contrário, carregada de um sentido
completamente claro, ainda que incompatível com as
considerações fundamentais de sua obra principal.
Incompatível, não somente por razões lógicas, mas
porque a liberdade que é tratada nessa brochura não
é somente a do ato individual, mas, ao contrário, é
a liberdade no sentido social da palavra. Quando

116
postulo minha própria liberdade assim compreendida,
segundo a tradição da moral antiga, minha vontade
torna-se desprovida de sentido, se não postular, ao
mesmo tempo, a liberdade dos outros. Neste caso,
com efeito, liberdade significa ser cidadão livre de
um Estado livre e a liberdade dos meus concidadãos
constitui uma condição sine qua non da minha. Este
raciocínio é perfeitamente claro e segue-se também
claramente que essa liberdade não tem mais nada a
ver - não só logicamente, mas também quanto ao
seu conteúdo - com o conceito de liberdade formu­
lado em L'être et le Néant, onde surge exclusivamen­
te do ato subjetivo.
Examinando um pouco mais de perto esses dois
conceitos de liberdade, emprega<los simultaneamente,
mas que são radicalmente diferentes, o empréstimo
metodológico que Sartre fez de Kant aparece sob
uma luz completamente nova. Não é preciso esquecer,
com efeito, que a despeito de todas essas inconseqüên­
cias conhecidas, Kant pode, com justiça, pretender
ter conferido um valor universal à sua moral da
intenção, porque sua doutrina opõe o Eu de seu ato
moral à existência imediata do homem e porque esse
Eu encerra assim, implicitamente, a consideração do
homem por ele mesmo, enquanto ser dotado de razão,
pertencente à humanidade. A interdição de conside­
rar o homem como meio não contradiz então em si
mesma, de maneira nenhuma, esta concepção. É de­
vida somente ao revestimento formalista da moral
kantiana, que dissimula elementos históricos e sociais
ignorados pelo próprio Kant.
O formalismo sartreano encerra igualmente, nós
o veremos, elementos históricos essenciais inconscien­
tes, mas de um caráter completamente diferente, ab­
solutamente contrário mesmo. Simmel quis já mo-
117
dernizar os constituintes temporais da moral de Kant,
opondo à "liberdade dos indivíduos pertencentes es­
sencialmente à mesma espécie" um individualismo
novo, o da personalidade única. É esse ideal de igual­
dade, proveniente do tesouro espiritual da Revolução
Francesa e considerado por Simmel como caduco, que
permitirá a Kant, do ponto de vista metodológico, a
universalização de que falamos acima. A moral de
Simmel, a da personalidade única, torna-se entre­
tanto a tendência dominante do estágio do imperialis­
mo, transformando cada vez mais a ética em um
solipsismo irracional dos atos subjetivos de perso­
nalidades únicas. Sein und Zeit, de Heidegger, assim
como L'être et le Néant, de Sartre, representam os
pontos culminantes dessa evolução. Para dotar seu
conceito de liberdade de um valor universal, Sartre
deve portanto alçar-se bem mais longe do que Kant,
tanto mais que pretende ir bem mais longe. A rei­
vindicação da .. liberdade para todos vai efetivamente
bem mais longe do que a simples interdição de con­
siderar o homem como meio. Era necessário portan­
to realizar aqui um salto miraculoso. E Sartre, com
a coragem nas mãos e o nome de Kierkegaard nos
lábios, saltou. Saltou de um conceito de liberdade
bem determinado a um outro completamente oposto...
Vamos ver como, na sua obra de vulgarização,
Sartre opera com dois conceitos de liberdade, que na­
da têm a ver juntos e que são mesmo totalmente in­
compatíveis.
L'Existentialisme est un Humanisme traz, com
efeito, um exemplo bem descrito, que mostra clara­
mente que seu novo conceito de liberdade é apenas,
para o autor, uma concessão às exigências do momen­
to, mas que no fundo permanece sempre ligado à mo-
1 ral que lhe foi legada por Kierkegaard e por Hei-

118
clegger. O exemplo evoca o caso de um jm·(•t11 1·0111-
cado diante do seguinte dilema: abandonar sua 111;1(·
ou abandonar a luta pela libertação. Ora, se Sart n·
levasse verdadeiramente a sério seu novo conct"ito
de liberdade, esforçar-se-ia por deduzir dessa ddi­
nição geral (ligação de minha liberdade à de todos)
uma linha de conduta moral, suscetível de inspirar
uma decisão a esse jovem. Mas não pensa assim.
Demonstra, ao contrário, que a concepção kantiana,
segundo a qual nenhum homem deve �er tratado como
meio, concepção tão próxima da sua própria, coloca
esse jovem diante de um dilema insolúvel. Deve con­
siderar tanto sua mãe como seus companheiros de
armas como meio. Partindo da concepção moral de
L'Ê:tre �t le Néant, Sartre recusa-se a dar um con-
selho. Diz a esse jovem: "você é livre, escolha .. .
Nenhuma moral geral pode indicar-lhe o que fazer ... "
Mas a nova moral sartreana, a que liga minha liber­
tlade à de todos, não é também uma "moral geral",
!sto é, segundo Sartre, uma moral que não poderia
e não deveria - segundo a antiga concepção sar­
( treana da liberdade - inspirar nenhuma decisão ao
sujeito que age? Mas se assim for, qual é o valor
dessa moral quando se tratar de construir um sistema
geral? Se o ato de decidir é o único critério decisivo,
se a concordância interior da decisão com a persona­
lidade que se constitui de novo por esse ato permanece
a única realização possível de minha liberdade, então
o. existencialismo não oferece nenhuma possibilidade
para uma generalização moral, até mesmo histórico­
social. Neste caso, a moral, tal qual foi formulada
nessa obra de popularização, nada mais é do que
uma construção eclética, cheia de contradições, acres­
centada de forma completamente exterior ao existen­
cialismo propriamente dito.
119
3.
SARTRE CONTRA MARX
Certas conclusões metodológicas já se impõem
partindo desta análise sumária a que acabamos de
nos dedicar. Toda concepção, e mesmo toda categoria
ótica encerra - conscientemente ou não - uma certa
visão da sociedade e de sua evolução. (Esta visão
pode, sem dúvida, negar toda evolução.) Para que
uma construção ética possa estar isenta de contradi­
ções internas e permanecer correta do ponto de vista
puramente formal, deve poder referir-se a uma con­
cepção homogênea da estrutura e do dinamismo da
história e, portanto, do indivíduo. É impossível des­
conhecer, à luz destas considerações, o significado
histórico da inconseqüência de que Sartre dá provas
em sua pequena obra: exprime uma modificação, sem
dúvida inconsciente, das concepções do autor sobre
a sociedade, a história, a situação histórica etc. E
já que no entanto Sartre não acreditou dever modifi­
car suas concepções filosóficas de base, esta modifi­
cação só pode manifestar-se da maneira que nós mos­
tramos, isto é, sob o aspecto do emprego de dois con­
ceitos diferentes de liberdade, dos quais o segundo
se mostra totalmente incompatível com o método do
existencialismo.
A nosso ver, a crise na qual se debate o existen­
cialismo manifesta-se pelas divergências cada vez
mais graves que separam os primeiros princípios do
existencialismo, provenientes socialmente da situação
de uma certa classe de intelectuais do estágio do
imperialismo, e que provêm, do ponto de vista teó­
rico, de Kierkegaard, de Husserl e de Heidegger, de
problemas e de concepções novas que lhe impôs a

120
época histórica consecutiva à Libertação. �Jut• os
existencialistas mais em evidência e, antes de tll(lo,
o próprio Sartre, não fossem conscientes desta rrist•,
não há nisto nada de espantoso .. Não há necessidadt·
de evocar aqui analogias históricas. Basta recordar
a obscuridade dos métodos da fenomenologia, obscuri­
dade que só cresceu após o surgimento de uma onto·
logia fundamental, mais proclamada que verdadeira­
mente fundamentada, do ponto de vista metodoló­
gico. Ora, esta obscuridade permite abrir e fechar
o célebre parênteses de uma maneira tão arbitrária,
que a relação entre realidade e representação torna-se
com efeito incerta. Distinguir exatamente, nestas
condições, entre o objetivo e o subjetivo, necessita­
ria, a bem dizer, uma verdadeira virtuosidade crí­
tica. Mas a ambição de fazer do existencialismo a
filosofia de nosso tempo, o desejo de alcançar a vi­
tória contra o materialismo dialético são pouco com­
patíveis com o espírito crítico.
O exemplo do próprio Sartre forneceu a melhor
prova do essencial de nossas afirmações. Simone
de Beauvoir e, principalmente, Maurice Merleau­
Ponty, não deixam de mostrar, com efeito, uma certa
vontade de compreensão dos problemas da atualidade
analisados pelo aparelho conceituai elo marxismo. Es­
ta vontade vai talvez a par com a esperança de poder
provar, em última instância, a superioridade do exis­
tencialismo: parecem pressentir, às vezes, que há ne­
cessidade de certas correções. Mas o próprio Sartre,
esforça-se freqüentemente por suprimir o rival desa­
gradável por meios demagógicos, bastante baratos t•
indignos de um pensador de sua classe.
Sartre consagra em sua revista dois importantes
estudos ao debate contra o marxismo. Seu ponto de
partida é naturalmente determinado por sua posição
121
l'xistencialista, o que falseia completamente suas con­
clusões. Em lugar de partir, por exemplo, da análise
da situação real da França, ou da Europa, de exami­
nar suas tendências revolucionárias em presença e
perguntar em seguida qual das duas ideologias reflete
melhor a evolução objetiva da história, Sartre parte
de uma meditação sobre a mentalidade da juventude
atual, para a qual o idealismo passa por estar defi­
nitivamente comprometido com a classe dirigente, mas
que não deixa de demonstrar reservas em relação ao
materialismo. Segundo Sartre, intimida-se esta ju­
ventude dizendo-lhe que aquele que não opta pelo
materialismo, concorda, queira ou não, com o campa
do idealismo desprezado. Sartre propõe-se portanto
explorar - por meios bastante demagógicos - essa
mentalidade, com vistas a desacreditar definitivamen­
te o materialismo e preparar assim o caminho ao
triunfo do existencialismo, desse "terceiro caminho"
do pensamento que não é nem materialista nem
idealista.
Empregamos a palavra . "demagogia", bem sa­
bendo que, numa discussão científica, ela pode, com
razão, parecer brutal. Acreditamos dever empregar
essa palavra porque a polêmica de Sartre contra o
materialismo quase não poderia ser qualificada de
outro modo. Não podemos crer, com efeito, que Sar­
tre ignore numerosas questões tratadas ao longo de
dezenas de brochuras de vulgarização. Ora, neste
caso, é quase impossível admitir que sua boa fé seja
integral.
Abriremos o debate com uma questão de termi­
nologia. Sartre declara que o materialismo é uma
"doutrina metafísica". É penoso ver Sartre, pensador
autêntico e de grande classe, empregar contra o ma-

122
terialismo dialético os argumentos que conviria opor
ao materialismo mecanicista: é um procedimento qtH'
não é digno dele. O termo "metafísica" possui ali:'ts,
no vocabulário do materialismo dialético, um sent icln
particular, porque é a antinomia do termo "dialética".
Se a polêmica fosse leal, Sartre deveria dar pelo
menos uma indicação rápida dessa acepção particular,
que é somente de emprego corrente nos marxistas.
Compreendemos perfeitamente - porque conhece a
dialética apenas sob sua forma completamente fal­
seada por Kierkegaard e por Heidegger - que possa
considerá-la como contrária ao espírito científico. Re­
prova confusões dessa ordem aos marxistas france­
ses, mas no entanto, graças a uma hábil manipulação
das duas acepções do termo "metafísica", ele mesmo
confunde a questão. Diz, entre outras coisas, que
a c1encia, enquanto "realização da quantidade''
(Temps Modernes, t. IX, p. 1544) opõe-se à dialética.
Então não sabe que a categoria da quantidade faz
parte, em Hegel, assim como em Marx, do aparelho
conceituai da dialética? Sartre continua a confundir
a questão quando, a respeito da matéria, atribui aos
marxistas "a matéria de que falam os cientistas''
(Temps Modernes,_t. IX, p. 1543). Talvez seja justo,
quando se trata da questão concreta que visa a es­
trutura da matéria. Mas o que Sartre discute aqui
é a noção epistemológica de matéria e deveria saber
que, em Materialismo e Empiriocriticismo, sua gran­
de obra de filosofia, Lenin separa com a maior cla­
reza a definição filosófica da matéria ( o que existe
independentemente de nossa consciência) das defini­
ções sempre mutáveis e sempre suscetíveis de aper­
feiçoamento dadas pelo conhecimento científico ccm­
creto. Acredito poder limitar-me aqui a essa rápida
indicação, porque essa questão está desenvolvida em
123
detalhe no último estudo desse volume. É com tais
armas que Sartre combate o materialismo, esse "mons­
tro e Proteu inapreensível, essa aparência falsa, vaga
e cheia de contradições" (Temps Modemes, t. IX,
p. 1560).
Passemos agora às questões concretas. Sartre:
reprova ao materialismo, antes de tudo, de "eliminar·
a subjetividade" e de "privar o homem da liberdade";
acusações que são familiares a nós, marxistas, há
dezenas de anos, porque fazem parte do arsenal re­
gulamentar do menor dos nossos adversários. Todo
marxista poderá constatar sem esforço que aqui tam­
bém Sartre desfigura o marxismo para poder comba­
tê-lo. Está aliás obrigado, pelo fato de que ocupa
uma posição defensiva, que habilmente camufla em
ofensiva, aproveitando da relevância dada pelo exis­
tencialismo à subjetividade, o que constitui o seu ele­
mento relativamente justificado. Dizemos relativa­
mente justificado, pois a doutrina existencialista o
sobrecarrega ao ponto de o transformar em um absur­
do. Entretanto, por mais justificado que seja:, esse
elemento está longe de ser desconhecido por nós,
marxistas. Trata-se, com efeito, de sublinhar que
são os próprios homens que fazem sua história, tanto
na sua vida privada como na existência pública. Se­
gue-se que tudo o que aconteceu, acontece e aconte­
cerá no curso da história da humanidade compõe-se
de ações humanas, as quais têm sua fonte direta ·nas
resoluções humanas e essas resoluções são sempre
tomadas nas situações concretas, precisas ( a "situa­
ção", cara aos existencialistas). Ora, consideradas
no plano individual, essas resoluções podem sempre
· ser tomadas num sentido ou noutro. Nenhum marxista
razoável poderia, com efeito, pôr em dúvida que, por
124
exemplo, quando os operários são chamados a partici­
par de uma manifestação, cada operário intercssacl11
deverá decidir se tomará parte nela ou não; não colo­
camos em dúvida nem que seja possível prever o sen­
tido geral de todas essas decisões individuais e tais
previsões são às vezes enganadoras.
Se o existencialismo se contentasse em esclarecer
esse elemento de uma relação dialética frente aos
marxistas vulgares que consideram o determinismo
econômico da consciência humana como uma fatali­
dade mecânica, sua posição seria inteiramente justi­
ficada e muito útil. Mas não seria suficiente para
permitir-lhe apresentar-se, face ao marxismo, como
uma filosofia independente. Sartre isola e erige como
absoluto esse momento mediador necessário da his­
tória, colocando-o no centro mesmo de sua doutrina,
e vê-se obrigado a suprimir a objetividade da natureza
e da história, pois a seus olhos, só a subjetividade in­
terior pura é digna desse nome. A fim de salvá-la,
é obrigado a abandonar a objetividade da natureza e
da história. Esse procedimento certamente conserva­
ria uma aparência lógica, enquanto, como em Hei­
degger, somente os problemas puramente interiores
do intelecto estivessem em jogo: a subjetivação da.
história corresponderia então exatamente às ilusões'.
mantidas pela classe de intelectuais quanto às suas ,
relações com a realidade histórica e social. Mas essa
opinião torna-se muito difícil de defender, quando se
tem a ambição de defendê-la frente ao marxismo, en­
quanto verdadeira filosofia da história. Neste último
caso, restam apenas ao existencialismo duas possibili­
dades: esboçar uma caricatura do marxismo e conse­
guir contra este uma vitória fácil ( o que faz aqui
Sartre), ou então tentar incorporar - abusivamente
- ao existencialismo certos resultados do marxismo,
125
escamotear, no domínio da prática, o antagonismo que
existe entre essas duas ideologias e salvar assim as
bases filosóficas do exitencialismo. É o caminho esco­
lhido por Simone de Beauvoir e, sobretudo, por Mau­
rice Merleau-Ponty.
Sartre declara que o marxismo "elimina a sub­
jetividade". Vejamos o que diz, a esse respeito, En­
gels: "Fazemos nós mesmos nossa história, escreve,
mas, antes de mais nada, com premissas e condições
determinadas. Entre todas, são as condições eco­
nômicas as finalmente determinantes . . . Mas, em
segundo lugar, a história faz-se de tal modo que o
resultado final provém sempre dos conflitos de um
grande número de vontades individuais das quais ca­
da uma por sua vez é feita tal qual é por uma multi­
dão de condições particulares de existência; há por­
tanto aí inumeráveis forças que se contrapõem mu­
tuamente, um grupo irifinito de paralelogramos de
força, donde se origina uma resultante - o aconteci­
mento histórico - que pode ser considerado, por sua
vez, como o produto de uma força que age como um
todo, de maneira inconsciente e cega. Pois, o que
cada indivíduo quer é impedido por outro e o que daí
resulta é qualquer coisa que ninguém quis... Mas,
pelo fato de que as diversas vontades ... não chegam
a realizar sua vontade, mas se fundem em uma média
geral, em uma resultante comum, não se tem o direito
de concluir que sejam iguais a zero. Ao contrário, cada
uma contribui para a resultante e, por isso, está in­
cluída nela".
É evidente que quando o marxismo se apresenta
sob seu verdadeiro aspecto e não sob o da caricatura
concebida por Sartre, percebe-se imediatamente sua
incompatibilidade fundamental com o existencialis­
mo. Com efeito, enquanto este último limita-se - ao

126
menos sob sua forma primeira - a esboçar a análist•
psicológica e fenomenológica de resoluções e de ações
individuais isoladas, acrescentando às vezes comen­
tários de ordem moral, ou os ex.agerando para f azcr
deles uma ontologia, a análise marxista da histúria
começa precisamente no ponto em que o existencialis­
mo abandona a partida. O marxista começa por exa­
minar como esse caos de atos individuais torna-se um
processo objetivo, regido por leis cognoscíveis que de­
nominamos História.
Para compreender a História, a análise marxista
remonta aos fundamentos materiais da ação humana,
à produção e à reprodução materiais da vida humana.
, Nela descobre as leis históricas objetivas, mas não
nega, no entanto, o papel da subjetividade na His­
tória. Apenas determina o lugar exato que lhe cabe
na totalidade objetiva da evolução da natureza e da
· sociedade.
. . É contra essa objetividade que se dirige a polêmica
de Sartre. Ele nega, em primeiro lugar e de pleno
acordo com uma parte considerável de cientistas bur­
gueses de nosso tempo, assim como com toda a fi­
losofia reacionária moderna, a historicidade da na­
tureza. Com respeito à história, só reconhece a da
humanidade. Mas como esta seria possível, sem base
objetiva, sem leis objetivas, sem tendências gerais
objetivamente existentes? A essa questão, Sartre
não tem resposta nem poderia ter. Tanto mais que,
mesmo quando lhe ocorre evocar - utilizando e sim­
plificando certos resultados do marxismo - uma ques­
tão concreta, apressa-se em dar-lhe uma aparência
subjetiva e irracionalista.
É assim quando examina o problema do trabalho.
Toma de Marx a estreita ligação causa-ef cito e
meio-fim na sua definição do trabalho. Mas a mis-
127
tificação existencialista começa logo: o fim, para
Sartre, é qualquer coisa "que não existiu no Uni­
verso antes" (Temps Modemes, t. X, p. 19) e assim,
o conhecimento dialético correto do trabalho, a prio­
ridade do fim em cada processo de trabalho encon­
tram-se desfigurados e esvaziados de seu sentido.
Pois, assim como Hegel havia reconhecido, a possi­
bilidade de fixar um fim, isto é, a possibilidade de
atingir, na realidade objetiva, o fim subjetivamente
fixado, pressupõe um certo conhecimento da realida­
de objetiva; e não é sem razão que a teleologia é, em
Hegel, "a verdade" do mecânico e do químico. O
marxismo vai aliás mais longe, porque reconhece que
o próprio fim decorre da realidade social, que o de­
termina nas suas possibilidades de realização.
Ora, eis o que essa construção que não pode ser
mais clara torna-se na mitificação sartreana: "Po­
de-se dizer, nesse sentido, que o átomo foi criado pela
bomba atômica (? G. L.), a qual não poderia ser
compreendida senão a partir do projeto anglo-ame­
ricano de ganhar uma guerra" (Temps Modernes,
t. X, p. 19). A palavra "projeto" é aliás uma das
fórmulas mágicas do vocabulário existencialista. Bas­
ta tê-la pronunciado, para que os existencialistas acre­
ditem ter resolvido o problema. Neste caso, essa
fórmula deveria servir para dissimular o fato de que
o "projeto" da bomba atômica só pôde surgir em
função de um certo grau de evolução do capitalismo
imperialista e que esse "projeto" pressupõe um certo
grau da evolução da natureza - que existe indepen­
dentemente da consciência humana - ou mais con­
cretamente, um certo grau de evolução do nosso co­
nhecimento do átomo - que existe igualmente fora
de nossa consciência. Essa dissimulação permite con­
siderar o átomo como uma criação do "projeto" da
128
bomba atômica, enquanto na realidade o projeto deve
sua existência à exploração da ciência para fins im·
perialistas.
É evidente que essa concepção idealista do "pro·
jeto" não tem lugar para o trabalhador que trabalha
efetivamente. Eis porque a análise sartreana do tra­
balho considera seu objeto com um certo desliga­
mento nobre. O trabalhador, diz em substância Sar­
tre, descobre sua liberdade no trabalho, mas essa li­
berdade não corresponde ao ideal existencialista. "É
o determinismo da matéria que lhe oferece a primei­
ra imagem de sua liberdade" (Temps Modernes, t.
X, p. 15).
Não é por acaso que Sartre manifesta aqui seu
descontentamento. A liberdade que o trabalhador des­
cobre no trabalho - não, naturalmente no trabalho
enquanto relação inter-humana e social, mas no tra­
balho enquanto relação material entre a sociedade e
a natureza - essa liberdade é, com efeito, a liberdade
autêntica e real: a que é necessidade reconhecida. É
baseada num conhecimento aproximatiyamente ade­
quado da realidade objetiva, se bem que esse conhe­
cimento não se manifesta sempre de maneira cientí­
fica ou mesmo consciente. O trabalho está estreita
e necessàriamente ligado à matéria, ao utensílio etc.,
e isso afasta bastante seu caráter dessa "perfeição"
da liberdade, própria às especulações que se desenro­
lam no vazio da intelectualidade pura, que forma as
bases do conceito de liberdade formulado em L'Être
et le Néant. Sartre define essa inferioridade onto­
lógica do trabalho, declarando que, para o operário,
"a idéia da libertação está ligada à do determinismo"
(Temps Modernes, t. X, p. 16) e que as relações in­
ter-humanas são, para o operário, as entre "liberdade
tirânica e obediência humilhada". A essas relações,

129
o operário substitui de início a relação entre o homem
e o objeto, que ele domina e, em seguida - porque
o homem que domina os objetos é ele mesmo objeto
- a relação entre as coisas. "Quando todos os ho­
mens são coisas, diz ele, não há mais escravos"
(Temps Modernes, t. X, p. 16).
l Sartre considera portanto como idênticos os pro­
cessos de trabalho enquanto tais (a relação entre a
sociedade e a natureza) e o trabalho enquanto base
de relações entre as diversas classes da sociedade.
Esses dois aspectos· do conceito do trabalho formam,
certamente, uma unidade dialética na s·ua evolução,
mas Sartre não deixa de cometer um erro conside­
rável ao escamotear pura e simplesmente a di­
ferença essencial que os separa, e que faz com que
eles ajam de uma maneira totalmente diferente so-
l bre a consciência do trabalhador. fo processo do tra­
. balho produz, necessária e espontaneamente, um ma­
terialismo prático. Sem um conhecimento aproxima-
tivo da realidade objetiva é, com efeito, impossível
efetuar o trabalho mais primitiv.QJ A compreensão
materialista do caráter social do trabalho só pode, ao
contrário, realizar-se lentamente, atravé-s de crises e
como resultado de séculos de lutas de classes. En­
quanto trabalhadores, os operários ingleses eram, no
início do século XIX, tão materialistas espontâneos
quanto os escravos do Egito antigo (se bem que com
um grau de conhecimento mais elevado), mas enquan­
to Ludistas, sua ação era puramente idealista, isto
é, guiada por representações subjetivas e falsamente
sociais, desprovidas do conhecimento da realidade so­
cial objetiva.
Vê-se a conclusão desse pretenso aprofundamen­
to da teoria marxista na reificação, operado pela on­
tologia fundamental. Marx constata fatos sociais
130
t,·ais: a força de trabalho de todo trabalhad11r -
para 11:u> abandonar o exemplo citado por Sartre -
t: ;1 1'mica mercadoria cuja venda pode assegurar sua
�11hsistência. A compra e a venda dessa mercacl()ria
nia111 - independentemente de toda consciência -
n·laçúl's sociais entre os homens, que parecem ser re­
L1(,'111•s entre coisas. A análise marxista da reificação
,., 111sist <' precisamente em descobrir sob essas rela­
,;, 11·s, ott mais exatamente, nessas relações - as re­
l.11.;i"11·s humanas ( entre classes). A ontologia de Sar­
t r,• vai num sentido oposto. A estrutura da consciên-
1·1.1, tal como se forma no capitalismo, é por ela pro­
cla111ada a "situação" decisiva do trabalhador. É a
partir dessa "situação" que deduz uma "fenomena­
l, 1g ia" do trabalhador, inexistente na realidade e que
d,•.., fi1,.,:-ura totalmente todos os fatos. Enquanto que
11.i realidade, a libertação dos trabalhadores significa

., -..11prl'ssão, o aniquilamento de todas as relações rei-


1 i .. adas entre os homens, Sartre faz coincidir o ideal
d,· lilH•rdacle do trabalhador com a universalização sem
11111 i I t·s da reificação. Essa ontologia dá nascimento
,t il11s:in segundo a qual a reificação capitalista não
r, i-..1 iria na realidade social objetiva, isto é, tanto na
1111i-..cit�ncia cio capitalismo como na do trabalhador,
111,, ... somente na deste último. Assim, a reificação
'lt't ia apl'nas o fruto do comportamento do trabalha­
i!, 1r 1·111 relação à realidade. É o que permite a Sartre
111111'111ir, não sem analogia com certos autores pré­
Lt-,,·i-d as, que a "concepção materialista é a dos opres­
'" 11 , • .., " (Temps Modernes, t. X, p. 20). É ainda assim

1p1r· ,·l1· t'heg-a a cuidar de um certo efeito, declarando


q11,· "11 mito do materialismo" é o único "que convém
rtrt rxi�t�ncias da revolução" (Temps Modernes, t. X,
I' 21 ). Segundo ele, a concepção do pragmatismo
11a11 p11dl'ria satisfazer os revolucionários e "inven-

131
tou-se o mito materialista" (Temps Modernes, t. X,
p. 25).
É com tais argumentos que Sartre pretende des­
truir o edifício teórico do marxismo. Tranquilize­
mo-nos: o marxismo, ao qual isto não ocorre pela
primeira vez, resiste muito bem. Em lugar do mar­
xismo, Sartre oferece à juventude "as noções novas"
(Temps Modernes, t. X, p. 29) de "situação" e de
"ser-no-mundo", de que mais tarde analisaremos a
significação real. Oferece-lhe também - perspectiva
absolutamente inédita - a certeza de que, o homem
sendo livre, o triunfo do socialismo é incerto. O so­
cialismo é - claro - um "projeto humano". "Será
o que os homens dele farão" (Temps Modernes, t. X,
p. 30). De passagem, Sartre tem o cuidado de trans­
formar um texto do Manifesto Comunista, onde tem
sua importância e sua significação concreta, em um
lugar-comum abstrato e desprovido de sentido.
Mas todos esses ataques e todos esses contra­
sensos tendem para tim objetivo definido. Sartre
tenta, com efeito, ligar sua aceitação ideológica da
revolução à "situação" dos oprimidos e fazer disso,
ao mesmo tempo, uma filosofia universal que não seja
mais o bem exclusivo de uma classe. Quer mostrar
como é possível chegar à revolução quando se pertence
a uma classe não-proletária ou mesmo à burguesia.
"Um burguês opressor é oprimido por sua opressão"
(Temps Modemes, t. X, p. 131). Sartre pode assim
metamorfosear, por meio de uma nova operação da
ontologia fundamental, uma outra idéia marxista em
um lugar-comum abstrato e absurdo. Engels mostra,
com efeito, como o burguês, e até mesmo o aposentado
desocupado estão submetidos às leis da divisão ca­
pitalista do trabalho e Marx descreve com muita cla­
reza a unidade dos elementos comuns e antagonistas
132
na ex.istência e consc1encia sociais do burguês e do
proletário. "A classe possuidora e a classe do pro­
letariado, escreve, representam a mesma alienaçàu
humana, mas a primeira se sente à vontade nessa
auto-alienação, que experimenta como sua própria
afirmação, que sabe ser seu próprio poder e na qual
possui a ilusão de uma existência humana. A segunda
se sente aniquilada na alienação, que representa para
ela sua própria impotência e a realidade de uma exis­
tência desumana".
O próprio Marx designa, é evidente, uma pos­
sibilidade para os não operários de se tornarem revo­
lucionários. Basta pensar nas indicações bem conhe­
cidas do Manifesto Comunista, sobre as quais tere­
mos ocasião de voltar. Mas Sartre quase não pode
aceitar essa teoria e é precisamente aí que se mani­
festa o ponto mais fraco, a debilidade irracionalista
da couraça existencialista. O existencialismo recusa­
se atribuir um papel decisivo, na gênese das decisões
dos homens, às opiniões e às idéias, em uma palavra,
aos reflexos da realidade objetiva na consciência hu­
mana. De uma maneira muito característica, Sartre
opõe formalmente a ação prática à contemplação. Pa­
ra ele, essas duas noções excluem-se mutuamente,
a tal ponto que considera o conhecimento objetivo
como decorrente da "situação" dos conservadores:
o pensamento conservador, diz Sartre "declara que
contempla o mundo tal qual é. Considera a sociedade
e a natureza do ponto de vista do puro conhecimento
sem confessar que sua atitude de estrita epistemolo­
gia tende a perpetuar o estado presente do universo,
porque persuade que se pode antes conhecê-lo do que
mudá-lo e que, ao menos, é necessário conhecê-lo
para mudá-lo" (Temps Modernes, t. X., p. 5). O que
é justo nessas poucas frases, a saber, a nulidade de
133
uma teoria destacada de toda prática e a hipocrisia
de um conhecimento que se pretende puro, é-nos co­
nhecidas pelas célebres Teses de Karl Marx sobre
Feuerbach, que datam de 1845. Sartre acrescenta.',
a recusa em admitir o conhecimento da realidade en-/
quanto condição prévia da sua transformação. Atri- \
hui essa recusa aos conservadores, por meio de uma
estranha contemplação fenomenológica da essência,
se bem que a teoria do conhecimento conservador
ignora esse ponto de vista, que não foi jamais formu­
lado por pensadores conservadores.
Teremos ainda, ao falar dos trabalhos de Simone
de Beauvoir e de Maurice Merleau-Ponty, ocasião de
voltar às conseqüências desse repúdio do papel social
e moral do conhecimento. No momento, lirnitar-nos­
emos a notar que, na maior parte dos casos, as obje­
ções de Sartre contra o marxismo signifi�am sim­
plesmente que é absolutamente incapaz de compreen­
dê-lo. É ele que se recusa a reconhecer a influênci�
decisiva do conhecimento das situações e das forças/
sociais e é ele que proclama o marxismo incapaz de,;
explicar o fenômeno da consciência de classe. "Uni
estado do mundo não poderia jamais produzir uma
consciência de classe", diz ele em Temps Modernes
(t. X, p. 13). Acrescenta mesmo que os marxistas
bem sabem em que se ater a esse respeito, porque
enviam seus funcionários entre as massas, a fim de
radicalizá-las e de despertar sua consciência de classe.
Mas, pergunta Sartre triunfante, "esses próprios
Íttncionários, onde adquirem sua compreensão da si­
tuação?" (lbid.) Claro: quando se nega que o co­
nhecimento é o reflexo da realidade objetiva na cons­
ciência, quando se faz da ação revolucionária um
fetiche independente, que não tem mais nenhuma re­
lação com o conhecimento da realidade objetiva e com

134
as leis igualmente objetivas que a regem, então o fato
muito simples de haver graus na compreensão desses
problemas e que uma compreensão mais completa es­
timula a ação pessoal e mesmo a dos outros torna-se
um enigma. É desagradável, mas não é o marxismo
responsável por isso. Após ter extinto todas as luzes
do conhecimento objetivo, não é ao marxismo, mas
unicamente a si mesmo que Sartre deve reprovar
por se encontrar no escuro ...

4.
A MORAL DA AMBIOOIDADE E A
AMBIOOIDADE DA MORAL EXISTENCIALISTA

Em Simone de Beauvoir, as contradições inter­


nas do existencialismo são ainda mais visíveis que
no próprio Sartre. Ela propõe-se completar as bases
ontológicas da doutrina existencialista pela junção de
tt111a moral. Mas - fato notável, se bem que não
tenha nada de espantoso - suas análises morais cons­
tituem igualmente discussões com o marxismo, com
o fato da existência da União Soviética, com as exi­
g-ências que o Partido Comunista coloca a seus mem­
bros e às massas, e assim por diante. Apenas cita
aqui e ali os outros sistemas de moral, enquanto
trava uma polêmica em regra com o marxismo, o
((Uai, diz-se, não tem moral. Isto testemunha um
robusto senso de realidade em S. de Beauvoir, porque
sente muito bem que essa camada de intelectuais cujo
sentimento obscuro· corresponde ao existencialismo
t•xperimenta os problemas colocados pelo marxismo
rnmo uma tentação de se desviar do existencialismo.

( 1) Face ao nada. ( em francês no original) .

135
A doutrina de Kant ou de Hegel, a dos estóicos ou
dos epicuristas poderia ser perfeitamente combatida
à força de argumentos puramente acadêmicos. A
existência do marxismo equivale, ao contrário, do
ponto de vista da constituição de uma moral exis­
tencialista, a uma "situação".
Inversamente aos métodos empregados por Sar­
tre, o debate não se reduz, desta vez, a um ataque
demagógico. S. de Beauvoir tenta, ao contrário, in­
terpretar o marxismo como se fosse possível recon­
ciliar as duas doutrinas, "melhorando" ou "comple­
tando" o marxismo, pela junção de certos princípios
existencialistas. É assim, por exemplo, que tenta sub­
jetivar o marxismo: Marx não considera que certas
situações humanas sejam em si absolutamente pre­
feríveis a outras; são as necessidades de um povo,
as revoltas de uma classe que definem os meios e os
fins; é do seio de uma situação recusada e à luz dessa
recusa, que um estado novo aparece como desejável
(Temps Modernes, t. XIV, p. 200). E S. de Beauvoir
vai até acrescentar - de uma maneira completamente
artificial, se se considera o conjunto de seu ponto de
vista - que essa vontade afunda suas raízes estra­
nhamente na realidade histórica e econômica. Na
interpretação que dá de Marx, entretanto, essa re­
lação é completamente episódica: temos quase a im­
pressão que, no lugar da história, Marx teria escrito
uma fenomenologia ou uma ontologia fundamental dos
movimentos das massas. E quando se trata do pro­
blema da revolução, a atitude de S. de Beauvoir per­
manece a mesma: "A revolta não se integra no de­
senvolvimento harmonioso do mundo, não quer nele
se integrar, mas antes explodir no coração desse mun­
do e quebrar-lhe a continuidade" (Temps Modernes,
t. XVI, p. 465).

136
Nos dois casos, a concretização marxista das re­
lações históricas e sociais entre os homens pela eco­
nomia e pela transformação histórica da estrutura
econômica da sociedade permanece completamente
escamoteada. Não se trata de um mal-entendido for­
tuito. \A fenomenologia procede à exploração de um
objeto, colocando o problema de sua realidade "entre
parênteses". Das correlações fenomenológicas, tira
conclusões ontológicas e isso leva não só ao desa- '
parecimen to, no plano da metodologia e no da teoria
do conhecimento, da realidade concreta do objeto, co­
mo também à privação na sua representação feno- ·
menológica ou ontológica de suas características reais
mais importantes. A redução que está operãda, assim,
nada mais é, para retomar uma expressão de Marx,
do que uma "abstração razoável", porque desfigura
as relações mais importante�
O pensamento burguês atual atravessa uma cri­
se. Debate-se continuamente entre um empirismo
não teórico e a abstração vazia de todo conteúdo real.
A razão metodológica dessas dificuldades ( que se ex­
plicam naturalmente pela realidade social) reside
simplesmente no fato de que suas categorias de base
referem-se a um homem abstrato, supra-histórico, a
partir do qual não é mais possível voltar aos proble­
mas da realidade histórica do presente. A grandeza
da filosofia grega era uma conseqüência da utilização
espontânea pelos grandes pensadores da Antigüidade
das abstrações provenientes da realidade histórica da
vida da cidade. A homogeneidade relativa do cort­
junto social que tiveram em vista - porque os es­
cravos não contavam para eles - permitia-lhes rea­
lizar uma certa unidade original: o geral e o fato
histórico concreto. Quanto aos grandes pensadores
do período de nascimento da sociedade burguesa -
137
Kant deve ser considerado como o último elo da corren­
te - estavam tão exclusivamente voltados para esse
mundo novo em gestação e repudiavam tão resoluta­
mente o passado feudal enquanto nada filosófiço; não
conforme à razão, que chegaram· a uma unidade ló­
gica e a uma construção -monumental. Sem dúvida,
desde que a crise terminou e que, com a Revolução
Francesa, o caráter historicamente passageiro. dessa
sociedade se tornou manifesto, a unidade lógica des­
sa construção tornou-se contestável. A aplicação,
por imitação desses mesmos métodos e dessas mes­
mas categorias a uma realidade cada vez mais passa­
geira levou a esse dilema feito de empirismo e de
abstração de que falamos acima.
No domínio dessa questão capital, a fenomenolo­
gia fundamental não ultrapassa em nada os horizon­
tes da filosofia burguesa de nosso tempo. A histori­
cidade do Dasein constitui, certamente, - na sua de­
finição verbal - um dado primeiro da ontologia de
Heidegger. Mas rejeitando, enquanto temporalidade
"vulgar," a história econômica e social, a única con­
creta e verdadeira, tomando o indivíduo isolado e suas
experiências vividas como ponto de partida, Heidegger
serve-se de instrumentos teóricos que são sensivelmen­
te da mesma qualiqade dos de outros pensadores bur­
gueses. fA essência da "realidade humana" (isto é,
o homem), assim como o núcleo ontológico de suas
situações mutáveis permanecerá para ele, como para \
seus discípulos franceses, abstrata e supra-históric�
Esse fato encontra em Simone de Beauvoir uma ex­
pressão muito clara: "Nenhuma subversão social, ne­
nhuma conversão moral pode suprimir essa privação
que está em seu coração (_c:lo_homem)" (Temps Mo­
i
dernes, t. XVII, p. 848). Mas quando se eliminou
<la "essência" do homem, com um rigor metódico,

138
todos os elementos históricos e sociais, todas as bases
econômicas de sua existência, tôda a "produção e a
reprodução da vida real" (Engels), todas as relaçtícs
sociais entre o homem e a natureza, expressas pela
estrutura econômica concreta de tal ou tal período
histórico da sociedade humana - quando se eliminou
tudo isso, não se pode senão ajuntar aqui e ali alguns
elementos que nada mais serão, no entanto, que parce­
las empíricas e inorgânic� É impossível suprimir
post festum o isolamento artificial do indivíduo, mes­
mo que o tenhamos ornado de categorias tão pompo­
sas como as de ser-com-outro ou de ser-no-mundo.
Esse isolamento fenomenológico ou ontológico falseia
a tal ponto a essência do conhecimento do homem que
as constatações, empiricamente corretas, de fatos
econômicos, não podem mais admiti-la. Para reali­
zar a noção concreta, histórica e social do homem, é
necessário de início compreender que as categorias
da economia são perfeitamente "formas de existên­
cia" e "determinações do ser" (Marx).
Mas voltemos às nossas citações do texto de S.
de Beauvoir. A primeira faz desaparecer a evolução
das forças de produção, assim como a contradição
que nasce entre as forças de produção e as condições
de produção e com ela desaparece todo elemento
concreto das situações históricas nas quais se formam
as vontades descritas por S. de Beauvoir. Sartre,
como vimos, acusa Marx, sem razão, de negar toda
subjetividade. Provamos a falsidade dessa acusação:
i � fator subjetivo da história humana é, como vimos,
de uma importância capital para o marxismo, mas
somente em ligação completamente íntima com o
fator objetivo, e sobre a base do fator objeti'\_'.' O.\ Mes­
mo quando o marxismo enfrenta uma realidade qm·
139
parece ser, à primeira vista, de ordem subjetiva, pro­
cura imediatamente descobrir, em sua base, o fator
objetivo, com freqüência difícil de revelar diretamen­
te. Analisando a posição economicamente falsa dos
discípulos radicais de Ricardo, que tinham tirado da
teoria da mais-valia de seu mestre conclusões revolu­
cionárias e socialistas, Engels escreve: "Mas o que
é formalmente falso, do ponto de vista da economia,
pode ser ainda justo do ponto de vista da história.
Quando a consciência moral das massas condena um
fato econômico, como antigamente a escravidão ou
a corvéia medieval, isto prova que este fato sobreviveu
a si mesmo, que outros fatos econômicos intervieram,
em virtude dos quais os primeiros se tornaram into­
leráveis e indefensáveis. Portanto, atrás do erro
econômico formal, pode-se esconder um conteúdo eco­
nômico per.feitamente correto." A exegese que S. de
Beauvoir dá de Marx é apenas um existencialismo
aplicado à "psique coletiva", mas nada tem a ver
com o marxismo nem com a realidade histórica.
A desfiguração própria aos métodos da fenome­
nologia e da ontologia, contida na segunda citação ti­
rada de S. de Beauvoir, manifesta-se pela polarização
da noção de revolução e a da continuidade histórica.
Trata-se, sem dúvida, de um procedimento que é moe­
da corrente na literatura burguesa.. Burke foi o pri­
meiro a considerar a Revolução Francesa como um
fenômeno "a-histórico", interrompendo a continuidade
da história. É por intermédio do romantismo alemão,
e notadamente da escola da filosofia histórica do
direito, que essa polarização rígida chegou até as
ciências morais modernas. Retomando por sua conta
e aplicando à revolução, com uma simpatia muito ní­
tida, essa polaridade que data de um século, prove­
niente do arsenal espiritual da contra-revolução ro-

140
mântica, S. de Beauvoir não ultrapassa, portanto -
a. despeito de suas conclusões opostas - os hori­
zontes do romantismo filosófico e sociológico. De·
ve·se a Hegel o mérito de ter interpretado as revo·
luções enquanto elementos dialéticos da continuidade
da história; Marx proveu de um fundamento eco·
nômico a "linha nodal das relações de medida" de
Hegel e deu-lhe _assim um sentido histórico e social
concreto. Mostrou, principalmente na análise da
acumulação primitiva, que se trata de uma alternân­
cia econômica e historicamente necessária, de perío­
dos ou de épocas revolucionárias e "normais". A
continuidade da história consiste portanto - para re·
tomar o estilo caro a Hegel - em uma unidade dialé­
tica da continuidade e da descontinuidade, contendo
as duas nela.
Essa tendência à abstração e à desfiguração, ine­
rente aos métodos da fenomenologia e da ontologia.
determina o caráter da questão central que preocupa
S. de Beauvoir. Trata-se do problema da violência
e da posição moral frente a ela. S. de Beauvoir põe
a questão com muita clareza. Para ela, toda vio­
lência é um escândalo, mas, por outro lado, reconhece
que nenhuma -ação política é possível sem violência.
D�clara então, de uma maneira bem kantiana: "Po­
demos desculpar todos os delitos e mesmo todos os
crimes pelos quais os indivíduos se afirmam contra
a sociedade, mas quando deliberadamente um homem
empenha-se em rebaixar o homem ao nível de coisa.
faz explodir sobre a terra um escândalo que nada
pode compensar" (Temps Modernes, t. V, p. 828).
Ela própria reconhece, entretanto, se bem que a pro­
pósito de uma outra questão, que uma tal atitude
conduz a uma contradição insolúvel: "Não chegamos
assim a condenar a ação como crmunosa e absurda,
141
condenando no entanto o homem à ação?" (Temps
Modemes, t. XVII, p. 854).
S. de Beauvoir não se contenta, é evidente, em
anunciar pura e simplesmente essa contradição. Mas
antes de entrar na análise da solução que esboça,
permitamo-nos algumas observações a respeito da
maneira pela qual ela coloca a questão. Não pre­
tendemos fazer um argumento do fato de que essa
maneira não é completamente inédita. Trata-se, com
efeito, bem menos de discutir a originalidade do exis­
tencialismo, que determinar em qual medida ele é
suscetível de bem colocar e de bem resolver as gran­
des questões do nosso tempo. Se nos permitimos,
portanto, algumas observações históricas concernen­
tes a esse problema, não será para decidir a questão
da prioridade literária, mas para tentar elucidar a
gênese social da maneira de colocar esse problema.
Coloca-se, antes de tudo, depois das revoluções esma­
gadas; assim a encontramos desde o século XVII,
em certas seitas protestantes, na Inglaterra e na Es­
cócia, após a derrota da revolução russa de 1905, en­
quanto interpretação mais ampla da doutrina tols­
toiana: "Não resistir ao Mal", e também após o re­
fluxo da maré revolucionária de 1918, sob as formas
do expressionismo, do gandhismo etc. Mas estaques­
tão surgiu também no decorrer dos períodos pré-re­
volucionários, e então exprime a desordem, a desor­
dem diante do que se prepara. É característica de
certas épocas nas quais a ordem social herdada do
passado se desfaz entre manifestações mais ou me­
nos explícitas, quando as condições objetivas e subje­
tivas da revolução não atingiram ainda sua plena
maturidade. É fácil constatar a presença de certas
corrente ideológicas da não-violência, desde os anaba­
tistas, passando pelos socialistas utópicos e Tolstoi,
142
até a atualidade mais recente. (Tenho entretanln
de observar, de passagem, que a distinção entn· pn�
e pós-revolucionários é um pouco esquemática. A
condenação da violência nos socialistas utópicos, por
exemplo, manifesta de um lado a insuficiência eh•
desenvolvimento do capitalismo e do proletariado, ai,
mesmo tempo que constitui uma ressonância da der­
rota do jacobinismo plebeu na Revolução Francesa.)
O que precede permite, de qualquer forma, cons­
tatar que a condenação radical da violência, enquanto
instrumento de libertação, foi até o presente da his­
tória um sintoma de fraqueza social. Fraqueza, por­
que significa ao mesmo tempo o recuo ante os meios
de realização e idealização utópica da ordem social
sonhada. A violência da opressão constitui o fator
mais diretamente perceptível da ordem social conde­
nada e objetivamente cada vez menos sustentável.
O período preparatório das revoluções e, mais parti­
cularmente, as etapas que seguem as revoluções es-
111agadas, obrigam as classes dominantes a transgre­
dir os limites de süa própria legalidade e a recorrerem
a meios de coerção ilegais. Segue-se que a oposição
abstrata da não-violência à violência e a idealização
t1tópica de uma não-violência integral são perfeita­
mente compreensíveis entre todos aqueles que se as­
sustam com a ação revolucionária: perfeitamente com­
preensíveis, mas também perfeitamente reveladoras
no plano social.
Com·ém acrescentar que, desde que o despertar
das classes oprimidas se manifeste por uma série de
atos revolucionários e que a revolução triunfe em uma
parte do mundo, os literatos assalariados ou volun­
tários das classes dirigentes desencadeiam uma cam­
panha de propaganda intensa contra a violência. Esta
143
propaganda silencia ou justifica todos os atos de vio­
lência dos opressores, lançando em descrédito moral
todas as medidas de violência decretadas pela revo·
lução. Em nossos dias, é o jornalista Arthur Koes·
tler que pode ser considerado como o representante
mais escandaloso desta tendência ideológica imperia­
lista reacionária. Assim, por exemplo, o herói trots­
kista do romance anti-soviético de Koestler - herói
que o autor tem o cuidado de apresentar sob o as·
pecto de marxista ortodoxo, bolchevique de primeira
hora - escreveu em seu diário: "Fomos os primei­
ros a substituir a ética liberal do século XIX, funda­
da no fair play, pela ética revolucionária do século
XX", que significa, como o prova o conjunto do livro,
a ética da violência. Os feitos e gestos da burguesia
do século XIX, desde os massacres de Peterloo, até
a Semana Sangrenta de Paris, a repressão da revolu­
ção russa de 1905 por Stolypin e seus cúmplices etc.,
compõem então, aos olhos de Koestler � a moral do
fair play. A bem dizer, um assalariado da burguesia,
do gênero de Koestler, pode perfeitamente maltratar
a história com uma tal brutalidade, sem nos assom­
brar. Mas é lamentável que Sartre e Merleau-Ponty,
bem como S. de Beauvoir, levem a sério as teorias
de Koestler.
Dito isto, uma nova questão preliminar se im­
põe, concernente à ideologia da não-violência. Lem­
bremos a polarização absolutamente rígida que S. de
Beauvoir estabelece entre revolução e evolução con­
tínua. Esta polarização manifes_ta, como já mostra­
mos, o caráter a-histórico de sua concepção do num­
do; sintoma totalmente geral no pensamento burguês
moderno. Ora, em razão de sua atitude essencialmen­
te a-histórica, a maior parte dos pensadores burgue­
ses classificam a violência na categoria especial do

144
clandestino e do ilegítimo. As medidas de violência
codificadas e prescritas pela lei não são, ao contrá­
rio, consideradas como dependentes da categoria da
violência. O arbitrário e o absurdo de uma tal dis­
criminação não escapam, sem dúvida, a nenhuma fi­
losofia ou sociologia do direito digna deste nome,
desde Maquiavel até Max Weber. Seja-nos permi­
tido citar a fórmula imaginosa e muito expressiva
da qual se�-�erviu este último para definir a essência
/ do direito:) há direito quando após a transgressão de
seus limites chegam os homens de capacete e espada
1
para obrigar as pessoas a respeitá-l�s. \
Não é totalmente certo que S. d� ·Beauvoir utili­
ze a palavra violência nesta acepção, certamente mui­
to ampla, mas a única cientificamente correta. De
qualquer modo, quando se quer discutir cientificamen­
te a questão de saber se a moral deve admitir ou
condenar a violência, é esta concepção mais ampla
do termo que deve servir de base. Seria, com efeito,
muito difícil traçar um limite - sobretudo para a
moral individualista do existencialismo - entre a
execução de um traidor pela Resistência, por exem­
plo, e a votação de uma lei determinando pena de
morte para os traidores da pátria.
Mas assim, a antinomia surgida no raciocínio
de S. de Beauvoir apresenta-se diante de nós sob
uma nova luz. fsabe-se, com efeito, que o direito, ou
seja, o emprego legal da violência -(ela mesma forma
aliás que a revolta dos oprimidos contra ele) resulta
da divisão da sociedade em classes. Esta mesma
divisão da sociedade é necessariamente responsável
pelo fato de que, em toda ordem social, somente uma
parte de interessados pode encontrar-se de acordo
com o conteúdo e a orientação do direito que se ma­
nifesta pelo emprego legal da violência, enquanto a

145
outra parte tenderá sempre a obter a modificação
de seu conteúdo e de sua orientaç�o.
Como pode o emprego da violência, em tais con­
dições, con,5tituir um problema moral ou, para recor­
rer à expressão de S. de Beauvoir, ser um escândalo?
As ideologias religiosas podem com todo direito ver
nisto um escândalo, porque para elas, tudo é fun­
ção de salvação eterna da alma humana. Pouco im­
porta, no momento, se a condenação da violência ex­
prime então as esperanças de revolta dos oprimidos
oti s·e essas esperanças lhes são simplesmente atira­
das como pasto pelas classes dirigentes. Tanto num
caso como rio outro, a existência humana neste mun­
do constitui somente um prelúdio mais ou menos des­
prezível ante a vida eterna e a condenação moral de
todo recurso individual à violência nada mais faz
que . sublinhar que o mundo terrestre carece de im­
portância verdadeira e não deve mesmo ser julgado
do ponto de vista da moral, qualquer que seja sua
estrutura social. "Dai a César o que é de César... "
Não são assfrn as ideologias que rejeitam a cren­
ça na continuação e no remate da vida humana no
além. O único campo de atividade possível para
estas ideologias é precisamente a vida terrestre, isto
é, a vida concreta e real, tal como os homens a levam
no interior de um sistema social concreto, que com­
porta classes diversas e que dá lugar ao problema da
legalidade do recurso à violência. A moral de urna
tal ideologia deve então ater-se estritamente às con­
dições de urna tal exigência terrestre. É assim para
o existencialismo ateu após a intervenção de Hei­
degger, enquanto que para Kierkegaard, a salvação
celeste da alma representa ainda a conclusão reli­
giosa da moral.

146
É assim que, fatalmente, a questão seguinfr Sl'
coloca: pode-se conceber uma ética inteligente t· rn11-
seqüente, que considera um dos fatos mais freqüt•11·
tes da existência social como um escândalo, Sl'III
se dispor, em primeiro lugar, a suprimir este csdm­
dalo? Sublinhamos a palavra social; é evidente, com
efeito, que nenhuma ética pode propor-se a supressfw
dos elementos da natureza. (Exceção feita, sem ch't·
vida, de casos onde a supressão, querida pela ética,
de suas exteriorizações sociais, os suprimisse igual­
mente)
A atitude de S. de Beauvoir e a dos outros exis­
tencialistas nesta questão revela claramente o caráter
inorgânico da gênese de sua doutrina. Heidegger na­
da mais fez na realidade do que suprimir o Deus de
Kierkegaard, tomando-lhe, sem nenhuma modificação
profunda, o conjunto de suas categorias, ao qual no
entanto, somente a referência a Deus pode dar um
sentido imanente. Quanto a Sartre, apenas seguiu
o exemplo de Heidegger. É isto que explica ainda que
Jaspers pôde construir paralelamente às concepções
heideggerianas um existencialismo de traços protes­
tantes e que existe na França, ao lado da escola de
Sartre, um existencialismo católico. As antinomias e
os dilemas entre os quais se debate S. de Beauvoir
são, em grande parte, o fruto dessa teologia existen­
cialista sem Deus. A eliminação pura e simples de
Deus leva, quando se trata de um sistema teológico
conseqüente, à eliminação de toda a objetividade e
só pode resultar, em última instância, num niilismo.
Mas S. de Beauvoir recusa-se - e isto a honra -
concluir por uma moral niilista. Empreende muitas
tentativas para escapar ao inevitável. Veremos, en­
tretanto, que suas tentativas estão todas fadadas ao
fracasso, por causa do formalismo de sua doutrina,
147
formalismo que não deixa de se relacionar com a
teologia sem Deus. :.8 assim que ela se propõe a
julgar moralmente a atitude face à violência, segun­
do o fim que essa violência parece servir: "Repudia­
mos todos os idealismos, misticismos etc., que pre­
ferem uma Forma ao próprio homem. Màs a ques­
tão torna-se inevitavelmente angustiosa quando se
trata de uma causa que serve autênticamente o ho­
mem" (Temps Modemes, t. XVII, p. 865). S. de
Beauvoir pensa colocar aqui o problema da União
Soviética. Não temos a intenção de voltar a questões
já tratadas e não queremos aborrecer S. de Beauvoir
e perguntar-lhe por que meios o existencialismo pode
julgar se uma ordem social é susceth-el de servir o
homem. Sabemos, ao contrário, que proclamando
querer a liberdade de todos, Sartre coloca-se em con­
tradição com os próprios fundamentos de sua dou­
trina; quanto a S. de Beam·oir ela própria barra o
caminho da solução do problema rejeitando, com uma
perfeita ortodoxia existencialista, todo "mito do fu­
turo" (Temps Modernes, t. XVII, p. 854), isto é,
toda perspectiva histórica, para somente admitir co­
mo real esse "futuro vivo" que surge tada vez con­
cretamente do "projeto" do indidduo.
Eis porque, sem relação com sua própria doutri­
na filosófica, a resposta de S. de Beauvoir inspira-se
somente no instinto de uma mulher atraída pela li­
berdade. Reconhece que a violência tal como se ma­
nifesta no linchamento, por exemplo, corresponde a
''um mal absoluto (pois) representa a sobrevivência
de uma civilização caduca, a perpetuação de uma
luta de raças que deve desaparecer" (Temps Moder­
nes, t. XVII, p. 865-66). Quanto à violência na União
Soviética, que examina atra,·és da ótica deformante
de um trotskismo koestleriano, admite que "trata-se

148
de manter um regime que leva a uma imensa massa
de homens uma melhoria de sua sorte" (id.). Muito
bem. Mas desde que se trata de tirar daí uma con­
seqüência qualquer, essa afirmação mostra-se pura­
mente gratuita, porque seu próprio método não po­
deria oferecer-lhe o menor início de um critério. Res­
ta-lhe apenas, então, o abandono da moral da inten­
ção abstrata do existencialismo por uma moral do
resultado, também abstrata. Coloca então a questão:
"À morte de Bukarin opomos Stalingrado; mas se­
ria necessário saber em qual medida efetiva os pro­
cessos de Moscou aumentaram as possibilidades da
vitória russa" (id.). Numerosos são aqueles - e
não somente entre os comunistas mas também entre
os observadores burgueses, com a condição de não
serem nem trotskistas nem agentes de um imperia­
lismo - que estão em condições de dar a essa inter­
rogação uma resposta muito precisa. Mas fora disto,
não podemos nos impedir de perguntar de que ma­
neira uma tal resposta poderia ser considerada satis­
fatória para o existencialismo. Com efeito, a moral
do existencialismo e sua filosofia da história é que
constituem o objeto do debate; Bukarin e Stalingra­
do são somente pedras de toque. A maneira pela
qual S. de Beauvoir coloca a questão parece indicar
que, se esta recebesse uma resposta positiva e pro­
bante, julgaria a execução de Bukarin plenamente
_iustificada.
Muito bem ainda. Somente, raciocinando assim,
S. de Beauvoir faz da utilidade de mna medida (ser­
vindo, sem dúvida, um fim aceito) o critério de sua
moralidade ou de sua imoralidade. Mas o estranho
é que, no mesmo estudo, rejeita resolutamente a uti­
lidade enquanto critério moral e, é preciso dizer, do
ponto de vista da moral da intenção, que é a do exis-
U9
tcncialismo, esta recusa é perfeitamente justificada.
S. de Beauvoirírejeita a utilidade enquanto critério
mor�,I! porque o recurso a esse critério colocaria a
moral diante de uma antinomia insolúvel, que ela
formula assim: "A única justificação do sacrifício é
sua utilidade; mas o útil é o que serve ao homem"
(Temps Modernes, t. XVI, p. 662).
Esta hesitação entre a moral da intenção e a
moral do resultado, em que uma é tão falsa, tão ex­
tremista e tão abstrata quanto a outra, mostra cla­
ramente que S. de Beauvoir está muito longe de po­
der tomar posição diante das questões morais con­
cretas do presente, colocando-se em basas existen­
cialistas. Já indicamos a afinidade que liga à ética
de Kant a nova fórmula mágica do existencialismo,
segundo a qual não se pode querer sua própria liber­
dade sem querer a de todos. Esta afinidade mani­
festa-se também nos destinos da doutrina. A oscila­
ção de Kant entre o idealismo e o materialismo e a
ambigüiclade de sua posição epistemológica - su­
blinhadas por Lênin - tiveram por resultado encur­
ralar toda sua filosofia teórica num conjunto ele an­
tinomias. Da mesma forma, S. de Beauvoir, que­
rendo fornecer aos problemas da moral uma solução
existencialista, só pode tropeçar sempre contra o mes­
mo dilema da moral do resultado.
Não se trata aqui de um acaso. IA antinomia re­
sulta inevitavelmente do fato de que o indivíduo iso­
lado, erigido em absoluto, constitui tanto o ponto de
partida como o ponto de chegada desta moral.1 Isto
conduz necessariamente a um primeiro erro, segun­
do o qual a convicção (Gesinnung) basta a si mes­
ma sem relação ao seu objeto, à sua orientação etc.
- para fundar a liberdade. O segundo erro que

150
dela decorre não menos necessariamente r• 111si ... 1c· 1·111
conceber o mundo social dos homens, que t•xist r i11
dependentemente de sua consciência, como 11111 1111111
do mumificado, de uma objetividade rígida, rq: i• 111
por uma necessidade inumana, que não podl'ria sn j
dominada senão tecnicamente. Ora, toda moral di1: ,
na desse nome deve pender para a reconciliaç:10 da
liberdade e da necessidade. S. de Beauvoir estú ali:'1s
profundamente consciente desta obrigação. Seu sl'11-
so da realidade permite-lhe ver que uma moral pu­
ramente individual, que elimina o caráter objetivo l'
a necessidade da história, não poderia operar essa
reconciliação. A situação atual assim como o papl'l
que nela assume o marxismo, obrigam S. de Beau­
voir a sair do individualismo limitado do existencia­
lismo ortodoxo. "A reconciliação da moral e da po­
lítica, diz (Temps Modernes, t. IV, p. 266), é a recon­
ciliação do homem com ele mesmo." Mas como essa
reconciliação poderia ser a obra de uma doutrina
cujas definições de base opõem ontologicamente a
liberdade à necessidade? A própria moral de Kant
não pode ultrapassar uma espécie de justaposição
enigmática e de um dualismo eclético da liberdade e
da necessidade.
Como vimos, também S. de Beauvoir não pode
ultrapassar o limite de certas antinomias, insolúveis
para ela. Suas tentativas de solução levam a c<m­
juntos ecléticos da moral da intenção e da moral elo
resultado.
Já Hegel bem viu que se tratava aí de abstra­
ções unilaterais, determinadas pelo caráter abstrato
do ponto de partida do raciocínio. Diz ele, na sua
Filosofia do Direito: "0 princípio que quer que se
negligencie as conseqüências dos atos e o outro prin­
cípio, que quer que os atos sejam julgados segundo
151
suas conseqüências e que se meça por eles o que é
bom e conveniente fazer, dependem um e outro da
razão abstrata." Certamente Maurice Merleau-Pon­
ty não deixa de citar esta passagem, mas sem poder
tirar-lhe conclusões úteis. Nele também, como tere­
mos ocasião de ver, isto não constitui um acaso. Não
é possível sair da polaridade abstrata e exclusiva da
intenção e da conseqüência, da subjetividade e qa
objetividade, da liberdade e da necessidade, a não ser
após ter realizado a ruptura filosófica com o indivíduo
erigido em valor absoluto. Contrariamente ao que
afirma Sartre, esta ruptura não significa de forma
alguma a destruição da personalidade humana ou da
subjetividade. A solução resulta simplesmente da
aplicação correta, a este problema, da relação dialé­
tica entre o absoluto e o relativo. No decorrer do
capítulo seguinte, retomaremos com detalhes esta úl­
tima questão. Limitar-nos-emos portanto aqui a su­
blinhar que esta aplicação correta necessita primei­
ramente uma concepção do homem como um ser a
priori e integralmente social, e que mesmo os pro­

suem igualmente seu aspecto social. rn


blemas mais íntimos do indivíduo mais solitário pos­

da liberdade humana é, ao mesmo tempo, um pro­


problema '

blema social e histórico. A liberdade não poderia ter


um conteúdo concreto e uma relação dialética con­
creta com a necessidade, a não ser com a condição
de ser compreendida, na sua gênese histórica e so­
cial, como a luta do homem contra a natureza, atra­
vés da mediação das diversas formas da sociedade.
A gênese histórica e social da liberdade deve portan­
to ser explicada a partir da sujeição original do ho­
mem às forças da natureza, assim como às formas
da sociedade, nascidas desta luta e que se tornam
uma espécie de segunda natureza.\
152
As duas questões que acabamos de tratar sur­
gem em S. de Beauvoir no decorrer de sua análise
da moral. Não é capaz, certamente, de fornecer uma
resposta satisfatória, mas o fato não deixa de ser
interessante. Nada permite, com efeito, melhor jul­
gar a situação atual dos existencialistas, obrigados
a meditar sobre questões estranhas à sua metodolo­
gia, questões que lhes são impostas pelo avanço vito­
rioso da doutrina marxista. S. de Beauvoir sabe
aliás muito bem - e não o esconde - que a princi­
pal obra filosófica de Sartre não poderia fornecer
uma base metodológica fértil, em vista da solução
dos problemas que a preocupam. Desculpa e ao mes­
mo tempo acusa o livro de Sartre de tratar desses
mesmos problemas num plano diferente do seu. "Ao
nível da descrição em que se situa L'Être et le Néant, a
palavra útil ainda não recebeu sentido: só pode ser de­
finida no mundo humano constituído pelos projetos do
homem e pelos fins que ele põe. No desamparo origi­
nal onde o homem surge, nada é útil, nada é inútil"
(Temps Modemes, t. XVII, p. 196). A desculpa
como a acusação são antes de ordem sentimental do
que teórica. Inicialmente, não é verdade que a obra
de_ Sartre não formule ainda os projetos e os fins e,
além disso, se no seu "desamparo original" o útil não
existe ainda para o homem, como o útil chegaria a se
constituir? Mas, para nós, trata-se menos da quali­
dade dos argumentos de S. de Beauvoir, que do obs­
curo descontentamento que ela deixa transparecer.
Seus escritos estão animados pela vontade de desen­
volver seu ponto de partida abstrato, sem ter de aban­
doná-lo. Não é sua culpa se essa vontade se mostra
afinal de contas ilusória.
153
Essas ilusões são as melhores testemunhas da cri­
se latente, até agora, inconsciente, que atravessa o
existencialismo. A explicação da gênese do ser hu­
mano, fornecida pela ontologia fundamental de Sar­
tre e da qual S. de Beauvoir traça uma tímida crítica,
nada mais é do que a robinsonada intelectual da ideo­
logia niilista e decadente. Na época da formação da
ideologia burguesa, Robinson Crusoe, de Daniel De­
foe, torna-se o 'primeiro romance burguês clássico,
enquanto Adam Smith e Ricardo explicam a produ­
ção capitalista e a estrutura da sociedade burguesa,
a partir de operações de troca entre caçadores e pes­
cadores primitivos, isolados e solitários. )(Quando o
existencialismo se propõe a explicar o homem moder­
no, seu mundo e seus problemas, a partir do "desam­
paro original" do homem solitário e abandonado, na­
da mais faz do que seguir o mesmo caminho. Criti­
cando as teorias de Adam Smith e de Ricardo, Marx
demonstra que esse indivíduo solitário e abandonado
é um produto da sociedade capitalista em vias de for­
mação: "Nessa sociedade de livre concorrência, es­
creve, o indivíduo aparece desligado dos laços na­
turais etc., que fazem dele, nas épocas precedentes da
evolução social, o acessório de um conglomerado hu­
mano determinado e limitado." Esse homem, o de
Adam Smith e de Ricardo, era "o produto, de um
iado, da dissolução das formas feudais da sociedade
e, de outro, das formas de produção novas que se
desenvolveram desde o século XVI." Mas, acrescen­
ta Marx, Smith e Ricardo compreendiam este homem
"não enquanto um resultado histórico, mas como pon­
to de partida da história". Ora, não seria difícil mos�
trar que "o ser de razão" da moral kantiana é o pro­
duto, no plano filosófico, de uma abstração a-histórica
154
da mesma ordem, que confunde o resultado com a
origem e o presente com o início?(
Após a derrota da revolução de 1848 e o fim da
filosofia hegeliana, que havia empreendido a tentativa
de ultrapassar, sem abandonar seu caráter burguês,
os limites que sua a-historicidade traça ao pensamento
burguês, a época das robinsonadas recomeça. So­
mente o aspecto das robinsonadas mudou: desde en­
tão são mais subjetivas, portanto ainda mais abstra­
tas. No domínio da economia, é a teoria marginalis­
ta, na filosofia é o neokantismo. Um e outro carac­
terizam-se pela rejeição de tôdas as definições esta­
belecidas pelos clássicos e pela vontade de tudo de­
duzir da análise da consciência de seus Robinsons
isolados, chamados por estes vendedor e comprador
ou mesmo sujeito ético. O caçador e o pescador pri­
mitivos dos autores clássicos tinham ainda pelo me­
nos a vantagem de caçar e de pescar des próprios
a presa e o peixe que trocavam entre si. Os pálidos
fantasmas da teoria marginalista trocam produtos
acabados de origem misteriosa, enquanto a ciência
nova da economia propõe-se calcular, segundo seus
estados de alma, o valor de uma bilha de água no
Saara ...
Na evolução dessa tendência, o existencialismo i
atingiu, é preciso dizê-lo, uma altura inigualada até
o presente. O Saara e a bilha de água em questão,
mesmo "vistos através do temperamento" do vende­
dor e do comprador abstratos, constituem ainda um
modelo de representação social concreta, comparados
ao nobre desligamento da ontologia de Heidegger e
de Sartre, cuja abstração é muito representativa do
universo psíquico dos intelectuais decadentes do está­
gio do imperialismo. Heidegger, em particular, co-
155
nhece demasiado bem esse universo que analisa com
penetração e descreve de uma maneira freqüentemen­
te muito viva e pitoresca.
Não podemos infelizmente dar aqui uma análise
das desfigurações estruturais que resultam obrigato­
riamente do emprego de um tal método. É preciso
contentarmo-nos por já termos indicado o sentido ge­
ral destas desfigurações. Temos entretanto de des­
vendar um elemento característico, a saber· o arbi­
trário, que parece fazer corpo com a essência da ro­
binsonada. Sua consciência da classe burguesa e seu
conhecimento verdadeiramente profundo dos proble­
mas reais da economia capitalista, permitiam aos au­
tores clássicos disciplinar, ao menos parcialmente, o
arbitrário de suas robinsonadas. Mas quanto mais a
robinsonada torna-se subjetivista, mais o controle do
arbitrário torna-se difícil. O acaso graças ao qual
Sexta-Feira desembarca na ilha de Robinson está per­
feitamente justificado do ponto de vista literário e,
a partir desse acaso, Defoe desenvolve com um co­
nhecimento efetivo e muito seguro do processo econô­
mico real a relação de mestre a escravo entre seus
dois heróis. Mas quando os discípulos tardios dos
autores clássicos perdem esse senso da realidade e
êsses conhecimentos objetivos, o arbitrário reina como
mestre. Eis o que escreve Engels a propósito do ar­
bitrário na robinsonada de Duhring: "Robinson sub­
jugou Sex.ta-Feira, a espada na mão. Donde lhe veio
essa espada? Mesmo nas ilhas imaginárias das ro­
binsonadas, as espadas não brotam, até agora, nas
árvores e Duhring não dá nenhuma resposta a essa
questão. Assim como Robinson pôde obter uma es­
pada, podemos admitir que Sexta-feira aparecerá uma
bela manhã com um revólver carregado na mão: en­
tão a relação de força inverte-se inteiramente: é

156
Sexta-Feira que comanda e Robinson que deve traba­
lhar." O texto de Engels aplica-se perfeitamente ao
existencialismo, cada vez que este se dedica a deduzir
conclusões concretas concernentes a fatos sociais, par­
tindo de categorias tais como ser-com-outro, ser-no­
mundo etc. Essas categorias são, com efeito, a tal
ponto abstratas e a tal ponto vazias de todo conteúdo
social, que partindo delas pode-se deduzir não importa
o quê e mesmo o contrário de não importa o quê. A
única exceção seria talvez a rigor o "se" heideggeria­
no (das Man), que representa de uma maneira assaz
convincente o ódio que o intelectual decadente nutre
em relação às massas, o medo que dela experimenta
e o terror de ver o caráter único ele sua preciosa in­
dividualidade sofrer um atentado pelo contacto da
sociedade.
Detenhamo-nos agora um instante na gênese his­
tórica ela liberdade tal como a concebe S. de Beauvoir.
O fato de vê-la colocar este problema, testemunha
suficientemente a crise do existencialismo, crise de
que se ressente, sem estar no entanto consciente dela.
Considerada sob o ângulo da ontologia fundamental
<lo existencialismo, toda hipótese de uma gênese real
da liberdade constitui uma contradição em si mesma.
Para o existencialismo, a liberdade é, com efeito, ·um
dado humano absoluto: não pode nem se constituir
nem se perder.
Em L'Être et le Néant, Sartre escreve: "Estabe­
lecemos, com efeito, desde nosso primeiro capítulo, que
se a negação vem ao mundo pela realidade humana,
esta deve ser um ser que pode realizar uma ruptura
anuladora do pmndo e de si mesma; e estabelecemos
que a possibilidade permanente dessa ruptura coinci­
dia com a liberdade" (p. 514-15). A liberdade é por­
tanto um dado fundamental da existência humana.
157
É inseparável da outra definição de seu ser: a que
dá a ontologia fundamental. Forma o complemento
da derrelição heideggeriana, enquanto fundamento
ontológico da existência. E é aqui que recomeça a ro­
binsonada e, à luz do existencialismo, a obra de Defoe
aparece duplamente genial. O autor de Robinson
Crusoe se revela como o verdadeiro fundador da no­
ção de derrelição - não da existência humana obje­
tiva, mas de sua análise "robinsonesca" - porque
Robinson está efetivamente desamparado em sua ilha
pelo naufrágio. Mais ainda: a atividade "livre" de
Robinson na sua derrelição funda seu mundo na ilha:
o mundo da economia capitalista, o ínesmo do qual
involuntariamente saiu, para se afundar na sua soli­
dão e na sua atividade "completamente livre". Em
Defoe, as coisas se passam num plano concreto: o
mundo que se forma na ilha, as condições de exis­
tência que se constituem entre Robinson e Sexta­
Feira são as do capitalismo real; em Heidegger e
Sartre, grandes autores da robinsonada decadente,
a derrelição é apenas um mito, interioridade pura e
metáfora. Mas a liberdade do aniquilamento, que se
constitui a partir da derrelição, é tão representativa
do estado psíquico dos intelectuais da decadência,
quanto a atividade de Robinson o era da produção
capitalista. E, da mesma forma que o romance de
Defoe devia demonstrar o caráter necessário da pro­
dução capitalista, a ontologia de Heidegger e Sartre
tem por fim apresentar um estado psíquico, a liber­
dade, como fundamento último, axiomático, necessá­
rio e natural da existência humana.
É evidente que S. de Beauvoir interpreta a gê­
nese da liberdade de uma maneira existenciaJista.
Seria sobretudo falso acreditar que ela esboça a his­
tória da gênese da liberdade concreta, através da
158
evolução da sociedade humana. Procura expr1m1r a
gênese da liberdade no plano individual, mais ou mt•
nos da mesma maneira que Sartre evoca, em L'être
et le Néant, as perspectivas de uma psicanálise exis­
tencial. Além disso, esta gênese é apenas uma apa­
rência. O que nós encontramos em S. de Beauvoir
é antes a descrição paralela de dois estados opostos:
a. infância privada de liberdade e a existência em
liberdade dos adultos. Mas isto se torna interessante·
só quando S. de Beauvoir propõe-se estabelecer ana­
logias entre as descrições fenomenológicas e certos
problemas concretos de ordem social. E assim, dt•­
clara: "É o caso, por exemplo, dos escravos que ain<la
não se elevaram à consciência de sua escravidão"
(Temps Modemes, t. XV, p. 386). Estes viveriam
então, de acordo com S. de Beauvoir, em uma priva -
ção de liberdade análoga ao estado de infância. Tl'r
se-ia aqui o direito de esperar, da parte de S. d,·
Beauvoir, um esboço dos elementos da passagem da
consciência não-livre à consciência livre, a fim de
melhor fazer compreender a seus leitores o papel ((ttt·
o existencialismo atribui à sua noção de liberdade na
evolução da humanidade.
S. de Beauvoir - é preciso dizê-lo? - não sr
dedica a esse empreendimento e isto nada tem de t•s
pantoso. Porque, com efeito, mesmo se ela se ro11
sagrasse exclusivamente a representar apenas a gc'.·
nese da consciência de liberdade, apareceria clara
mente que a consciência social de liberdade descolm·
uma realidade completamente diferente da noção ck
liberdade do existencialismo. O menor contacto re1111
a realidade concreta é suficiente para reduzir t•sl a
última a uma aparência pura e simples.
Em lugar de satisfazer a uma ex;pectativa legí­
tima, S. de Beauvoir explora o mundo da infância
que acabou de evocar, a fim de desacreditar certos
tipos humanos, que se encontrariam afundados no
mundo sem liberdade da infância. A primeira vista,
haveria nisto apenas um divertimento assaz inocente,
não sem uma certa verdade na evocação de certos
tipos pequeno-burgueses. Mas, olhando-a mais de
p�rto, essa verdade é freqüentemente desfigurada,
como agora, quando se abusa de possibilidades analó­
gicas, que as imagens oferecem. É, certamente, um
procédimento jornalístico de efeito seguro chamar os
fascistas de antropófagos e de tenebrosos represen­
tantes da Idade Média, mas no plano social, essas
metáforas só servem para obnubilar o caráter capi­
talista da barbárie fascista. O mesmo ocorre quando
se emprega o termo infantilismo, para qualificar cer­
tos tipos sociais.
Vejamos agora o que valem as conclusões desses
estudos, escritos com muita penetração analítica. São
elas, como se poderia esperar, bastante estreitas e
ambíguas. Seria expor-se a uma grave decepção es­
perar nelas descobrir um esboço metodológico que
possa conduzir à solução de certos problemas morais.
Pois, afinal de contas, quando S. de Beauvoir pede
(Temps Modernes, t. XVII, p. 868) "que tais de·
cisões não sejam tomadas com precipitação ou com
leviandade", ou quando sublinha que é preciso proce­
der a "uma análise política muito desenvolvida antes
de fixar o momento da escolha moral", diz apenas
banalidades bem intencionadas. E não avançamos
quase nada, quando aprendemos que S. de Beauvoir
quer "que a ação deva ser vivida na sua verdade,
isto é, na consciência das antinomias que ela compor­
ta" (Temps Modemes, t. XVII, p. 855). Acrescenta

160
aliás a nota seguinte: "Isto não significa que se
deva a ela renunciar." Não deixa de evocar logo a
renúncia e nisto toca o essencial: "A ação não pode
procurar realizar-se por meios que destruiriam seu
próprio sentido. Se bem que em certas situações não
hà veria outra saída para o homem senão a recusa.
No que chamamos realismo político, não há lugar
para a recusa, porque o presente é considerado como
transitório; há recusa, a não ser quando o homem
reivindica ao presente sua existência como um valor
absoluto; então deve absolutamente recusar o que
negaria esse valor" (Temps Modernes, t. XVII,
p. 856).
Eis-nos enfim em presença de uma tomada de
posição nítida. Após tudo o que foi dito sobre o
escândalo da violência, essa tomada de posição de­
veria logicamente levar ao tolstoísmo, ou antes à
ideologia ela não-violência ele certos expressionistas
alemães. Mas S. ele Beauvoir não quer - e isto é
honra - tirar todas as conseqüências que se impo­
riam. Prefere prender-se num fio ele contradições
insolúveis cio que optar resolutamente por uma re­
núncia, sublime em aparência e covarde na realidade.
Infelizmente, os motivos por meio dos quais tenta
justificar suas inconseqüências tão honráveis, são
perfeitamente ilusório,â.,__ Invoca o exemplo ela Re­
sistência na França. 1 "A Resistência, diz ela, não
tendia a uma eficácia positiva. Era negação, revolta,
martírio; e, nesse movimento negativo, a liberdade
era positiva e absolutamente confirmada" (id.). É
um mito. Fazendo saltar trens, matando agentes ela
Gestapo, libertando prisioneiros, até organizando ba- \
talhas de guerrilheiros, a Resistência realizava atos 1
políticos muito concretos e tendia - é evidente - à \
mai0r eficácia possível, tanto na conduta ele cada !
161
ação, como no seu conjunto, no objetivo de libertar a
Fran� Os traçados respectivos das frentes políticas
eram então, sem dúvida, mais simples que após a Li­
bertação, ainda que a simplicidade seja, nesse domí­
nio, igualmente um mito. É humanamente muito
compreensível ver alguns - S. de Beauvoir não é
a única - darem as costas aos problemas complexos
e prosaicos do presente (sobretudo quando não estão
à altura de assimilá-los, filosófica e politicamente)
para refugiar-se na simplicidade poética do tempo
da Resistência.
Essa nostalgia, dizíamos, é humanamente com­
preensível. Sua generalização teórica dá entretanto
lugar a nascimento de mitos, sem falar desses casos
em que se erige em valor absoluto, o que é uma
fonte de erros fatais. É entretanto o c1ue acontece
com S. de Beauvoir, quando declara que "somente a
revolta é pura" (Temps Modernes, t. XVII, p. 875).
Essa afirmação apenas dissimula - S. de Beauvoir
não tarda a confessá-lo - o medo de ver triunfar
"a revolta", o temor de ver esse triunfo chegar a
uma "degenerescência" da pureza original dos prin­
cípios e do entusiasmo romântico dos inícios. O hu­
manismo revolucionário - prossegue S. de Beauvoir
- "criou uma Igreja, onde a salvação é compradq
por uma inscrição no partido, como é comprada alhu�
res pelo batismo e pelas indulgências" (id.). Aqui·,
o existencialismo mostra de novo seu verdadeiro as­
pecto: o do niilismo anarquista, próprio aos intelec­
tuais que não têm, certamente, senão desprezo pelo
capitalismo imperialista dos trustes, mas aos quais
a revolução real inflige um terror pânico. Isto não
significa necessariamente que sejam covardes: o que
temem é ver transformar-se o caráter de isolamento
de sua "existência".

162
As considerações de S. de Beauvoir são interes­
santes na medida em que desvendam um traço muito
importante da caracterologia de um certo tipo social
que tem medo da maturidade no plano da existência
histórico-social. Entretanto a prosa da objetividade
deve suceder à poesia da subjetividade juvenil: a
prosa da realização na matéria dura, resistente e,
apesar de tudo, sempre dócil da realidade, deve to,mar
o lugar da poesia nebulosa dos estados indefiníveis,
obscuros. Na sua Tipologia das Idades, que leva a
marca sentimental da lembrança de Hõlderlin, Hegel
descreve da maneira seguinte a atitude mental elo
adolescente: "A adolescência dissolve de tal maneira
a idéia realizada no mundo que se atribui a si mesma
a definição elo substancial que pertence à natureza
da idéia - o verdadeiro e o bom - enquanto atribui a
definição elo fortuito e do acidental ao mundo."
A existência da maior parte dos românticos está
marcada pelo selo da vontade tragicômica de eter­
nizar essa atitude mental da adolescência. Trata-se 1
em particular, daqueles que tiveram a ocasião ele
viver, no decorrer de sua juventude, um período he­
róico, "mítico" da história. Os românticos recusam­
se a envelhecer e morrer - e a política romântica re­
cusa dobrar-se à necessidade que quer que à poesia
da subversão ou da clandestinidade heróica suceda a
prosa da realização, da execução. No seu escrito que
acabamos de citar, Hegel sublinha a repulsa que ex­
perimentaram numerosos adolescentes no limiar da
maturidade, em se ocupar dos problemas precisos
que a realidade tende a lhes impor. Simone ele Beau­
voir faz-se nitidamente intérprete dessa tendência,
porque considera "mais autêntica" a juventude re­
voltada de Goethe que sua maturidade ele "servidor
do Estado." Sem querer discutir com S. de Beauvoir
163
"a autenticidade" do Segundo Fausto ou a da Trilo­
gia das Paixões, permitimo-nos notar que é uma
abstração muito juvenil querer caracterizar toda a
maturidade de Goethe pela definição de "servidor do
Estado." Tão "juvenil" aliás. como o paralelo que
estabelece entre a evolução de Goethe, de Barres e
de Aragon. Tudo isto é, em suma, profundamente
falso, mas psicologicamente compreensível, porque na
noite escura do medo juvenil diante de qualquer con­
formismo, todas as vacas - como dizia Hegel -
parecem negras, todas as realizações, individuais ou
sociais, parecem degenerescências que não é mais
possível distinguir das degenerescências verdadeiras
(Barres por exemplo).
É portanto perfeitamente lógico ver, à guisa de
apólogo, este velho adágio que S. de Beauvoir coloca
no termo de seu escrito: "Faça o que deve, aconteça
o que acontecer!" Destrói assim o fruto de todas as
suas considerações e de todos os seus raciocínios, às
vezes cheios de interesse, para restabelecer a moral
da intenção abstrata de L'Être et le Néant, na sua
pureza integral, abstrata e perfeitamente estéril. Pa­
ra chegar a uma tal conclusão,· o que precede não
era indispensável e guarda apenas um valor de sinto­
ma da crise do existencialismo.

5.
A ÉTICA EXISTENCIALISTA E A
R.ESPONSABILIDADE HISTÓRICA

Nos textos de Merleau-Ponty, encontramos todos


esses problemas num plano mais elevado. Isto se
deve, antes de tudo, ao fato de que Merleau-Ponty
conhece o marxismo bem melhor que os outros exis-
164
tencialistas e que sofreu-lhe a influência numa me­
dida considerável. Tenta, portanto, mostrar-se muito
compreensivo a seu respeito. Disto resulta, de um
lado, que está em condições de colocar seus problemas
de uma maneira bem mais concreta e, de outro, que
entre a marcha de seu pensamento, orientado para
a objetividade e para a verdade, e seus princípios de
existencialista, a divergência é ainda maior do que
a que constatamos em S. de Beauvoir. Pois o exis­
tencialismo constitui igualmente a base do raciocínio
de l\Ierleau-Ponty. As reservas críticas, que se ma­
nifestam com timidez em S. de Beauvoir, fazem-se
entretanto sentir nele de uma maneira bem mais
nítida. E se essa divergência entre um conteúdo novo
e um método velho não se pode revelar concreta e
abertamente em Merleau-Ponty, se ele próprio nunca
se torna consciente dela, a responsabilidade é devida
ao trotskismo, que não cessou ainda de influenciar
seu espírito. Veremos como suas simpatias trotskistas
desviam Merleau-Ponty ela verdadeira compreensão
do marxismo e da compreensão profunda dos pro­
blemas que o preocupam, toda vez que está prestes
a chegar a isso. Na realidade, é seu trotskismo que
faz ofício de mediador entre suas heresias e sua or­
todoxia existencialistas: é sua inclinação para o trots­
kismo que lhe permite colocar suas questões, dando­
lhes uma solução eclética que consistiria em um amál­
gama feito ele marxismo e de existencialismo. Quanto
a Sartre, muda resolutamente de posição, sem se em­
baraçar com as contradições nas quais está arriscado
a cair a cada instante e das quais, de todos os pensa­
dores existencialistas, é o menos consciente.
Começaremos por examinar rapidamente a ati­
tude crítica que se desenha pouco a pouco em Mer­
leau-Ponty, a respeito da principal obra teórica de
165
sua escola, L'Être et le Néant. Bem sabemos, é evi­
dente, que, quanto a suas intenções, Merleau-Ponty
propõe-se somente melhorar e completar o existen­
cialismo e que não pretende de forma alguma ultra­
passá-lo. Parte, também, do velho dilema do deter­
minismo e da liberdade e tenta dar-lhe uma solução
existencialista. Declara notadamente: "Não diremos
que esse paradoxo da consciência e da ação esteja,
em L'Être et le Néant, inteiramente elucidado. A meu
ver, o livro permanece inteiramente antitético: a
antítese da visão que tenho de mim mesmo e da visão
que outros têm de mim, a antítese do para-si e do
em-si fazem papel, muitas vezes, de alternativas, em
lugar de serem descritas como o laço vivo ele um dos
termos ao outro e como sua comunicação... Podemos
pois esperar, após L'Être et le Néant, todas as espécies
de esclarecimentos e ele complementos" (Temps Mo­
dernes, t. II, p. 345-46). E, noutro lugar, onde contra­
ditoriamente com a teoria marxista, tenta representar
o caráter social do homem, escreve: "Essa teoria do
social, L'Être et le Néant não nos dá ainda" (Temps
Modernes, t. II, p. 355). Crê que o marxismo, que
contém muitas soluções aceitáveis, não poderia pas­
sar sem certas retificações e certos complementos. e
principalmente sem "uma concepção nova ela cons­
ciência que funda ao mesmo tempo sua antinomia e
dependência" (Temps Modernes, t. II, p. 356), e em
conclusão, acrescenta que um marxismo vivo deveria
"salvar" a pesquisa existencialista e integrá-la, em
lugar de sufocá-la (id.).
Essa vontade de compreensão para com o marxis­
mo manifesta-se igualmente no fato de que, contra as
tradições da escola fenomenológica que considera,
desde Husserl, seu método com o método definitivo

166
da filosofia, Merleau-Ponty tenta justificar o exis­
tencialismo enquanto expressão filosófica de nosso
tempo. Ora, essa concepção da filosofia enquanto
tomada de consciência do tempo implica numa con­
cessão considerável a Hegel e a Marx e numa oposi­
ção inconsciente a Husserl, a Heidegger e a Sartre.
Disto resulta naturalmente uma contradição interna,
porque, sendo o tempo para Merleau-Ponty uma ca-,
tegoria subjetiva, em conformidade com os dogmas
do existencialismo ortodoxo, a história não poderia\
estar, para ele, investida de uma objetividade ver­
dadeira. Na sua Phénoménologie de la Perception,
( p. 471), escreve, com efeito: "O tempo não é por�
tanto um processo real, uma sucessão efetiva, que
eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha rela­
ção com as coisas." A partir dessas premissas, a
objetividade da história torna-se, é claro, impossível
de estabelecer. Tentando justificar o existencialismo,
enquanto tomada de consciência de nosso tempo,
Merleau-Ponty contradiz sua própria posição de
partida.
Devemos sublinhar que essa atitude não diminui
de forma alguma o interesse de suas considerações.
Bem ao contrário. Num de seus escritos, M erleau­
Ponty empreende uma interpretação existencialista
da filosofia marxista e, com esse fim, quer provar
que o argmnent0 mais forte que o marxismo já pro­
duziu contra a filosofia do subjetivismo é de caráter
existencialista. Apóia sua argumentação em certos
desenvolvimentos filosóficos do jovem Marx. E eis
como resume o que tem por ideal filosófico comum
do marxismo e do existencialismo: f"O filósofo que
toma consciência de si mesmo como nada e como
liberdade, dá a forma ideológica de seu tempo, traduz
cm conceitos essa fase da história onde a essencta e
167
!
·1a ex;istência do homem estão ainda separadas, onde
o homem não é ele mesmo porque está imerso nas
contradições do capitalisn]�__] (Temps Modernes, t. II,
p. 352, sublinhado por nós, G.L.). Merleau-Ponty
não duvida certamente que sua tentativa de concilia­
ção proclama em verdade sua ruptura com toda a
ontologia existencialista. Sob pena de uma abdica­
ção completa, esta deve, com efeito, interpretar a
essência do homem, assim como os constituintes on­
tológicos da realidade humana (liberdade, situação,
ser-com, ser-no-mundo, o "se" etc.) como categorias
supra-históricas, além de toda incidência social. As
categorias econômicas, particulares a uma época, não
podem figurar, diante de tal método, senão a título
acidental, surgindo no interior dessas relações onto­
lógicas supratemporais, como variações ou modifica­
ções sociais, históricas ou individuais de uma essência
constante e extratemporal. Não há de forma alguma
necessidade de voltar a Husserl, a Heidegger ou a
Sartre: basta recordar que S. de Beauvoir considera
a essência do homem como uma realidade supratem­
poral, ela qual nenhuma revolução poderia modificar
a estrutura.
i
A filosofia do marxismo, para a qual as catego­
rias econômicas constituem formas de existência e
determinações do ser, considera, ao contrário, o ho-
'J mem como um ser transformando-se sem cessar, no
interior, é claro, de uma continuidade histórica. O
homem criou-se a si mesmo por seu trabalho. E
quando a humanidade chegar a encerrar sua "pré­
história" e estabelecer o socialismo de uma maneira
definitiva e completa, assistiremos a uma transforma­
ção fundamental da essência do homem, depois da
qual os homens esquecerão as relações inumanas de

168
nossa época. Criando-se a si mesmo historicamente e
se transformando historicamente, o homem está
igualmente ligado ao mundo po_r certas relações cons­
tantes (o trabalho e certas qualidades constantes que
daí decorrem), mas isso não permite de forma algu-
.1 ma estabelecer uma aproximação entre essa dialética
objetiva da história e a ontologia extratemporal da
subjetivida��:J
Nenhum compromisso é possível entre essas duas
concepções: é necessário escolher. Nenhum compro­
misso é possível, também, entre a concepção existen­
cialista da liberdade e a unidade dialética e histórica
da liberdade e da necessidade, estabelecida pelo mar·
xismo. Aí também é necessário escolher, pois não se
poderia, como tenta fazê-lo Merleau-Ponty numa
passagem que citamos acima, operar uma conciliação
entre essas duas concepções.
Poder-se-ia, a rigor, objetar-nos que não é o exis­
tencialismo, mas é o marxismo (isto é, uma imagem
subjetivada pelo existencialismo) que Merleau-Ponty
pretende representar nos seus escritos questionados
por nós. Mas .nm.1tra passagem, retoma a questão,
para declarar: :';"Essa filosofia (o existencialismo),
diz-se, é a exp/essão de um mundo deslocado. Cer­
tamente, e isto é apenas a verdade. Toda a questão
é saber se, tomando a sério nossos conflitos e nossas ,
divisões, nos abate ou nos cura deles. Hegel fala
freqüentemente de uma má identidade, enfeddendo 1
por isso a identidade abstrata que não integrou as
diferenças e não sobreviverá à sua manifestação. Po­
deríamos de uma maneira análoga falar qe um mau
existencialismo que se esgota na descrição, do choque
da razão contra as contradições da experiência e ter­
mina na consciência de um rev� (Temps Modernes,
t. XVI, p. 711). Merleau-Ponty abstém-se entretanto
169
de levar seu pensamento mais adiante e sobre­
tudo abstém-se de dar do "mau existencialismo" uma
representação mais precisa. Contenta-se em indicar
que o "mau existencialismo" encontra-se intimamen­
te ligado às conseqüências niilistas dessa doutrina.
Quanto a nós, parece-nos antes que tudo o que diz
dele aplica-se maravilhosamente a L'Être et le Néant
e as reservas de Merleau-Ponty, que citamos acima,
são de natureza a nos fazer acreditar que um tal
pensamento não lhe é completamente estranho. Pen­
samos mesmo que é evidente, desde que se aprofundem
os métodos elo existencialismo, que o bom existen­
cialismo - isto é, um existencialismo não niilista -
é simplesmente inconcebível.
Qualquer que seja a ortodoxia dessa atitude de
lVIerleau-Ponty, é seguro que, na discussão elos pro­
blemas que coloca, vai bem mais longe que S. ele
Beam·oir, sem mesmo falar ele J.-P. Sartre. De
Koestler. que se faz defensor das democracias anglo­
saxônicas, diz, com vigor. c1ue não se trata para este
"'ela discussão do Ioga com o Comissário, mas antes
da discussão de um comissário com outro" (Temps
Modernes, t. XVI, p. 706), em outras palavras, de
um antagonismo entre violência e violência. Noutra
passagem, é ainda mais claro e declara, descartando
simplesmente as argumentações ele S. de Reauvoir:
l'Não temos a escolha entr'e a pureza e a violência,
mas entre diferentes espécies de violência . . . O que
conta, e que é preciso discutir, não é a violência. é
seu sentido ou seu futuro" 1 (Temps Modernes, t.
XIV, p. 276). Enfim, e111 oposição consciente ou
não com S. de Beauvoir, considera que "esta recusa
e esta decisão não somente de arriscar a morte, mas
ainda de morrer antes que viver sob a dominação do
estrangeiro e do fascismo, é como o suicídio ... É uma
170
atitude individual, não é uma posição política"
(Temps Modernes, t. XIII, p. 26). É pena, pois
Merleau-Ponty coloca seus problemas de maneira tão
eoncreta, que suas considerações se prendem a uma
prosa de tão baixo nível como a de Koestler. A res­
peito da evolução intelectual e moral do herói koes­
tleriano mais conhecido, Merleau-Ponty declara: "Ele
passa do cientismo a deboches da vida interior, isto
é, de uma tolice a outra" (Temps Modernes, t. XIV,
p. 264). Não deixa ele desmascarar a hipocrisia ele
Koestler, que se esforça por cantar os louvores da
democracia anglo-saxônica, sem ver que está cons­
truída sobre a exploração de uma parte do mundo
por outra. Demonstra assim que em Koestler "o
anticomunismo e "o humanismo" têm duas morais:
as que professam, celeste e intransigente; as que pra­
ticam, terrestre e mesmo subterrânea" (Temps Mo­
dernes, t. XVI, p. 703). O desgosto que experimenta
pelo ressentimento baixo que se respira literalmente
na atmosfera dessa "literatura" anticomunista, ma­
nifesta-se finalmente assim: "Em suma, não temos
que expiar os pecados ele juyentude ele Koestler ...
Ama-se um homem que muda porque amadurece e
compreende hoje mais coisas elo que compreendia on­
tem. Mas um homem que volta para suas posições
não muda, não ultrapassa seus erros" (Temps Mo­
dernes, t. XVI, p. 700-701).
A despeito deste desdém vigoroso a respeito ele
Koestler, desdém que honra seu sentido moral e es­
tético, Merleau-Ponty decididamente não tem razão
em .se demorar tanto tempo na análise dessa "lite�
ratura". A conseqüência mais lamentável é a obri­
gação, para ele, de se envolver em numerosos desen­
volvimentos secundários, que desviam a atenção do
problema central e que o levam a fazer digressões e
171
desvios embaraçosos. Seu problema central é, sem dú­
vida, a relação entre a responsabilidade moral e a res­
ponsabilidade histórica. É uma questão grave, que sur­
ge necessariamente em primeiro plano em cada período
suficientemente rico em reviravoltas políticas e his­
tóricas e que preocupou vivamente a opinião pública
em todos os países ou onde houve um movimento de
resistência bastante forte e onde, num momento dado,
era preciso punir os colaboradores. Vimos que, em
Simone de Beauvoir, a questão se coloca antes de
tudo num plano psicológico, moral e subjetivo. Por
assim dizer é apenas contra vontade e a despeito de
suas convicções existencialistas que S. de Beauvoir
consente às vezes - quando a gravidade objetiva elos
fatos a obriga - em considerar igualmente os fato­
res políticos e históricos.
Em Merleau-Ponty, estes últimos encontram-se,
2.0 contrário, em primeiro plano. O que o interessa é o
drama da honestidade subjetiva e da traição obje­
tiva, eis como formula a questão, evocando o pro­
cesso de Bukarin que ocorreu em Moscou, em 1938.
Falando de Pétain e de Lavai, descarta a possibili­
dade de uma traição por dinheiro: "Mesmo se não
há culpa nesse sentido, recusamo-nos a absolvê-los
como homens que manifestamente se enganaram''
(Temps Modernes, t. XIII, p. 23). Ora, desenvol­
vendo essa idéia, Merleau-Ponty cria um estranho
tecido de erros e de verdade. Diz inicialmente que
o verdadeiro e o falso só se distingue uq1 do outro
post festum, quando a História julgou. A' critüinosa
falsidade da política dos colaboradores é agora per­
feitamente evidente para nós. "Mas no que concerne
aos acontecimentos de 1940, como sabíamos tudo is­
to? Pelo fato da vitória aliada" (Temps Modernes,

172
t. XIII, p. 23). Mas se fosse assim, o todo seria ape­
nas uma vasta ilusão, um conjunto de elementos for­
tuitos. Ainda que uma tal conclusão esteja perfeita­
mente conforme às doutrinas de Sein und Zeit e de
L'Être et le Néant, Merleau-Ponty recusa-se aceitá-la
e isto o honra. A outra explicação, segundo a qual
os resistentes teriam antes decifrado os segredos da
História, enquanto os colaboradores se teriam en­
ganado, não lhe é suficiente também. Pois, diz em
substância, não é o erro que desprezamos nuns e não
é "a frieza de julgamento e a simples clarividência"
(Temps Modernes; t. XIII, p. 27) que admiramos nos
outros. "A glória dos resistentes como a indignidade
dos colaboracionistas supõe ao mesmo tempo a contin­
gência da História, sem a qual não há culpados em
política, e a racionalidade da História, sem a qual
há apenas loucos" (id.). Um pouco antes dessa pas­
sagem, evocando a "astúcia da razão" de Hegel, Mer­
leau-Ponty explica, com efeito: "Há na História
uma espécie de malefício; solicita os homens, ten­
ta-os, e eles acreditam andar no mesmo sentido que
ela, e de repente se oculta, o acontecimento muda,
prova de fato que outra coisa era possível. Os ho­
mens que ela abandona e que pensavam ser apenas
seus cúmplices, tornam-se de repente os instigadores
do crime que ela lhes inspirou" (Temps Modemes,
t. XIII, p. 26).
Essas considerações constituem uma tentativa
para apreender o problema da responsabilidade num
plano histórico concreto e é evidente que o alcance
desta tentativa ultrapassa de longe a de S. de Beau­
voir, que permanece bem mais próxima da ortodoxia
existencialista. Descobrem-se, entretanto, lacunas pro­
fundas no pensamento de Merleau-Ponty. Primei­
ramente, concebe a História sob um aspecto demasia-
173
do místico: torna-se, nele, uma personagem mítica,
a quem é fácil atribuir transformações e intenções
enigmáticas. Ora, isto ultrapassa de longe as mitifi­
cações hegelianas e nos enganaríamos se víssemos aí
apenas a obra do acaso. Em Hegel, a história tem mn
conteúdo objetivo e uma direção objetiva. A astúcia
da razão é pouco mais que uma metáfora evocadora,
destinada a tornar sensível, sob uma forma conden­
sada, a verdade perfeitamente reconhecida por Hegel,
segundo a qual não são as vontades individuais .que
regem a história. No entanto, este conteúdo objetivo
e esta direção elevem necessariamente faltar na inter­
pretação de Merleau-Ponty. Com efeito, mesmo se
quisesse, enquanto indivíduo ou homem político, as­
sinalar seu lugar no existencialismo, sendo ele próprio
existencialista, esta vontade só poderia ser, por sua
vez, uma opinião particular e puramente individual,
não dependendo do conteúdo e ela direção da própria
história. Eis porque, em Merleau-Ponty, a História
encontra-se obrigada a se apresentar diante de nós
sob os traços de uma mulher estimulante e volúvel,
que só consente em desvendar seus desígnios no úl­
timo instante ou, pior ainda, post festum. O simples
fato do ê?(ito, do sucesso (no nosso caso, a vitória dos
Aliados) pode verdadeiramente servir de critério su­
premo? A glória . dos guerrilheiros da Resistência se­
ria menor, a ignomínia dos colaboracionistas ter-se-ia
atenuado se Hitler tivesse triunfado?
É a R.ealpolitik reacionária, da qual o fascismo
foi o ponto culminante, que faz da eficácia um critério
exclusivo. Eis como e com que cinismo Goebels for­
mula esse papel todo-poderoso da eficácia, que faz
com que o conhecimento só possa julgar ulteriormen­
te: "Nossa intenção não é fornecer a justificação
científica de nossa ideologia, mas realizar as aspira-

174
ções que ela encerra. Uma época mais tardia pudt•r;·1
depois considerar a ação prática enquanto objeto
do conhecimento especulativo."· E Goebbels apres­
sa-se em tirar dessa tese conclusões que satisfarão
plenamente a ideologia fascista: "A tarefa de nossos
contemporâneos não consiste em tomar uma posição
científica, imparcial e objetiva em relação aos accm­
tecimentos políticos. . . Sua tarefa é contribuir para
criar realidades históricas ..."
É evidente que Merleau-Ponty não partilha essa
atitude: ao contrário, rejeita, apaixonadamente, toda
sobrevivência fascista. Mas o agnosticismo histó­
rico, que decorre necessariamente da posição filosó­
fica do existencialismo, obriga-o a aproximar-se teo­
ricamente dessa Realpolitik do cinismo, todas as ve­
zes que faz do ato moral do indivíduo isolado um
critério exclusivo. O falso dilema da moral da inten­
ção e da moral do resultado, que é simplesmente si­
nônimo dessa R.eal politik, procede precisamente dessa
atitude agnóstica face à história. Já estudamos a
natureza desse falso dilema. Ora, se o existencialis­
mo abandona a moral ela intenção pura que é a única
conforme à sua ortodoxia, sem submeter suas bases
filosóficas a urna análise objetiva, condena-se a estar
continuamente oscilante entre esses dois extremos
igualmente ilusórios.
Houve sempre, naturalmente, protestos contra a
maneira pela qual a Real politik pura interpretava a
história. "Victrix causa diis placuit, sed victa Cato­
ni", dizia Lucano e o marxismo, no qual as almas
delicadas cedo descobriram uma R.eal politik cínica e
amoral, sobrecarrega de ignomínia Thiers, carrasco
da Comuna, enquanto venera a lembrança gloriosa
dos heróis vencidos. Mesmo que as condições histó-
175
ricas excluíssem por assim dizer, anteriormente, toda
possibilidade de vitória para um movimento de li­
bertação, o marxismo julga de uma maneira idêntica;
bastará citar o exemplo de Espartaco ou de Thomas
Münzer.
Não podemos partilhar a opinião de Merleau­
Ponty que se recusa a admirar, nos guerrilheiros da
Resistência, sua justa compreensão da História. Cer­
tamente,, a convicção somente não basta para fazer
um herói. Seria difícil, senão impossível, imaginar
um herói de uma convicção mais pura que Don Qui­
xote. Mas como explicar que, sem prejuízo do he­
roísmo integral que o anima, produz um efeito irre­
sistivelmente cômico? E por que os heróis de uma
revolução precoce, desesperada, não são jamais cômi­
cos? Sem falar de Espartaco ou de Thomas Münzer,
é preciso reconhecer que o gênio de um Shakespeare
não bastou para fazer de John Cade uma figura ver­
dadeiramente cômica. Isto significa quera:-relação dia­
lética entre a compreensão correta da História e as
conseqüências que dela decorrem para o indivíduo
moral, é de natureza muito complexa. Não é somente 1
a compreensão concreta da situação histórica imediata

.
que está em jogo (Hitler vencerá?), mas também a /'
totalidade das relações históricas que formam o pano
de fundo da situação concreta imedia� 1
fSão, portanto, em grande parte, o conteúdo obje­
tivo e a direção real da história que determinam o
caráter heróico ou ignóbil, trágico ou cômico dos per­
sonagens que agem historicamen!!j O triunfo, como
a derrota, resultam, sem dúvida, sempre de uma luta
real, cujos episódios oferecem um largo campo aos
jogos do acaso, como ao desenvolvimento da inteli­
gência, da energia, da coragem, do sofrimento etc.,
dos homens que nela se enfrentam. Mas as perspec-
176
tivas reais dessa luta, as qualidades morais susce­
tíveis de nela se desenvolver, seu caráter e seu valor
são sempre determinados - não de uma maneira fa­
talista e direta, mas somente em últim_ª_análise -
pela marcha objetiva da própria história. \É uma falsa
conquista do niilismo moderno ter posto a relatividàcle
psicológica do trágico e do cômico; sua relatividade
histórica constitui, entretanto, uma qualidade estrutu­
ral e objetiva extremamente importante ela própria
evolução histórica objeti�� Os grandes escritores
aliás reconheceram sempre essa verdade. Sabe-se
corno Balzac descreve a oposição entre a atitude mo­
ral dos soldados e dos oficiais republicanos elo exército
revolucionário e a dos Chouans. As descrições de
Balzac ressaltam bastante que, conquanto cio ponto
de vista da moral individual os dois partidos se equi­
valham, o conteúdo moral diferente das causas que
servem, empresta a cada um uma atitude moral dife­
rente, até oposta. Num de seus escritos ele juventude,
Marx, aliás, formulou ele urna maneira surpreendente
esse determinismo histórico do trágico e do cômico.
"É instrutivo para elas (as nações ocidentais avança­
das), escreve ele, ver o antigo regime, que viveu nelas
sua tragédia, representar agora sua comédia, enquanto
repetição alemã. Sua história foi trágica enquanto cor­
respondia à violência preexistente ao mundo, a liber­
dade sendo ao contrário uma idéia pessoal; em uma
palavra, enquanto os representantes do antigo regime
acreditavam na sua justificação e deviam nisso acre­
ditar. O antigo regime, enquanto ordem estabelecida,
lutava contra um mundo em gestação, e tinha a seu
lado um êrro histórico, mas não um êrro individual.
Sua derrota foi portanto trágica . . . Mas o antigo
regime moderno nada mais é que o comediante de
uma ordem cujos heróis verdadeiros estão mortos. A
177
História é profunda; atravessa numerosas fases an­
tes de levar à tumba uma yelha forma. A última
fase de uma forma histórica é sua comédia". O
trágico e o cômico são, sem dúvida, pólos extremos.
Mas o que pode ser dito dos extremos pode ,ser dito
com justiça de tudo o que se encontra compreendido
entre eles.
Chegamos assim à questão central: a História
caminha objetivamente numa direção determinada?
Pouco importa a complexidade dos desvios e a im­
previsibilidade dos acasos pelos quais essa direção
se torna sensível. Ora, a despeito de toda sua boa
vontade de se aproximar do marxismo, a despeito de
todo desvio que pode por vezes se manifestar entre
seu ponto de vista e o do niilismo histórico da escola
existencialista propriamente dita, 1\Ierleau-Ponty
não pode dar a essa questão senão uma resposta
contaminada de ecletismo. A História é para ele ao
mesmo tempo racional e fortuita.
O marxismo intervém aqui, colocando a dialética
objetiva do acaso e da necessidade. Mas para com­
preender essa dialética, que rege efetivamente a His­
tória e cuja penetração teórica incompleta conduziu
Merleau-Ponty ao abandono da ortodoxia existencia­
lista e ao ecletismo, é preciso apreender todas as suas

l
correlações. É preciso de início abandonar a polari­
zação exclusiva da liberdade e da necessidade: segun-
do a le.i da dialética,'j a liberdade é necessidade reco­
nhecid�i A necessidade deve portanto perder seu ca­
ráter ngido e reificado, sem perder, no entanto, sua
objetividade e seu caráter independente da consciên-
cia humana. Por outro lado, é preciso igualmente
compreender a objetividade do acaso e sua interação
concreta e dialética com a necessidade. É assim que
se penetrará por fim na estrutura da História que quer
178
que a necessidade não possa triunfar senão através
de acasos, pela vitória a que conduzem, em última aná­
lise, as tendências históricas objetivas.
O ecletismo de Merleau-Ponty não é devido ao
acaso. Está, ao contrário, estreitamente ligado à sua
contra-revolução. Comparemos, pois, Balzac com
marxismo sublinha, com efeito, que "a maior parte
dos marx.istas" consideram a teoria leniniana do co­
nhecimento "pelo menos insuficiente." Vêem nela,
segundo Merleau-Ponty, "a expressão de uma filo­
sofia metafísica, que relaciona todos os fenômenos a
uma única substância, a matéria, e não à expressão
de uma filosofia dialética que admite necessariamen­
te relações recíprocas entre as diferentes ordens de
fenômenos" (Temps Modernes, t. II, p. 351-52). Só
que Merleau-Ponty engana-se profundamente quando
confunde a simples _interação com o verdadeiro prin­
cípio da dialética. 'jHegel dizia já que a interação sim­
ples "situa-se somente no limiar do conceito" e que
"considerar um objeto dado somente sob o ângulo da
interação..." era, na realidade, uma atitude comple­
tamente incompreensível.�
1 \sem "o momento da transcendência", principal­
. mente, é impossível chegar à compreensão dialética
1
da interação. Ora, "o momento da transcendência"
é inconcebível se não se atribue o primado gnosio­
lógico quer ao espírito, quer à matéria. E, porque
Merleau-Ponty procura o "terceiro caminho" do exis­
tencialismo, isto é, uma pretensa superação do idea­
lismo e do materialismo, não pode haver, para ele,
1 ttm "momento da transcendência" (que nada mais se­
! ria que o conteúdo objetivo da História), nem no sen­
i tido materialista como em Marx, nem no sentido idea­
\ lista como em Heg.:!:_J Sua tentativa de penetração
179
teórica das realidades dialéticas está fadada portanto
ao ecletismo.
O ·ecletismo de Merleau-Ponty não se manifesta
somente na sua concepção da marcha objetiva da His­
tória, mas também, e talvez sensivelmente ainda, nas
suas tentativas de análise da reação do sujeito. É
precisamente a teoria do reflexo, que desdenha tanto,
que nos permite empreender o estudo desse problema,
colocado por Merleau-Ponty. A opinião do sujeito
agente da história constitui, para Merleau-Ponty,
uma realidade última de ordem ontológica. Mas a
gênese dessas opiniões e sua interação dialética com
a marcha objetiva da história não se prestam à aná­
lise ontológica, ou pelo menos, essa análise não per­
mitirá jamais chegar até o particular. Far-nos-emos
compreender melhor, sem dúvida, citando um exem­
plo literário. Evocamos mais acima a maneira pela
qual Balzac descreve o combate entre revolução e
contra-revolução. Comparemos, pois, Balzac com
certas produções decadentes tal como Antígona de
Jean Anouilh. O que nos oferece Balzac são as condi­
ções históricas concretas e seus reflexos sociais con­
cretos, no entanto individualmente diferentes, nas
opiniões dos personagens representados. Há aí a
interação dialética viva entre a opinião, o conjunto
da personalidade e o ato. Jean Anouilh oferece-nos,
ao contrário, uma análise de ontologia fundamental,
sob a forma de drama. Todas as determinações his­
tóricas objetivas da alma humana são fatalmente eli­
minadas (graças à aplicação, talvez inconsciente, do
método da redução fenomenológica), o que explica que
do ponto de vista literário os personagens se tornam
simples marionetes, enquanto que, psicológica e mo­
ralmente, são loucos e monomaníacos. O próprio
Merleau-Ponty não disse que se a História não � ra-
180
cional, os homens que nela agem só podem ser loucos?
Esse caráter racional da História não deve entretanto
permanecer um em-si abstrato ( e talvez inacessível).
É preciso saber mostrar um para-nós (mais ou menos
verdadeiro ou falso). É preciso saber mostrar como
a identificação com o curso objetivo da História trans­
forma êste em-si, no indivíduo pertencente à classe
chamada a realizar êste em-si histórico, em um
para-nós.
Só a explicação da interação dialética entre a
existência social concreta, que determina a consciên­
cia humana, e o reflexo dessa realidade objetiva na
consciência pode fornecer-nos a solução efetiva dêsse
problema. Quando reconhecermos que as opiniões dos
sujeitos que agem historicamente são os reflexos de
uma mesma realidade objetiva, quando compreender­
mos que o caráter, a quantidade, o volume etc., desse
reflexo, assim como sua assimilação teórica, sentimen­
tal etc., pelo sujeito, são determinados por essa mes­
ma interação - é então que dispomos enfim do mé­
todo que nos abrirá o acesso ao problema.
Merleau-Ponty exige com razão que o esclareci­
mento dessas correlações atinja o plano do indivíduo.
Mas é precisamente o marxismo - e só o mar ismo
- que é suscetível de satisfazer essa exigência. rUma V\
teoria geral da consciência social não poderia ter por
objeto senão a média e o típico. O marxismo não é
entretanto uma sociologia que aceitaria essa definição
como uma determinação absoluta, ou antes - como 1
é freqüentemente o caso nos autores modernos -
como uma tipologia abstrata, destinada sàmente a
registrar. O que oferece, ao contrário, é a estrutura
móvel dessas correlações, o espaço social real, que é 1
a própria cena na qual se desenrola e se inscreve nes- \
sa tipologia a consciência individu� Permitir-me-ei \
181
citar a passagem bem conhecida da Ideologia Alemã
onde Marx dá a descrição econômica e histórica da
situação do indivíduo na sociedade capitalista e defi­
ne assim a.§Jeis que regem esse espaço social real do
indivíduo: \ "Ós indivíduos partiram sempre deles pró­
prios, escreve Karl Marx, mas naturalmente dêles
próprios no quadro de suas condições e não do "indi­
víduo puro" no sentido dos ideólogos. Mas no de­
correr do desenvolvimento histórico e precisamente
'V porque no quadro da divisão do trabalho as condi­
ções sociais tornaram-se inevità velmente autônomas,
uma distinção manifesta-se entre a vida de todo in­
divíduo, porquanto pessoal, e a vida enquanto subor­
dinada a qualquer ramo de trabalho e às condições
que êsse ramo implica. Mas não se deve entender
por isso que, por exemplo, o que vive de vendas, o
capitalista etc., deixem de ser pessoas; suas perso­
nalidades estão ao contrário condicionadas pelas con­
dições de classe completamente determinadas, e a
diferença só aparece na oposição a uma outra classe
e para si mesmas só no instante em que fracassam.
No estamento ( e ainda mais na tribo) esse fato está
ainda escondido: por exemplo, um nobre permanece
sempre um nobre, um plebeu sempre um plebeu,
abstração feita das outras condições; é uma proprie­
dade inseparável de sua individualidade. A diferença
entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de classe, o
acaso das condições de vida para o indivíduo só sur­
gem com o aparecimento da classe que é ela mesma,
um produto da burguesia. A concorrência e a luta
dos indivíduos entre si são necessárias para produzir
e desenvolver esse acaso enquanto tal. Na represen­
tação, os indivíduos são, portanto, sob a dominação da
burguesia, mais livres do que antes porque suas con­
dições de vida lhes são acidentais, mas na realidade

182
são naturalmente menos livres, porque subordinados
muito mais a um poder objetiv!'·"_j
O pensamento agnóstico burguês assimilou mal
essa verdade: é precisamente o reflexo da reali­
dade objetiva na consciência humana, que conduz a
evolução individual - que não é fatal - à compreen­
são da situação de classe do indivíduo. Não acontece,
mesmo em casos muito simples, que a tomada de
consciência dos fatos da realidade objetiva trabalha
em oposição às determinantes da existência social,
que agem espontânea e diretamente na consciência
individual? A eficácia dessa ação é diferente em
cada caso individual, segundo a situação social e his­
tórica, mas, em média e em última instância, a exis­
tência social do indivíduo desempenha sempre o papel
decisivo. O Manifesto Comunista constata já a pos­
sibilidade, para os indivíduos evoluídos, de passar pa­
ra as fileiras da "classe que tem nas mãos o futuro".
É aliás muito importante, do ponto de vista do pro­
blema que nos ocupa aqui, ver como Marx e Engels
caracterizam essas deserções: " ...principalmente
uma parte das ideologias burguesas que, à força de
trabalho, elevaram-se até a inteligência teórica do
conjunto do movimento histórico."
Seríamos entretanto marxistas bem mesquinhos,
se acreditássemos que essa gênese dialética da cons­
ciência de classe não se aplica igualmente ao prole­
tariado. No seu célebre panfleto intitulado Que Fa­
zer?, Lenin estuda essa questão de maneira bem
aprofundada e conclui que a situação objetiva da
classe só pode - espontaneamente - levar ao que
<·le chama "consciência sindicalista". Para desenvol­
ver, no operário, uma consciência política verdadeira-
111cnte revolucionária, é necessário uma compreensão
( reflexo dialético) bem mais adequada da totalidade
183
social, ultrapassando a esfera estreita do imediato es­
pontaneamente reconhecido. "A consciência política
de classe, diz Lenin, não pode ser levada ao operário
senão do exterior, isto é, do exterior da luta econô­
mica, do exterior da esfera das relações entre operá­
rios e patrões. O único domínio em que se poderia
obter esse conhecimento é o das relações de todas
as classe e camadas da população com o Estado e o
governo, o domínio das relações de todas as classes
entre si." E, numa passagem mais adiante, Lênin
sublinha particularmente que, quando a classe operá­
ria chegar a criar uma organização de revolucionários
profissionais, nesta "deve desaparecer completamente
toda distinção entre operários e intelectuais e, com
maior razão, entre as diversas profissões".
As opiniões dos homens, enquanto reflexos da
realidade objetiva - em nosso caso, do processo his­
tórico - são portanto de uma importância bem maior
do que pensa Merleau-Ponty, quando se trata de res­
ponder à questão de saber se seu papel histórico me­
rece admiração ou desprêzo. Nossa análise versará
sobre dois pontos: tentaremos primeiramente elucidar
a maneira pela qual as opiniões dos homens refletem
o processo histórico e examinaremos em seguida em
qual medida esses reflexos constituem uma imagem
adequada da realidade objetiva.
As análises de Merleau-Ponty negligenciam com­
pletamente toda questão que decorre do caráter ade­
quado ou não dêsse reflexo. É por essa razão que
os resultados aos quais chega são necessariamente
repletos de ecletismo. Esse ecletismo manifesta-se
primeiro na conclusão segundo a qual a justeza ou o
erro de uma convicção política só possa cristalizar-se
a posteriori, com o auxílio dos acontecimentos ulte-

184
riores ( a vitória dos Aliados, no caso por ele evo­
cado); sua concepção de uma História mitificada é
ainda uma outra manifestação do ecletismo próprio
ao seu pensamento. Se se tratasse verdadeiramente
de saber apenas quem bem julgou em 1940 e quais
as possibilidades que Hitler tinha de triunfar, a ma­
neira pela qual Merleau-Ponty coloca a questão seria,
se não correta, pelo menos compreensível. Mas o
ano de 1940 tinha, tanto na realidade objetiva como
nas convicções dos interessados, uma longa "pré-his­
tória", no decorrer da qual as duas atitudes adversas
da guerra civil de após 1940, a Colaboração e a Resis­
tência já se tinham defrontado. Ora, nesse encontro
prévio a 1940, o problema não consistia de forma al­
guma em um julgamento mais ou menos justo das
possibilidades de vitória de Hitler: tratava-se sim­
plesmente de saber qual dessas duas atitudes políti­
cas convinha aos interesses do povo francês. Mas
inicialmente, que significa, de um modo concreto, a
expressão "povo francês"? É o reino das "200 fa­
mílias" e de seus aliados da burocracia civil e militar,
que o personificam, ou antes o reino dos trabalhado­
res da França? Se examinamos a questão sob este
prisma, torna-se absolutamente evidente que não se
tratava então - ou pelo menos não essencialmente
- de avaliar, exatamente ou não, as possibilidades
que poderia ter Hitler de triunfar. Segundo a opinião
dos adversários da Frente Popular, dos partidários de
Munique, dos colaboradores ( esses termos designam
as etapas diversas da evolução de uma mesma ten­
dência), seria preciso consentir em todo sacrifício
(abandonar primeiro todos os aliados da França, re­
nunciar em seguida ao papel de grande potência, ab­
dicar, enfim, à própria independência nacional), a fim
de garantir o reino dessas "200 famílias" contra
185
todo ataque proveniente de baixo. Tratava-se tam­
pouco de calcular as possibilidades de vitória, que
os representantes dessas opiniões fizeram tudo para
enfraquecer as possibilidades da França: desorgani­
zação do exército, relaxamento da aliança franco-so­
viética, atitude contestável durante a invasão da Po­
lônia etc. O outro campo agrupava os que conside­
ravam a expansão do fascismo como o maior mal
possível para o povo francês e para quem a tarefa
política primordial era - ao mesmo tempo que a de­
fesa antifascista - a derrubada do reino das camadas
sociais que colaboravam objetivamente com Hitler
bem antes de 1940. O fato de que os acontecimentos
de 1940 obrigaram a tomar posição certas camadas
sociais que acreditaram até então poder permanecer
a distância não modifica em nada os dados essen­
ciais desse quadro.
Como bom existencialista, Merleau-Ponty subes­
tima nitidamente a significação decisiva das posições
respectivas das classes em presença, assim como as
opiniões e as linhas de condutas políticas que elas
determinam. Examina, segundo a ontologia existen­
cialista, a "situação" de 1940. Mas aqui também é
fácil de ver que sua ortodoxia existencialista é va­
cilante. O existencialismo ortodoxo afirma, com efei­
to, que uma resolução inteiramente nova deve surgir,
por assim dizer, do nada, em cada "situação". Mas
essa posição extrema devia logo mostrar-se insusten­
tável, não somente para as resoluções individuais, mas
também - e com maior razão - no plano da política
ou da História. Merleau-Ponty teve então que re­
signar-se, manifestamente a contragosto, a misturar
um pouco de água ao vinho puro das doutrinas de
Kierkeg_aard e de Heidegger, tentando, apesar de
tudo, salvaguardar o primado decisivo da "situação"

186
e da resolução à qual dá lugar. É assim que nasceu
o compromisso eclético que quer que de um lado Mer­
leau-Ponty faça um esforço em vista de compreender
1940 historicamente e que, de outro lado, tente iso­
lá-lo numa "situação".
Este apego à "situação", e a toda metodologia
que dela decorre, é psicologicamente muito compreen­
sível. Não se trata, com efeito, somente da questão
central de toda ontologia existencialista, mas de uma
questão que põe em jogo a razão de ser do existen­
cialismo. É efetivamente verdadeiro que a continui­
dade da vida individual, assim como a da vida social,
composta de vidas individuais, é suscetível de sofrer
- é uma possibilidade abstrata - uma interrupção
a qualquer momento. \Quando saio para fazer um
passeio - para citar um exemplo bem sartreano -
é-me oferecida a cada instante a possibilidade de vol­
tar atrás, de retornar para casa, de ir a um restau­
rante, a um teatro et�� Essas hesitações são fre­
qüentes na vida cotidiana. Na existência social são
mais raras e essa constatação tão simples é de uma
importância teórica não desprezível. Com efeito, por
pouco que se trate no exemplo do passeio, no caso
do curso que meu dever oficial me obriga ministrar
na Universidade, é necessário igualmente - no plano
da abstração - uma resolução e sou, em princípio,
livre para decidir, em cada caso, ir ao café ou dar
meu curso. Mas de fato não vou ao café e darei
meu curso, a não ser por impedimento válido. O
conjunto da questão não deixa de ter um certo ca­
ráter cômico, e permite-nos concluir que, além de uma
prática puramente social, estamos aqui em face de
uma constatação teórica importante: a análise exis­
tencialista das "situações" dessa ordem,\à recusa
existencialista de toda causa e mesmo de toda moti-)
187
vação, são arquifalsas e pecam pela base. É por
esse processo que o existencialismo transforma uma
atitude relativamente justificada em uma construção
rígida, falsa e mesmo absurda. Essa descrição é
correta, enquanto descrição do momento da conti­
nuidade da vida; a possibilidade abstrata pode, em
circunstâncias determinadas, transformar-se em uma
possibilidade concreta e pode mesmo, em certas con­
dições, transformar-se em uma realidade, porque sou
livre para resolver romper com a continuidade pas­
sada de minha vida. \ Essa descrição poderia então
ser útil e instrutiva, nos limites de seu valor con­
creto, e com a condição de não perder de vista as
causas e as justificações interiores e exteriores da
resolução, assim como as correlações dialéticas da
"situação". Mas quando se erige em princípio au­
tônomo, isolado e central, destinado a presidir de ma­
neira exclusiva o ato humano, quando se faz dessa
descrição a análise ontológica da "situação", esca­
moteando a diferença essencial que subsiste entre
possibilidade abstrata e possibilidade concreta, essa
maneira de ver desfigura e falseia toda a estrutura
e todas as proporções do ato humano, ao mesmo tem­
po que perde sua própria verdade relativa. A análise
de 1940, enquanto "situação", por Merleau-Ponty,
justifica inteiramente nosso ponto de vista.
Mas o conjunto desse problema apresenta-se ao
espírito sob uma luz mais complexa - e também
mais concreta - desde que se admite que nem a
realidade histórica, nem nossas opiniões que a refle­
tem, nem nossa existência social que determina a
natureza e o volume desse reflexo, são imutáveis.
Não são, com efeito, nem imutáveis nem imóveis, mas
se transformam, movem-se sem cessar. No plano
concreto, jamais deixamos de dar-nos conta dessa me-
188
tamorfose incessante; agora, trata-se ap�s dr tirar
as conclusões teóricas que se impõem. ,s uhli11ht·111os ,
_
primeiramente que esses dois processos de t rans fc ,r · ,
mações, um objetivo e o outro subjetivo, estão 11111ito
longe de acusar um paralelismo mecânico e incvi1:·1\'c·I.
Simplificando ao máximo, diremos que as opiniúrs
individuais podem, de um lado, preceder os ac011tt-ri­
mentos da realidade objetiva, isto é, podem, às Vl'Zl'S,
apreender o sentido profundo das tendências que s:·111
apenas dadas, na realidade, em um estado proviso­
riamente latente. Podem, por outro lado, ser ultra- /
1
passadas pelos acontecimentos, aferrarem-se a idéias
que parecem, certamente, corresponder à realidade
objetiva, ou, ao menos, a certos de seus aspectos, mas ,
que, cedo ou tarde, a evolução objetiva da realidade '
acabará por desmen!i!J
É claro, mesmo aceitando esse esquema simplifi­
cado que acabamos de esboçar, que o mito da "mal­
dade" da História, caro a Merleau-Ponty, não resiste
à prova de uma análise que procede com a ajuda do
nosso método. A questão é entretanto de um alcance
mais considerável, porque se encontra estreitamente
ligada ao problema do princípio da realidade no exis­
tencialismo, que é o da probabilidade pura de nossos
conhecimentos do mundo exterior. A atitude existen­
cialista gozaria, certamente, de uma justificação re­
lativa, se se contentasse de polemizar contra esse
objetivismo mecanicista e fatalista, segundo o qual
o conhecimento dos elementos da realidade e das leis
que a regem basta para calcular os acontecimentos
a vir, com a exatidão da astronomia. Essa teoria nfio
tem mais, sem dúvida, quase nenhum defensor atual­
mente. Acusar o marxismo, como o faz Sartre, ele
a ter tomado sob sua conta, prova sua ignorância
total do marxismo e nada mais. Marx nunca tevt•

189
scnflo um desprezo enérgico para com esse gênero
de infantilidade e Bukarin, que tinha sofrido a in­
fluência dessas idéias, não deixou de atrair uma se­
vera crítica da parte de Lênin.
Mas a aplicação errônea da noção de probabili­
dade da parte dos existencialistas ultrapassa êsse pla­
no. Os diletantes da filosofia terminaram por vulga­
rizar, no sentido pejorativo da palavra, certas con­
cepções da física moderna sobre o cálculo das proba­
bilidades. O existencialismo amparou-se logo nelas,
polarizando, de uma maneira exclusiva, probabilidade
e causalidade. Em outros termos, o existencialismo
explora a categoria da probabilidade, para camuflar
seu agnosticismo histórico oriundo da ontologia fun­
damental sob o aparelho verbal da ciência moderna.
A verdade, ao contrário, é que os pesquisadores cien­
tíficos dignos desse nome sabem muito bem que o
cálculo moderno das probabilidades apenas aumentou
a exatidão do�_gtmnciados - e mesmo das previsões
i - da ciência. i O marxismo aliás jamais operou com
! leis mecanicistas ou fatalistas. O sentido objetivista,
i que O Capital de Marx dá à noção fundamental ele
/ tendência, o prova suficientemente. Exporemos aliás,
1 no decorrer do capítulo seguinte, que por causa da
1 natureza mesma do materialismo dialético, o conhe-
cimento humano só pode ser uma aproximação da
realidade objetiva. O marxismo considera enfim a
História como feita pelos homens, isto é, por nós
mesmos1 Empenha-se em fazer ressaltar essa defi­
nição -fundamental da História em tôdas as suas ca­
tegorias (por exemplo, o nível efetivo dos salários
no espaço econômico e subjetivo) ; é portanto evi­
dente que as mudanças históricas e, antes de tudo,
as revoluções, não são, para o marxismo, quedas

190
mecânicas de um regime qualquer, mas resultados
de uma luta.
"Mas como se pode falar ainda de uma divergên­
cia entre os marxistas e eu mesmo?", poderia pergun­
tar Merleau-Ponty. A situação do problema não
deixa de oferecer· uma certa analogia com a questão
da "situação", de que falamos acima. Desta vez, a
questão é a seguinte :l[a probabilidade de nossos co­
nhecimentos sobre a realidade histórica, sobre o pre­
sente e sobre as tendências que apontam para o fu­
turo, constitui a única aproximação possível do co­
nhecimento da realidade objetiva? Se assim for, en­
tão, sem prejuízo da irredutibilidade do momento de
relatividade que encerra e na medida em que, no in­
terior desses limites, reflete corretamente a realida­
de objetiva, essa aproximação é, ao mesmo tempo, um
conhecimento absolu� No caso contrário, seria pre­
ciso concluir que esse momento de relatividade de­
termina o relativismo da totalidade de nosso conhe­
cimento da realidade e, antes de tudo, da realidade
histórica.
É evidente que o existencialismo ortodoxo optará
pelo segundo termo de nossa alternativa. Em J.-P.
Sartre - de quem cito de propósito a pequena bro­
chura, porque nela tenta, como vimos, afastar-se do
niilismo de L'Être et le Néant -- a resolução humana
mergulha literalmente no nada, toda perspectiva real
sendo rejeitada: " ... amanhã, após minha morte, os
homens podem decidir estabelecer o fascismo ..."
(L'Existentialisme est un Humanisme, p. 53-54), es­
creve e, na mesma frase: " ...nesse momento, o fas­
cismo será a verdade humana e tanto pior para nós ;
na verdade, as coisas serão tais como o homem de­
cidir que sejam" (id.). Uma outra passagem desse
mesmo livro rejeita resolutamente a idéia do pro-
191
gresso, como aliás a rejeita igualmente Simone de
Beauvoir: " ...o progresso é uma melhoria, escreve
ela ; o homem é sempre o mesmo em face de uma si­
tuação que varia e a escolha permanece sempre uma
escolha em uma situação" (Ibid., p. 79). Poderíamos
multiplicar à vontade as citações desse gênero, mas
parece-nos que nossos exemplos são suficientemente
probantes.
Merleau-Ponty vai, sem dúvida, mais longe que
Sartre. É assim que escreve: "A História oferece-nos
certas direções que apontam para o futuro, mas não
nos dá a conhecer, com uma evidência geométrica, a
direção privilegiada que finalmente desenhará a his­
tória presente quando for realizada. Mais ainda: em
certos momentos pelo menos, nada está encerrado
nos fatos e é justamente nossa abstenção ou nossa
intervenção que a História espera para tomar forma.
Isto não quer dizer que possamos fazer não importa
o quê; há graus de verossimilhança que não são na­
da" (Temps Modemes, t. XIV, p. 206). Essa citação
torna o afastamento evidente. As últimas frases,
principalmente, acusam uma tendência muito nítida
de se aproximar da concepção objetiva da história.
E se, apesar de tudo, persistimos em colocar a Mer­
leau-Ponty a questão: de onde o sabeis? de que me­
dida vos servis_ para calcular os graus de probabili­
dade? não é, longe disso, para exercitar nossas fa­
culdades de ironia, mas para tentar pôr a limpo os
problemas de método. �ossa crítica se resume assim:
inicialmente Merleau-Ponty opera ainda com essa

1.
"evidência geométrica" que corresponde, na realida-
de, ao oposto complementar do agnosticismo histórico.
A seguir, apresenta-nos a malvada Dama História
i agora como caprichosa: se uma vez se digna indicar,
\ mais ou menos claramente, aonde vai, outra vez, dissi-
192
mula completamente suas intenções. Essa concepção
é teoricamente impossível de defender, porque uma
vez admitido que as tendências são objetivamente
cognoscíveis, decorre necessariamente que elas o são
sempre, mas que certos indivíduos (impedidos por
preconceitos de classe etc.) não estão em condições
de conhecê-laLl
O que é totalmente falso, enfim, é esse mistério
particular com que Merleau-Ponty envolve a marcha
da História. Sen·e-lhe, sem dúvida, para fundar teo­
ricamente a necessidade da atividade e da resolução,
ou ainda para introduzir, entre os determinantes da
situação revolucionária, uma atmosfera de abandono
total, de aflição, uma "situação", numa palavra. A
realidade é completamente outra: é precisamente nas
situações revolucionárias que as tendências da socie­
dade se manifestam com uma nitidez toda particular
e é porque seu antagonismo atinge um nível comple­
tamente dramático que a inten·enção do homem ad­
quire uma importância decisiva. A subjetividade é
portanto muito importante na história, mas por ra­
zões exatamente contrárias às que dá Merleau-Ponty:
a importância da subjetividade está estreitamente li­
gada à evolução objetiva e não aos momentos em que
a História objetiva parece calar e dissimular.
Vê-se portanto que a despeito da tendência na­
tural de seu pensamento, qtie não cessa de cercar de
perto a concepção objetiva da História, Merleau­
Ponty permanece sempre irresistivelmente atraído
pela noção de "situação" com sua aflição total, pelo
caráter incognoscível do futuro, pela relatividade e
subjetividade de tudo o que se pode enunciar sobre
o futuro.
193
A força de atração mais considerável que se exer­
ce sobre ele é o trotskismo. O agnosticismo e o re­
lativismo histórico podem sozinhos criar uma atmos­
fera da 'tragédia, a propósito de Trotsky e de Bu­
karin: "Stalin, Trotsky e mesmo Bukarin, no meio
da ambigüidade histórica, têm cada um sua perspec­
tiva e orientam sua vida por ela. O futuro é apenas
provável, mas não é como uma zona de vazio em
que construiríamos projetos imotivados; desenha-se
diante de nós como o fim do dia começado, e esse
desenho somos nós mesmos. As coisas sensíveis,
também são apenas prováveis, porque estamos longe
de termos terminado sua análise. . . O problema é
para nós o real, não o podemos desvalorizar a não ser
que se refira a uma (]Uimera de certeza apodítica
que não está fundada em nenhuma experiência hu­
mana" (Temps Modernes, t. XIV, p. 271). É portan­
to ainda essa mistura do apodítico rígido e de relati­
vismo que nos é apresentada sob os aspectos de um
dilema tão insolúvel quanto falso. Merleau-Ponty
confunde aqui o caráter de aproximação do conheci­
mento com sua relatividade, numa intenção evidente
de encontrar um denominador comum para a previsão
histórica de Stalin e de Trotski. E se, em outras pas­
sagens, Merleau-Ponty reconhece a ausência de toda
perspectiva em Trotski e se admite na ocasião que
a linha política staliniana mostrou-se justa, isto cor­
responde simplesmente - bem mais que há pouco
na análise da "situação" de 1940 - a um simples
capricho da incalculável deusa História e não ao triun­
ia da aproximação mais correta da realidade histórica
objetiva sobre a aproximação falsa. A perspectiva
de futuro oferecida por Merleau-Ponty apenas subli­
nha essa atmosfera de catarse trágica. "Como a
Igreja, o partido honrará talvez os que condenou

194
quando uma nova fase da História mudar o sentido
de sua conduta" (Temps Modernes, t. XIV, p. 268).
Certamente Merleau-Ponty rejeita resolutamen­
te algumas das asneiras mais grosseiras do trotskis­
mo, como por exemplo, a afirmação segundo a qual
a segunda Guerra Mundial formaria a pedra de toque
absoluta do marxismo: se não conduzisse ao socia­
lismo, o marxismo provaria ser uma utopia. Admite
igualmente que a vida política tornara-se impossível
(Temps Modernes, t. XVI, p. 690) para Trotski, mas,
apesar de tudo, seu pensamento sofre, freqüentemen­
te, a influência decisiva do trotskismo. Aliás, a me­
lhor prova disto é que julga útil - a despeito de sua
vasta cultura e de seu instinto crítico robusto -
repetir certas calúnias mil vezes ouvidas sobre a
União Soviética, quando não faltam assalariados do
nível de Koestler para desincumbir-se dessa tarefa.
Não ternos lugar nem tempo para nos deter neste
gênero de problemas, porque em primeiro lugar pro­
pomo-nos esclarecer problemas teóricos. Citaremos
portanto apenas uma das objeções de Merleau-Ponty,
a título de exemplo. Forja, com efeito, um argumen­
to da luta staliniana contra o nivelamento em maté­
ria de salários, para declarar que o bolchevismo está
bastante afastado das teorias clássicas cio marxismo
e frisa seu pragmatismo a partir de então. Ora, não
é necessário ser um grande conhecedor cios textos
clássicos, para saber que, desde 1875, Marx caracteri-
zava a diferenciação cios salários como urna tendência
econômica fundamental da primeira fase do socia­
lismo.
Seria, no entanto, inútil determo-nos em detalhes
de segunda ordem. O essencial é a influência profun­
da que o trotskismo exerce em Merleau-Ponty. A
História, desde há muito tempo, fez justiça a todas
195
as afirmações concretas de Trotski e, no entanto,
os efeitos de suas teorias fazem-se ainda sentir em
certos meios. O efeito de que falamos manifesta-se
antes de tudo pelo desvio de atenção das questões es­
senciais e concretas do presente, e, ao mesmo tempo,
por uma camuflagem do niilismo teórico e prático por
meio de uma demagogia revolucionária. A intenção
original de Trotski, sem dúvida, não era desviar quem
quer que fosse dessas questões; apenas forneceu res­
postas totalmente falsas, construindo arbitrariamen­
te um antagonismo insolúvel entre os interesses cam­
poneses e os interesses operários. Mas esse primeiro
erro teve por conseqüência inevitável a negação da
possibilidade de construir o socialismo em um só país
e essa negação torna-se, por sua vez, o verdadeiro
sinal de união da contra-revolução. Devia fornecer
a plataforma sobre a qual certos intelectuais e ele­
mentos operários deveriam agrupar-se contra a
U.R.S.S. A evolução econômica, política e cultural
sublinha a importância do socialismo enquanto única
perspectiva elo futuro, e a atitude individual em rela­
ção à União Soviética torna-se a pedra ele toque não
somente de todas as questões políticas, mas também
dos problemas de ideologia. Com efeito, a questão
da perspectiva não deve somente ser colocada politi­
camente, mas também no plano ideológico. Só uma
perspectiva de futuro concreto está em condições de
superar teoricamente o niilismo ideológico. Ora. nos­
sa própria evolução não produziu outra perspectiva
a não ser o socialismo.
Afirmamos que o homem moderno, se não está
desprovido da necessidade de honestidade intelectual,
deve escolher entre a perspectiva do socialismo e o
niilismo filosófico. Esta escolha impõe-se hoje muito

196
mais imperiosamente do que há cento e cinc1iicnta
anos.
Enquanto a filosofia era apenas um prelúdio teú­
rico à Revolução Francesa, a preparação ideológica,
de alguma maneira, do "Império da Razão", não ti­
nha necessidade de fazer diretamente apelo à His­
tória para evitar o escolho do niilismo. A realidade
que fornecia à filosofia suas bases nada mais era do
que o combate da sociedade burguesa em gestação
contra o feudalismo caduco. Em termos filosóficos,
isto se chamava então de combate da razão contra o
irracional e o caos. A filosofia do século XVIII podia
-permitir-se tomar como ponto de partida de suas
especulações ( epistemológicas, ontológicas, psicoló­
gicas, pouco importa) o indivíduo isolado e criar, a
seu bel prazer, mito sobre mito em torno do tema
de Robinson, sem no entanto, perder seu caráter so­
cial, sua historicidade implícita e, portanto, sua pers­
pectiva. Os pensadores mais evoluídos anteriores à
Revolução Francesa embalavam-se, com efeito, na
ilusão de ver surgir, espontânea e inevitavelmente,
uma sociedade baseada na razão e na harmonia, a
partir da ação do indivíduo egoísta e isolado. Po­
der-se-ia quase dizer, sob uma forma um pouco para­
doxal, que a concepção econômica de Adam Smith
dava enfim um fundamento aos grandes sistemas fi­
losóficos anteriores à Revolução Francesa.
Essa base objetiva da filosofia devia entretanto
sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo
da Revolução Francesa e ao término da revolução
industrial na Inglaterra. Antes de mais nada, a his­
toricidade do mundo e, em primeiro lugar a da hu­
manidade, impôs-se ao pensamento. Isto significa
concretamente que o pensamento teve de reconhecer
o "império da razão" - de que Engels havia dito
197
tão espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar­
se-ia como o império da burguesia - como um estado
passageiro da humanidade. Toda filosofia que tende
a esconder esse caráter historicamente transitório do
capitalismo, condena-se a perder toda perspectiYa. Só
a resignação total, a aceitação da impotência da ra­
zão, pode aceitar o capitalismo como perspectiYa da
evolução da humanidade. No estágio do imperialismo,
um niilismo desesperado ou cínico junta-se a esse nii­
lismo resignado e a ausência de toda perspectiYa lhes
serve de base comum. Não é mais necesséÍ.rio, esta­
mos convencidos, determo-nos para demonstrar que,
desde Nietzsche até o fascismo, passando por Sper! ..
gler, os mitos históricos da reação são apenas tentati­
vas falaciosas, com vistas a camuflar esse niilismo.
Mas a evolução econômica e social. desde a me­
tade do século XIX, não somente priyou a filosofia
de todo fundamento especulatÍYo supra-histórico, co­
mo também tornou-lhe sensÍYel a impossibilidade de
tomar como ponto de partida o indidduo isolado e
seus estados de consciência. fA evolução econômica
real proYou concretamente o erro das concepções de
Smith e de Ricardo, demonstrando que em lugar de
fazer nascer uma harmonia social. a soma dos a tos
individuais só pode dar lugar a um caos feito de
crises e de guerras que tenderia cada vez mais para
a instauração de uma barbárie uniYersaj,J Assim. o
indivíduo isolado, enquanto ponto de partida do pen­
samento filosófico (gnosiológico, ontológico ou psico­
lógico, pouco importa) terminou por perder sua base
implícita, amparada ainda há pouco por uma ilusão
historicamente justificada.
Esse estado de coisas está ainda bem longe de
ter entrado na consciência, e também no pensamento
filosófico. A existência social, que se impõe cada
198
vez mais à vida do homem, age no entanto cada vez
mais sobre o pensamento humano e mesmo sobre o
dos filósofos, nos quais entretanto as tradições se­
culares da metodologia criam sobrevivências icleol<'1-
gicas muito tenazes. A presença da categoria do ser­
com (Mitsein) na ontologia heideggeriana é uma das
provas dessa evolução inconsciente. A crise do exis­
tencialismo francês, por nós descrita, reflete nitida­
mente a distância que subsiste entre os problemas
que a existência social lhe impõe e as sobrevivências
ideológicas que embaraçam sua metodologia. As ten­
tativas de Merleau-Ponty, no sentido de apreender a
realidade social atual, ofereceram-nos, em razão da
sensibilidade particularmente aguda do autor para
problemas novos, a melhor ocasião de estudar essas
sobrevivências.
Resta-nos apenas demonstrar a ligação íntima
que existe entre essas sobrevivências do ex.istencialis­
mo e dos resíduos de opiniões e atitudes trotskistas.
Aqui, algumas notas de ordem histórica impõem-se.
Merleau-Ponty estaria talvez inclinado a se reconci­
liar com o que ele chama de marxismo clássico; diri­
ge objeções somente contra a forma atual do marxis­
mo, a que os partidos comunistas representam.
Ocupando essa posição, Merleau-Ponty toma sob sua
responsabilidade e conserva ( se bem que rejeite nu­
merosas opiniões concretas de Trotski e de seus par­
tidários) duas atitudes trotskistas, estreitamente li­
gadas uma à outra. A primeira é sua desconfiança a
respeito da política seguida pelos partidos comunis­
tas, desde o VII Congresso da Internacional Comu­
nista, isto é, desde 1935. Já falamos da primeira
questão, analisando a título de exemplo, a incompre­
ensão de Merleau-Ponty a respeito da desigualdade
de salários na União Soviética. Considera igualmente
199
a possibilidade de um ataque da U.R.S.S. contra a
Europa e conclui que essa ameaça não é para hoje.
Kão é portanto por princípio que Merleau-Ponty re­
jeita uma tal possibilidade, admitindo assim uma teo­
ria que é a de toda contra-revolução e que considera
a União Soviética como um Estado imperialista: jul­
ga somente que o problema de urna agressão soviética
não é de atualidade. A diferença entre sua posição
e a da contra-revolução anti-soviética é portanto so­
mente de ordem tática e não de princípios. É igual­
mente muito significativo que não faça jamais a me­
nor alusão à luta pela democracia nova na França
ou em outros países, enquanto que a solução dessa
luta decidirá para nós da sorte da evolução e mesmo
da sorte da perspectiva socialista. Parece antes que,
segundo ele, é precisamente aí que se encontraria a
base da pretensa evolução antiteórica do marxismo:
essa Realpolitik "pragmatista" é, a seus olhos, res­
ponsável pelo afastamento do marxismo clássico".
O marxismo clássico coincide certamente para
Merleau-Ponty (ele o diz aliás abertamente) com a
concepção trotskista que negava, desde 1905, na Rús­
sia, a transição real, se bem que complexa, da revo­
lução até o socialismo. Mais tarde, na época de Brest­
Litovsk, os representantes dessa tendência combate­
ram, em nome da "frase revolucionária" (Lênin so­
bre Trotski), as medidas eficazes para salvar a re­
volução e para intensificar seu surto. Todo marxista
sabe que esse reino da "frase revolucionária" alia-se
perfeitamente bem com um oportunismo desprovido
de todo princípio. (Cf. o papel de Trotski na reali­
zação do bloco de Agosto dos oportunistas em 1910).
Lênin, em Que fazer?, desmascara aliás a íntima afi­
nidade ideológica que liga o oportunismo político ao
200
terrorismo individual ( a frase revolucionária) dos
S.R. Essa afinidade íntima encontra uma definição
muito feliz num dito que teve um S.R. numa conversa
com Asev, o célebre agente provocador - que não
tinha ainda sido desmascarado na época - e pretenso
organizador de grandes atentados: "Em suma, Asev,
vós sois apenas um cadete (liberal) ordinário, mais
as bombas ... ".
Temos certeza de não caluniar o existencialismo,
colocando-o sob este prisma, porque o próprio Mer­
leau-Ponty o faz. Evoca os processos de Moscou;
ora, o que foram esses processos, em suma, senão a
revelação da essência mesma do trotskisrno, da trai­
ção em relação à revolução, uma traição que ía até
a espionagem? Uma revelação que nos mostrava "o
nada aniquilante," enquanto essência mesma do mun­
do e da personalidade dessas pessoas, que nos provava
sua falência intelectual e moral absoluta e sua "si­
tuação" "face ao nada." Sem o querer expressamen­
te, Merleau-Ponty não está entretanto longe de nos
dar razão quando escreve: "Não se é "existencialis­
ta" por gosto, e há tanto "existencialismo" - no
sentido de paradoxo, divisão, angústia e resolução -
no relato estenográfico dos Debates de Moscou co­
mo em todas as obras de Heidegger" (Temps Moder­
nes, t. XVI, p. 711). Com efeito, o universo dos
Bukarin, Rykov, Rakovski e outros Yagoda, é efe­
tivamente o universo de Sein und Zeit, esse "teatro
de fantoches da filosofia", como tão bem diz Henri
Lefebvre.
A condenação da frase revolucionária constitui
entretanto a condição sine qua non da verdadeira in­
teligência do marxismo, da verdadeira superação das
tendências niilistas do presente. Quanto mais a evo­
lução segue seu caminho, mais é assim. Há cem, ou

201
mesmo cinqüenta anos, uma profissão de fé socialista
determinava, num intelectual, uma verdadeira revo­
lução de toda a marcha de seu pensamento. Mas
numa época como a nossa, em que o socialismo tem
atrás de sí trinta anos de história real, uma profis­
são de fé abstrata pelo objetivo final do socialismo
não quer dizer mais nada. A escolha diante da qual
nossa realidade social coloca o pensador honesto, a
"situação" na qual se encontra, é a seguinte: é ne­
cessário tomar posição face ao socialismo tal como
é, tal como nasceu e como se desenvolve na União
Soviética; é necessário tomar concretamente posição
frente aos caminhos inteiramente novos que condu­
zem ao sociàlisn10 e que se abriram com a derrota
do fascismo.! Dizer: sou pelo socialismo, mas não pelo
socialismo soviético; sou unicamente por um socialis­
mo conforme a minha representação - dizer isso,
mesmo sob formas "heróicas", "sublimes" ou "poé-
11 ticas," equivaleria à atitude de uma mãe que dissesse:

l,
\a chama do amor materno me consome, sou o amor
materno feito mulher, mas recuso-me a amar meu
filho porque tem as orelhas descoladas . .:....:J
É assim que a frase revolucionária e suas conse­
qüências mora_is aparecem tal como o "Urphaeno­
men" goethiano. O que é, no plano político "frase
revolucionária", corresponde a um mal geral dos in­
telectuais do estágio do imperialismo. Estudamos um
dos sintomas desse mal em Simone de Beauvoir, a
propósito da superestimação falaciosa, à custa da ma­
turidade, da juventude poética e rebelde. É difícil re­
sistir à tentação de esboçar a análise fenomenológica
desse comportamento em face da realidade, mas in­
felizmente precisamos limitar-nos a algumas notas.
Esse mal niilista foi aliás logo reconhecido e genial­
mente descrito por Dostoievski. Pensemos no diálogo
202
de Ivan Karamazov com o Diabo, que lhe aparece sob
a aparência de um proprietário fundiário parasita. O
Diabo diz a Ivan: "Na realidade, estás furioso sú
porque não apareci numa luz vermelha acompanhada
de raios e trovões, com asas queimadas, mas sob uma
aparência mais modesta. Estás ofendido, primeiro
nos teus sentimentos estéticos, mas também no teu
orgulho: Perguntas: como um diabo tão ordinário pode
apresentar-se diante de um tão grande homem?" A
frase revolucionária representa simplesmente a de­
fesa do psiquismo do intelectual contra as ofensas
desse gênero: é o anjo de asas queimadas. Ela sa­
tisfaz o amor-próprio dos intelectuais, que se deba­
tem como vítimas do desejo pouco consciente de sair
do niilismo. Quando se crê, com efeito, ter rompido
com a sociedade burguesa ou, que se levante, ao me­
nos, um protesto intelectual contra ela, exige-se que
essa atitude traga consigo toda a poesia das épocas
heróicas. Não nos revoltamos contra a sociedade bur­
guesa simplesmente para tornarmo-nos uma engre­
nagem no aparelho do partido e para dedicarmo-nos
a estatísticas prosaicas. Tememos cair, de uma ma­
neira ou de outra, no conformismo. Aquele que se
aferra assim à frase revolucionária do trotskismo,
encontra-se, por esse fato, separado do proletariado,
o qual - como Merleau-Ponty vê muito bem - per­
manece fiel aos partidos comunistas e à União So­
viética. Mas isto em nada conta, ao contrário: resta
sempre o recurso de se lamentar, numa atitude de
luto sublime, na solidão do não-conformista ao meio
de uma época má.
Não pretendemos, longe disso, ter esboçado, no
que precede, a psicologia de Merleau-Ponty. Estamos,
no entanto, convencidos de que a atitude que acaba­
mos de descrever coincide com a de numerosos de seus
203
amigos e leitores e pensamos, além disso, que as
falhas e as obscuridades do existencialismo apenas fa­
vorecem a sobrevivência dos resíduos ideológicos de
que falamos. Pois, em última análise, o caminho no
qual se encontra engajado Merleau-Ponty não conduz
à superação do niilismo. É preciso uma perspectiva
concreta e real e esta só se poderia constituir a partir
da análise concreta da realidade objetiva, a partir
do traçado concreto do caminho que vai do presente
real ao futuro real. As abstrações da ontologia exis­
tencialista, sobretudo quando adotam as frases revo­
lucionárias do trotskismo, não podem superar o nii­
lismo, assim como as outras filosofias materialistas
não ultrapassam seus mitos. Isto não é um confor­
mimo pragmático de hoje, mas foi o próprio Marx
que escreveu: "A dificuldade consiste somente na de­
finição geral dessas contradições; desde que as espe­
cifiquemos, elas se resolvem."
Mas como Merleau-Ponty chegou a formular
sua posição propriamente dita face ao presente, após
ter aflorado, freqüentemente de uma maneira muito
espiritual, numerosas questões de ordem moral, ou
antes relativas à responsabilidade histórica? No que
concerne à sua atitude cm relação ao comunismo,
declara que se define por uma simpatia sem filiação
e um livre exame isento de inimizade. Nada temos
a objetar a uma tal atitude, com a condição, todavia.
que permaneça sempre praticamente realizável para
Merleau-Ponty. Aliás, desenvolve essa posição de um
modo um pouco mais concreto ainda, ma is ou menos
em analogia com S. de Beauvoir, enquanto recusa
misturar-se à confusão, isto é, no sentido de um "au­
dessus de la mêlée". Isto também nos parece pouco
criticável. Poderíamos, no entanto, notar que tra-
204
tando do problema dos colaboracionistas, portanto de
um problema de atualidade, Merleau-Ponty escreveu
que a posição acima dos partidos é neste caso muito
baixa; é o parti-pris da justiça. Por outro lado, ob­
servaremos igualmente que a atitude de Merleau­
Ponty corresponde às vezes exatamente às definições
menos nítidas e mais retrógradas de sua concepção da
História. Escreve, por exemplo, que em certas fases
históricas os intelectuais devem necessariamente per­
manecer à margem, pois a liberdade do pensamento
está proibida. É bem natural, sendo dado o funda­
mento subjetivista da sua concepção da História,
que muda sua estrutura segundo a natureza da atitu­
de subjetiva daquele que dela se aproxime. Assim,
para a ontologia existencialista, não é a irraciona­
lidade da História que determina a restrição da liber­
dade do pensamento dos intelectuais, mas a História
torna-se irracional ( do amontoado eclético de racional
e fortuito que era), desde que as necessidades de uma
defesa patética do "au-dessus de la mêlée" o exigem.
Mas de que intelectuais se trata? Depois de
seu período "au-dessus de la mêlée", Romain Rolland
soubera percorrer o caminho que o conduziu à de­
fesa ativa do verdadeiro progresso da humanidade.
Da atmosfera niilista e das frases revolucionárias de
seu mundo irracional, o seu caminho conduziu o S. R.
Savinkov-Ropchine à testa de seus bandos contra-re­
volucionários. Literato da mesma extração mornl e in­
telectual, Koestler tornou-se o turiferário zeloso do
imperialismo churchilliano. Quanto a Malraux -
cujo talento é incomparavelmente maior e mais
autêntico que o de Koestler - niilista dado ao culto
da frase revolucionária, também chegou a um lugar
de destaque no estado-maior intelectual do General
De Gaulle.

205
lne minha parte, jamais neguei o momento relati­
vamente justificado do existencialismo, segundo o
qual o homem se encontra colocado diante de uma es­
colha, em face de uma situaçã? que exige resoluçã�
Historicamente falando, o existencialismo se encontra
também em uma "situação" e, nos ideólogos da clas­
se de Merleau-Ponty, a resolução não é somente de
ordem moral e política, mas ao mesmo tempo filo­
sófica. Porém essa resolução, principalmente a de
tirar todas as conseqüências de sua atitude, sem te­
mor e sem hesitação, exige uma certa coragem. Si­
mone de Beauvoir formula - inconscientemente tal­
vez - com bastante exatidão, a atitude dos existen­
cialistas honestos, ao querer caracterizar a "situação"
do homem atual em geral, quando diz que " ... têm
medo diante da liberdade". Sendo dada a posição
que ocupam hoje, esse medo é nitidamente sensível em
S. de Beauvoir, como em Merleau-Ponty. Hoje, têm
ainda liberdade, mas também a responsabilidade his­
tórica da resolução que é exigida deles: depende ape­
nas deles próprios se quiserem seguir o caminho de
Romain Rolland ou antes o de Malraux.
As coisas têm entretanto sua própria lógica e
dá-se o mesmo no reflexo da realidade objetiva da
nossa consciência. A posição existencialista está, por
sua própria natureza, tão profundamente ligada ao
niilismo, que aqueles que nela se aferrarem serão
levados - quer queiram ou não - na direção seguida
por Malram�. Qualquer que seja entretanto a reso­
lução subjetiva dos existencialistas honestos, qual­
quer que seja a medida na qual sua resolução modifi­
car o curso de seu destino de homens e de pensadores,
é a História que decidirá dos destinos do existencia­
lismo e, no essencial, sua decisão já tomou forma.

206
C a p í tu I o IV

IV. A TEORIA LENINISTA


DO CONHECIMENTO E OS PROBLEMAS
DA FILOSOFIA MODERNA

1.

A ATUALIDADE IDEOLÓOICA DO
MATERIALISMO FILOSÓFICO

Em Materialismo e Empiriocriticismo, sua prin­


cipal obra filosófica, Lênin dá uma definição clara da
diferença, criada pela evolução histórica, que separa
sua época da ele Marx e de Engels. A ideologia dos
autores do Manifesto Comunista é um materialismo
dialético e histórico, enquanto que na época em que se
situa a atividade de Lênin, o centro de gravidade do
problema se desloca: a evolução do pensamento está
agora centrado num materialismo dialético e histó­
rico.
207
Como se justifica o lugar preponderante que o
materialismo filosófico ocupa no pensamento da época
imperialista? Justifica-se, a nosso ver, pelo fato de
que o idealismo filosófico atravessa atualmente a cri­
se mais profunda e, até agora, insuperável de sua
história. Com efeito, nosso período histórico apre­
senta, no plano político e social, um cadter reacioná­
rio extremo e esse fato empresta à crist um aspecto
completamente particular.
A evolução das ciências naturais e sociais do s.é­
culo XIX encurralou o idealismo filosófico em contra­
dições que era incapaz de resolver. Mas, porque as
correntes sociais e políticas que dominam nosso tempo
não poderiam passar sem uma ideologia idealista, a
crise tomou obrigatoriamente o aspecto de uma série
ininterrupta de tentativas, com vistas a descobrir um
"terceiro caminho", que haveria de permitir à mo­
derna teoria burguesa do conhecimento ultrapassar o
idealismo e o materialismo. Na realidade, trata-se
apenas, sem dúvida, de tentativas de renovação do
idealismo destinado a tornar-se uma arma nova no
combate ideológico contra o materialismo.
Não é possível tentar compreender esse processo
complexo e multiforme, a não ser que se renuncie de
uma vez por todas a deter-se nas especulações vazias
da teoria burguesa do conhecimento. Trata-se antes
de tudo de opor o materialismo ao idealismo, de uma
maneira fundamental, excluindo toda possibilidade de
malentendido. A fórmula de Engels, segundo a qual
o materialismo afirma o primado da existência sobre
a consciência, enquanto que o idealismo se define
· pela afirmação do contrário, nos convém perfeita­
mente.

208

..
Mas essa definição de base oferece duas perspec­
tivas possíveis à ideologia idealista. Na primeira, a
do idealismo subjetivo, a consciência identifica-se a
todas as formas da consciência individual, da qual a
existência é apenas o produto, enquanto sensação,
ilusão, idéia etc. É assim que é possível distinguir
diversas orientações no interior do idealismo subje­
tivo, de que certos adeptos admitem, fora da cons­
ciência, uma existência objetiva, mas incognoscível
por princípio (a Ding an sich de Kant), enquanto ou­
tros proclamam inexistente tudo o que ultrapassa as
formas e os conteúdos da consciência. Essa última
orientação atinge sua forma mais pura no solipsismo.
Quanto ao idealismo objetivo, a noção à qual ,
confere o caráter exclusivo de realidade propriamente .'
dita é igualmente assimilável à consciência, que não
é entretanto a consciência humana e individual. Tra­
ta-se, ao contrário, de uma consciência objetivamente
existente da qual a consciência humana seria apenas
um derivado muito longínquo, uma emanação ou uma
fase. Ora, é evidente que não existe nem na natureza,
nem na sociedade, e em nenhuma parte aliás, uma
consciência objetiva dessa ordem, que seja indepen­
dente da consciência humana. O idealismo objetivo
está portanto, por sua própria natureza, constante­
mente submetido à necessidade de criar mitos para
demonstrar e ilustrar a existência dessa consciência
objetiva e seu papel de criador universal. Os mais
importantes desses mitos são as diversas concepções
da divindade, mas existem naturalmente outros mitos
ideológicos relativos ao idealismo objetivo, tais como,
por exemplo, o mito platônico do mundo da idéia pura,
de que o nosso é apenas o reflexo, e também o Welt­
geist hegeliano, que abarca na concepção de um pro­
cesso de evolução grandiosa o conjunto da natureza
209
e da sociedade, o mundo material e espiritual do ho­
mem etc...
O brilho, a eficácia e a duração dos sistemas de­
pendentes do idealismo objetivo são função da relação
que existe entre o mito que estão condenados a criar
e o nível geral e a posição das ciências de sua época.
O idealismo objetivo pode, na medida em que as con­
dições determinadas pela época o permitem, integrar
em seu sistema certos elementos essenciais da filoso­
fia materialista. (É o caso da teoria do conhecimento
de Piatão e dos neoplatônicos.)
Pode, por outro lado, formular em seu mito ele­
mentos metodológicos novos, iluminados pelo progres­
so das ciências, ainda que sob um aspecto mitificado.
( Por exemplo: a idéia de evolução em Hegel.) Eis
porque na época do declínio da sociedade antiga o
idealismo objetivo constituiu-se sob sua forma mais
intransigente, a que lhe deu Platino; eis porque o
pensamento de Santo Tomás de Aquino pôde dominar
os séculos da Idade Média; eis porque ainda os prin­
cípios metodológicos pregressistas, nascidos da gran­
de subversão social e científica da Revolução puderam
ser formulados, com o máximo de perfeição em rela­
ção à época, pelo idealismo objetivo de Hegel.
O progresso das ciências no século XIX reduziu
a n·ada esse clima espiritual indispensável ao desen­
volvimento do idealismo objetivo. Falta-nos lugar
aqui para esboçar, mesmo sumariamente, as circuns­
tâncias dessa derrota. Portanto, mencionaremos sim­
plesmente a idéia da evolução histórica, que se impôs
tanto nas ciências naturais como nas ciências morais.
Por isso mesmo, tornou-se impossível para sempre
considerar o mundo humano, o conjunto da natureza
e da sociedade, como o produto de um ato criador

210
muco: a partir de então,ta consciência humana está
dada para a ciência como o produto histórico de uma
evolução natural de vários milhões de anos e de uma
evolução social muito long� Também os adeptos do
idealismo objetivo conduziram um combate encarni­
çado durante séculos contra os progressos das ciên­
cias, desde as descobertas de Copérnico até às de
Darwin. Ao fim de certo tempo, foram obrigados
a incorporar esses resultados - sob formas modifi­
cadas, falseadas ou atenuadas - a seu sistema. Essa
assimilação progressiva significa entretanto que o
mito criado pelo idealismo objetivo torna-se cada vez
mais abstrato, cada vez mais vazio de conteúdo e
cada vez menos apto a fornecer uma explicação pelo
menos plausível dos fenômenos da vida real. Os
mitos dependentes do idealismo objetivo que se cons­
tituem em tais condições não contêm mais, mesmo
sob formas mitificadas, os germes de uma nova evo­
lução científica, porque estão condenados, por sua pró­
pria natureza, a participar de um combate aberto ou
dissimulado contra as conquistas das ciências e a ideo­
logia científica. É assim que no clima social próprio
ao estágio do imperialismo, o idealismo objetivo deve­
ria fatalmente tornar-se a ideologia da ala extrema
da reação. O nascimento elo mito fascista representa
o auge dessa evolução.
Essa crise do idealismo objetivo levou o conjunto
do pensamento idealista a uma alternativa. De um
lado, restava-lhe a possibilidade de ligar-se a um so­
lipsismo sem reservas, que só reconhece como efetiva­
mente reais os conteúdos da consciência individual.
É evidente que o pensador conseqüente que adotar es­
sa doutrina ver-se-á obrigado a colocar em dúvida até
a existência de seus semelhantes. É com efeito im­
possível ser solipsista intransigente; como Schope-
211
nhauer disse um dia: só se pode ser verdadeiramente
solipsista num hospício.
A outra solução consistiria na confissão da fa­
lência do idealismo filosófico e na obrigação de pro­
ceder à sua liqüidação.
Condições particulares, próprias ao estágio do
imperialismo, não permitiram essa evolução realizar­
se. No seu lugar, assistimos a inúmeras tentativas
sem resultado, cuja finalidade é elaborar um "tercei­
ro caminho" da filosofia, tentativas que só podem
se realizar ao preço de um logro demagógico ou antes
- nos pensadores de boa-fé - por um engodo in­
consciente. Tal é o segredo do "terceiro caminho,"
que passa por não ser nem idealista nem materialista,
mas representante de um ponto de vista mais elevado,
mais científico e mais moderno.
A concepção do "terceiro caminho" implica -
é preciso dizê-lo - a confissão secreta ela falência do
idealismo. Contrariamente ao idealismo clássico, cujos
representantes tinham orgulho de se declararem idea­
listas e de participarem de um combate aberto contra
o materialismo, os adeptos modernos do "terceiro ca­
minho" não ousam mais proclamar sua filiação ao
idealismo e vão mesmo aparentar que o combatem.
Esse caminho só pode conduzir, mesmo em pensadores
de boa fé, a uma mistura eclética e arbitrária de
elementos provenientes de sistemas diferentes.
A derrocada das bases científicas do idealismo ob­
jetivo levou necessariamente os adeptos do "terceiro
caminho" ao idealismo subjetivo. Com exceção de
certos casos raros, não aceitaram jamais, no entanto,
as conseqüências que decorriam dessa situação e, re­
nunciando contradizer seu próprio ponto de partida,
esforçaram-se sempre para atingir um certo objeti-

212
vismo, salvaguardando sempre as pos1çoes teóricas
do idealismo subjetivo. Naturalmente, não podem es­
capar da necessidade de criar mitos, necessidade que
resulta da estrutura geral do idealismo objetivo.
Mas, enquanto que na época do idealismo objetivo
clássico esses mitos forneciam ideologias universais
e cheias de grandeza, os mitos nascidos sob a égide
do "terceiro caminho" limitam-se a revestir as cate­
gorias do idealismo subjetivo de uma pseudo-objetivi­
dade. É assim que o conteúdo da consciência torna-se
em Mach um "elemento" da realidade objetiva, gra­
ças à operação de contrabando que consiste em iden­
tificar com a consciência qualidades e objetos que ela
apenas tira da realidade objetiva. A raitificação pro­
priamente dita consiste em apresentar esses elemen­
tos como se não fossem nem conteúdo da consciência,
nem realidade objetivamente existente, mas "alguma
outra coisa".
Essas veleidades filosóficas, de que a escola de
Mach representa um resultado, deveriam encontrar
na pessoa de Lênin um adversário vitorioso. A crí­
tica teórica de Lênin é de um porte tão elevado que
todos os seus argumentos se aplicam aos sistemas
análogos nascidos ulteriormente, durante a evolução
do imperialismo. O essencial da crítica leninista con­
siste em afastar resolutamente todas as especulações
vazias, para voltar à questão sobre a qual deve repou­
sar toda teoria do conhecimento, a saber: primado
da existência ou primado da consciência. Partindo
daí, confronta o ecletismo da teoria do conhecimento
moderno com os resultados das ciências e essa con­
frontação demonstra sem equívoco que os adeptos do
"terceiro caminho" são na realidade idealistas sub­
jetivos. A ideologia própria ao "terceiro caminho'\
essa pretensa superação da antinomia idealismo-ma-
213
terialismo, nada mais é que um tecido de frases ocas
e mitos errados. Lênin não deixa de comparar a
teoria do conhecimento do idealismo atual, contradi­
tório e enganador, aos seus ancestrais sinceros e in­
transigentes, tal como a de Berkeley. É evidente que
a comparação não fala em favor dos modernos. Acres­
centemos ainda que a aceitação sem reserva da pura
ortodoxia berkeleyana estaria ainda longe de resolver
o problema no qual estão envolvidos os idealistas de
nosso tempo. O bispo Berkeley não pode, com efeito�
escapar à posição indefensável do solipsismo puro a
não ser garantindo a realidade objetiva do mundo
exterior, do mundo humano, pela interposição da di­
vindade. Ora, essa solução está proibida à maior parte
dos pensadores atuais. Desde Nietzsche até Sartre,
os fabricantes dos mitos mais audaciosos proclamam­
se ateus.
Seria falso crer que a crítica de Lênin concerne
exclusivamente à doutrina de Mach e que a evolução
ulterior da filosofia a ela escapa. A tendência domi­
nante da filosofia do estágio do imperialismo perma­
nece imutável: é a pesquisa do "terceiro caminho".
Nada prova melhor que o exemplo do existencialismo
proveniente da fenomenologia de Husserl. Aí tam­
bém a filosofia pretende atingir a realidade objetiva,
auxiliando-se das categorias da consciência pura. A
fenomenologia de Husserl e a ontologia à qual deu
nascimento procedem examinando os conteúdos, os
estados e os atos da consciência. A ilusão consiste
precisamente em crer que basta voltar as costas aos
métodos puramente psicológicos para sair do domínio
da consciência. Ora, a fenomenologia, que considera
não os estados e os conteúdos da consciência como
reflexos da realidade objetiva, não pode fazer outra
coisa senão criar um mito. O núcleo central desse
214
mito é fornecido pela pretensa existência autônoma
de certas categorias da consciência, dadas como exis­
tindo fora de toda consciência.
No início de sua evolução, Husserl está ainda
muito próximo da escola de Mach. "A questão da
existência e da natureza da realidade objetiva é uma
questão metafísica," diz, repudiando assim toda teo­
ria do conhecimento. A pretensão ao objetivismo não
tarda entretanto a prevalecer, tanto em Husserl como
nos seus alunos e é assim que se desenvolve a ontolo­
gia, isto é, a pesquisa mais recente do "terceiro ca­
minho."
Assim como a fenomenologia de Husserl, tam­
bém a ontologia inclina-se para entidades que depen­
dem exclusivamente da consciência, mas para procla­
mar de uma maneira absolutamente dogmática e sem
o menor começo de prova, que os "objetos" assim
revelados são objetivamente reais, até os que consti­
tuem o fundamento mesmo da realidade objetiva.
Assim, a ontologia moderna utiliza, sem o con­
fessar, as aquisições do materialismo, porque na me­
dida em que põe correlações objetivas, estas não po­
dem ser outra coisa que os reflexos da realidade ob­
jetiva na consciência. Assim procedendo, é perfeita­
mente incapaz de demonstrar o que tem a audácia
de proclamar - apoiando-se na introspecção - como
essência de toda existência.
Isto redunda, no melhor dos casos, em fazer,pas­
sar por realidades certas formas correntes do pensa­
mento. Assim, por exemplo, procurando as categorias
de base da existência social, Heidegger não é somen­
. te incapaz de fornecer a definição epistemológica, mas
ainda não cessa de falseá-las, conforme às aspirações
do pessimismo moderno.
215
Eis porque assistimos no campo do existencialis­
mo às mesmas lutas internas que Lênin tinha consta­
tado nos alunos de Mach: cada um acreditava ter des­
coberto o verdadeiro "terceiro caminho", mas no en­
tanto seus colegas e seus rivais não deixavam jamais
de demonstrar que ele apenas tornava a servir sim­
plesmente o bom velho solipsismo, revestido de uma
terminologia nova. É exatamente essa crítica que
J.-P. Sartre dirige a Husserl e a Heidegger.
Lênin tem o mérito de ter analisado o "terceiro
caminho" desde o início dessa evolução. Desvendou
o mecanismo do mito que se constitui sob essa bandei­
ra, provando que o idealismo objetivo que se tornou
indefensável, soçobra no solipsismo. Iluminou de
maneira nova a modificação profunda dos laços entre
as ciências e a filosofia, constatando que se a filosofia
antiga sustentava o progresso das ciências, a filoso­
fia moderna desempenha o papel de freio porque idea­
liza todas as tendências reacionárias.
É primeiramente no domínio do conhecimento
científico que Lênin dá uma definição clara das rela­
ções que unem a filosofia e as ciências. Antes de
tudo, trata-se para Lênin de elucidar sem equivoco
possível a plataforma da teoria do conhecimento do
materialismo filosófico. É preciso separar bem niti­
damente a definição gnosiológica da noção de ma­
téria das definições concretas que dela oferecem as
ciências naturais no decorrer de cada etapa de sua
evolução. "Pois a única qualidade da matéria sobre
a qual repousa o materialismo filosófico, escreve Lê­
nin, é sua realidade objetiva, que existe fora da nossa
consciência".
Essa delimitação muito nítida não quer dizer,
longe disso, que a filosofia considera com indiferença
os resultados das ciências. É o contrário que é ver-
216
dadeiro. Lênin, como o fez Engels antes dele, subli­
nha em várias oportunidades que é um dever para a
filosofia materialista assimilar todo progresso novo
das ciências naturais e aproveitar toda nova desco­
berta, para obter um conhecimento mais concreto e
mais exato da estrutura da matéria.
j As relações entre a filosofia e as ciências pode­
riam portanto ser caracterizadas da maneira seguinte:
mesmo nas questões especificamente filosóficas, a fi­
losofia é aprendiz das ciências, mas guardando sua
independência total nas questões fundamentais da
teoria do conhecimento, para poder, graças a essa
independência, retomar seu lugar de guia das ciências
naturais, todas as vezes que os cientistas ameaçam
perder-se, quer por causa da influência de seu meio
burguês, quer por falta de cultura filosófica. 1
Nos nossos dias, nunca foi tão necessário subli­
nhar a importância dessa missão da filosofia. Acon­
tece, com efeito, e freqüentemente, que cientistas -
que são todos materialistas no laboratório, mesmo
sem confessá-lo - caem na ideologia reacionária,
desde que esboçam a menor tentativa teórica ou me­
todológica. Lênin não demonstrou que o próprio Mach,
na sua prática científica, estava obrigado, segundo
sua própria confissão, a ser materialista? ...
É aí que o materialismo militante de Lênin inter­
vém no grande debate da filosofia. Contrariamente
à pseudo-objetividade professoral - que apenas dis­
simula, bem ou mal, o parti-pris filosófico e social
consciente ou não - há, em Lênin, um parti-pris
nítido e consciente em todas as questões ideológicas.
É aliás, assim como Lênin o diz, a característica
geral da filosofia materialista. É esse parti-pris que
toma uma forma concreta no combate de Lênin con­
tra o idealismo novo.
217
Quanto à crítica filosófica, Lênin opera uma dis­
tinção muito nítida entre a que vem de direita e a
que é mantida pela esquerda. Assim, por exemplo,
a hesitação kantiana entre o materialismo e o idealis­
mo, que se manifesta mais claramente a propósito
da Ding an sich, sofreu críticas provenientes da es­
querda (Feuerbach e Tchernichevski) que lhe repro­
vam abandonar o materialismo abstrato para recair
no agnosticismo idealista, enquanto as críticas vin­
das da direita (desde Fichte até a escola de Mach)
acham que postulando a existência objetiva da Ding
an sich, Kant deixou de ser um idealista conseqüente.
Eis como se formam, na luta ideológica, alianças
objetivas em torno de certas questões, alianças que
não devem aliás jamais fazer perder de vista as di­
vergências que separam os "aliados" entre si. Lênin
critica de uma maneira muito incisiva o idealismo de
Hegel, sem que se veja impedido de aprovar sua crí­
tica dialética da Ding an sich kantiana. Lênin igual­
mente criticou - e veremos com que vigor - as fa­
lhas do antigo materialismo e entretanto soube des­
cobrir aliados contra o "terceiro caminho" de Mach
e Feuerbach, até em Haeckel e mesmo na prática
científica dos cientistas atraídos pelo kantismo. Aliás
Lênin, como já dissemos, atribui uma importância
considerável às críticas que se dirigem reciprocamente
os pensadores idealistas e que constituem, segundo
ele, uma parte importante do processo de autodes­
truição do idealismo.
Por todas essas razões, sob a pena de Lênin, a
história da filosofia torna-se viva, movimentada e
mesmo dramática. O estilo da crítica leninista é
vivo e nervoso e seu sentido crítico apreende toda
tendência prog,essista, mesmo se está embaraçada em
contradições. O que Lênin reprova nos pensadores

218
marxistas de sua época é precisamente o caráter pu­
ramente negativo de sua crítica, que considera nem
exaustiva nem suficientemente convincente. "É antes
do ponto de vista do materialismo vulgar que do ma­
terialismo dialético, escreve, que Plekhanov critica o
kantismo - e o agnosticismo em geral - na medida
em que se limita a rejeitar seus raciocínios a limine,
sem os corrigir ( como Hegel corrigira Kant), apro­
fundando-os, generalizando-os e alargando-os, para
revelar as correlações e interpenetrações de todas as
categorias." Como em todos os grandes pensadores
clássicos, não há, em Lênin, separação estrita entre
a filosofia especulativa, a crítica e a história da filo­
sofia. E eis porque Lênin julga tão severamente a
concepção acadêmica e, ao mesmo tempo, a concepção
"interessante" da história da filosofia.

2.
MATER.IALISMO E DIALÉTICA

Foi necessário colocar todas essas questões para


chegar ao problema da dialética. Vimos com que
vigor Lênin sublinha a importância do materialismo;
seria entret_anto totalmente falso concluir daí que des­
preza a dialética. Ao contrário: é o primeiro pensador
revolucionários, depois de Marx e Engels, que soube
dar um novo impulso _ao estudo da dialética. O pro­
blema do primado gnosiológico da matéria apresen­
ta-se nele sob um aspecto novo. O materialismo ocupa,
com efeito, um lugar central na evolução atual do
pensamento, precisamente porque o método dialético
não poderia agora afirmar-se de outro modo a não
ser sobre a base da ideologia materialista. A crise
do idealismo exclui definitivamente, com efeito, a pos-
219
sibilidade de ver surgir no nosso tempo - guardadas
todas as proporções - um Proclo, um Nicolau de
Cusa, um Vico ou um Hegel.
Mas a vida não pára; as ciências naturais pros­
seguem sua evolução, e os problemas sociais estão
agora carregados de uma força da qual depende o
futuro da humanidade. Esses processos continuam seu
curso, sejam ou não adeptoLdo método dialético os \
pensadores da nossa época. 1 A própria vida, a evolu­
ção da sociedade e da natureza são de caráter dialé­
tico e quanto mais nosso conhecimento as penetrar,
quanto mais nossa evolução objetiva progredir, mais
esse caráter se desvenda a nó�É assim que a ciência
e, antes de tudo, a filosofia, acabam por se encontrar
em face de problemas que não poderiam ignorar e
que tomam um caráter dialético cada vez mais acen­
tuado. A ciência e, em primeiro lugar, a filosofia,
são entretanto incapazes de fornecer a essas ques­
tões dialéticas respostas que o sejam igualmente. O
problema autêntico, freqüentemente decisivo para o
homem, recebe uma solução falsa, desfigurada, en­
ganadora. A questão real, cuja resposta implicaria
possibilidades grandiosas de progresso, torna-se as­
sim uma arma a serviço da reação.
Lênin reconheceu genialmente essa condição es­
sencial da filosofia moderna. Longe de se limitar a
constatar essa evolução, evidente para ele, no domí­
nio das ciências morais, que se tornaram reacioná­
rias, estendeu o campo de sua descoberta, aplicando-a
à crise da filosofia idealista e mesmo à da física mo­
derna, prevendo assim nas suas grandes linhas toda
a evolução ulterior das ciências naturais. modernas.
A grande subversão da física moderna, essa sub­
versão cujo resultado concreto não se manifesta para
nós senão há pouco, data, como se sabe, da primeira
220
década do nosso século. Lênin logo reconheceu a
importância dessa transformação do ponto de vista
da filosofia, o que lhe permitiu fornecer imediatamen­
te a resposta dialética ao problema igualmente dialé­
tico que essa transformação das ciências naturais ti­
nha objetivamente colocado. Essa transformação ma­
nifestara-se, antes de mais nada, pela derrocada "brus­
ca" de concepções consideradas inabaláveis há déca­
das e mesmo há séculos, sobre as qualidades e a
estrutura da matéria. A dualidade clássica da maté­
ria e da energia, da matéria e do movimento tornou-se
"de repente" vacilante. A necessidade de noções fí­
sicas novas apresentava-se ao mesmo tempo motiva­
da pela vontade de dar aos fenômenos que se acabava
de descobrir, uma e:x;pressão adequada no plano do
pensamento. Ora, a grande maioria dos físicos filó­
sofos, como dos pensadores especializados em comen­
tar a evolução das ciências naturais, recuava em de­
sordem diante dessas questões, decididamente inso­
lúveis, sem o recurso do método dialético. Essa fuga
em pânico para o idealismo reacionário devia arrastar
mesmo certos físicos que permaneceram no entanto
materialistas nos seus trabalhos científicos.
A crise teórica das ciências da natureza apresen­
tava-se de um lado ·sob o aspecto de uma crise das
concepções estabelecidas e, de outro, - sobretudo no
domínio especulativo - como urna crise do materia­
lismo. A transformação da física significava, para
alguns, o desaparecimento da matéria, e, portanto,
a derrocada da ideologia materialista. Sabemos que
essa crise da filosofia não deixou de causar estragos
nos meios marxistas: mais ou menos em toda parte,
na II.ª Internacional, o materialismo perdia terreno,
enquanto o revisionismo filosófico, o kantismo, a dou­
trina de Mach encontravam adeptos.

221
É ao longo dessa crise que Lênin soube aprovei­
tar a fertilidade e a eficácia da ideologia materialista.
Lênin via muito claramente que a subversão da física
não tocava em nada as bases filosóficas do materia­
lismo. Quando a física dá uma definição inteiramente
nova da estrutura da matéria, é evidente que a filo­
sofia materialista deve dela se aproveitar. Mas quais­
quer que sejam as descobertas da física, qualquer
que seja o conteúdo concreto das leis e das hipóteses
que fundam; a única questão fundamental da teoria


do conhecimento permanece inalterada. Eis o que
! diz Lênin a esse respeito: único ponto de vista
' justo, o do materialismo dialético, deve ser formulado
assim: os elétrons, o éter e todo o resto existem ou
não fora da consciência humana, enquanto realidade
objetiva? É a essa questão que os cientistas devem
responder sem hesitação e eles respondem sempre
afirmativamente, da mesma forma que admitem a
existência da natureza como anterior ao nascimento
do homem e da matéria orgânica. A questão está
assim decidida em favor do materialismo, pois, como
já vimos, a noção de matéria nada mais significa, do
ponto de vista da teoria do conhecimento, do que a
realidade objetiva, cuja existência é independente da
consciência humana e é refletida por esta."1
No entanto, essa resposta justa e decisiva cons­
titui para Lênin apenas um ponto de partida. Expli­
cando a crise, analisa o idealismo reacionário ao qual
dá origem e demonstra irrefutavelmente que as hi­
póteses novas que serão construídas sobre fenômenos
novos não tocam em nada as bases da teoria do co­
nhecimento materialista. Sublinha igualmente que a
crise da física é ao mesmo tempo a do antigo materia­
lismo mecanicista. Não é a matéria que desaparece,
222
não é a categoria gnosiológica da matéria que muda,
mas é o método teórico do materialismo mecanicista
que desmorona por causa da incapacidade em apreen­
der fenômenos novos de uma maneira adequada. As
causas de sua falência são antes de mais nada a
rigidez dogmática de suas categorias, a preponderân­
cia da doutrina mecanicista, a incompreensão do re­
lativismo das teorias da ciência e, enfim, a ausência
do método dialético. Lênin nos diz que "a física nova
devia macular-se de idealismo, essencialmente porque
os físicos ignoravam tudo da dialética. Combatiam
o materialismo metafísico ( na acepção engelsiana do
termo e não dos positivistas, isto é, de Hume), e lu­
tando contra seu caráter unilateral e mecanicista, ter­
minaram por minar os fundamentos do materialismo.
A negação da imutabilidade da estrutura e das qua­
lidades até então conhecidas da matéria conduziu-os
à negação da própria matéria, em outras palavras,
à negação da realidade objetiva do mundo físico. A
negação do caráter absoluto das leis fundamentais
mais importantes levou-os a colocar em dúvida a exis�
tência de toda lei objetiva na natureza e declarar
que as leis naturais eram simplesmente "conven­
ções", "necessidades lógicas" etc. Postulando o ca­
ráter aproximativo e relativo do conhecimento, foram
levados a negar o objeto que existe independentemen-:­
te do conhecimento, objeto que esse conhecimento
reflete de uma maneira aproximativa e relativamente
justa etc., etc."
Vemos portanto que é precisamente para defen­
der o materialismo que Lênin dirige-se contra o ma­
terialismo antigo e que é ainda a defesa do materia­
lismo que o leva a acentuar os problemas da dialética.
Lênin ataca frontalmente esses problemas, colocan­
do a questão da relatividade do conhecimento. O mé-
223
todo dialético formula essa questão da maneira se­
guinte: como a relatividade do conhecimento - a
das leis, teoremas etc. - pode constituir um elemento
necessário, inelutável, do absoluto? Como ocorre que
a relatividade do conhecimento não destrói a objeti­
vidade das leis e dos teoremas, assim como a objetivi­
dade e a permeabilidade ao conhecimento do mundo
exterior?
Somente a dialética pode fornecer-nos a resposta
a essa questão. Para todo o pensamento mecanicista,
metafísico ou atolado na lógica formal, a verdade
não pode ser senão absoluta ou relativa. Não há
transição: é preciso escolher entre os dois. O ma­
terialismo não-dialético não escapa t'ambém a essa al­
ternativa. Ora, o relativismo e, com ele, o agnosti­
cismo terminaram necessariamente por impor-se ao
pensamento antidialético moderno porque a evolução
das ciências e a evolução da própria vida impõe-nos a
todo momento novas provas da relatividade dos fe­
nômenos, assim como o conhecimento que temos deles.
A questão que Lênin põe, em presença da crise
da física moderna e da falência do materialismo não­
dialético, tem portanto um sentido bem mais profun­
do e mais geral que a ocasião que lhe serve de pre­
texto. Comentando a crise da física moderna, Lênin
não se limita a fazer o processo do materialismo não­
dialético, mas sublinha que o idealismo atual é inca­
paz de assimilar os fatos novos trazidos à luz pela
evolução da ciência. Só a forma de sua falência é
particular, porque resulta numa ideologia relativista,
que aliás se afirmará ao longo da evolução do pensa­
mento moderno. A título de exemplo, bastará evocar
o papel da probabilidade no existencialismo francês.
224
A questão assim posta por Lênin, Hegel tinha
já dado uma resposta dialética, declarando que o rela­
tivo era um componente, mas somente um componen­
te, da dialética; Em relação à totalidade, não se
chega à negação da verdade objetiva, mas à definição
histórica e gnosiológica da aproximação da verdade.
Eis como Lênin expõe esse princípio: "Para o mate­
rialismo moderno, isto é, para o marxismo, somente
os limites da aproximação da verdade objetiva são
historicamente determinados, enquanto que a exis­
tência dessa verdade mesma é absoluta, tanto quanto
nosso progresso em direção a ela. .. O que é his­
toricamente determinado é a data e as circunstâncias
da conclusão de nosso conhecimento da essência das
coisas ... mas o fato de que toda descoberta de tal
natureza é um progresso do "conhecimeni.Q__absoluta­
mente objetivo", é ele mesmo absoluto. 1 Em suma,
toda ideologia é historicamente determinada, mas é
absoluto que a toda ideologia científica corresponde
uma verdade objetiva, isto é, um elemento da nature­
za absoluta. Objetar-me-ão sem dúvida que essa
distinção entre verdade relativa e verdade absoluta
é bem vaga. Responderei a essa objeção dizendo
que minha distinção é suficientemente vaga para im­
pedir a transformação da ciência em dogma no sen­
tido pejorativo da palavra, isto é, em uma coisa mor­
ta, rígida, petrificada, mas que é ao mesmo tempo
suficientemente nítida para traçar, nítida e irrevoga­
velmente, a fronteira entre o fideísmo e o agnosticis­
mo de um lado, o idealismo filosófico e os sofismas
dos discípulos de Kant e de Hume, de outro.'\
Somente o materialismo dialético pode chegar a
essa concepção, flexível e intransigente ao mesmo
tempo, da relatividade enquanto momento do absolu­
to. Sua fé no Weltgeist autorizava a Hegel uma
225
conv1cçao tão profunda na existência objetiva e na
inteligibilidade do mundo exterior, que pode perfeita­
mente conceber a relatividade enquanto momento,
sem no entanto cair no relativismo. Em Hegel, esse
reconhecimento da natureza dialética da realidade
roça mais de uma vez, aliás, o limite da dialética ma­
terialista. O idealismo atual ao contrário, quando
tenta ultrapassar o agnosticismo puro ou o solipsis­
mo, só pode perder-se em mitos sem fundamento,
freqüentemente demagógicos, ou então elaborar pen­
samentos, idéias e experiências vividas que não per­
tencem a ninguém e que são tidas como "elementos
comuns" ao mundo objetivo e ao mundo subjetivo.
Para a filosofia moderna, a escolha está portanto li­
mitada entre um mito confessado e o mito que pro­
cura esconder-se. Mas permanece fatalmente anti­
científica e antiprogressista, porque suas sínteses
fundam-se apenas num único elemento.
O pensamento que se constrói sobre tais bases
não poderia ser dialético. Se bem que idealista, o
pensamento de Hegel era dialético, mesmo que seu
Weltgeist abarcasse, ainda que sob um aspecto miti­
ficado, o conjunto ela natureza e da sociedade, como
também a história desta. Além disso, a concepção
hegeliana não era dogmática e rígida, mas sim a
representação móvel do processo universal da vida,
renovando-se sem cessar pela morte.
Uma tal concepção é impossível para o "terceiro
caminho" do idealismo moderno. Não é por acaso
que a revolução de 1848 marca o término da crise
da filosofia hegeliana, à qual deveriam suceder di­
versas variantes do materialismo mecanicista e do
idealismo subjetivo, muito diferentes entre si mas
todas igualmente antidialéticas. Não é por acaso
que essa época vive também o apogeu da influência
226
de Schopenhauer, que qualificava a dialética de "delí�
rio". Enfim, não é por acaso que Kierkegaard, o
adversário mais intransigente da dialética hegeliana,
torna-se o pensador em moda nos anos que deveriam
preceder o advento do fascismo. Essas poucas consi­
derações bastam sem dúvida para indicar quão in­
transponível é o abismo entre o materialismo dialé­
tico e todas as outras correntes do pensamento no
estágio do imperialismo. É aliás precisamente a cons­
ciência dessa contradição irreconciliável que explica
o vigor decisivo da argumentação, nos escritos filo­
sóficos de Lênin. Lênin via acertadamente, desde
o início, o que se preparava; sabia que todas essas
teorias distintas, redigidas numa linguagem comple­
tamente inacessível à média das pessoas, forjariam
as armas filosóficas, políticas e sociais da reação
mundial.
Lênin sabia, como grande pensador dialético,
extrair o lado positivo deste conjunto de fatos negati­
vos. Assim como as leis da dialética ensinam, a ne­
gação é a força motriz do progresso. É evidente que
não falamos das teorias reacionárias e dos mitos, mas
dos próprios fenômenos, que fundam estas visões do
espírito. A negação fértil, força motriz do progresso,
reside sempre nas questões e não nas respostas. Ora,
no caso de que nos ocupamos, trata-se da crise da
física e da derrocada da antiga noção da matéria.
Lênin combatia os comentadores idealistas desse fe­
nômeno e estudava com interesse e compreensão o
próprio fenômeno, tal como se manifestava na crise
das ciências naturais. Também devia ele compreen­
der que a derrocada das concepções do materialismo
mecanicista marcava precisamente o momento do
nascimento da concepção nova do materialismo dialé­
tico. "A física moderna, escreve ele, está em vias
227
de dar à luz o materialismo dialético." Citamos acima
a crítica leninista das concepções de Plekhanov so­
bre a história da filosofia. Aqui, Lênin não se con­
tenta em exercer uma crítica. Por sua própria ação
prática, opôs sua concepção verdadeiramente marxis­
ta do progresso ideológico da humanidade à imagem
desfigurada e grosseira que o materialismo mecani­
cista faz dele.

3.
SIGNIFICAÇÃO DIALÉTIC,A DA
APROXIMAÇÃO NA TEORIA
DO CONHECIMENTO

Para Lênin, a principal fraqueza do materialismo


mecanicista reside na sua incapacidade de aplicar a
dialética ao processo do conhecimento. Que significa
essa crítica no plano da filosofia?
i·-o materialismo mecanicista atribui ao conheci­
mento_ a projeção direta de um mundo estático e
imóvel, um reflexo bruto, tal como resulta de nossa
experiência cotidiana. Essa experiência é, sem dú-
1 vida, um fenômeno fundamental, que constitui fatal­
: mente o ponto de partida de toda reflexão, porque o
1
\ único conhecimento que temos do mundo chega-nos
·i por intermédio dos nossos órgãqs. \ É impossível con­
' testar essa verdade, sem cair em pleno agnosticismo.
Mas o mundo exterior ultrapassa o que é imedia­
tamente dado pela percepção de nossos órgãos. O

r
mundo exterior é ao mesmo tempo movimento e trans­
formação. Compreende ainda a direção da transfor­
mação e suas leis, assim como elementos constantes,
escapando talvez à nossa percepção direta, mas que
228
nem por isso deixam de compor os fenômenos que

um
percebemos.\ Para o materialismo pré-marxista, ha­
via nisto dilema insolúvel, dilema que o jovem
Marx devia identificar em Demócrito, na contradição
que subsiste entre a percepção direta e a noção de
átomo.
A filosofia moderna apresenta numerosas va­
riantes contemporâneas desse mesmo problema. Lê­
nin estabelece claramente o laço necessário entre a
percepção e a realidade objetiva - o "sensualismo"
não é, para ele, um elemento constitutivo da atitude
materialista? - mas por outro lado, reconhece que
se trata apenas de um elemento, que tem de ser ins­
rrito numa totalidade dialética para tornar-se a ga­
rantia do conhecimento da realidade objetiva. Isolado
em si mesmo, o sensualismo não poderia fornecer essa
garantia e Lênin sublinha com razão que o sensualis­
mo de Locke foi o ponto de partida comum do mate­
rialismo de Diderot e do solipsismo de Berkeley. Não
é aliás por acaso que Shaftesbury ou Diderot, todos
os dois materialistas, procurando formular as leis da
existência, ocupam uma posição vizinha do plato­
nismo.
O problema das relações que unem o fenômeno
e a existência, a existência e a lei etc., o problema de
sua homogeneidade ou de sua unidade dialética tor­
na-se portanto essencial na evolução do pensamento
moderno. É ainda Hegel, precursor da dialética mo­
derna, que realiza o passo adiante decisivo, e Lênin,
nas suas Notas Marginais para a Lógica de Hegel,
�efine toda a importância metodológica desse passo.
1 A reflexão, ultrapassando a existência imediata dá
lugar à ilusão de que essa superação seria unicamente
devida ao conhecimento e exterior portanto à realidade
objetiva. Na verdade, essa superação é realizada pela
229
própria existência, assim como a descoberta de Hegel
e os comentários materialistas de Lênin ressaltam.
Ora, se caminhando do fenômeno para a essência,
o conhecimento apenas segue o movimento da pró­
pria existência, isto é, se tudo o que se convencionou
chamar "abstração", "lei natural" etc., é apenas for­
ma nova, se bem que inacessível à percepção direta
do próprio existente, se enfim esse caminho do co­
nhecimento não constitui urna atividade autônoma,
pertencendo-lhe exclusivamente, mas simplesmente o
reflexo complexo e indireto do movimento e da trans­
formação do ser na consciência humana, então a teo­
ria do conhecimento materialista, segundo a qual a
consciência -humana reflete a realidade objetiva cuja
existência é independente da sua, apresenta-se sob
uma luz completamente nova. A realidade objetiva
sendo ela mesma um processo feito elo movimento dos
fenômenos que evoluem para tornar-se seu contrário,
a reflexão não poderia pretender reproduzí-la ele uma
maneira adequada, a não ser com a condição de ser
ela mesma dialéti�a.\
Essa concepção suprime de vez as questões que
pareceram insolúveis à teoria do conhecimento do
idealismo. fà oposição rígida entre fenômeno e es­
sência, entre o imediato e a coisa-em-si (Ding an sich)
não existe mais. A essência é objetivamente real e,
· do ponto de vista da teoria do conhecimento, "da
, mesma essência" do imediato: essa descoberta su­
prime o erro que consistia em rebaixar o fenômeno
ao nível da aparência. A interpretação geral e abstra­
ta da noção de objetividade atribui existência tanto
ao fenômeno imediato quanto à essência. A diferen­
ça que os separa, manifesta-se - através da sucessão
ininterrupta das transições - pela diversidade dos
graus da existênc�a-J O estabelecimento dessa grada-

230
ção do ser (Sein, Dasein, Wesen, Existenz, R.ealitiit,
Wirklichkeit) representa uma das maiores revelações
da lógica hegeliana. Sublinhemos entretanto que não
se trata de uma hierarquia fria e rígida, como a dos
neoplatônicos, mas de uma unidade dialética, isto é,
_sontraditória, da relatividade do ser ou do não-ser.
1 A essência está dotada de uma existência mais pro­
funda que o fenômeno imediato, que é apenas um
de seus elementos constitutivos, enquanto a essência
é precisamente a síntese, a unidade desses elemento_:'. 1 !
Segue-se necessariamente que jamais poderiam ser
considerados separadamente um do outro. 1 O conhe­
cimento da correlação mútua dos fenômenos objeti-
. vos e imediatos indica o caminho para o conhecimento
:. da coisa-em-siJ assim como Marx e Engels, Lênin
faz igualmenfo sua essa crítica de Hegel a Kant.
As considerações que precedem não poderiam
entretanto pretender esgotar o problema das relações
dialéticas do absoluto e do relatiYo. \ O conhecimento 1
da essência só se torna verdadeiramente adequado
quando a reflexão chega a descobrir suas leis ima­
nentes. É assim que a investigação científica abstra­
ta atinge a mais elevada forma à qual possa preten- (
d�L\ Lênin, assim como :Marx e Engels, não deixa .
de insistir na importância dessa consideração, sobre­
tudo nas suas polêmicas contra o empirismo vulgar,
que se perde na enumeração, na descrição e no orde­
namento mecânico dos fenômenos imedia to� Contra
esse empirismo, Engels tinha razão de escrever: "A
lei geral da transformação da energia cinética é bem
mais concreta que tal ou tal de seus exemplos. "con­
cretos". Lênin também se Yolta resolutamente con­
tra a concepção, de Kant por exemplo, segundo a
qual a essência apreendida pela reflexão não poderia
pretender à verdade objetiva, porque lhe falta a ma-
231
téria temporal e espacial fornecida pelos sentidos.
"O valor, escreve Lênin, é uma categoria à qual falta
a matéria fornecida pelos sentidos e no entanto é
mais verdadeira que a lei da oferta e da procura."
Lênin filia-se totalmente à posição de Hegel face a
Kant, no que concerne à distinção entre o fenômeno
e a coisa-em-si. Faz sua a proposição geral da dialé­
tica hegeliana, segundo a qual o mundo da coisa-em-si
e dos fenômenos é apenas um, mesmo sendo os dois
contrários, o que quer dizer que o mundo dos fenô­
menos imediatos, assim como o da coisa-em-si, cons-
1 ituem para o conhecimento apenas momentos, gra­
dações. transições. E no entanto. após ter-se apro­
ximado, em tão larga medida, da posição de Hegel.
acusa-o de não ver que o mundo da coisa-em-si afas­
ta-se cada vez mais do mundo dos fenômenos ime­
diatos.
Essa última consideração poderia fazer crer ;\
primeira vista, que a dialética propõe-se eliminar a
antinomia que sacode o materialismo antigo desde
Demócrito. diminuindo a importância dos fenômenos
imediatos. Não é entretanto nada disso, porque Lênin
toma bastante cuidado em insistir na passagem em
que ·Hegel especifica que o mundo das leis nada mais
é do que o reflexo imóvel do mundo existente. isto é.
do mundo dos fenômenos imediatos. Disto resulta
que em relação ao mundo das leis, o mundo dos
fenômenos representa o todo, a totalidade. porque
contém a lei e, além disso, a própria forma�e se
move. Em outras palavras, isto significa que\ o con­
junto da realidade é sempre mais rico que a lei mais
adequada e é precisamente esse fato que melhor ilus-
tra o papel da relatividade enquanto momento, na
evolução do conhecimento científico. O conhecimento
cada vez mais avançado das leis reduz, certamente,
232
essa margem, cada vez mais, mas a contradição dia­
lética entre essência e fenômeno imediato não é me­
nos eterna. A lei concreta não será jamais senão a
aproximação da totalidade real, sempre móvel, in­
cessantemente mutável, em todos os sentidos infinita,
que o pensamento não poderá jamais esgotar de uma
maneira perfeit�
a
É assim qtte questão bem posta da relatividade
do conhecimento, a teoria do conhecimento do mate­
; rialismo dialético fornece a boa resposta. -Nossos
1 conhecimentos são apenas aproximações da plenitude
· da realidade, e por isso mesmo, são sempre relativos:
na medida, entretanto, em que representam a apro­
ximação efetiva da realidade objetiva, que existe in­
dependent,emente de nossa consciência, são sempre
absoluto�:Í O caráter ao mesmo tempo absoluto e re­
lativo da consciência forma uma unidade dialética in­
divisível.
É aí aliás que a concepção dialética materialista
da aproximação infinita separa-se muito nitidamente
da de Kant. Esta última é dialética, porque dá conta
do caráter aproximativo do conhecimento enquanto
processo infinito, mas porque o Ding an Sich é por
princípio incognoscível e o processo infinito do co­
nhecimento só pode ter por objeto o mundo dos fe­
nômenos imediatos, faz cair a totalidade do conheci­
mento no relativismo. Essa crítica aplica-se bem
melhor ainda aos neokantianos, assim como aos dis­
cípulos modernos de Hume e de Berkeley, que con­
testam a existência do Ding an Sich, noção "supér�
flua". O pensamento idealista moderno separa rigi­
damente o absoluto do relativo: separa cirurgicamen­
te as relações vivas e reais da realidade objetiva, para
isolar um único elemento, o da relatividade, que erige
em único princípio condutor do conhecimento cientí-
233
fico. Tal procedimento só pode falsear e desfigurar
a realidade. Leva necessariamente àquilo que Lênin
tinha freqüentemente previsto: toda a verdade torna­
se absurda, desde que ultrapassa seus limites.
A concepção leniniana do conhecimento científico
reserva portanto um lugar de primeiro plano à no­
ção de aproximação e esse fato é de uma importância
prática considerável do ponto de vista da metodologia
das ciências naturais e da sociologia. fAs concepções
mecanicistas do materialismo antigo só podiam levar
a ideologias fatalistas. É assim que alguns acreditam
que o conhecimento perfeito dos "elementos últimos"
do mundo e das leis que governam suas relações
permitiria descrever a priori e com exatidão toda si­
tuação a se produzir no futur� A evolução da astro­
nomia parecia aliás, num certo momento, justificar
essas idéias. l\fas quando a nova direção dialética
da física moderna abalou as bases das concepções
clássicas, os adeptos das diversas escolas idealistas
concluíram peremptoriamente pela derrubada da no­
ção de lei natural. Ao problema dialético colocado
pela evolução da realidade, apressaram-se em dar res­
postas relativistas, agnósticas, e até místicas, atre­
lando assim a popularização das ciências naturais ao
carro das ideologias reacionárias.
Essas concepções estão entretanto muito difun­
didas nas ciências morais burguesas, ou submetidas
a influências burguesas. (Pensemos na teoria nietzs­
cheana do eterno retorno ou antes em Bukarin que
afirmava que somente o nível insuficiente de seu de­
senvolvimento impede a sociologia de prever os acon­
tecimentos a vir, com tanta exatidão quanto a astro­
nomia.) O fatalismo que se funda em tais erros não
é só teoricamente indefensável, mas ainda exerce um
efeito paralisador em toda atividade humana, princi-

234
paimente naquela que visa à transformação radical
1la sociedade no sentido do progresso. Escamoteando
as ciências sociais, a dialética do caráter absoluto e
n·lativo do conhecimento, amputando o conhecimento
de seu caráter de aproximação, suprime-se a "mar­
Kl'tn de liberdade" filosófica da atividade social. No
pensamento burguês esta ilusão apresenta-se sob a
forma do dilema insolúvel do voluntarismo e do fa­
talismo, do livre arbítrio ilimitado e da necessidade
cega e mecamca. O existencialismo, por exemplo,
aproveita pretensas conquistas da teoria burguesa
rlo conhecimento para reduzir todo conhecimento hu­
mano sobre a realidade objetiva ao nível de probabi­
lidade, o que justifica em seguida a oposição a essa
realidade com um livre arbítrio ilimitado, enquanto
única instância absoluta.
A maneira pela qual Lênin aplica as concepções
da realidade e do conhecimento do materialismo dia­
lético ao domínio das ciências sociais e da atividade
social é de uma fertilidade notável. Falta-nos lugar,
infelizmente, mesmo para esboçar a exposição desses
problemas muito extensos. Limitar-nos-emos, por­
tanto, a deixar claro, com o auxílio de alguns exem­
plos característicos, o antagonismo absoluto que exis­
te entre a teoria leniniana e as teorias pseudo-socia­
listas burguesas, ou submetidas a influências bur­
guesas. Demonstraremos que somente a concepção
lcniniana pode fazer concordar o estudo e o conheci­
mento mais aprofundado das leis da evolução da so­
ciedade com a mais larga atividade social prática.
Durante a crise mundial que sobreveio após 1920,
Lênin combateu com igual vigor os economistas bur­
gueses que viram nela apenas um desequilíbrio pas­
sageiro, e os revolucionários segundo os quais a si­
tuação não comportava mais nenhuma saída para a
235
burguesia. "Não existe situação absolutamente sem
saída", dizia Lênin, o que significa, em linguagem
filosófica, que o método marxista permite perfeita­
mente determinar se uma crise grave do capitalismo
pode tornar-se fatal, em certas circunstâncias con­
cretas, mas que a questão de saber se tal ou tal crise
comporta uma saída, não poderia ser resolvida senão
pela luta, pela ação prática das classes em presença.
Postular anteriormente a ausência objetiva de toda
saída é, segundo Lênin, jogar com palavras: só a
ação prática dos partidos revolucionários pode provar
a ausência real de toda saída. Essa atitude de Lênin
ilumina aliás singualarmente certas divergências, que
se manifestaram a respeito de numerosas questões
econômicas entre ele e Rosa Luxemburgo.
Assim, Lênin definiu com precisão a atitude que
deve ter o partidário do materialismo dialético face
à realidade objetiva, que existe independentemente da
consciência, e também face à sua própria atividade
prática na sociedade. Essa atitude funda-se teorica­
mente na relação entre o conhecimento e a realidade
objetiva, tal como foi descrita por Lênin. Eis aliás
como Lênin, falando da evolução revolucionária, for­
mulava essa relação: "A História, escreve ele, em
particular a história da revolução é sempre mais va­
riada, mais rica, mais complexa e mais "astuta" do
que imaginam as vanguardas mais conscientes d9s
melhores partidos e das classes mais avançadas."
Essa nota esclarece o caráter de aproximação do
conhecimento, unidade dialética do absoluto e do re­
lativo. Contrariamente ao pensamento burguês, que
nega a existência objetiva do mundo real, e dele se
desvia ideologicamente, como de uma potência obs­
cura, perigosa e incalculável, o materialismo dialético
propõe a confiança e a fidelidade em relação ao mun-

236
/o
do objetivo. conhecimento certamente não atingiu
ainda toda a realidade, mas isto é apenas um enco­
rajamento para o progresso. Os objetos mais pre­
ciosos, mais elevados do nosso pensamento, não foram
sempre o reflexo da realidade objetiva? Nosso pro­
gresso humano não é função do aprofundamento des­
sa interação? l Quando, enfim, entra em jogo a reali­
dade mais próxima do homem, a sociedade, o mate­
rialismo dialético destrói ainda mais radicalmente o
pessimismo da filosofia burguesa moderna com sua
profunda aversão pelo real. Lênin não disse, com
efeito, que o movimento da História reserva à so­
ciedade perspectivas de progresso, de evolução e de
metamorfose bem mais elevadas e mais preciosas do
. [!!e nossos mais belos sonhos poderiam representar?
1 Para empregar uma fórmula mais resumida, poder- ;
se-ia dizer que a marcha do real é filosoficamente
mais verdadeira e mais profunda do que nossos pen­
samentos mais profund�
\ Para o partidário do materialismo dialético, es­
sas considerações constituem um encorajamento ao
estudo sempre mais aprofundado do mundo real e
também - necessariamente - a uma atividade prá­
tica sempre mais resoluta e mais segura dela mesma.
O movimento da História é uma soma de ações hu­
manas da qual nossa própria ação, a do proletariado
revolucionário, forma um dos componentes que não
poderíamos negligenciar. O conhecimento, que está
em condições de apreender dialeticamente as "astú­
cias" da evolução bistórica, só é válido e eficaz quan­
do suas aquisições forem outros tantos expedientes
para a ação prática, cujas experiências virão, por sua
vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma
força sempre nova. A teoria leniniana do conheci­
mento é a alta escola da ação prática.

237
4.
TOTALIDADE E CAUSALIDADE

Uma análise tão extensa e tão fértil da relação


entre o absoluto e o relativo só se torna possível com
a condição de que o conhecimento apreenda e estude
seu objeto de todos os ângulos, sob todos os seus as­
pectos. Desenvolvendo os caminhos de Marx, de
Engels e também de Hegel, Lênin coloca e resolve,
aqui ainda, um dos problemas essenciais da filosofia
moderna, um problema que deu lugar a numerosos
pseudodilemas e a tantas questões mal colocadas. É
interessante constatar o fato - muito característico
aliás - de que Lênin tenha colocado e resolvido o
problema, antes mesmo que o pensamento burguês
tivesse chegado a falseá-lo e a desfigurá-lo. Falamos
cio problema da totalidade.
Esta palavra está hoje envolvida de uma impo­
pularidade que parece plenamente justificada; nume­
rosos são aqueles que acreditam que ela provém do
vocabulário do fascismo. E isto não é de forma al­
guma um fato do acaso. É preciso reconhecer que,
neste terreno, "a ideologia" fascista não deixou de
tirar benefício das correntes filosóficas reacionii rias
que precederam seu nascimento. O que foi, no limiar
do estágio do imperialismo, apenas a veleidade de
esperar "um estágio definitivamente constante"
(Petzold), devia manifestar-se após a primeira Guer­
ra Mundial, sob uma forma bem mais evoluída e mais
explicitamente reacionápa, graças, precisamente, à
categoria da totalidade. \ É a Othmar Spann, filósofo
e sociólogo fascista, se bem que não-hitleriano, que
elevemos a definição mais radical. A sociedade, en­
quanto totalidade, significa, em Spann, a supremacia
238
absoluta da "ordem" e da hierarquia, o que quer dizer ·1

que a totalidade exclui a causalidade e, mais ainda,


a evolução. A sociedade hierárquica da "ordem" for­
ma um todo orgânico, uma totalidade que só poderia
existir enquanto tal, isto é, imutável. A sociedade
fascista é eterna. i
Aí está, sem dúvida, urna concepção levada ao
extremo e que passa por ser caricatural, mesmo para
o pensamento burguês, e até reacionário. Não deixou
de exercer - precisamente por causa de seu caráter
extremo - uma influência profunda em certos meios.
Ora, para compreender a verdadeira natureza dessa
influência, é indispensável comparar a concepção de
Spann àquela, bem menos conseqüente, de seus pre­
cursores da escola de Mach, por exemplo.
Pudemos constatar, quase em toda filosofia do
imperialismo, que as concepções absurdamente extre­
mistas, do gênero de Spann, não provocavam jamais
uma crítica objetivamente dialética, mas sempre urna
reação ex;trerna e também errada. Othmar Spann
fez da categoria da totalidade uma caricatura fascis­
ta. Seus adversários replicaram suprimindo toda
idéia de totalidade, devido ao desprezo da realidade
histórica e social. j Jaspers, por exemplo, que exerceu
uma influência sensível em certos existencialistas
franceses, nega a função da categoria da totalidade
110 conhecimento da realidade social. Nele, a totali­
dade torna-se um Ding an sich, na acepção kantiana
do termo, isto é, um absoluto tão caricatural corno o
de Span� Em seguida, após ter terminado de pri­
vú-la de sentido, desembaraça-se com razão da cate­
g-oria de totalidade. Faz assim - e não é o único -
do mundo um caos objetivo, no qual o homem só
pode criar a ordem construindo um aparelho de no-
239
ções teleológicas, técnicas e especulativas. Frente
a esse caos, há, vimos, o sujeito "livre", isolado, anár­
quico, que deve o ser ao existencialismo. Em definiti­
vo, a filosofia burguesa atola-se no pseudodilema com­
posto de uma totalidade rígida e de um caos objetivo.
Bem antes que esses extremos se manifestassem
sob formas tão exageradas, o marxismo leniniano já
havia elaborado a solução justa. A categoria de tota­
lidade, como toda categoria autêntica, reflete relações
reais. "As condições de produção de toda sociedade
formam um todo", escreve Marx. \A categoria de
totalidade significa portanto, de um lado, que a rea­
lidade objetiva é um todo coerente em que cada ele­
mento está, de uma maneira ou de outra, em relação
com cada elemento e, de outro lado, que essas rela­
ções formam, na própria realidade objetiva, correla­
ções concretas, conjuntos, unidades, ligadas entre
si de maneiras completamente diversas, mas sempre
)determinadc_!�:\ Lênin não retoma por sua conta o
adágio hegeliano, segundo o qual a filosofia é um
círculo cuja circunferência é feita de círculos?
Lênin aplica o princípio da unidade dialética do
absoluto e do relativo, colocando em relêvo o caráter
de aproximação do conhecimento. )''Para bem conhe­
cer o objeto, escreve, devemos apreender e explorar
todos os seus aspectos, todas as suas correlações e
todas as "mediações"... Nunca aí chegaremos com­
pletamente, mas a exigência de um método multila­
teral nos garantirá contra os erros e contra o dog­
matism9_/� \ Esse método multilateral está na base
ela lógica dialética. Sem ele, tudo se condensaria e
se tornaria unilateral. Mas a lógica dialética é ao

/o
mesmo tempo bem consciente de que não poderá ja­
mais atingir esse ideal inteiramente. conhecimento,
240
na medida em que é justo, isto é, total, reflete sempre
um conjunto composto de totalidades unidas por laços
orgânicos, mas só acede a ele por aproximação. Isto
é assim, primeiro porque cada ."todo" ( cada círculo,
para retomar a expressão de Hegel) que o conheci­
mento toma por objeto (a estrutura econômica de
tal país, por exemplo) faz ao mesmo tempo parte
de uma totalidade ainda mais vasta, tanto histórica
quanto teoricamente, o que significa que objetiva­
mente sua totalidade é relativa. E isto é assim ainda,
porque o conhecimento que podemos ter da totalidade
é necessariamente relativo, sendo apenas uma apro­
ximação. É somente apreendendo correlações móveis,
multilaterais e sempre mutáveis dos elementos, que
chegaremos - nos limites de nossas possibilidades
historicamente determinadas - a cercar cada vez mais
a realidade objetiy�.:,
Essa consideração metodológica exerce . uma in­
fluência decisiva sobre o conhecimento, tanto do lado
objetivo como do lado subjetivo. No que concerne
ao aspecto objetivo, limitar-nos-emos a ilustrar as
conseqüências da intervenção de Lênin sobre um só
problema, o da causalidade. O materialismo mecani­
cista e· o idealismo positivista moderno, um e outro
igualmente metafísicos, tinham ligado a possibilidade
de conhecer a realidade objetiva à espécie metodoló­
gica de cadeias rígidas e isoladas de causas e efeitos,
assim como à da lei da causalidade, sobre elas fun­
dada. Mas a evolução das ciências naturais, assim
como os fenômenos complexos da realidade social,
terminaram por tornar evidente a falência desse apa­
relho especulativo demasiado simplista. Já a escola
de Mach, contemporâneo de Lênin, tinha tentado
substituir o princípio de causalidade por uma pretensa
relação funcional. O idealismo atual, que se infiltrou
241
na física, repousa mais ou menos sobre o postulado
da caducidade da relação de causalidade, ao qual opõe
de uma maneira absoluta a relação de probabilidade.
Não é difícil descobrir em todas essas crises -
quer se trate do materialismo mecanicista ou do idea­
lismo positivista - um traço comum, que se mani·
festa desde o começo do estágio do imperialismo.
A pura e simples admissão da falência das categorias
especulativas antigas, muito rígidas e muito unilate­
rais para poderem afirmar-se frente a realidade!s no­
vas, teria sido o equivalente de uma aproximação,
como momento negativo, para a posição do materia­
lismo dialético. Mas a natureza mesma do pensa­
mento burguês do século XX tinha impedido que se
colocasse a questão dessa maneira. É portanto exa­
tamente o contrário do que devia acontecer. O ca­
ráter metafísico e a rigidez das categorias em questão
foram interpretadas como qualidades da realidade ob­
jetiva e, ao invés de domá-las, puseram-se a postular
um subjetivismo novo. A física moderna proclama,
por exemplo, a impossibilidade de determinar, por
meio da causalidade, a posição dos íons em movimen­
to, enquanto que para os átomos esses cálculos eram
perfeitamente possíveis. Em lugar de considerar esse
fato novo como um fato dependente do mundo real
e independente da consciência, apressou-se em ver
nisto um triunfo do subjetivismo sobre a realidade
objetiva, agora "problemática". Os cálculos de pro­
babilidade, por meio dos quais os físicos determinam
a posição de tal ou de tal íon, deveriam autorizar
certos pensadores a concluir pela eliminação das re­
lações de causalidade e do princípio da necessidade
objetiva. Para eles, a natureza era governada agora
por um princípio de liberdade subjetivista e a física
acabava de fornecer novas bases empíricas para a
242
velha doutrina do livre arbítrio. Outros, enfim, apro­
veitaram dos fatos novos observados pelas ciências
naturais para estabelecer a teoria da influência do
sujeito observador no decorrer dos fenômenos objeti­
vos, como se estes decorressem de outra forma em
presença do observador, con1o em sua ausência . ..
Sem dúvida estamos aqui em face de fórmulas
novas, surgidas para comentar fatos novos, mas é
evidente que o problema epistemológico que colocam
é o que o próprio Lênin tinha resolvido na sua crítica
da filosofia de Mach. As limitações da causalidade
e suas conseqüências metodológicas estão aliás longe
de ser um fato inédito. A estatística, por exemplo,
permite constatar que colheitas vão sempre a par
com um aumento do número de casamentos, mas
ninguém ousaria deduzir dessa observação que Marie
Durand deve esposar Jacques Dubois e nenhum ou­
tro. Por causa da boa colheita, é somente mais pro­
vável que tal ou tal amor ou ligação leve efetivamen­
te ao casa1�1ento. Mas nenhum sociólogo sério che­
gou a pensar que o casamento de Marie e de Jacques
fosse um fato livre e "sem causa", porque era impos­
sível deduzi-lo logicamente, partindo só da submissão
a um exame metodológico cerrado das relações ob­
jetivas entre os encadeamentos lógicos reais e do esta­
belecimento de uma correlação objetiva entre as sé­
ries de relações de probabilidade e causalidade. Esse
mesmo princípio aplica-se perfeitamente às leis es­
senciais da doutrina econômica do marxismo: a cor­
rida ao sobrelucro leva fatalmente ao abaixamento
da taxa média de lucro e, dessa crise, i:esulta a des­
valorização parcial do capital. Ora, nenhum marxista
pensou ainda em "deduzir" dessa lei a man"eira pela
qual o processo geral afetará o Sr. X ...., fabricante
de tecidos, ou antes o Sr. Y . . . , capitão da indústria
243
siderúrgica. Mas nenhum marXiista deixou de decla·
rar que as perdas ou os lucros individuais do Sr. X ...
ou do Sr. Y ... eram "fenômenos livres", despro·
vidos de causa lógica.
Na realidade, a crise do pensamento contempo·
râneo não afeta em nada o materialismo dialético.
E isto ocorre, primeiro porque o materialismo dialé­
tico não se torna jamais culpável desse diletantismo
inconsistente que equivale a "saltar" da objetividade
para a plena subjetividade. Mas isto ocorre, ainda,
porque o materialismo dialético nunca considerou o
princípio dogmático da causalidade como a expressão
única das correlações e das leis objetivas da realida­
de. Lênin faz remontar as origens dessa posição. de
princípio - qu�..faz sua - a Hegel e sublinha, justa­
mente, que é precisamente a aplicação adequada desse
princípio que abre a via a uma crítica do pensamento
idealista fundado na física moderna. "Lendo o que
Hegel escreveu sobre a causalidade, escreve Lênin,
ficamos espantados que consagre tão pouco espaço
a esse assunto, no entanto tão popular entre os kan­
tianos. Por que isto ocorre? Simplesmente porque,
para Hegel, a causalidade é apenas uma das determi­
nações das relações universais que ele tinha, desde
o início, estudado e tratado de uma maneira bem mais
profunda e bem mais geral, sublinhando sempre a
unidade dos contrários etc., etc. Seria muito instru­
tivo, conclui Lênin, aplicar as soluções de Hegel, ou
melhor, sua dialética, à "crise" do empirismo novo
( o idealismo fundado na física moderna)."
Uma vez mais, a solução dialética correta não
poderia ser elaborada de outra forma senão pelo es·
tudo imparcial das relações complexas da realidade
e esse estudo deverá auxiliar-se de instrumentos de
grande flexibilidade. Seu objetivo preciso será, antes'
244
de mais nada, determinar o lugar que ocupa o fenô­
meno que tomara por objeto, no interior da totalidade
concreta de que faz objetivamente parte.

5.
O SUJEITO DO CONHECIMENTO E
A AÇÃO PRÁTICA
l{A inteligência dialética adequada das relações
concretas e objetivas, concreta e objetivamente re­
fletidas pela consciência é de uma importância deci­
siva para o exame gnosiológico do sujeito do conheci­
mento. Nos seus escritos polêmicos, dirigidos contra
a escola de Mach, Lênin especifica claramente que a
crise do pensamento burguês que se manifesta nesse
domínio dá lugar a uma tendência irracionalista. Ao
longo da evolução ulterior da filosofia burguesa, essa
tendência só ganhou terreno. Não nos podemos deter
aqui para estudar as origens sociais dessa tendência,
origens de que tratamos precedentemente; bastará
constatar, mais uma vez, que as respostas erradas
inspiradas pelos problemas reais equivalem a uma
negação mal orientada, tanto do materialismo me­
canicista como do idealismo. Para a filosofia dos
séculos XVIII e XIX, a razão era a única instância
do conhecimento adequado: sensação, sentimento, ex­
periência vivida, idéia, imaginação eram apenas ele­
mentos destinados a papéis subordinados, senão en­
ganadores, na hierarquia do conhecimento. Certos
traços dessa falsa hierarquia encontram-se aliás mes­
mo em Hegel.!)(
A exploração cada vez mais completa da realida­
de objetiva deveria no entanto acabar por atrair a
atenção sobre o absurdo desses sistemas hierárquicos
245
e fazer compreender que os preconceitos de que são
a expressão ameaçam entravar a força do conheci­
mento que visa a dominar a realidade. Convém acres­
centar que o abandono da dialética pelo pensamento
burguês levou à escamoteação das relações dialéticas
entre a razão e o entendimento, estabelecidas por Kant
e levadas por Hegel à sua expressão mais elevada
nos limites do pensamento idealista. Da mesma for­
ma que, no plano objetivo, o pensamento burguês ti­
nha confundido a interpretação mecanicista da cau­
salidade com a existência objetiva da ·realidade, a
crítica. da hegemonia da razão ( da inteligência) de­
veria conduzi-lo a um subjetivismo sem limite, à glo­
rificação sem reserva do sentimento, da experiência
vivida e da intuição. A realidade objetiva, que a maior
parte das teorias desse gênero identificam com o
objeto imediato, como sendo de uma essência inferior,
foi escamoteada pelos processos do solipsismo, ou
ainda cristalizada em mitos nebulosos do pseudo-obje­
tivismo.
... \Ã divisão capitalista do trabalho, que continua­
mente impede o homem de se realizar na sua totalidade
e na sua unidade, essa divisão de que a psicologia
burguesa e o lado subjetivo da teoria burguesa do
conhecimento estão marcadas, manifesta-se aqui sob
uma forma ex,tre� E é ainda uma ironia particular
das leis da evoluçao que o efeito dessa divisão do
trabalho faça-se sentir da maneira mais opressora
precisamente em pensadores cuja atitude subjetiva é
totalmente de protesto romântico contra �la, tais co­
mo Bergson, Klages e outros ainda. Na verdade,
esses campeões da integridade do homem, por toda
sua atividade, apenas destruíram-na ainda mais. x

246
As concepções teóricas de Lênin sobre o sujeitó
do conhecimento empenham-se no combate tanto con­
tra as tendências (incluída aqui a de Hegel) que exa­
geram a supremacia da razão, como contra o irracio­
nalismo moderno. A infinidade dos objetos do co­
nhecimento, seu caráter inesgotável, sua mudança
contínua, assim como a natureza de aproximação do
conhecimento postulam a flexibilidade das tentativas
de aproximação. De todas as qualidades, de todas
as faculdades do sujeito, são sempre as que se adaptam
melhor à situação concreta que devem tomar o pri­
meiro lugar. A teoria leniniana dá conta sempre,
portanto, de todas as qualidades do homem, dos laços
que os unem entre si, assim como do fato de que po­
dem mutuamente se completar ou se transformar.
Mas guarda-se bem de querer fornecer preceitos. "A
imaginação está mais próxima da realidade do que
a reflexão? pergunta Lênin. Sim e não." E, noutra
passagem, após ter explicado que, ao refletir o movi­
mento, o conhecimento oferece sempre uma imagem
mais grosseira que o real, acrescenta: " ... não so­
mente no plano do pensamento, mas também no do
sentimento". Ou ainda, quando escreve que o reflexo
"não é um processo simples e direto, dando a imagem
rígida do espelho, mas um ato complexo, desigual,
movendo-se em zigue-zague, que contém também a
possibilidade de ver a imaginação destacar-se da vida.
Mais ainda, esse ato encerra também a eventualidade...
de que a noção abstrata, a idéia se transforme em
uma fantasia . . . Pois a generalização mais simples,
como a idéia geral mais abstrata contêm um certo
demento de imaginação. (E vice-versa: seria ridículo
.
negar o papel da imaginação, mesmo na ciência mais
rtgorosa ... ) "
247
Para simplificar nossa exposição, tratamos se­
paradamente os fatores objetivos e subjetivos do co­
nhecimento. É evidente no entanto que uma tal se­
paração pode facilmente dar lugar a malentendidos,
se a interpretarmos como uma discriminação entre
elementos irredutivelmente opostos uns aos outros.
Também Lênin tem o cuidado de especificar que a
antinomia da matéria e da consciência não é absoluta,
mas somente enquanto forma o problema fundamental
da teoria do conhecimento, isto é, enquanto o primado
de uma sobre a outra está em jogo. "Fora desse li­
mite, escreve, a relatividade dessa antinomia é in­
discutível." Noutra passagem, vai até declarar que
a transformação das idéias em realidades é um pen­
samento profundo, muito importante do ponto de vis­
ta histórico, e cuja verdade se manifesta a cada passo
na existência individual. Assim uma vez mais subli­
nha o caráter relativo da antonima matéria-espírito,
abstração feita - sublinhemos - da questão do pri­
mado gnosiológico.
Essas considerações comportam em Lênin con­
seqüências metodológicas profundas. A relatividade
dos fatores objetivo e subjetivo, material e espiritual,
sua unidade dialética, suas transformações mútuas
manifestam-se sob um aspecto concreto onde surge a
questão central de toda a teoria do conhecimento le­
niniana :1 a da atividade prática do homem, enquanto
critério decisivo do conhecimento. Sabe-se que Marx
e Engels tinham já dado a essa questão um lugar
essencial na doutrina do materialismo dialético; Lênin
dá igualmente nesse domínio um novo impulso às
suas idéias, lutando contra a filosofia burguesa.
Engels já tinha indicado que a campanha contra o
princípio de causalidade, lançada por David Rume,
248
não poderia ser colocada no plano da teoria "pura",
afastada de toda ação prática. A relação de causa
a efeito não é esse "hábito mental" caro a Hume, que
consistiria em derivar uns dos outros, objetos que es·
tão apenas temporal ou espacialmente justapostos.
Trata-se antes de uma relação objetiva entre objetos
reais, que existem independentetmente de nossa cons·
c1encia. Mas, para demonstrar isso, de maneira a
excluir a menor dúvida, devemos criar, na realidade
objetiva, pela aplicação consciente e concreta do prin­
cípio de causalidade, relações de causa a efeito, cal­
culadas, determinadas anteriormente. Já dissemos
o quanto essa relação, vista à luz do materialismo
dialético, mostra-se rica e complexa. Restava-nos
lembrar sua importância do ponto de vista da teoria
do conhecimento.
Fazendo da prática o critério decisivo do conhe­
cimento, Lênin coloca sob uma luz inteiramente nova
as questões mais importantes da teleologia. Não dei­
xa de indicar a posição do problema em Hegel, su­
blinhando que é precisamente nesse ponto que Hegel

\A.
aproximou-se mais do materialismo histórico (nas
passagens da sua Lógica, onde trata da idéia).
questão fundamental da evolução humana reside para
Hegel na interação do projeto humano e do mundo
exterior (a estrutura mecânica e química do real).
Vê que é precisamente nessa relação que o mecanis­
mo e o quimismo atingem sua verdade e, mais do
que isso, vê mesmo que nessa relação o instrumento
mediador é de uma essência mais elevada que seus
fins visados e seus projetos exteriores, que serve para
alcançar. "O arado, diz Hegel, é imediatamente mais
respeitável do que os bens de consumo que auxilia a
produzir e que constituem o objetiv� ':_1
_._

249
Sem se demorar nesses aforismos freqüente­
mente abstratos, Lênin utiliza-os, emendando-os por
sua interpretação materialista e concret�fEm Hegel,
a relação entre o projeto humano e a realidade à qual
se aplica é ainda puramente exterior. Para Lénin,
, é absolutamente claro que o projeto humano não é
independente do real senão em aparência; o materia­
lismo histórico, aliás, forneceu soluções agrupadas em
sistemas coerentes às questões que surgem aq1E_J Lê­
nin, em suma, apenas tirou todas as conseqüências
gnosiológicas.
Num outro domínio, inseparavelmente ligado ao
de que acabamos de falar, Lênin devia de longe su­
, perar as idéias desenvolvidas por Hegel. 1 Hegel es­
força-se constantemente por estabelecer uma relação
lógic"a entre a atividade fundamental do homem, isto
; é, o trabalho produtivo e os silogismos, formas .abs-
1 tratas da reflexão lógi� Para Lênin, é claro que
isto não se trata de um jogo especulativo, mas do
problema essencial das relações entre a ação e o pen­
samento. Ora, somente a teoria do conhecimento ma­
terialista pode fornecer a solução desse problema.
\ ÍSomente o materialismo dialético, com efeito, está
' em condições de explicar como a atividade essencial
1
do homem, o traba.lho produtivo, como o critério mais
específico que possa distinguir o homem do animal,
- isto é;- a utilização dos instrumentos de trabalho -
se transforma pela prática consciente da conquista
progressiva da natureza em formas abstratas do pen­
samento.1Aí, também, é o mundo exterior e a intera­
ção que-o une ao homem atuante, que são refletido�
pela consciência - não, certamente, de uma maneira
direta, mas depois da intervenção de inumeráveis ele­
mentos mediadores - de um modo cada vez mais abs-

250
trato. Essa abstração não é, entretanto, uma cons­
trução do espírito, mas simplesmente a manifestação
mais geral das ações e das in(erações reais, que es­
tão presentes, por essa mesma razão,_em todos os
fenômenos concretos do mundo real. 1 "A atividade
prática elo homem, escreve Lênin, devia milhares de
vezes conduzir a consciência humana a repetir as di­
ferentes regras elementares da lógica, para que essas
regras pudessem ter ganho o caráter de axioma_s.'',lY_
Essa concepção dialética, que está isenta de toda
rigidez dogmática dos aspectos subjetivos elo conhe­
cimento, resulta diretamente ela definição leniniana
de objeto. Uma das notas ele Lênin recapitulai1<lo
sua argumentação contra o idealismo, retornará a ima­
gem hegeliana que compara o conhecimento humano
a uma curva, composta de um conjunto ele círculos.
Cada partícula dessa curva, - diz em substância Lê·
nin - pode ser considerada como uma reta perfeita­
mente independente: o pensamento idealista, por
exemplo, age assim e é bem o que o extravia ao ato­
leiro do subjetivismo.
A aproximação adequada da realidade inesgotá­
vel pelo conhecimento postula o homem completo, que
reencontrou sua totalidade. Face ao protesto impo­
tente do romantismo que apenas intensifica a aliena­
ção humana, obra do capitalismo, a teoria leniniana,
sóbria e isenta de ênfase, indica um caminho seguro
para a reconquista da totalidade humana, demonstran­
do antes de tudo que o conhecimento, sob todos os
pontos de vista, é inseparável ela ação prática e elo tra­
balho. Sóbria e bem proporcionada, a teoria leniniana
do conhecimento é -. precisamente porque reconhece
a existência objetiva do real - uma brilhante ma­
nifestação desse humanismo que não se aquartela na
251
Sem se demorar nesses aforismo� freqüente-
mente abstratos, Lênin utiliza-os, emendando-os por
i sua interpretação materialista e concretifÊm Hegel,
, a relação entre o projeto humano e a realidade à qual
i se aplica é ainda puramente exterior. Para Lénin,
; é absolutamente claro que o projeto humano não é
independente do real senão em aparência; o materia­
lismo histórico, aliás, forneceu soluções agrupadas em
sistemas coerentes às questões que surgem aq� Lê­
nin, em suma, apenas tirou todas as conseqüências
gnosiológicas.
Num outro domínio, inseparavelmente ligado ao
de que acabamos de falar, Lênin devia de longe su­
! perar as idéias desenvolvidas por Hegel. 1 Hegel es­
. força-se constantemente por estabelecer uma relação
lógic"a entre a atividade fundamental do homem, isto
1 é, o trabalho produtivo e os silogismos, formas _abs­
\ tratas da reflexão lógi� Para Lênin, é claro que
isto não se trata de um jogo especulativo, mas do
problema essencial das relações entre a ação e o pen­
samento. Ora, somente a teoria do conhecimento ma­
te_rialista pode fornecer a solução desse problema.
jSomente o materialismo dialético, com efeito, está
em condições de explicar como a atividade essencial
do homem, o traba.lho produtivo, como o critério mais
específico que possa distinguir o homem do animal,
- isto é;• a utilização dos instrumentos de trabalho -
se transforma pela prática consciente da conquista
progressiva da natureza em formas abstratas do pen­
samento.1Aí, também, é o mundo exterior e a intera­
ção queo une ao homem atuante, que são refletido�
pela consciência - não, certamente, de uma maneira
direta, mas depois da intervenção de inumeráveis ele­
mentos mediadores - de um modo cada vez mais abs-

250
trato. Essa abstração não é, entretanto, uma cons­
trução do espírito, mas simplesmente a manifestação
mais geral das ações e das in(erações reais, que es­
tão presentes, por essa mesma razão_em todos os
fenômenos concretos do mundo real. 1 "A atividade
prática do homem, escreve Lênin, devia milhares de
vezes conduzir a consciência humana a repetir as di­
ferentes regras elementares da lógica, para que essas
regras pudessem ter ganho o caráter de axioméi:�_-_ '\v
Essa concepção dialética, que está isenta de toda
rigidez dogmática dos aspectos subjetivos do conhe­
cimento, resulta diretamente da definição leniniana
de objeto. Uma das notas de Lênin recapitulai1do
sua argumentação contra o idealismo, retomará a ima­
gem hegeliana que compara o conhecimento humano
a uma curva, composta de um conjunto de círculos.
Cada partícula dessa curva, - diz em substância Lê·
nin - pode ser considerada como uma reta perfeita­
mente independente: o pensamento idealista, por
exemplo, age assim e é bem o que o extravia ao ato­
leiro do subjetivismo.
A aproximação adequada da realidade inesgotá­
vel pelo conhecimento postula o homem completo, que
reencontrou sua totalidade. Face ao protesto impo­
tente do romantismo que apenas intensifica a aliena­
ção humana, obra do capitalismo, a teoria leniniana,
sóbria e isenta de ênfase, indica um caminho seguro
para a reconquista da totalidade humana, demonstran­
do antes de tudo que o conhecimento, sob todos os
pontos de vista, é inseparável da ação prática e do tra­
balho. Sóbria e bem proporcionada, a teoria leniniana
do conhecimento é -. precisamente porque reconhece
a existência objetiva do real - uma brilhante ma­
nifestação desse humanismo que não se aquartela na
251
defensiva frente ao capitalista inumano e anti-huma­
no. :aum humanismo combativo, que engaja os ho­
mens na luta, no conhecimento e na conquista do
mundo e que trabalha - sendo ao mesmo tempo
teoria e prática - para o nascimento do homem no­
vo, com a totalidade humana reencontrada.

252
impresso na
planlmpress gráfica e editora
rua anhala, 2�7 • s.p.

Você também pode gostar