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NOTÍCIAS ASGARDIANAS N.

10
AGOSTO-DEZEMBRO DE 2015, ISSN: 1679-9313
BOLETIM DO NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS
DOSSIÊ: SÉRIE VIKINGS

Conselho Editorial:
Prof. Dr. Neil Price (Universidade de Uppsala/NEVE)
Prof. Dr. Terry Gunnell (Universidade da Islândia/NEVE)
Prof. Dr. Teodoro Manrique Antón (Universidade de Castilla-La Mancha,
Espanha/NEVE)
Prof. Dr. Hélio Pires (Universidade Nova de Lisboa/NEVE)
Prof. Dr. Eduardo Fabbro (Universidade de Toronto/NEVE)
Prof. Dr. André Szczawlinska Muceniecks (UFOP/NEVE)
Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Equipe Editorial:
Ma. Luciana de Campos (PPGL-UFPB/NEVE)
Me. Pablo Gomes de Miranda (UFRN/NEVE)
Me. André de Oliveira (PPGH-UFMT/NEVE)
Me. Munir Lutfe Ayoub (NEVE)
Ricardo Wagner Menezes de Oliveira (PPGCR-UFPB/NEVE)
José Lucas Cordeiro Fernandes (PPGH-UECE/NEVE)
Andressa Furlan Ferreira (PPGCR-UFPB/NEVE)
Sumário 2016

SUMÁRIO

Editorial................................................................................................................4
André Szczawlinska Muceniecks

DOSSIÊ TEMÁTICO: SÉRIE VIKINGS


A religião em Vikings.........................................................................................8
Robert A. Sauders (Tradução de Andressa F. Ferreira)
Violência e ritual...............................................................................................14
Larissa Tracy (Tradução de Gustavo Braga)
Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade............................................18
Medievalist.net (Tradução de Gustavo Braga)
Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings..........................................22
Johnni Langer
Floki, Loki e outras representações................................................................32
Flávio Guadagnucci Palamin
Precisamos falar sobre (F)loki: breves comentários sobre História, Mitos e
navios..................................................................................................................42
Pablo Gomes de Miranda
A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos................................53
Munir Lutfe Ayoub
Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço.....64
Leandro Vilar Oliveira
A representação do Ragnarok na série Vikings............................................76
Angela Albuquerque de Oliveira
História e ficção em Vikings............................................................................88
François Dontaine (Tradução de André de Oliveira)
História e cultura escandinava na TV e na universidade: o projeto de
extensão “Ciclo de cinema Série Vikings” da UFSM...................................94
Semíramis Corsi Silva
Luana da Silva de Souza

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 3


Sumário 2016

Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e


ficção.................................................................................................................105
Marlon Ângelo Maltauro
Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings............117
Luciana de Campos
Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings...................................128
Hiram Alem

ARTIGOS
Acorde Groa, acorde boa mulher: a prática necromântica na Edda Poética
pela Grógaldr...................................................................................................137
Bárbara Rebecca Baumgartem França
Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia e
seus reflexos n´A saga de Eirik, o vermelho...............................................146
Letícia Santos
Repensando os vikings em sala de aula: uma experiência do PIBID
História e(m) imagens....................................................................................157
Bruno Ercole
Thiago Natário
Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do Black Metal
norueguês.........................................................................................................168
Lauro Ericksen

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 4


Editorial - André Muceniecks 2016

EDITORIAL
André Szczawlinska Muceniecks

Nunca antes no Brasil temas inspirados no medievo da Europa


setentrional estiveram em tanta evidência. De fato, a circunstância enquadra-se
em um movimento mais amplo, de nível mundial, que tem dado destaque em
vários meios, mas principalmente no cinema e TV, à temática.
É nesse contexto que foi lançada pelo History Channel, no ano de 2013, a
série Vikings. Com equipe mista de produção da América do Norte e das Ilhas
Britânicas e elenco composto por atores australianos, canadenses, americanos,
britânicos e escandinavos, a série divulgou o tema de forma realmente mundial.
A popularidade dos escandinavos na telinha cresceu de forma
exponencial; com ela cresceu o número de questionamentos dos espectadores:
tais personagens existiram? usavam os cabelos desta forma? tatuavam-se? os
eventos descritos aconteceram? essas técnicas de batalhas eram usadas?
No momento em que se inicia a 4ª temporada da série, a equipe do NEVE
(Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos) apresenta o tema de forma

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 5


Editorial - André Muceniecks 2016

acessível, mas ainda assim acadêmica, lançando um dossiê específico sobre a


série, com colaborações bastante diversificadas. De alunos de graduação a
professores de instituições universitárias, o intuito do volume é responder a
tantas questões de forma avalizada e, simultaneamente, dar continuidade ao
interesse despertado no Brasil.
O quanto este objetivo foi cumprido ficará a cargo do leitor, que tem a
seu dispor contribuições bastante variadas. “História e ficção em Vikings” de
François Dontaine e “Os vikings invadem a TV”, de Marlon Maltauro,
apresentam visões mais panorâmicas sobre a série como um todo, incluindo
uma visão ampla sobre as principais fontes primárias nas quais os autores
basearam-se, e abordagens sérias e críticas sobre o quesito historicidade.
A espiritualidade e as formas religiosas encontram lugar de destaque em
um grande número de artigos; em “A religião em Vikings”, o leitor encontrará
uma leitura mais ampla, descritiva e favorável à forma de retratação da
religiosidade escandinava na série. Já em “Sacrifícios humanos? Hollywood vs
realidade” (do medievalist), “Sacrifício a Freyr” de Johnni Langer, e “A
representação do Ragnarok” de Angela Albuquerque de Oliveira, aspectos
pontuais referentes às formas religiosas são discutidos de forma mais
aprofundada e crítica.
Dois artigos dedicam espaço especial à discussão da similaridade entre o
deus escandinavo Loki e o personagem Floki, da série: “Floki, Loki e outras
representações”, de Flávio Guadagnucci Palamin, e “Precisamos falar sobre
(F)loki”, de Pablo Gomes de Miranda.
Aos interessados em uma discussão mais aprofundada de aspectos
técnicos e conectados ao estudo da cultura material como construção náutica,
vestimentas e armamentos, recomendamos fortemente não apenas a leitura do

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Editorial - André Muceniecks 2016

artigo já mencionado de Pablo de Miranda, que também remete com


propriedade ao aspecto de Floki enquanto construtor e às (im)possibilidades de
construção do período, mas também a “Lãs, sedas e adornos”, de Luciana
Campos, e “Onde estão os arcos?”, de Hiram Alem.
De certa forma conectado à questão da Cultura Material, ainda que sob
um ponto de vista específico de análise de estereótipos, é “A figura do ferreiro
em Vikings e nos mitos nórdicos”, de Munir Lutfe Ayoub.
Algumas temáticas peculiares ligadas às fontes envolvendo Ragnar e/ou
seus homônimos são discutidos mais detidamente em “Violência e Ritual” de
Larissa Tracy, que discute a questão do suplício da “águia sangrenta”, e em
“Malditas serpentes”, de Leandro Vilar Oliveira, que demonstra uma tradição
mais ampla sobre a circunstância no qual (atenção, SPOILERS historiográficos!)
o suplício de Ragnar se dá, de acordo com a Saga de Ragnar Lodhbrok: o poço
de serpentes do rei saxão Ælla.
Finalmente, em “História e cultura escandinava na TV e na
universidade” de Semíramis Corsi Silva e Luana da Silva de Souza, as autoras
descrevem uma iniciativa prática do estudo da história medieval por meio de
recursos filmográficos — no caso, evidentemente a série Vikings. Um artigo
estimulante e inspirador no sentido de quebrar barreiras tradicionalmente
estabelecidas na academia brasileira, incluindo uso do cinema e, mais
especificamente, o foco na Escandinávia Medieval.
Experiência similar é discutida na sessão de artigos livres, em
“Repensando os vikings em sala de aula”, de Bruno Ercole e Thiago Natário. Na
mesma sessão encontramos “Acorde Groa, acorde boa mulher”, de Bárbara
Rebecca Baumgartem França, e “Literatura e Cristianismo”, de Letícia Santos,
artigos novamente voltados à questão da religiosidade — desta feita, discutindo

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Editorial - André Muceniecks 2016

a prática da necromancia e aspectos do processo de cristianização escandinava


na Saga de Eirik, o vermelho. Por fim, temos em “Reminiscências do sagrado e
as origens nórdicas do Black Metal norueguês”, de Lauro Ericksen, um estudo
de reapropriações de aspectos do medievo escandinavo à cultural norueguesa
contemporânea.
A equipe do NEVE deseja uma boa leitura e deseja, com este volume,
contribuir de forma significativa não apenas ao aprofundamento, mas também
ao despertamento de interesse na Escandinávia e Europa Setentrional do
medievo. Boa leitura!

André Szczawlinska Muceniecks é doutor em História pela USP, professor da UFOP e membro
do NEVE.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 8


A religião em Vikings - Robert A. Sauders 2016

DOSSIÊ TEMÁTICO: SÉRIE VIKINGS

A RELIGIÃO EM VIKINGS
Robert A. Sauders
(Tradução de Andressa F. Ferreira)

“Como você pode ser um cristão quando


transita entre nossos deuses?”
Série Vikings

Criado e escrito por Michael Hirst, experiente em dramas históricos


como Elizabeth (1998) e The Tudors (2007-2010), o Vikings do History Channel é
uma produção irlando-canadense que trata da ascensão do nórdico Ragnar
Lothbrok (Travis Flammel) do século VIII. Na primeira temporada, o ambicioso
Ragnar, tramando com seu irmão Rollo (Clive Standen) e o dotado carpinteiro
naval Floki (Gustaf Skarsgård), lidera um grupo de invasores através do Mar do
Norte até a Britannia, saqueando Lindisfarne. Ao retornarem para a
Escandinávia com tesouros e escravos, os piratas provocam a ira de seu líder
míope, Earl Haraldson (Gabriel Byrne). O earl reivindica os espólios deles para
si, com exceção de uma posse: o monge anglo-saxão fluente na língua nórdica
antiga, Athelstan (George Blagden), o qual Ragnar capturou na Inglaterra. A
esposa de Ragnar, Lagertha (Katheryn Winnick), uma renomada shieldmaiden
(“dama-de-escudo”; mulher guerreira) por direito, acompanha os vikings em
uma segunda invasão, devidamente sancionada, à Inglaterra. Ao retornarem,
Ragnar e Haraldson disputam pelo poder, sendo que Ragnar derrota o earl em
um combate individual. Seguindo uma peregrinação até a cidade sagrada de
Uppsala, Ragnar jura fidelidade ao rei Horik (Donal Logue), embora seu irmão

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 9


A religião em Vikings - Robert A. Sauders 2016

— que cobiça Lagertha — conspire contra ele, aliando-se ao inflexível Jarl Borg
(Thorbjørn Harr), que maquina contra o rei aparentemente afável.
A religião é um componente fundamental de quase todos os episódios; a
maioria do drama emocional depende de questões de fé. De acordo com um
crítico, “A religião dos povos nórdicos […] é apresentada não como uma
fachada, mas como uma força dirigente em suas decisões — a noção de Valhalla
e de uma boa morte, por exemplo, está em todo lugar”. Na cena de abertura do
episódio 1, Rites of Passage (“Ritos de passagem”), Ragnar vê um Odin austero, o
Pai-de-Todos e deidade suprema do paganismo nórdico, vagando por um
campo de batalha repleto de cadáveres ao leste da região báltica. Ele é
acompanhado pelas valquírias fantasmagóricas, as quais reivindicam as almas
dos heróis mortos. A comunhão com o mundo invisível também é apresentada
logo de início, sinalizada pelo seiðmaðr (“vidente”) desfigurado do clã
adivinhando o futuro de forma precisa, assim como pela reivindicação
aparentemente sincera de Floki ser capaz de “olhar dentro das árvores” para
encontrar a madeira certa para seu navio. No segundo episódio, Wrath of the
Northmen (“A ira dos nórdicos”), há um recontar do conto de Jörmungandr, a
Serpente do Mundo, e sua batalha cataclísmica com o deus dos trovões Thor.
Posteriormente, na passagem do mar para o oeste, uma tempestade ameaça
afundar marinheiros intrépidos. Rollo se aflige, dizendo que “Thor está batendo
sua bigorna. Ele está furioso conosco. Ele quer nos afundar”. Entretanto, Floki
arrisca uma interpretação diferente face à intervenção divina: “Thor está
celebrando. Ele está mostrando que ele não pode afundar este navio!”. Esse
igualitarismo religioso é contrastado diretamente com uma cena mostrando as
estruturas autoritárias da fé no monastério de Lindisfarne, onde o medo dos
cenobitas são silenciados por um prelado ditatorial. A fluidez da crença pagã e

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 10


A religião em Vikings - Robert A. Sauders 2016

o papel essencial da interpretação individual são reforçadas no episódio 3, The


Dispossessed (“Os despossuídos”), quando Rollo e Ragnar discutem sobre
Valhalla e Ragnar conta a seu irmão: “você tem o seu Odin e eu tenho o meu”.
Um contraste notável também é identificado entre as crenças cristãs e pagãs
nesse episódio, quando Ragnar questiona seu servo Athelstan sobre a riqueza
de seu monastério: “Por que o seu deus precisa de prata e ouro? Ele deve ser
um deus ambicioso como Loki”. A pergunta não obtém resposta, o que é
particularmente interessante, dado que Athelstan é bem versado na língua e
cultura nórdica, tendo sido treinado como um missionário para os pagãos
escandinavos.
No episódio 4, Trial (“Julgamento”), os vikings retornam a Nortúmbria,
perseguindo aqueles que frequentam a igreja em Hexam. Quando retornam
para a Escandinávia, Ragnar é acusado de assassinato do meio-irmão do earl. À
medida que as tribulações aumentam, a fé de Ragnar nos deuses, com os quais
ele sente uma afinidade pessoal, se fortalece, enquanto o earl começa a duvidar
de sua existência. Nos próximos dois episódios, o “padre” Athelstan se
aproxima cada vez mais da fé pagã, intrigado pela profundidade de sua
teologia e sinceridade da adesão religiosa de seus capturadores. De volta a
Nortúmbria no episódio 6, A King's Ransom (“O resgate do rei”), verificamos
um bispo “letrado” instruindo o rei a respeito de que os nórdicos foram
enviados por Deus para punir os saxões de seus “muitos pecados e
transgressões”, enquanto um nobre ainda mais supersticioso está convencido
de que eles foram enviados por Satã. Contudo, depois que os vikings capturam
o irmão do rei em batalha, os cristãos são forçados a lidar com os invasores. O
rei Aelle (Ivan Kaye) ordena que um nórdico seja convertido ao cristianismo
para conduzir o armistício; inesperadamente, Rollo se voluntaria, mas é

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 11


A religião em Vikings - Robert A. Sauders 2016

veementemente condenado por Floki, o crítico mais vituperativo da fé saxônica,


que pune Rollo por renunciar os deuses ancestrais.
Enquanto isso, Lagertha dispensa justiça no lugar de Ragnar,
neutralizando um conflito de infidelidade ao comunicar o clã de que Heimdallr
— guardião reverenciado da Ponte Bifröst — tinha se disfarçado de um mortal e
abençoado uma casa sem herdeiros com vida. No episódio 7, Sacrifice
(“Sacrifício”), numa tentativa de apelo aos deuses pela realização da profecia do
vidente — segundo a qual ele seria “pai de muitos filhos” após o aborto sofrido
por Lagertha —, Ragnar e sua família (incluindo o recém-liberto Athelstan)
embarcam no nono ano de peregrinação para o Templo de Uppsala (um evento
bastante descrito em Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum de Adão de
Bremen), onde os nórdicos se aquecem “na presença viva dos deuses”. Em
segredo, Ragnar espera que Athelstan se ofereça como sacrifício aos Æsir
(deuses nórdicos), os quais Athelstan aparentemente havia adotado. Entretanto,
apesar de permitir seu batismo de sangue como pagão, de sua sincera exaltação
aos louvores a Thor e de negar três vezes seu cristianismo ao alto-sacerdote de
Uppsala, Athelstan recusa se sacrificar. Então, em vez dele, o personagem
simpático Leif (Diarmaid Murtagh) se voluntaria, revelando uma validação
pungente da autenticidade de Männerbund [comunidade de homens
juramentados] no grupo de Ragnar. No episódio final da temporada, All Change
(“Mudança Total”), Ragnar e companhia visitam um antigo freixo (reputado
como a Árvore do Mundo Yggdrasil) em uma missão para Horik, já que o
vidente revela que ele está em perigo no “mundo mágico”.
Tanto de uma perspectiva textual quanto visual, a série Vikings, com sua
glorificação sem remorso do paganismo nórdico e sua crítica amarga do
catolicismo saxão, é transgressiva em seu retrato religioso na Europa medieval.

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A religião em Vikings - Robert A. Sauders 2016

Enquanto não há produtos culturais populares que condenem o cristianismo


medieval, há poucos mas preciosos exemplos nos quais o paganismo é
positivamente contrastado com o monoteísmo (particularmente na mídia
cinematográfica e televisiva). Há muito tempo, pagãos têm servido como o
“Outro” em filmes de ação e têm sido destinados ao aniquilamento por um
guerreiro devoto trajando uma armadura brilhante. Conforme aponta o crítico
de filme Ross Crawford, as representações de Hollywood da fé medieval
geralmente lançam um protagonista ateísta (ou anacronicamente secular), que
trabalha contra as influências corruptíveis de hierarquias religiosas. Porém,
Ragnar é genuíno — até fervoroso — em sua crença; dessa forma, “Vikings
desafia o telespectador a se envolver com o contexto teológico de ambas as
culturas”. Esse engajamento é particularmente interessante quando pagãos e
cristãos são contrapostos diretamente, e o telespectador é encorajado a se
identificar com o primeiro grupo.
Ao se empregar a análise midiática e o ocularcentrismo, as reuniões
religiosas vikings são demonstradas em cores quentes e receptivas, sugerindo
alegria e camaradagem; por exemplo, a beleza com a qual Uppsala é filmada é
representada propositalmente como um paraíso asgardiano, nada menos do
que se tirar o fôlego. As funções religiosas cristãs, por outro lado, são cinza,
solenes e frias. Atores que representam os saxões são sempre pálidos,
inexperientes e quase subnutridos em aparência (exceto por Aelle, que é
retratado como um vilão gordo e suado); em contrapartida, os nórdicos são
bronzeados, robustos e confiantes. Quando se trata de sexualidade, o pudor de
Athelstan é consistentemente enquadrado como tolo, particularmente quando
ele recusa inúmeras propostas sexuais — apesar de seu aparente desejo de
participar (a “punição” simbólica por sexo fora do casamento, tão comum nas

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 13


A religião em Vikings - Robert A. Sauders 2016

narrativas da mídia hollywoodiana, é completamente ausente em Vikings). A


partir de um ponto de vista ideológico, os cristãos — quando invocam sua fé —
são apresentados como hipócritas, vaidosos e vingativos: em uma cena, o rei
Aelle rebaixa os vikings a pagãos e bárbaros conforme ele empurra um de seus
fiéis partidários em uma cova de serpentes, caçoando-o por sua fé na vida
eterna concedida por Jesus Cristo. Os pagãos, ao contrário, são retratados como
verdadeiros e modestos. Desconstruindo um século do cânone cinematográfico,
Floki atrevidamente profana sítios e símbolos cristãos, mas nunca é punido por
isso (em narrativas fílmicas anteriores, tais violações das normas “morais”
culminariam em uma morte violenta e prematura do transgressor). Crianças,
inclusive, são aderidas à poética visual da série, já que o filho tímido e mimado
do rei saxão é contrastado com o filho arrojado de Ragnar, Bjorn (Nathan
O'Toole); Bjorn é representado cuidando da fazenda na Escandinávia, enquanto
o príncipe saxão se esconde na corte. Ao passo que nem tudo sobre o
paganismo é representado positivamente frente ao “Outro” cristão
(especialmente a respeito da problemática da facilidade com que se aceita o
sacrifício humano), críticas da série reconhecem que o programa de fato
desconstrói o tratamento padrão da fé medieval.

Robert A. Sauders é doutor em História e professor no Farmingdale State College em Nova York.

Tradução de Andressa Furlan Ferreira (PPGCR-UFPB/NEVE). Tradução do trecho “How Can


You Be a Christian When You Walk among Our Gods?”: Religion in Vikings (p. 134-138).

Publicação originalmente em inglês: SAUNDERS, Robert A. Primetime Paganism: Popular-


Culture Representations of Europhilic Polytheism in Game of Thrones and Vikings. In:
Correspondences 2.2, 2014, p. 121-157. Disponível em:
<http://correspondencesjournal.com/wpcontent/uploads/2014/12/13302_20537158_saunders
.pdf>.

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Violência e ritual - Larissa Tracy 2016

VIOLÊNCIA E RITUAL
Larissa Tracy
(Tradução de Gustavo Braga)

Durante suas duas primeiras temporadas, o popular seriado Vikings do


History Channel iniciou um vigoroso debate entre estudiosos sobre a
autenticidade da série — particularmente sobre o derramamento de sangue e a
violência. Mas separar realidade de ficção, afinal, é mais difícil do que parece.
A imagem do viking selvagem, coberto do sangue de seus inimigos,
festejando na matança ao seu redor, tem sido um rótulo das representações da
mídia moderna dos invasores escandinavos desde a década de 1950.
Em anos recentes, tem havido uma tentativa de reabilitar os vikings nas
telas. Frequentemente rotulado de "revisionista" por críticos e estudiosos, essa
visão presta bastante atenção à influência de fontes literárias medievais,
incluindo as sagas islandesas do século XIII, desafiando a imagem sanguinária
do "viking visceral".
Dentre as mais recentes adaptações que tentaram capturar as nuanças da
sociedade da Era Viking, nenhuma foi tão consagrada como Vikings. Mais do
que glorificar a violência como uma norma social, como filmes anteriores
costumavam fazer, Vikings tenta apresentar atos sangrentos dentro de seu
contexto social — num quadro mais metafórico do comportamento humano.
Vikings enfatiza a capacidade para a brutalidade em qualquer sociedade.
O criador/diretor Michael Hirst se dispôs a criar o que ele pensou ser a
mais autêntica representação do mundo viking na tela. Em entrevista, ele
explica que enquanto a intenção não foi de mostrar a violência como gratuita,
pela autenticidade o show necessitaria de brutalidade excessiva. Mas a série

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 15


Violência e ritual - Larissa Tracy 2016

apresenta atos horrivelmente assustadores como raros e lamentáveis, ao invés


de comuns prazeres sádicos.

Figura 1: Cena do ritual da águia de sangue da série vikings. Fonte:


https://i.ytimg.com/vi/H86LJYl_YUY/hqdefault.jpg

A cena de violência mais controversa e chocante da série, até agora, toma


boa parte de “blood eagle”, 2ª temporada: Episódio 7. A punição da “águia de
sangue” é executada em Jarl Borg (Thorbjørn Harr) por ter atacado a vila de
Ragnar, matando vários de seus vilões, e por ter levado sua família para a
floresta enquanto Ragnar estava na Inglaterra. Quando pego, Borg é
sentenciado por lei a ser executado de tal forma — um anacronismo por si só,
porque punição capital era uma característica relativamente rara na lei
escandinava medieval.
“Eu acho que já havia decidido há bastante tempo que Jarl Borg morreria
pela águia de sangue porque Ragnar nunca o perdoaria por ter atacado seus

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 16


Violência e ritual - Larissa Tracy 2016

filhos”, Hirst contou a Daniel Fienberg da HitFix em 2014. “Nós meio que
estabelecemos que Ragnar é um cara que ama sua família, e a pior punição de
todas no mundo viking é a águia de sangue”.
Mas será? Essa é simplesmente a mais brutal punição num catálogo de
atrocidades vikings, ou uma presunção moderna? É aí que a autenticidade de
Hirst sofre com as errôneas concepções modernas sobre a prática real.
A águia de sangue usualmente não figura no catálogo de violência
atribuída aos vikings; ela somente aparece em pequenos trechos de textos, entre
os quais quase todos têm a ver com o lendário Ragnar Loðbrók, que é dito por
crônicas e sagas ter sido ativo no século IX como um invasor, um rei, e um
conquistador da Inglaterra. Pode ser que essa seja a associação que levou Hirst
a acreditar que esse seria um autêntico ato de seu Ragnar.
Por décadas, contudo, estudiosos têm debatido a precisão de relatos
sobre o uso desta forma de punição — falhando vastamente em chegar a
qualquer conclusão definitiva. De acordo com Saxo Grammaticus em sua Gesta
Danorum e as sagas islandesas Ragnars saga loðbrókar e Ragnarssona þáttr, a águia
de sangue é uma punição determinada ao Rei Ælle de Northumbria pelos filhos
de Ragnar em resposta a ter mandado lançar Ragnar numa cova de víboras
venenosas. Ælle é sujeito a variações dessa horrível execução em várias versões
dos textos sobre Ragnar como forma de vingança.
É inteiramente possível que este ritual tenha sido uma característica da
sociedade nórdica; é igualmente possível que este seja um motivo literário onde
os piores criminosos são submetidos às piores punições que a mente pode
imaginar.
A evidência textual é contraditória e frequentemente subjetiva —
especialmente em relação à águia de sangue. Parece existir pouca evidência de

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 17


Violência e ritual - Larissa Tracy 2016

que ela de fato existiu, ou, se existiu, de que era uma prática comum.
A cena da “águia de sangue” em Vikings é feita com cuidado e
sentimento, mas é provavelmente baseada numa fantasia.
Então, enquanto a série Vikings se esforça em representar uma visão
mais completa da sociedade escandinava, uma que não é exclusivamente
sanguinária nem excessivamente passiva, ela ainda sucumbe ao que se tornou
uma imagem indelével na imaginação moderna — aquela do viking estoico que
se dispõe à pior brutalidade possível quando necessário. Mas as evidências
textuais e históricas sugerem que crueldade desnecessária não era enraizada no
seio da sociedade nórdica da Era Viking. Na verdade, se é isso que você quer
ver, assista Game of Thrones.

Larissa Tracy é doutora em Literatura Medieval e professora associada de literatura medieval


na Longwood University em Virginia. Ela também é autora de “Torture and Brutality in Medieval
Literature: Negotiations of National Identity”.

Tradução de Gustavo Braga (UFMA).

Ensaio original em inglês disponível em: <http://www.medievalists.net/2015/02/18/vikings-


brutal-bloodthirsty-just-misunderstanding>.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 18


Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net 2016

SACRIFÍCIOS HUMANOS? HOLLYWOOD VS REALIDADE


Medievalists.net
(Tradução de Gustavo Braga)

O cinema e a televisão amam os vikings — a série de TV Vikings iniciará


sua terceira temporada em 2015, e a estreia de um filme de tema viking é
esperado pelo menos uma vez ao ano. No entanto, tanto na tela grande como na
pequena, o retrato dos vikings é frequentemente desviado da realidade
histórica.
Nesse artigo, “Plastic Pagans: Viking Human Sacrifice in Film and
Television” (Pagãos plásticos: sacrifício humano viking no cinema e na
televisão), Harry Brown nota uma diferença chave entre o que está sendo
retratado e como era a realidade.
O artigo de Brown figura em Studies in Medievalism XXIII: Ethics and
Medievalism (Estudos em Medievalismo XXIII: Ética e Medievalismo), publicado
no começo deste ano por Boydell e Brewer. O artigo foca em três cenas de
sacrifício — uma de um episódio de Vikings, e as outras dos filmes O 13º
Guerreiro e Valhalla Rising.
As partes iniciais de O 13º Guerreiro são baseadas nos escritos de Ibn
Fadlan, um emissário do Califado abássida no século X que percorreu a região
do Rio Volga. No filme, seu personagem assiste a uma garota viking sacrificar-
se para unir-se a seu soberano recentemente falecido — uma escolha feita de
bom grado. Quando finalmente vemos a cena de sua morte, Brown acha que
“talvez ela acalme o espectador ao invés de perturbá-lo”. No meio da
cerimônia, a garota clama “Eu posso ver meu mestre. Ele está em Valhalla. Ele
chama por mim. Deixe-me ir com ele, então”. Ela é morta rapidamente e com

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 19


Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net 2016

pouca dor, e então gentilmente estendida na pira funeral.


Uma cena similar é retratada em Vikings, quando Ragnar e Lagertha
decidem que um sacrifício humano é necessário para apaziguar os deuses e ter
mais filhos. Eles primeiramente escolhem seu antigo escravo anglo-saxão
Athelstan para ser a pessoa a morrer, mas quando chegam ao templo de
Uppsala, e Athelstan percebe o que pedem que ele faça, ele recusa — e os
sacerdotes vikings lembram-nos que o sacrifício deve ser feito voluntariamente.
No fim, Leif, outro seguidor de Ragnar, alegremente aceita a tarefa.
Enquanto as cenas retratadas dão um ar de civilidade às práticas
religiosas vikings, sacrifícios humanos eram muito mais brutais. No relato de
Ibn Fadlan, a garota escrava se voluntaria à morte a princípio, mas ela breve
começa a decidir por não o fazer. No entanto, os outros vikings não aceitaram
isso — ela é arrastada para uma câmara da morte, onde seis homens a
violentam em grupo. Mais tarde, enquanto dois homens a estrangulam com
uma corda, outra pessoa a esfaqueia repetidamente no peito com uma adaga a
fim de matá-la. Contudo, essa parcela do relato de Ibn Fadlan não chega a O 13º
Guerreiro.
Brown observa que em todas as fontes históricas sobre os vikings nunca
encontramos um episódio onde uma pessoa voluntariamente aceita ser
sacrificada. Enquanto escritores cristãos e árabes nem mesmo se incomodam em
mencionar isso, até mesmo as fontes escandinavas como as sagas descrevem os
sacrifícios humanos como feitos pelo uso da força e da trapaça. A Ynglinga saga,
por exemplo, conta-nos como o Rei Olaf não sacrificava com frequência, e isso
desagradava aos suecos, que acreditavam que a fome fora causada pelo
desleixo do rei. Então eles convocaram um exército e marcharam contra ele.
Pegando-o de surpresa, eles o queimaram vivo em sua casa e o entregaram a

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 20


Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net 2016

Odin como sacrifício por um bom ano.


Se sacrifícios humanos vikings não eram feitos com voluntários, por que
o cinema e as séries de televisão insistem em retratá-los desta forma? Brown
acredita que escritores e diretores decidem por esse caminho porque eles não
querem que suas audiências tenham seu “herói” associado a práticas tão vis. Ele
escreve:
“Esta sanitização ilustra a plasticidade dos pagãos medievais no cinema e
na televisão, particularmente ao adaptá-los ao papel de heróis de ação
medievalistas. Apesar de se assemelharem a relíquias do passado, dignos do
Museu Nacional de Antiguidades, eles parecem justos e humanos, indispostos a
aceitar um sacrifício se não oferecido de bom grado. Descrever rituais de morte
vikings como consensuais resolve o paradoxo que o sacrifício humano
apresenta à sensibilidade moral moderna, permitindo-nos tolerá-lo como uma
prerrogativa de crenças pagãs enquanto ainda provendo as vítimas com
liberdade e dignidade. Morrer, assim como matar, afigura-se como eticamente
defensável, porque todas as partes entram nesta barganha fatal por vontade
própria”.
Brown, contudo, lamenta isso, acreditando que estas cenas representam
uma oportunidade perdida. Ele explica:
“Ao silenciar as notas mais dissonantes do paganismo com sombras do
cristianismo, O 13º Guerreiro, Vikings e Valhalla Rising evitam colocar o
espectador numa posição em que tem de fazer um julgamento ético contra o
paganismo ou o passado, facilitando nosso consumo dos vikings com uma
forma de persuasão moral. Os filmes nos permitem ficar boquiabertos com as
crenças pré-cristãs sem desafiar-nos a enfrentá-las em suas próprias condições.
A esse respeito, recentes retratos dos vikings perdem a chance de explorar as

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 21


Sacrifícios humanos? Hollywood vs realidade - Medievalists.net 2016

similaridades e diferenças nos modos pelos quais estas duas visões religiosas
entendem as categorias fundamentais da existência — vida e morte, sacrifício e
regeneração, deus e natureza — que estruturam todas as perspectivas éticas”.
O artigo “PlasticPagans: Viking Human Sacrifice in Filmand Television”
é um dos catorze artigos incluídos nesta edição de Studies in Medievalism XXIII
(Estudos em Medievalismo XXIII). Outros artigos lidam com Beowulf, o jogo
eletrônico Elder Scrolls IV, e até mesmo a ficção histórica de Margaret Frazer.
Harry Brown é professor associado de inglês na De Pauw University.

Resenha originalmente em inglês, publicada pelo Medievalist.net e disponível em:


<http://www.medievalists.net/2014/07/06/viking-human-sacrifices-hollywood-vs-reality/>.

Tradução de Gustavo Braga (UFMA).

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 22


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

SACRIFÍCIO A FREYR: NOTAS SOBRE RITUAL EM VIKINGS


Johnni Langer

Na história do cinema e das representações artísticas ocidentais, as


representações envolvendo rituais, festivais ou cenas religiosas da fé nórdica
pré-cristã são muito raras ou praticamente inexistentes. Isso gerou um
imaginário onde valores exóticos e mesmo macabros acabam ocupando as
informações que a sociedade atual mantém sobre o tema da antiga religiosidade
da Escandinávia (LANGER, 2016).
Em particular, uma cena da série Vikings (terceira temporada, terceiro
capítulo: Warrior's fate) vem ocupando um particular interesse dos espectadores
e mesmo do público ligado ao neopaganismo, por justamente conceder
supostos detalhes de um ritual pouco conhecido entre os nórdicos, os sacrifícios
relacionados aos vanes. Anteriormente, a série já havia detalhado outros cultos,
mais famosos, envolvendo o templo de Uppsala na Suécia. Primeiramente,
detalharemos a cena, analisando cada pormenor fílmico e, em seguida,
realizaremos algumas reflexões sobre o imaginário do antigo ritual nórdico na
arte ocidental.
No episódio, o acontecimento tem lugar em um assentamento nórdico da
Inglaterra, onde, após a primeira e bem sucedida colheita, os pagãos resolvem
realizar um culto ao deus Freyr para comemorar seu êxito. Ao som de tambores
e chocalhos, o culto é presidido pela personagem Lagertha, iniciado após um
símbolo ser marcado com sangue em um bloco de pedra. Ao contrário da
maioria das pessoas presentes, Lagertha porta uma indumentária totalmente
branca e realiza uma invocação ao deus Freyr, afirmando que ele é a deidade da
luz e da abundância, filho de Njord e aquele que decide quando a luz e a chuva

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 23


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

chegam e quando o solo será fértil. Uma procissão se aproxima portando


diversas tochas acesas e reunindo-se em volta de um bovídeo, que é decapitado
por um homem, sendo o seu sangue recolhido por diversas pessoas ao seu
redor. Através do sangue sacrificado, ele deverá fertilizar a Mãe Terra com seu
falo, fazendo com que o seu útero fecunde. Ao redor do sacrifício, uma estátua
com figura antropomórfica aparece salpicada de sangue. Após isso, Lagertha
molha os dedos com o sangue do animal, passando em diversas partes de sua
face e peito, enquanto duas pessoas escorrem tigelas de sangue sobre seu corpo.
Ela mesmo carrega outra tigela e, com ajuda de duas mulheres, borrifa o líquido
sacrificial sobre a terra, aberta com sulcos para a plantação. Também
destacamos a presença de uma trilha sonora de coro rítmico com compasso
ternário, concedendo à cena um caráter ainda mais misterioso.

Figura 1: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), reconstituindo a
morte de um bovídeo para o deus Freyr. Fonte da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

A realização de sacrifício (blót) a Freyr para obter boas colheitas (til árs) é
algo respaldado em algumas fontes medievais, destacando seu aspecto de deus
da fertilidade e fecundidade (BOYER, 1997, p. 58). A prosperidade devido a

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 24


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

Freyr aparece em Hakonar Saga Aðalsteinsfóstra 14 e surge relacionado à


expressão friðr (paz), onde o segundo brinde é dedicado a ele para se obter boas
colheitas. A invocação de Lagertha, ao caracterizar o filho de Njord como deus
da abundância, que controla as chuvas, os raios do Sol e a vegetação sobre o
solo, advém de uma famosa frase de Snorri (Gylfaginning 24). O detalhe do falo
é importante, pois é atestado em muitas fontes, como no relato de Adão de
Bremen (Gesta Hammaburgensis IV) e na narrativa de Volsi (Völsa þáttr), além de
comumente ser interpretado como o principal detalhe da estatueta de Rallinge
(século X d.C.).
O detalhe da pintura a sangue de um desenho geométrico semelhante a
um X com pontos, inserido dentro de uma forma quadrangular, não ocorre em
gravuras de monumentos da Era Viking. Signos formados por quatro runas
dispostas sobre duas hastes, denominadas pelos epigrafistas de cruzes rúnicas,
surgem desde o período de migrações, como na fíbula de Soest (MAREZ, 2007,
p. 130). Mas a forma apresentada na cena é mais condizente com os padrões
simbólicos utilizados na Islândia a partir do final do medievo, popularizados
nos famosos galdrastafur e nos grimórios islandeses.
O detalhe do boi decapitado é um pouco mais complexo. O sacrifício
realizado para o deus Freyr (Freysblót) geralmente envolvia cavalos e javalis, e
mais raramente bois. Na Viga-Glum saga 9 um boi velho é oferecido a este deus;
na Brandkrossa þáttur 1, um fazendeiro mata e oferece um boi para Freyr, sendo
em seguida realizado um banquete sacrificial (blótveizla) aos membros da
comunidade. Este é um elemento ausente do episódio da série e fundamental
para sociedades que dependiam diretamente de seus animais em um estilo de
vida e clima inóspitos: o consumo e aproveitamento total das vítimas imoladas.
Alguns pesquisadores consideram o blótveizla como um importante momento

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 25


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

de unidade social, estabelecendo uma ligação mágica e propiciatória entre os


deuses, os homens e seus ancestrais (BOYER, 1986, p. 186).
O detalhe do sangue também é verificado em diversas fontes. O sangue
sacrificial (hlaut) de animais ou humanos era borrifado sobre estátuas por todo
o templo, ou local da consagração, e nas pessoas (Kjalnesinga saga 12 e Hákonar
saga góda 14, que também confirmam o detalhe das fogueiras e tochas da cena
de Vikings, descritas em uma cerimônia em Trøndelag, Noruega). Alguns
pesquisadores acreditam que a aspersão do sangue (stokkva fórnarblódi) era o
momento central do rito sacrificial nórdico (BRAY, 2004, 125). Códigos de leis
islandesas, como o Úlfljótslog, mencionam que os líderes utilizavam anéis que
eram aspergidos de sangue sacrificial obtido em rituais. O sangue invocava o
poder da deidade sobre o mundos dos homens, como em cerimônias para obter
informações do futuro (blótspánn, inclusive citado no poema éddico Hymiskvida
1).
Quanto a uma mulher presidir o ritual para Freyr, apresenta-se como um
detalhe equivocado. Justamente o simbolismo de virilidade e falicismo da
deidade é algo exaltado nas fontes, seja pelo seu caráter de soberania, de poder
militar ou de fecundidade, levando a maioria das descrições do freysblót a serem
liderados por figuras masculinas (REAVES, 2008, p. 5). Quando surgem
mulheres nas fontes, elas estão relacionadas a uma procissão com uma imagem
dessa deidade em uma carroça, realizando uma peregrinação na primavera
para abençoar a terra de uma determinada comunidade (como em Ögmundar
þáttr) e relacionadas aos simbolismos da hierogamia. A túnica branca utilizada
por Lagertha também é fantasiosa. Justamente pelo contrário, a cor preta era
relacionada a Freyr — segundo a Gesta Danorum 1, os animais imolados ao deus
eram geralmente de coloração escura —, também identificada à alma e à

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 26


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

fertilidade em outras tradições pré-cristãs (REAVES, 2008, p. 10).

Figura 2: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), momento em que
Lagertha é banhada em sangue sacrificial. Fonte da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

A cor branca tem sido uma opção canônica para os artistas europeus
representarem os sacerdotes e sacerdotisas das religiosidades pré-cristãs em
geral, desde o romantismo oitocentista, até mesmo para os druidas. Nas
pinturas Ofring til Tor (1831, de Johan Lund) e Nerthus (1909, de Carl Emil
Doepler), ambos os sacerdotes nórdicos possuem longas barbas e indumentária
branca, este último um detalhe também presente na profetisa ressuscitada por
Odin em uma pintura de Carl Doepler de 1900. Na cena da série Vikings, essa
cor certamente foi utilizada não somente pela referência canônica da arte
ocidental, mas para causar impacto cênico — logo depois do sacrifício, dois
ajudantes despejam parte do sangue sobre o corpo de Lagertha, originando
duas imensas manchas vermelhas por todo o comprimento da roupa. Algo que
recorda a primeira cena da série televisiva Roma (HBO, 2005), quando a
personagem Átia é aspergida com o sangue de um boi sacrificado, em

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 27


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

referência ao mitraísmo oriental que penetrou no império romano. Como o


grande público desconhece maiores detalhes sobre as religiosidades antigas da
Europa, certamente os produtores de Vikings optaram por perpetuar uma
referência fílmica consagrada e de forte impacto visual.
Ainda mais fantasioso é o momento em que Lagertha, com ajuda de duas
mulheres, borrifa o sangue sacrificial sobre sulcos retilíneos abertos sobre o
campo (à espera da semeadura), numa referência à fertilidade. O equívoco
nesse caso é que o ato de aspergir era considerado algo que devia ser realizado
somente por homens, representando a fecundação de um ser feminino, a terra.
Numa sociedade fortemente estruturada num simbolismo de dominação e
submissão sexual, perpetuando o poder de penetração (o falocentrismo
religioso, vide Hedeager, 2011, p. 115-118), seria lógico imaginar homens nesta
tarefa. Até mesmo os camponeses europeus cristianizados (como a França do
século XII d.C.) excluíam as mulheres destas ações que antecediam as colheitas,
uma prática advinda dos tempos pagãos e que sobrevivia no cotidiano rural:
“só o homem podia lavrar, malhar o trigo com o mangual ou podar as vinhas e
as árvores (...) A terra era mulher, cabia ao homem fecundá-la” (VERDON,
2006, p. 47).
De maneira geral, a cena do sacrifício a Freyr foi mais correta do que a
reconstituição de ritual em Uppsala, realizada durante a primeira temporada da
série Vikings (episódio 8, Sacrifice): está menos sombria e exótica, sem sacerdotes
calvos e com maquiagem escura sobre os olhos. Do mesmo modo, ao
compararmos com outras cenas envolvendo religiosidade nórdica antiga no
cinema (LANGER, 2016), ela é historicamente muito mais pertinente e
detalhada, promovendo avanços no conhecimento de um público amplo sobre
estes rituais antigos. O problema são seus pequenos equívocos, que tratamos ao

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 28


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

longo deste pequeno ensaio, mas também de suas limitações sobre a


funcionalidade dos deuses nórdicos. Devido a várias sistematizações, estudos
acadêmicos tradicionais ou popularizações de manuais, a visão que temos dos
deuses são de funções muito restritas e muitas vezes dicotômicas
(especialmente a teoria da tripartição de Georges Dumézil). Odin e Thor são
sempre vistos como deuses da guerra; Freyr, Freyja e Njord como deuses da
fertilidade. Os primeiros seriam adorados pela elite guerreira, aristocracia e
homens. Os segundos seriam cultuados exclusivamente por camponeses. Nesta
visão, não há espaços para fronteiras ou dinamismos para outras funções sociais
e outras características. Mas existem fontes que apontam elementos do deus
Thor também para o mundo do campo: o simbolismo do martelo é um deles.
Thor e Odin eram cultuados do mesmo modo por mulheres e nem sempre as
deusas eram vistas como benignas ou defensoras extremadas do universo
feminino.
No caso de Freyr, ele não era somente um deus da fertilidade ou adorado
unicamente no universo rural. Seus aspectos de soberania e marcialidade são
encontrados nos diversos cultos mantidos pela realeza, especialmente no
sacrifício e consumo ritual de cavalos (DAVIDSON, 2001, p. 104), além do
drama mítico e hierogâmico com Gerd (em conexão com a realeza sagrada). Ele
está relacionado do mesmo modo a um simbolismo com embarcações e
conexões com procissões náuticas com sentido religioso (funerário e também de
fertilidade). A deusa Freyja não era somente ligada à sexualidade, mas também
ao mundo marcial. O simbolismo do javali reflete a complexa natureza e os
muitos aspectos que os deuses vanes possuíam e que vão muito além da sua
mera classificação como deidades da fertilidade (PIRES, 2015, p. 11-22).
Neste sentido, a série Vikings colabora para perpetuar a visão dicotômica

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 29


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

que o Ocidente criou sobre os deuses nórdicos: de um lado, reis e guerreiros


cultuando somente as deidades da guerra (os ases); de outro, os deuses que
promovem a fertilidade dos campos (os vanes). Num mundo onde a fé não era
estabelecida por textos sagrados, não existia sacerdócio profissional e a tradição
era mantida pela oralidade, confluíam variações sociais e geográficas na
religiosidade. Apesar do ritual servir basicamente como um momento de
comunhão entre deuses e homens — e, neste sentido, a série Vikings é correta
— ele era variável em sua forma e utilizado em contextos diferentes. O detalhe
do sacrifício animal na cena do episódio (mas percebido sem a inclusão do
blótzveila) pode colaborar para o público moderno pensar em um ritual mantido
exclusivamente pela presença de uma morte sangrenta, sem maiores contextos.
Alguns analistas pensam atualmente a imolação nórdica de animais como
reflexo da cosmogonia (a morte de Ymir e a subsequente criação das partes do
mundo por meio de seus membros), onde o sacrifício explica a ordem da
natureza e do mundo e a presença do hlaut seria a forma física onde o cosmos e
a sociedade seriam renovados (BRAY, 2004, p. 135).
A ficção e a arte podem servir tanto como instrumento de reflexão sobre
o passado, como meio para analisarmos os nossos próprios valores. Elas não
podem ser vistas como completas em si ou totalmente corretas em suas formas
de reconstituições históricas, mas podem ser um importante meio para que as
pessoas possam prosseguir em seus interesses e se aprofundar no estudo da
religiosidade nórdica antiga.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 30


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

Johnni Langer é professor na UFPB e membro do NEVE.


E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br

Referências:

BOYER, Régis. Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997.

BOYER, Régis. Le blót. In: Le monde du double: la magie chez les anciens
Scandinaves. Paris: Berg, 1986, p. 176-187.

BRAY, Daniel. Sacrifice and Sacrificial Ideology in Old Norse Religion. In:
HARTNEY, Christopher; MCGARRITY, Andrew (eds.). The Dark Side:
Proceedings of the Seventh Australian and International Religion, Literature and the
Arts Conference, 2002. Sydney: RLA Press, 2004, p. 123-135.

DAVIDSON, Hilda. The cult of Freyr. In: The lost beliefs of Northern Europe.
London: Routledge, 2001, p. 103-107.

HEDEAGER, Lotte. Iron Age myth and materiality. London: Toutledge, 2011.

LANGER, Johnni. Fé, exotismo e macabro: algumas considerações sobre a


Religião Nórdica Antiga no cinema. In: Revista Ciências da Religião, 2016 (no
prelo).

LANGER, Johnni. Blót/Sacrifício escandinavo. In: LANGER, Johnni (org.).


Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p.
75-77; 428-433.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 31


Sacrifício a Freyr: notas sobre ritual em Vikings - Johnni Langer 2016

PIRES, Hélio. Vaningi: o javali e a identidade dos Vanir. In: Revista Brasileira de
História das Religiões – Dossiê: Mito e Religiosidade Nórdica, n. 23, 2015, p. 11-22.

REAVES, William. The Cult of Freyr and Freyja, 2008. Disponível em:
<www.academia.edu/9715739>.

VERDON, Jean. Camponeses: heróis medievais. In: História Viva 34, 2006, p. 46-
48.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 32


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

FLOKI, LOKI E OUTRAS REPRESENTAÇÕES


Flávio Guadagnucci Palamin

O presente texto abordará o personagem Floki, da série Vikings (History


Channel), objetivando analisar suas relações com o deus nórdico Loki em
representações ou ressignificações. Para tanto, discutiremos ambos os
personagens apresentando suas características e passagens, bem como
comparando-as em análises dos momentos em que a série, abertamente ou
sutilmente, transmite o deus no personagem. Considerando que o personagem
Floki evoca não somente o deus Loki, mas também outras características da
mitologia e sociedade nórdica, aproveitamos para tecer outras comparações
pertinentes.
Ao longo de suas três temporadas, o seriado Vikings abordou diversas
narrativas mitológicas escandinavas, representadas em seus personagens ou
mesmo mitos contados por estes. Sem dúvida, o personagem que mais
apresenta tal abordagem é o construtor de barcos Floki. Já em sua primeira
menção na série, quando Ragnar leva seu filho Björn para conhecer Floki, este
indaga “Floki? Como o deus Loki?” e Ragnar responde “Sim, mas diferente”,
“Como diferente?” Björn pergunta, “Ele não é um deus” responde Ragnar. De
certo modo, essa fala inicial dita o rumo do personagem ao longo do seriado: se
assemelha em diversos aspectos com o deus Loki, mas não se trata do deus em
si.
Gustaf Caspar Orm Skarsgård, o ator que interpreta Floki, é franzino e dá
ao personagem trejeitos sombrios, observador, como alguém que está sempre
tramando algo e, ao mesmo tempo, cômico. Nesse e em outros aspectos (como,
por exemplo, seu estilo de luta, ao usar um pequeno machado e uma pequena

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 33


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

espada) difere, claramente, dos outros personagens da série. Etimologicamente,


Floki significa “Tufo de cabelo” e, curiosamente, o ator possui somente um tufo
de cabelo no topo de sua cabeça. Na realidade, é bem provável que a escolha do
ator e a manutenção de tal característica seja proposital: os nomes escandinavos
(alguns países mantêm a tradição até hoje) são patronímicos, ou seja, referem-se
ao nome dos pais, como, por exemplo, no caso do famoso poeta islandês Snorri
Sturluson, ou seja, Snorri, filho de Sturla. Entretanto, o nome pode indicar uma
característica da pessoa ou personagem, como, por exemplo, nos casos de
Harald Bluetooth (dente azul) ou mesmo Ragnar Lothbrok (calças peludas). É
evidente a aproximação dos nomes Loki e Floki (como a própria série mostra
em sua apresentação), mas devemos notar que, etimologicamente, os nomes
diferem, com o nome Loki podendo significar: “lobo; fim; aranha; ar (loptr);
chama (logi); fogo (lodurr)” (LANGER, 2015, p. 281). A ausência de um segundo
nome para o personagem corrobora a ideia de estar relacionado com sua
aparência.
Ainda sobre o nome do personagem, Floki não é um nome muito comum
na Escandinávia, entretanto, um homônimo se destaca: Floki Vildergarson.
Hrafna-Floki, como passou a ser conhecido, é tido como um dos primeiros
colonizadores da Islândia. Em sua viagem ele levou três corvos que o ajudaram
a encontrar a ilha (daí seu apelido: Hrafni significa corvo; HOLMAN, 2003, p.
145; 148). A relação do personagem da série com barcos e navegação pode,
provavelmente, fazer referência a este personagem histórico.
Loki é um deus enigmático, com um passado que o remete à linhagem
dos gigantes, inimigos dos deuses de Asgard. Existe dúvida se a mãe de Loki
seria uma giganta ou uma Aesir. Todavia, em uma sociedade patriarcal, como a
nórdica da Era Viking, Loki só pode ser considerado um gigante, tendo em

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 34


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

vista que seu pai é o gigante Fárbauti (LINDOW, 2002, p. 216). No passado
mitológico, Loki tem três filhos que desempenham papéis importantes ao longo
da mitologia viking: a serpente Midgard, o lobo Fenrir e a terceira filha, Hel,
deusa do mundo dos mortos, sendo que todos os três filhos são frutos de sua
relação com a giganta Angrboda (no decimo episódio da segunda temporada,
Floki decide chamar sua filha de Angrboda, a exaltando como uma grande
giganta).
O mitólogo holandês Jan de Vries foi o primeiro a considerar a figura de
Loki dentro do conceito de trickster (LANGER, 2015, p. 283). Segundo Queiroz
(1991, p. 94):
Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico,
pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam,
dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo
presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão
de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora
prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência,
sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de
indignação e temor, por outro.

O autor ainda afirma que o trickster seria um intermediário entre deuses


e homens e “um ator solitário que, em última análise, atua sempre em benefício
do grupo como um todo” (QUEIROZ, 1991, p. 103). Durante toda a série, uma
das características do personagem Floki, que é mais evidente principalmente na
segunda e terceira temporada, é a sua relação com a religiosidade nórdica. Floki
crê veementemente na existência e na ação dos deuses no mundo terreno, a
ponto de dizer, no sexto episódio da terceira temporada: “alguns homens
desejam mulheres, Helga, alguns desejam o ouro, mas eu apenas desejo agradar
aos deuses”. Já no oitavo episódio da mesma temporada, quando acusado por
Helga de só pensar em si mesmo, Floki responde: “eu me importo com todos os

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 35


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

seres humanos de Midgard”. Já no sétimo episódio da segunda temporada, há


uma referência do trickster como pregador de peças em Floki: rei Horik
pergunta se Floki havia falado sério quando ofereceu ajuda para libertar Jarl
Borg. Na afirmativa de Floki, rei Horik pergunta o porquê e Floki responde
“por uma piada”.
Além de referências mitológicas, Floki, ao longo da série, representa
aspectos da sociedade e religiosidade nórdica. Vemos Floki como um possível
praticante de seidr (ao curar Ragnar com mágica), entalhador de runas, escultor
e construtor de barcos, por exemplo. No sétimo episódio da segunda
temporada, Floki aparece entalhando runas em uma peça de metal que, mais à
frente no episódio mostra ser um cata-ventos (weather vanes — objeto decorativo
para anexar na proa do navio), dado de presente para o rei Horik.
Ao se referir às runas germânicas anteriores à Era Viking, excluindo o
seu uso na literatura ou em atividades práticas do dia a dia, Brondsted (2004, p.
186) afirma que “não há dúvida de que elas eram, em primeiro lugar, símbolos
mágicos e sagrados que o iniciado poderia empregar para o bem ou para o
mal”. O autor argumenta que as runas possuíam poderes por si próprias e que
não provinham do mestre que as entalhavam. Entretanto, como é dito na Egils
saga,
Runes none should grave ever / Who knows not to read them; /
Of dark spell full many / The meaning may miss. / Ten spell-
words writ wrongly / On whale-bone were graven: / Whence to
leek-tending maiden, / Long sorrow and pain. (Egils saga, LXXV)
[Runas não deve gravar / aquele que não as sabe ler; de magia
negra muitos / podem confundir o significado. / dez palavras
magicas escritas erradamente / no osso de baleia foram
gravadas; / daí a causa da donzela sofrer / longa dor e tristeza]

Levando em consideração tal passagem, vemos Floki como um

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 36


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

personagem que detém o conhecimento da magia rúnica. A fala do rei Horik a


seu filho, ao receber o presente de Floki, corrobora tal posicionamento: “É mais
do que lindo, é poderoso e mágico, carrega o significado de tudo”.
Outra possível referência às narrativas mitológicas aparece no segundo
episódio da primeira temporada. Ragnar questiona Floki se a âncora do navio
será entregue a tempo. Na cena, Floki aparece segurando uma mecha de cabelos
loiros que diz pertencer à filha do ferreiro, da qual ele cortou a mecha como
forma de ameaça, caso o ferreiro contasse ao Earl Haraldson sobre os planos de
Ragnar. No Skáldskaparmál, de Snorri Sturluson, Loki corta os cabelos de Sif,
esposa de Thor e, a fim de evitar a vingança do deus, promete conseguir que os
anões forjem uma peça de ouro da qual cresceriam cabelos dourados. Além da
peça de Sif, Loki faz com que os anões confeccionem mais cinco tesouros para
os deuses: a lança de Odin, Gungnir, e seu anel, Draupnir; o martelo de Thor,
Mjollnir; o javali de Frey, Gullinborsti e seu barco, Skibladnir (LINDOW, 2002,
p. 100; 217; 266).

Figura 1: Floki segurando os cabelos loiros da filha do ferreiro.


Figura 2: Floki entregando a mecha em troca da âncora. Fonte das imagens: 1ª temporada,
episódio 2.

Na mitologia vemos que Odin fez uma irmandade de sangue com Loki

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 37


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

— Lindow (2002, p. 218) entende tal atitude como uma tentativa de adiar o
conflito mortal entre os dois —, e ambos aparecem em jornadas, juntos, em
algumas narrativas. Por exemplo, no poema Reginsmál, junto de Hönir, ou no
Haustlong, onde Loki chega a ser referido pelo seguinte kenning: “o amigo de
Odin, de Hoegni e de Thor” (LANGER, 2015, p. 281).
Floki afirma, no nono episódio da primeira temporada, em uma conversa
com o rei Horik, Loki “é apenas um ancestral antigo”. Vale notar que na cena
eles observam uma aranha em sua teia atacando uma presa, sendo uma
possível relação com a etimologia de Loki. Em diversos momentos, a série
indica Ragnar como descendente de Odin. Ao relacionarmos as descendências
de Ragnar e Floki com os mitos relativos a Odin e Loki, podemos ver aí,
novamente, representações de Loki em Floki.
Eldar Heide (2011, p. 63) discute sobre a existência de dois Lokis: “o
personagem mitológico e um vätte (espirito doméstico) vivendo embaixo ou ao
lado da lareira. O personagem mítico seria derivado desse vätte”. O’Donoghue
(2007), relaciona Loki com o fogo em diversas ocasiões, desde o personagem
Loge da ópera de Wagner até mesmo uma recente representação do deus em um
romance para crianças de 1975. A autora ainda argumenta sobre a relação de
Loki com o fogo, pautada no mito da viagem à Utgarda-Loki: em uma série de
disputas, Loki é desafiado em uma competição de comilança, a qual perde para
o gigante Logi (chama), pois o fogo tudo devora. Vale lembrar que no Ragnarok,
Loki combate os deuses aliado aos gigantes, e tudo será consumido pelo fogo.
Na série, dois momentos de Floki com o fogo merecem destaque. No
segundo episódio da primeira temporada, após o massacre em Lindisfarne,
Floki brinca com o fogo, queimando pedaços de manuscritos até o ponto de
atear fogo no mosteiro inteiro. Ragnar, já sabendo a resposta, indaga a Floki

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 38


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

sobre a autoria do fogo, e este somente ri em resposta. É possível (talvez


conjecturando demais) relacionar essa cena com o próprio Ragnarok: alguns
monges viram sinais do fim dos tempos logo antes dos vikings chegarem e, no
fim, aquele mundo que eles conheciam realmente chegou a um fim — em
chamas, como no fim dos tempos da narrativa nórdica. Ainda podemos ver,
nessa cena, o papel de Floki como trickster, como um profanador de locais
sagrados (QUEIROZ, 1991, p. 96). Um outro momento ocorre no oitavo episódio
da terceira temporada, quando Floki se encontra preso na estrutura de madeira
em chamas, que ele próprio projetou, esbravejando com os deuses, certo de que
será consumido pelo fogo.
Ao fazer o canto de guerra antes do ataque à Paris, no episódio sete da
terceira temporada, Floki recita a estrofe quarenta e cinco do poema Völuspá, da
Edda Poética, em nórdico arcaico: skeggǫld, skálmǫld / skildir ro klofnir. Segundo
a tradução de Bellows (2004, p. 20): “Axe-time, sword-time, / shields are
sundered” [Tempo do machado, tempo de espadas, /escudos são quebrados].
A passagem refere-se ao Ragnarok, a narrativa nórdica do fim dos deuses. Loki é
o causador indireto do Ragnarok, ao armar a morte do deus Baldr. Como
punição, é preso em uma caverna, amarrado pelos pés e mãos com as entranhas
de seus filhos, enquanto uma serpente paira sobre sua cabeça, pingando veneno
em sua face. Sua esposa Sgny recolhe o veneno com uma tigela, mas, toda vez
que tem que esvaziá-la, o veneno cai sobre a cabeça de Loki, fazendo o deus se
contorcer de dor, causando terremotos na Terra.
A passagem é mencionada pelo próprio Floki a uma criança a qual pede
um favor em um banquete — no episódio dez da segunda temporada —,
ameaçando a criança que o mesmo aconteceria com ela caso contasse para
alguém o que ele havia pedido. Outra representação da passagem aparece em

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 39


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

trailers da quarta temporada da série, os quais mostram Floki preso em uma


caverna da mesma maneira que Loki, muito provavelmente devido ao
assassinato de Athelstan.

Figura 3: Floki acorrentado na caverna (cena do trailer da quarta temporada do seriado). Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=IARD01_FEq0

Notemos as seguintes informações: alguns pesquisadores relacionam


Baldr com Jesus Cristo, devido a sua ressureição e por ser iluminado, puro; a
punição de Loki é devido à morte de Baldr, já a punição de Floki pela morte de
Athelstan; claramente, Athelstan tem uma forte relação com o cristianismo e,
portanto, com Cristo; Baldr é filho de Odin, o qual possui um enorme carinho
pelo filho, assim como Ragnar tem por Athelstan. Ao compararmos essas
características dos personagens, juntamente com o que já foi discutido sobre as
descendências de Floki e Ragnar, vemos o Ragnarok representado de maneira
muito interessante na série.
Por fim, com base nas características do personagem e passagens
abordadas, consideramos que, apesar de não apresentar Loki representado na
figura de um deus, o seriado consegue ressignificar características e narrativas
dele no personagem Floki. Levando em conta o que foi observado por Langer

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 40


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

(2015, p. 286-7), que “[a]s reapropriações, ressignificações e mudanças artísticas


que esta entidade sofreu ao longo das décadas mais recentes, em parte, são
reflexos das próprias transformações que nossa sociedade vem mantendo com
os mitos nórdicos”, podemos concluir que tanto o seriado quanto o personagem
oferecem boas oportunidades para o debate sobre a mitologia nórdica.

Flávio Guadagnucci Palamin é doutorando em História pela UEM e membro do LERR/UEM e


NEVE
E-mail: flaviopalamin@gmail.com

Referências:

ANÔNIMO. Egils Saga. Tradução inglesa de W. C. Green. 1893.

BELOWS, H. A. Introdução, tradução e notas de Henry Adams Bellows. In: The


Poetic Edda: the mythological poems. Mineola, New York: Dover Publications,
INC., 2004.

BRONDSTED, Johannes. Os Vikings: História de uma Fascinante Civilização. São


Paulo, Hemus, 2004.

HEIDE, Eldar. Loki, the Vätte, and the Ash Lad: A Study Combining Old
Scandinavian and Late Material. Viking and Medieval Scandinavia, v. 7, 2011, p. 63-
106.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 41


Floki, Loki e outras representações - Flávio Palamin 2016

HOLMAN, Katherine. Historical Dictionary of the Vikings. Oxford: The Scarecrow


Press, 2003.

LANGER, J. Loki. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de mitologia nórdica:


símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 281-287.

LINDOW, John. Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs.
New York: Oxford University Press, 2002.

O’DONOGHUE, Heather. From Asgard to Valhalla: The Remarkable History of the


Norse Myths. London: I.B. Tauris, 2007.

QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do


trickster. In: Revista Tempo Social, São Paulo, v. 3, n. 1-2, 1991, p. 93-107.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 42


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

PRECISAMOS FALAR SOBRE (F)LOKI:


BREVES COMENTÁRIOS SOBRE HISTÓRIA, MITOS E NAVIOS
Pablo Gomes de Miranda

Assumimos escrever uma série de artigos relacionados a embarcações


nórdicas para o Notícias Asgardianas. Anteriormente, escrevemos um pequeno
ensaio sobre os botes da Era do Bronze representados na arte rupestre, além dos
achados arqueológicos das canoas de Hjortspring e Nydam, além da
embarcação funerária de Oseberg, já beirando a Era Viking (MIRANDA, 2013).
Demos continuidade explorando os vestígios materiais de embarcações
norueguesas e dinamarquesas (Tune, Gokstad, Ladby, etc) a fim de discutirmos
as inovações tecnológicas que apontaram especializações náuticas voltadas a
guerra. Entretanto, essa não é uma terceira parte dessa série de publicações
(MIRANDA, 2014).
Tendo como uma abordagem sincrônica sobre o desenvolvimento das
tecnologias náuticas desde a Antiguidade, sentimos que dar a continuidade
planejada para o atual ensaio poderia ser um desperdício, já que o seriado
Vikings (objeto de análise do dossiê desta edição) oferece algumas pautas
interessantes de discussão.
As embarcações não possuem um papel de destaque na série, apesar da
sua importância para a narrativa no início (a busca pelas terras britânicas, por
exemplo) ou mesmo em momentos que reforçam o estereótipo fílmico
hollywoodiano, como o funeral do jarl Haraldson, de modo que os navios
vikings são muito mais adereços legitimadores ou que reforçam representações
estereotipadas ao que atribuímos normalmente enquanto pertinente a uma
“identidade viking”.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 43


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

Essa relação inclusive está presente na belíssima abertura, onde corpos,


armas e moedas afundam mar adentro em razão de uma batalha marítima
(tudo embalado ao som de If I Had a Heart, do projeto Fever Ray da musicista
sueca Karin Dreijer Andersson).
A oportunidade é salutar em razão do espaço ocupado pelas
embarcações em toda a obra. Elas fazem parte das ferramentas que possibilitam
o desenvolvimento do enredo, a comunicação entre os personagens e firma o
comprometimento guerreiro entre os vários personagens notáveis que
ocasionalmente se envolvem nos planos dos protagonistas.
Ainda mais, se os vários episódios são problemáticos e recorrem a
enfadonhos estereótipos a fim de manter cativos os telespectadores menos
exigentes, as cenas que envolvem as embarcações, geralmente acompanhadas
de belíssimas imagens da natureza escandinava, são de tirar o fôlego!
Os erros da série pertinentes às embarcações não são poucas, indo das
posições de suas velas aos escudos que adornam as laterais de seus cascos. Por
si só já merecem comentários demorados. Porém, a maneira como os
personagens se comportam perante os navios e suas reações frente à prática da
navegação não poderia estar mais distante do que sabemos das relações de
trocas dos escandinavos com o resto da Europa.
A motivação inicial dos personagens e o mote dos primeiros episódios da
primeira temporada é certamente a busca por territórios com saques mais
rentáveis. Ragnar comenta que ouviu rumores sobre terras a Oeste e que um
viajante lhe entregou dispositivos que possibilitam a navegação para outras
regiões: uma pedra e um disco solar, esse último muito parecido com o gnômon
achado em Uunartoq, na Groelândia.
É necessária uma súbita pausa aqui: além de ser um reaproveitamento

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 44


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

grosseiro do roteiro do filme The Vikings de Richard Fleischer, onde um


personagem obtém um artefato com propriedades magnéticas, o seriado força
um isolamento entre a Escandinávia (atrasada tecnologicamente) e o resto da
Europa, o que não poderia estar mais longe da verdade. Provavelmente, o
gnômon nórdico deve ter sido influenciado pelo continente, via
reaproveitamento do conhecimento náutico e astronômico do mediterrâneo na
Antiguidade.
É possível encontrar vestígios materiais de copos de vidro, caldeirões de
bronze, conjuntos de prata e bronze próprios para servir vinho, todos
manufaturas mediterrânicas, indicando contatos e alianças que os romanos
realizaram e que devem ter sido parte de uma maior troca de presentes na
construção de amizades entre as dinastias germânicas escandinavas e
continentais.
Não só isso, “representou também um passo importante para a economia
setentrional em razão do fluxo de seus produtos, em destaque os escravos, as
peles, quartzos, penas de ganso, pedras preciosas e cabelos femininos louros”
(MYHRE, 2008, p. 73). Talvez o seriado tenha representado esse isolamento
escandinavo com a finalidade de pôr Ragnar e seus companheiros no epicentro
do início da Era Viking, tradicionalmente marcado pelo saque do mosteiro de
Lindisfarne (logo no segundo episódio da primeira temporada), porém tal
representação é incompatível, como já argumentado, com o panorama histórico
e tecnológico do período.

Floki e Loki: comparações inevitáveis

Mas, depois de tudo, para o bem do roteiro da série, um novo

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 45


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

personagem é introduzido, responsável pela construção do barco que levará


Ragnar e seus companheiros às ricas terras inglesas. Sem dúvidas o personagem
vivido por Gustaf Skarsgård está amplamente relacionado ao personagem
mitológico Loki, sendo um trapaceiro em todos os sentidos.
Mais que tudo, o personagem parece, também, encarnar um traço menos
óbvio: sua associação com o desenvolvimento de novas tecnologias. Já na
primeira temporada, no episódio Rites of Passage, o personagem em questão faz
a sua aparição, sendo contatado por Ragnar, ainda um simples fazendeiro.
Impossível não fazer a comparação da construção de barcos com o
episódio do roubo dos cabelos da deusa Síf descrito na Edda Menor.
Especificamente no Skáldskaparmál, Loki é acusado de ter roubado os cabelos
dourados da deusa, mas foge à punição prometendo fazer reparos com uma
peruca nova feita de ouro. De sua capacidade de negociação e engodo, o deus
Loki convence os anões filhos de Ívaldi a confeccionar uma série de tesouros
mágicos presenteados aos deuses, entre eles o navio Skíðblaðnir.
No poema Grímsnismál, esse navio mágico é bastante celebrado, sendo o
melhor entre todos os navios, assim como a Yggdrasill é a mais sublime das
árvores, Óðinn entre os Ӕsir, Sleipnir entre os cavalos, Bragi entre os poetas,
etc. Esse poema não mede esforços para deixar claro que é o melhor dos barcos
(...skipa bazt). Claro que Loki não possuía o conhecimento necessário para fazer,
ele mesmo, tais presentes, mas utilizou aquilo que tinha de melhor para
consegui-los: sua perspicácia.
Aqui a série traça paralelos, aborda perspectivas diferentes e aproxima o
personagem humano Floki ao mitológico Loki. Ambos possuem vários
atributos positivos: sua companhia, sua boa disposição ao humor e mesmo a
sua engenhosidade que é posta a serviço do bem comum; ao mesmo tempo

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 46


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

também provou ter aspectos negativos — aparentemente, nas próximas


temporadas corre o risco de ser um grande opositor de seu antigo amigo (não
iremos aqui comentar, claro, um fanatismo religioso impraticável na visão de
mundo da antiguidade pagã).
O viés comparativo entre a cultura mitológica e a representação na série
pode ser se aproveitar da relação entre os Jötnar e o território dos povos Sámi,
onde a figura de Loki transfigurada em égua pode ser vista “em paralelo com a
narrativa báltica de uma égua pertencente a uma mulher xamã que deu à luz a
um potro com oito patas, de forma idêntica a Sleipnir” (LANGER, 2015 p. 283).
O caráter ambíguo de Loki e a sua ambiguidade enquanto figura trickster estão
conectados com a tradição noaidevuohta, o que enriquece o personagem de
Gustaf Skarsgård que parece ter uma ligação quase extática com os seus barcos
e com conhecimentos estranhos aos rituais comuns entre os germanos (como
comentado na segunda temporada).

Um homem para construir um barco?

O perigo que a série enfrenta ao colocar nas costas do personagem a


responsabilidade do desenvolvimento tecnológico da sua contraparte
mitológica advém do fato de que estariam ignorando antigas instituições
guerreiras escandinavas relativas à promoção de conflitos e da defesa dos
territórios marítimos dos reinos vikings (instituições essas que cruzaram a Era
Viking e importantes bases de poder dos reis do medievo tardio).
Pensando Kattegat como um espaço de poder eminentemente
dinamarquês, podemos facilmente conjecturar o esquema de divisões
territoriais skipæn, distritos responsáveis pelo fornecimento de navios, e hafnæ,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 47


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

distritos responsáveis pelo fornecimento de tripulações. Claro que estamos


falando de relações de poder mais complexas que aquelas representadas no
início do seriado que possuía uma dimensão muito mais regional confinada a
Kattegat.
Alguns creem em uma antiguidade incontestável nessa instituição,
baseada quase que inteiramente em Tácito, afinal "os suiões não são fortes
apenas em homens e armas, mas também em frotas" (passagem de De Origine et
Situ Germanorum, 44). O sucesso desse tipo de instituição, nas palavras de Niels
Lund, poderia ser a chave dos reides vikings: “justificaria a autoconfiança de
Godofredo frente a Carlos Magno, explicaria a habilidade de Horik de enviar
seiscentos navios contra a Saxônia em 845, o cerco de Paris com ainda mais
navios, em 885-6”.
É um tipo de instituição como essa que justificaria o rápido
fortalecimento dos exércitos de Svein Barba-Bifurcada e de seu filho, Knút, o
Grande, que conquistaram a Inglaterra no início do século XI, sucesso que
também garantiu a supremacia dinamarquesa no Mar Báltico do século XII.
Se falamos em uma temporalidade tardia, podemos com segurança nos
referir a milícias navais que existiram durante o medievo posteriores aos
séculos XII e XIII (portanto, bem após o período representado na série), e que
levam o nome de Leiðangr no nórdico antigo e consistia em uma organização
concisa de operações marítimas. Isso significaria um controle maior das
monarquias escandinavas sobre os poderes paralelos de homens prósperos ou
de líderes guerreiros, donos de pequenas frotas e com a capacidade de reunir
um modesto número de homens para suas empreitadas particulares (que
lembra muito a situação de Ragnar na primeira temporada).
A representação das primeiras expedições feitas por Ragnar tem esse

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 48


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

intuito, de mostrar um homem independente com uma pequena tripulação que


conquista bons saques na Inglaterra. Entretanto, não poderíamos esquecer da
condição social desses personagens: agricultores rudes. A construção e a
manutenção de embarcações levavam em consideração equipes treinadas com
boas ferramentas e um custo considerável de recursos naturais, incompatível
com a demanda do personagem principal.
Façamos algumas contas baseadas nos números apontados por Jan Bill
(2008, p. 170): a arqueologia experimental nos mostrou que são necessárias
40.000 horas de trabalho, incluindo aqui às produções a parte de ferro, cordas e
velas, entretanto excluindo o tempo de transporte, tudo isso para a fabricação
de um navio longo de 30 metros. Para que fique pronto em um ano, são
necessárias 100 pessoas. Para manter no mar por 4 meses, são necessários 70
homens que precisam ser alimentados. Por alto, é necessário o rendimento
equivalente à produção agrícola anual de 460 indivíduos, que poderiam ser
negociados com o retorno dos saques, o que não seria o caso de Ragnar e Floki,
que estão ainda no início de suas empresas.
A série não dá uma medida exata do navio, mas, levando em
consideração que a embarcação de Tune, próximo ao recorte cronológico da
série, tem quase a metade de suas medidas, podemos ter uma média
aproximada dos esforços e custos necessários para a fabricação do navio que
Floki constrói para a viagem de Ragnar à Inglaterra: números impraticáveis.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 49


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

Figura 1: Floki demonstra a Ragnar o barco que constrói sozinho em sua oficina (RITES..., 2013)

Conclusão

O seriado Vikings falha pela tentativa de alimentar estereótipos


recorrentes da cultura pop ou por ignorar fatos básicos da história escandinava:
suas economias, suas culturas e suas tecnologias. Em meio a isso, temos um
personagem extremamente profundo que herda vários traços de sua
contraparte mitológica.
Várias outras características relevantes as nossas discussões mereciam
menções e explicações: as embarcações vikings quase iguais entre elas (como se
houvesse um padrão), a insistência em representar as laterais dos navios
cobertos por escudos ou mesmo a adoração fanática e nada pragmática de Floki.
Infelizmente, devemos nos limitar aos pontos que propomos aqui: Floki
enquanto uma potência criadora e as necessidades para a construção de um
navio.
Na segunda temporada do seriado, duas facetas muito interessantes de
Floki são apresentadas: o rei Horik lhe revela que necessita de suas ideias e que
um construtor de barcos deveria receber mais que um homem comum — o

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 50


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

mesmo rei Horik que é traído e entregue a Ragnar para que este possa levar a
cabo sua execução. É inegável que os produtores tenham se baseado em Loki na
construção do personagem e tenham tentado captar todas as suas dualidades, e
talvez tenham conseguido se sair muito bem, desviando boa parte da carga
negativa que o ser mitológico possui em outras mídias.

Figura 2: Horik tenta cooptar Floki. A segunda temporada apresentou o lado mais ardiloso de
Floki, combinando assim as várias facetas do mitológico Loki no epicentro da narrativa
(BONELESS, 2014).

Entretanto, quando saímos da sua caracterização, o personagem começa


a tomar um propósito absurdo. As milícias navais não eram as únicas maneiras
de reunião de forças marítimas, vários bandos e reis dos mares também
estavam à disposição para o planejamento de novos saques, porém fora do
alcance de um Ragnar que no início ainda possuía uma condição humilde.
Porém, um navio também é um projeto fora do possível em termos de
tempo, capacidade humana de trabalho e disponibilidade de materiais, de
modo que o seriado estaria perdido, não sabendo como contornar esse
problema que envolve Floki nos primeiros episódios, mas como quase tudo que
encontramos representado entre os episódios da série, a promessa de diversão

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 51


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

fácil dispersa qualquer coerência com os fatos materiais e/ou históricos.

Pablo Gomes de Miranda é mestre em História, professor na UFRN e membro do NEVE.


E-mail: pgdemiranda@gmail.com

Referências:

BILL, Jan. Viking Ships and Sea. In: BRINK, Stephan; PRICE, Neil (org.). The
Viking World. New York: Routledge, 2008, p. 170-180.

BONELESS. Direção: Kari Skogland. Roteiro: Michael Hirst. In: Vikings. 47


minutos e 33 segundos. Disponível em:
<http://www.netflix.com/watch/80014697?trackId=200257859>. Acesso em 10
de fevereiro de 2016.

LANGER, Johnni. Loki. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia


Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 281-287.

LUND, Niels. Naval Forces in the Viking Age and High Medieval Denmark. In:
HATTENDORF, John B.; UNGER, Richard W. War at Sea in the Middle Ages and
Renaissance. Rochester: Boydell Press, 2003, p. 25-34.

MIRANDA, Pablo Gomes de. As Embarcações Escandinavas: parte I (dos


primeiros modelos à introdução da vela). In: Notícias Asgardianas 4, 2013, p. 14-
19. Disponível em: <https://www.academia.edu/3510571>. Acesso em 10 de
fevereiro de 2016.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 52


Precisamos falar sobre (F)loki... - Pablo Miranda 2016

MIRANDA, Pablo Gomes de. As Embarcações Escandinavas: parte II


(embarcações guerreiras). In: Notícias Asgardianas 6, 2014, p. 55-59. Disponível
em: <https://www.academia.edu/6427500>. Acesso em 10 de fevereiro de
2016.

MYHRE, Bjørn. The Iron Age. In: HELLE, Knut (org.). The Cambridge History of
Scandinavia, Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 60-93.

RITES of passage. Direção: Johan Renck. Roteiro: Michael Hirst. In: Vikings. 46
minutos e 38 segundos. Disponível em:
<http://www.netflix.com/watch/70301854?trackId=200257859>. Acesso em 10
de fevereiro de 2016.

TACITUS. Cornelius. De Origine et Situ Germanorum. Oxford: Claredon Press,


1900. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:2007.01.0090:c
hapter=44>. Acesso em 10 de fevereiro de 2016.

VILAR, Leandro. Dramatização no Lokasenna: um estudo do conceito do


trickster na figura de Loki. In: Revista Mundo Antigo 4(4), 2015. Disponível em:
<http://www.nehmaat.uff.br/revista/2015-1/artigo05-2015-1.pdf>. Acesso em
19 de janeiro de 2016.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 53


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

A FIGURA DO FERREIRO EM VIKINGS E NOS MITOS NÓRDICOS


Munir Lutfe Ayoub

No segundo episódio da primeira temporada da série Vikings, nos


deparamos com um personagem que não ocorre em nenhum outro momento da
série, até porque a personagem morre: o ferreiro. Ele surge em Vikings como pai
de uma menina ameaçada de ser morta por Floki, caso este não produzisse a
âncora da embarcação de Ragnar. Ao produzi-la, possibilita que este possa
desbravar a Inglaterra. O ferreiro, por fim, é procurado pelo earl Haraldson e
acusado de traição por possibilitar a viagem de Ragnar, à qual o earl se opunha,
recebendo como castigo a morte. Esse episódio nos leva a refletir sobre o papel
do ferreiro na sociedade nórdica da Era Viking, figura necessária para produção
de bens de extrema necessidade, como a âncora de Ragnar, mas figura também
controlada pelos poderosos que, ao fim, por ser acusada de traição, acaba por
receber como castigo a própria morte. Contudo, como se apresenta o ferreiro no
período Viking, e como este é caracterizado pelas fontes medievais?
Iniciamos assim um breve estudo para analisar a figura do ferreiro nos
mitos nórdicos pré-cristãos, aspecto cultural que, em sua criação, recriação e
articulação, continha e revelava elementos daquela sociedade, como seus ideais
políticos, seus personagens históricos e mitológicos, suas cosmovisões, suas
compreensões identitárias e muitas outras compreensões sociais e de mundo
(SCHJØDT, 2007, p. 1-16).
Buscaremos nos perguntar, assim, como o ferreiro é apresentado na
cultura nórdica pré-cristã, mas devemos também nos perguntar em quais fontes
essa imagem é explicitada, e, ainda, se as diferentes fontes, arqueológicas e
literárias, nos apresentam uma mesma imagem desse ser social. Contudo, como

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 54


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

um estudo introdutório ao tema, este artigo se limitará a considerar apenas, e


de forma breve, as fontes literárias, deixando reflexões mais densas a serem
aprofundadas em estudos futuros.

O ferreiro no mito e nas sagas

Os anões são apresentados nos mitos nórdicos como os melhores


ferreiros, responsáveis pela produção de artefatos valiosos para os deuses. São
eles que produziram a lança Gungnir e o anel Draupnir de Odin, o martelo
Mjollnir de Thor, o colar de ouro Brisingamen de Freyja, o javali de ouro
Gullinborsti e também o navio mágico Skidbladnir de Freyr. Em uma das
versões do mito sobre a produção do hidromel — bebida responsável pela
sabedoria, poesia e inspiração —, os anões são apontados como produtores da
mesma (Skáldskaparmál, 1 e 35; Hávamál, 104-110; Sörla þáttr). A historiadora
Lotte Hedeager, além de salientar essa lista de feitos dos anões que
enumeramos acima, diz que os anões são apontados como professores, sábios e
mágicos, e que nas sagas aparecem como os provedores das armas dos heróis.
São esses personagens também que, segundo o historiador Lotte Motz, são
lembrados pelo folclore dos povos nórdicos (HEDEAGER, 2011, p. 141; MOTZ,
1983).
O historiador Andy Orchard ainda ressalta essas características dos
anões em seu estudo sobre os nomes desses seres mitológicos, enunciados em
poemas como o Völuspá e na lista de nomes da Edda em prosa, denominada
Thulur. As listas incluem nomes que reforçam as características já
supramencionadas como Alvíss (“todo-sábio”), Dagfinnr (“mágico” ou “dia-
Finn”), Draupnir (“gotejador”), Radspakr (“sábio conselheiro”), Skirvir

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 55


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

(“artesão”) e Úri (“ferreiro”) (ORCHARD, 2002, app. B).


As famílias destes anões são apresentadas pelos mitos como não
possuidoras de membros femininos, e, por consequência, estes não possuem a
possibilidade de reprodução, não por um aspecto biológico, mas sim por um
aspecto social. Suas habitações são marcadas pelas montanhas nas quais eles
habitam no subsolo, para escaparem da luz do dia, aspecto ressaltado por
Hedeager, que aponta a presença da descrição dos anões como os sábios das
montanhas no poema Völuspá (HEDEAGER, 2011, p. 141). Anões como Alvíss já
tentaram desposar mulheres como Thrud, filha de Thor, mas Alvíss foi
enganado pelo deus do trovão, que o desafiou em um duelo de sabedoria. O
anão deveria se mostrar capacitado para desposar um ser de tal linhagem, e
Thor o segurou neste duelo até o nascer do sol, o que fez com que Alvíss se
tornasse pedra em seus primeiros contatos com o astro luminoso (Alvíssmál).
Contudo, nem sempre foram os anões os únicos grandes artesãos e
ferreiros, sendo também os deuses, por certos momentos, possuidores dessas
habilidades. Na chamada “época de ouro”, os deuses também tiveram poderes
de trabalho com metais, mas tiveram seus poderes destruídos pela chegada de
gigantas de Utgard e foram assim obrigados a criar a linhagem dos anões, que
passou a habitar no subsolo e a controlar a produção de artefatos feitos com
metais preciosos. Os Aesires neste “período de ouro” constituíam também uma
sociedade apenas de homens e, como os anões, eram impossibilitados
socialmente de se reproduzirem (Völuspá, estrofes 7-10).
Um dos anões que possuímos mais informações, graças a obras como o
poema Reginsmál, presente na Edda poética, se chama Reginn. A história deste
anão já foi identificada por arqueólogos como Anders Andrén como sendo
retratada em uma gravura em pedra na região de Ramsundsberget, na Suécia,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 56


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

datada do período Viking. Sua história também já foi apontada pela


historiadora Hilda Davidson como retratada em um relicário do mundo anglo-
saxônico, datado da primeira metade do século VIII (ANDRÉN, 2000, p. 7-32;
DAVIDSON, 1982, p. 134). A história de Reginn faz parte também da Saga dos
Volsungos — que nos conta a história do herói Sigurd, responsável pela morte
do irmão de Reginn, chamado Fafnir —, além de se encontrar presente também
na Edda em prosa (Reginsmál; Saga dos Volsungos; Skáldskaparmál, 39 – 41).
Reginn nessas histórias aparece como membro de uma família composta
pelo seu pai Hreidmar e seus dois irmãos Fafnir e Utter, mas nenhuma mãe
nem irmã são mencionadas; em suma, uma família sem mulheres. Utter tinha a
capacidade de se metamorfosear em uma lontra que viria a ser morta pelo deus
Loki — deus que, por essa morte, teria de pagar uma grande quantidade de
ouro aos anões. Hreidmar, por sua vez, é apontado como um ancião portador
de grande magia que viria a ser morto por seus filhos Fafnir e Reginn, movidos
pela ganância do ouro pago por Loki. Por último, Fafnir viria a se transformar
em um dragão, tomando o tesouro para si e o guardando até ser morto por
Sigurd.
Reginn é um ferreiro a serviço de um rei e viria a cuidar de Sigurd, filho
do rei Volsung, em sua juventude, revelando para ele o tesouro de Fafnir e o
instigando a matar o dragão para tomar posse de suas riquezas. Reginn é o
responsável pela forja que restaurou a espada, chamada Gram, que viria a
matar Fafnir, e o único a possuir qualidades mágicas e artesanais para essa
restauração, que viria a garantir a vitoria do herói. Este episódio é considerado
por historiadores como Lotte Motz e Lotte Hedeager como a exemplificação da
iniciação de um herói, onde este viria a adquirir riqueza, sabedoria (como a
adquirida por Sigurd ao tomar o sangue de Fafnir), força, coragem e um novo

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 57


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

nome como prova de seu ato de honra, passando a ser denominado Fáfnisbani
(“Aquele que matou Fafnir”). Dessa forma, Reginn aparece como o mestre da
iniciação do herói Sigurd (HEDEAGER, 2011, p. 142; MOTZ, 1993, p. 83).
Lotte Hedeager conclui assim sua análise de Reginn por dizer que
mesmo o mais forte dos reis dependia de suas habilidades como ferreiro,
mágico e artesão. Reginn é um ser que não pertence àquela sociedade, não
tendo nenhuma mulher em sua família e sendo impossibilitado de se
reproduzir, um ser liminar responsável pela iniciação de heróis e pela produção
de artefatos únicos (HEDEAGER, 2011, p. 142). Contudo, ainda resta ressaltar
que Reginn é caracterizado também como uma figura traiçoeira, personagem
que pretendia matar o herói Sigurd e roubar as riquezas de seu irmão Fafnir,
sendo necessário um controle forte sobre o mesmo que, ao fim, por um ato de
defesa do herói, acabou por ser morto.
Para terminarmos essa breve análise sobre o ferreiro nos mitos e nas
sagas, ainda devemos citar também o nome de Völund, um dos mais famosos
ferreiros do mundo nórdico, citado pela Edda poética no poema Völundarkvida.
Historiadores como Andy Orchard estudam também a figura do ferreiro
Völund em fontes germânicas e anglo-saxônicas demonstrando a variação de
seu nome por Wayland, Weland e Welund (ORCHARD, 2002, p. 389). Uma das
fontes mais antigas para o mito de Völund provém de um relevo presente em
um relicário do mundo anglo-saxônico datado do século VIII, mas fontes
arqueológicas desse mesmo século no mundo escandinavo também foram
apontadas como apresentando o mito do ferreiro como, por exemplo, uma das
estelas de Gotland (JAKOBSSON, 2003, p. 149).
Völund é apresentado como irmão de Égil e Slágfid, e os três são
apontados como filhos de um rei Finn. Os Finns ou Saamis são comumente

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 58


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

apresentados como magos perigosos possuidores de forças provenientes de


outras esferas, sendo assim um personagem proveniente de fora da sociedade
nórdica. O ferreiro é apresentado como casado com uma valquíria chamada
Hérvor Álvit, uma mulher de grandes proporções provenientes de esferas fora
do mundo dos homens, que possuía grandes habilidades de tecelã e tinha o
controle da metamorfose. Contudo, Völund viria a ser abandonado por Álvit
após sete anos, o que leva a historiadora Lotte Hedeager a dizer que, apesar de
ter sido casado, a mulher do ferreiro havia fugido, e o mesmo não possuía
filhos, o tornando um personagem que não pertencia a nenhuma família, sendo
considerado, portanto, como um ser à parte da sociedade (HEDEAGER, 2011, p.
143).
Völund, assim, não é um anão como a maior parte dos ferreiros, mas
também não pertence à esfera dos homens, sendo introduzido na mesma ao ser
capturado pelo rei sueco Nídud, que roubou sua espada, seu ouro, o fez
prisioneiro e o forçou a trabalhar na produção de armas e joias de grande
qualidade. Um dos itens roubados por Nídud foi um anel de ouro forjado por
Völund, ferreiro que depois de ter sido abandonado por Álvit havia passado
um tempo em sua casa em Ulfdálir a forjar anéis, que viria a ser dado pelo rei
sueco a sua filha Bódvild.
Após ter sido sequestrado por Nídud, o ferreiro é colocado em uma ilha
isolada chamada Sevarstad e tem os tendões de seus pés cortados para que não
possa fugir. O arqueólogo e historiador Baeksted (2001, p. 278-281) ressalta que
a localização da forja de Völund — como situada em uma ilha isolada, onde o
mesmo era controlado pelo rei, único homem que ousava ir vê-lo, mas mantido
afastado da sociedade — ressalta o caráter do ferreiro como um ser temido, que
era, no entanto, necessário por possuir poder no controle do ouro.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 59


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

O mito de Völund está, por fim, marcado por fatos que conduzem a
trama por episódios de vingança. O ferreiro teria matado os dois filhos homens
do rei Nídud, que, ao visitarem Sevarstad atrás de joias e bens valiosos,
acabaram por ser decepados. Os corpos dos filhos de Nídud serviram, assim, a
Völund como matéria prima na confecção de duas taças que foram feitas de
seus crânios, joias que foram feitas de seus olhos e broches que foram feitos com
seus dentes. As taças teriam sido enviadas ao rei, as joias teriam sido enviadas à
rainha e os broches teriam sido enviados a Bódvild.
A vingança do ferreiro, no entanto, iria ainda mais além, em um dia que
foi visitado por Bódvild, que o procurava para que consertasse o anel de ouro,
que havia quebrado. O ferreiro se aproveitou e a estuprou, fazendo na filha do
rei um filho. Em seu ato final, Völund produz em sua forja asas para que
pudesse voar e escapar da tirania do rei, fato que leva a historiadora Lotte
Hedeager a apontar o personagem como um típico mestre ferreiro que tem a
habilidade de se metamorfosear como um xamã, sendo, por consequência,
responsável pela mediação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses
(HEDEAGER, 2011, p. 143).
Contudo, variações das interpretações apresentadas por Lotte Hedeager
podem também ser apontadas, interpretações como as apresentadas pelo
historiador Johnni Langer em seu verbete sobre Völund presente no Dicionário
de Mitologia Nórdica. Langer aponta para compreensões como as de um mito
sazonal, onde o inverno seria representado pela partida de Hervör-Alvitr, e o
verão representado pela fuga de Völund, que recupera sua liberdade, sua
espada e o anel que havia sido dado a Bódlvid, ou ainda como um mito
representativo de relatos sobre vinganças de criaturas sobrenaturais contra
seres humanos que subestimaram suas habilidades, relato esse que significaria

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 60


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

um rito de iniciação onde a mutilação cessaria por meio de poderes


regenerados, o que marcaria o ferreiro como uma figura relacionada à cura de
enfermidades (LANGER, 2015, p. 552-555).

Considerações finais

Concluimos, assim, por uma breve análise que a imagem do ferreiro nos
mitos nórdicos está marcada por uma incapacidade de reprodução social e um
pertencimento exterior às famílias dos deuses e dos homens, sendo esses
apontados como pertencentes a esferas como a dos anões ou ainda, como no
caso de Völund, à esfera dos Finns, povos exteriores ao mundo escandinavo,
característica um pouco diversa da apresentada pela série Vikings, onde o
ferreiro é pai de uma menina, portanto possuidor de uma família com membros
femininos.
O ferreiro é ainda uma figura central na produção de bens
importantíssimos como as armas ou até mesmo como as joias, que marcavam
um pertencimento aristocrático do período, mas deveria ser controlado pelos
poderosos dessas sociedades para que não viessem a cometer traições, como as
pretendidas por Reginn ou as realizadas por Völund. Nesse sentido, o ferreiro
da série Vikings se aproxima do ferreiro dos mitos como sendo uma figura de
extrema necessidade para a produção de bens importantíssimos, como a já
citada âncora da embarcação de Ragnar. Além disso, o ferreiro da série é
percebido pelo earl Haraldson como um traidor, se aproximando, assim, da
figura mitológica de Reginn, sendo ambos, ao fim, mortos pela mão dos
poderosos de suas sociedades.
Assim, aspectos das relações sociais, como aquela estabelecida entre os

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 61


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

aristocratas e os ferreiros, estão marcantes na série Vikings, mas devem também


ser apontadas como pertencentes ao período das sagas e das Eddas. Fruto de
produções dos escaldos — poetas que faziam parte da aristocracia escandinava
—, os ferreiros nas sagas e nos mitos devem ser assim compreendidos: como
figuras pertencentes a um imaginário que, dentre outras coisas, pretendia a
legitimação de poderes sociais. Contudo, aspectos pertencentes ao período de
compilação dessas fontes também devem ser apontados e, assim, encontramos
novamente a presença de aristocratas cristãos que, laicos ou clérigos, foram os
responsáveis pela vanguarda da produção das fontes literárias escandinavas,
rememorando e recriando os costumes e mitos de seus antepassados, fontes
que, mais uma vez, se tornavam úteis para esses homens na legitimação de suas
posições sociais.
O mito tem, dentre muitas de suas facetas, uma definição como elemento
dinâmico que define os personagens sociais dessa relação espaço-temporal,
gerando um movimento de oposições e alianças entre classes. Contudo, outra
visão do ferreiro — como a visão que esse personagem social apresenta fora de
uma esfera aristocrática — tem de ser iluminada e, para isso, necessita-se de
uma melhor análise de outros prismas apresentados pelas fontes literárias e
pelas fontes arqueológicas, que devem ser aprofundadas em estudos futuros.

Munir Lutfe Ayoub é mestre em História pela PUC-SP e membro do NEVE.


E-mail: munirlutfe@gmail.com

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 62


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

Referências:

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ANÔNIMO. Edda poética. Tradução de Henry Adams Bellows. Disponível em:


<http://www.sacred-texts.com/neu/poe/>. Acesso em: 21 de novembro de
2015.

ANÔNIMO. Sagas islandesas: Saga dos Volsungos. Tradução e edição de Théo de


Borba Moosburger. São Paulo: Hedra, 2009.

ANÔNIMO. Flateyjarbók. In: NORDAL, Sigurdur (ed.). Flateyjarbók. Akranes:


Flateyjarútgáfan, 1944-45.

BAEKSTED, A. Nordiske Guder og Helte. Copenhagen: Politikens Forlag, 2001.

DAVIDSON, H. Ellis. Scandinavian Mythology. London: Hamlyn, 1982.

HEDEAGER, Lotte. Iron Age Myth and Materiality: An Archaeology of Scandinavia


ad 400-1000. New York: Routledge, 2011.

JAKOBSSON, M. Burial layout, society and sacred geography. In: Current


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LANGER, Johnni. Volund. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de mitologia


nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015. p. 552-555.

MOTZ, L. The Wise One of the Mountain: Form, Function and Significance of the
Subterranean Smith. Göppingen: Kümmerle, 1983.

ORCHARD, A. Norse Myth and Legend. London: Cassell, 2002.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 63


A figura do ferreiro em Vikings e nos mitos nórdicos - Munir Ayoub 2016

SCHJØDT, Jens Peter. Contemporary Research into Old Norse Mythology. In:
HERMANN, Pernille; SCHJØDT, Jens P.; KRISTENSEN, Rasmus T. (eds.).
Reflections on Old Norse Myths. Turnhout: Brepols, 2007. p. 1-16.

STURLUSON, Snorri. Edda Snorra Sturlusonar. In: JÓNSSON, Finnur. (ed.).


Edda Snorra Sturlusonar. Reykjavík: Kostnadarmadur: Sigurdur Kristjánsson,
1907.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 64


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

MALDITAS SERPENTES:
UM COMENTÁRIO SOBRE A CENA DO SUPLÍCIO DO POÇO
Leandro Vilar Oliveira

A série Vikings é escrita pelo produtor e roteirista britânico Michael Hirst,


conhecido por ter escrito dois filmes ganhadores do Oscar: Elizabeth (1998) e
Elizabeth: A Era de Ouro (2007) e o seriado The Tudors (2007-2010). Nessa sua
nova série produzida pelo History Channel, Hirst deixa a época dos Tudors para
retornar até o medievo.
A história principal do seriado gira em torno do fazendeiro e guerreiro
Ragnar Lodbrok (Travis Fimmel) e sua família: Lagertha (Katheryn Winnick),
sua esposa, Bjorn e Gyda, seus filhos, e seu irmão Rollo (Clive Staden).
Posteriormente, na segunda temporada, a família de Ragnar aumenta com a
chegada de novos filhos, que ele passa a ter com a princesa Aslaug (Alyssa
Sutherland). De qualquer forma, a diretriz central ainda é mantida sobre seu
núcleo familiar.
Entretanto, a série foi baseada na saga heroica Ragnar saga Loðbrökar,
escrita no século XIII, a qual é a principal narrativa que se tem sobre o semi-
lendário rei Ragnar Lodbrok (“Calças Peludas”). Por sua vez, a personagem da
Lagertha advém do livro Gesta Danorum, escrito no século XII-XIII por um
clérigo dinamarquês sob o pseudônimo de Saxo Grammaticus, o qual, além de
contar a história de Lagertha, também narra a história de Ragnar.
Mas, além dessa saga e dessa crônica histórica sobre a Dinamarca, Hirst
se vale da história das invasões vikings à Bretanha, as quais se iniciaram em 793
e continuaram pelos séculos seguintes. De fato, na primeira temporada da série,
o foco histórico se faz sobre as primeiras incursões vikings ao reino da

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 65


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

Nórtumbria.
No primeiro episódio, a história ocorre no ano de 793, data que na
historiografia é aceita como sendo o ano em que ocorreu o primeiro ataque
viking à Inglaterra, mais especificamente ao mosteiro da ilha de Lindisfarne na
Nórtumbria. Na história, Ragnar tenta convencer o jarl Haraldson (Gabriel
Byrne) a empreender no verão uma campanha para o oeste, pois normalmente
ele fazia isso para leste, mas Ragnar acreditava que ganhariam muito mais se
cruzassem o mar até a Inglaterra.
A relação entre Haraldson e Ragnar é bastante tensa, pois Ragnar é
petulante e diferente de outros, não se submete facilmente ao jarl. Com isso,
Haraldson não aceita a proposta de Ragnar, o qual decide procurar a ajuda dos
deuses, indo falar com o ancião, e, por sua vez, Ragnar decide procurar seu
amigo Floki (Gustaf Skarsgård), o qual é um artesão que constrói navios.
Ragnar acredita que, caso possua seu próprio navio e tripulação, conseguiria
convencer Haraldson a permitir a expedição, e isso vem a ocorrer no Episódio 2:
Wrath of Northemen, o qual conta a história do ataque à Lindisfarne.
Ao retornar para Kattegat, vila onde mora o jarl Haraldson, Ragnar e sua
tripulação retornam triunfantes, o que acaba tornando-o famoso no local,
atiçando a inveja e revolta de Haraldson, o qual esperava que Ragnar morresse
afogado ou fracassasse. Com o êxito, Ragnar planeja uma nova expedição à
Inglaterra, ainda mais incentivado após o relato do monge Athelstan (George
Blagden), o qual Ragnar trouxe como prisioneiro e, posteriormente, se torna seu
amigo. Athelstan lhe diz que a Inglaterra é cheia de reinos ricos, e isso leva
Ragnar a retornar para lá, indo atacar uma pequena cidade chamada de Haxam.
O ataque ocorre no Episódio 4: Trial.
Novamente ele obtém êxito, o que não apenas enfurece o jarl Haraldson,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 66


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

mas a notícia do ataque a Lindisfarne e Haxam chegam aos ouvidos do rei da


Nórtumbria Ælla II (Ivan Kaye), o qual fica indignado com seus comandantes,
por deixarem um bando de bárbaros pagãos vindos do mar, terem pilhado suas
terras, profanado suas igrejas e cometido atrocidades. Tais acontecimentos
remetem ao contexto das invasões vikings à Inglaterra as quais perdurariam ao
longo do século IX e X, período no qual os dinamarqueses acabariam fundando
colônias em grande parte da Bretanha, território esse chamado de Danelaw.
Mas, retomando a série, Haraldson planeja assassinar Ragnar, o qual o vê
como um oponente em potencial para questionar sua autoridade. No Episódio
6: Burial of the Dead, Ragnar duela com Haraldson e o mata, tornando-se jarl. No
final do episódio, o rei Ælla II — indignado pelo fracasso de seu comandante
Wigea, e agora sabendo que os nórdicos estavam de volta para cometer novas
barbaridades — decide tomar uma decisão: executar o comandante.
O comandante Wigea diz que os nórdicos eram “demônios”, homens que
lutavam sem medo da morte, que possuíam poderes sobrenaturais; aquilo tudo
é encarado como sem fundamento pelo monarca e apenas faz aumentar sua
indignação. O rei Ælla II pergunta se o comandante tem medo de morrer; este
responde que sim, mas tinha fé que Deus lhe daria uma segunda vida.
Ælla II leva Wigea para fora, sendo acompanhado por guardas, então
eles chegam diante de um poço revestido com tábuas e cheio de serpentes. O rei
debocha da falta de coragem de Wigea e de sua fé, então ordena que o jogue no
poço (ver imagem 1).

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Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

Figura 1: cena do poço, série vikings. Fonte: https://howardwilliamsblog.wordpress.com

O poço de serpentes, ou cova de serpentes, não consiste numa invenção


do seriado, mas é um suplício de condenação à morte, baseado na Ragnar saga
Loðbrökar, e também descrito na Gesta Danorum. A particularidade de tal forma
de morrer é tema desse texto, pois em ambos os relatos medievais é dito que
Ragnar, após ser capturado pelo rei Ælla II, foi condenado à morte de tal
maneira.
Pelo fato de não se haver uma previsão acerca de quantas temporadas a
série Vikings ainda terá — embora, no ano de 2016, estreia sua quarta
temporada —, não sabemos se Michael Hirst dará ao seu protagonista este
trágico fim, como contado na saga.
Por mais que o rei Ælla II tenha sido uma pessoa real, governante do
reino da Nortúmbria no século IX, as referências históricas a ele associadas não
fazem menção a que o monarca executasse seus inimigos, atirando-os numa
cova de serpentes. Além disso, pouco se sabe acerca de sua vida e reinado, pois
as fontes históricas, como as Anglo-Saxon Chronicles, pouco nos informam sobre
seu governo, restando as menções nas sagas a respeito de seu reinado, as quais

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 68


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

estão imbuídas de um teor lendário (MCGUIGAN, 2015, p. 22).


No entanto, surge a segunda indagação: por que um poço de cobras?
Seria uma invenção escandinava ou anglo-saxônica? Entretanto, além da Ragnar
saga Loðbrökar, outras narrativas de origem escandinava também aludem à cova
de serpentes.
Alguns poemas da Edda Poética trazem referências a tal suplício,
especialmente os poemas que compõem o Ciclo Heroico do rei Atli, uma
referência a Átila, o Huno. No poema Sigurtharkvitha en Skamma, na estrofe 58, a
irmã de Atli, Oddrun, diz que um condenado seria trazido até seu irmão, antes
de ser jogado na cova de serpentes.
No poema Atlakvitha, na estrofe 17, o rei Atli ameaça jogar seu inimigo
Gunnar, rei dos Burgúndios, num poço de cobras. O diálogo entre os dois reis
prossegue pelas estrofes seguintes até que, na estrofe 34, Gunnar é jogado
dentro do poço e finalmente morre. No poema Atlimál, no final da estrofe 55,
faz-se referência ao destino do rei Gunnar ter sido arremessado num poço de
cobras, e ali seu coração foi devorado pelas víboras.
Na Volsunga Saga, nos capítulos 39 e 43, menciona-se a sentença de
Gunnar ao ser atirado num poço de cobras por ordem do rei Atli. No capítulo
39, consta a ameaça, e no capítulo 43 a sentença é cumprida com a morte de
Gunnar. Percebe-se nesses capítulos uma alusão à história narrada nos poemas
éddicos.
Além dessas fontes literárias, existem também fontes iconográficas, como
por exemplo uma estela rúnica (runestone) de Gotland, chamada Klinte
Hunninge I, GFC C9286 (ver imagem 2), datada do século IX, a qual traz várias
cenas. Mas a cena que nos interessa se encontra abaixo do navio, onde se
percebe, no lado esquerdo, uma mulher olhando para um homem dentro de um

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 69


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

“buraco” com cobras; seria a representação de Gudrun vendo seu irmão


Gunnar? (STAECKER, 2006, p. 365)

Figura 2: Estela de Klinte Hunninge I. Fonte: http://www2.rgzm.de/Navis2/Hom

Além da estela Klinte Hunninge I, existem outras representações em


pedra, madeira e pintura que mostram um homem dentro de um poço de
cobras. Entretanto, seriam todas referências a Gunnar ou alguma poderia ser
referente a Ragnar Lodbrok?
Por outro lado, a estela Hunninge I revela que essa ideia da cova de
serpentes é bem mais antiga do que se supõe com base nas fontes literárias, já
que a estela foi datada pertencendo ao século IX, e as sagas e as Eddas datam do
século XIII. Além das duas sagas mencionadas e das Eddas, a historiadora
Guðmundsdóttir, em seu estudo Gunnar and the Snake Pit it Medieval art and
Legend (2012), realizou um vasto levantamento sobre fontes literárias e algumas
iconográficas, nas quais mostram poços de serpentes, torres de serpentes e

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 70


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

cobras usadas como suplício.


Guðmundsdóttir chegou à conclusão de que, em termos de fontes
literárias, encontram-se obras de origem escandinava e germânica datadas entre
os séculos XII e XV, as quais contêm essas características associadas à morte
com cobras. Para Guðmundsdóttir (2012, p. 1022), o poço de serpentes seria
uma alegoria, e não necessariamente um suplício real, embora ela indique que
houve alguns estudiosos que chegaram a procurar evidências que tal suplício
era realmente utilizado — mas as evidências não passam de suposições sem
provas concretas. Por sua vez, ela alega que tal alegoria poderia estar associada
à ideia entre serpente e morte, e a concepção entre serpente e inferno.
Na cultura escandinava, o simbolismo da serpente variou desde a Idade
do Bronze, todavia, para este estudo, optamos por comentá-lo durante a Era
Viking (VIII-XI). Nesse período, a serpente passou a ter vários sentidos, como
estar relacionada com o submundo e com o aspecto de sorrateira, algo visto no
mito do hidromel da poesia, no qual Odin se metamorfoseia em cobra para
adentrar uma caverna, onde reside a giganta Gunnlod, a qual guarda o
hidromel.
A serpente também estaria associada ao xamanismo, relacionada com a
magia e a comunicação com os mortos e o submundo, devido a ser uma criatura
associada com a terra. Logo, o fato de Odin ter se metamorfoseado em cobra
para conseguir chegar à caverna de Gunnlod estaria associado a uma prática
xamânica, na qual os xamãs tendiam a visitar outros mundos e os mortos a fim
de conseguir conhecimento e poderes (LANGER, 2007, p. 66).
Todavia, durante o período viking foram encontrados amuletos em
formato de serpente, os quais estiveram associados com a morte, por aludirem
aos navios drakkar, os quais possuem carrancas com cabeça de dragão, e eram

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 71


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

usados pela elite para se realizar o enterro ou a cremação. As serpentes também


estariam relacionadas com a vida, servindo como amuletos de proteção, pois a
troca de pele realizada pelas cobras era interpretada por diferentes culturas
como ligada à renovação da vida (GRÄNSLUND, 2006, p. 126).
Entretanto, além destes aspectos positivos, a cobra também podia ter
aspectos negativos. Nos mitos, temos os principais exemplos disso, como no
caso de Jormungand, a Serpente do Mundo — uma criatura colossal, filha
monstruosa de Loki e de Angborda, grande inimiga do deus Thor, e, inclusive,
responsável por sua morte, embora Thor morra devido ao veneno. Além desse
antagonismo com o deus do trovão, Jormungand também representa as forças
do caos que irão ser soltas durante o Ragnarök, cujo acontecimento espalhará
veneno sobre a terra e erguerá as ondas como se fossem maremotos.
Porém, o que nos interessa mais a respeito de tentar compreender o covil
de serpentes diz respeito à associação da víbora com a punição e a morte, como
apontada por Guðmundsdóttir. Para isso, as Eddas nos fornecem dois mitos em
particular.
O primeiro mito diz respeito ao castigo de Loki, história essa contada no
final do poema éddico Lokasenna e na Edda em prosa, no Gylfaginning, 50. Os
motivos que levaram Loki a receber seu castigo diferem de uma fonte para a
outra, no entanto, a sentença é a mesma: Loki, após ser capturado pelos deuses,
é acorrentado com as tripas de seus filhos Nari e Narfi, então é colocado sobre
três pedras e as correntes são presas no chão. Sobre sua cabeça, a giganta Skadi
coloca uma cobra, a qual derrama seu veneno na face dele, lhe causando grande
dor.
Nesse mito, vemos o traiçoeiro Loki sendo punido com veneno. Mas o
outro mito que associa cobras com punição diz respeito a um dos lugares da

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 72


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

morte na mitologia escandinava, o salão de Náströnd.


Náströnd, cuja tradução significa “costa dos cadáveres”, é apenas
mencionado em dois momentos nas Eddas: no primeiro momento, tal local é
citado nas estrofes 38 e 39 do Voluspá, e, no caso da Edda em prosa, no
Gylfaginning, 52. Nas duas menções, as referências aos locais são basicamente as
mesmas: Náströnd é um local longe do sol, cujas portas ficam voltadas para o
Norte, onde os assassinos, traidores e assediadores de mulheres casadas são
punidos a vagar por um rio de peçonha, que percorre um salão feito de
escamas, de cujas chaminés cobras gotejam seu veneno. Ali, o dragão Nidhogg
e um lobo devorariam os mortos.
Nota-se na descrição fornecida pelas Eddas que Náströnd é um local da
morte, o único conhecido onde os mortos são punidos por seus crimes. Porém,
nota-se algo mais: normalmente os mitólogos situam Náströnd como localizada
em algum lugar de Hel ou de Niflhel, logo, situado no submundo, isso nos faz
lembrar o poço de serpentes que tecnicamente é um recinto dentro da terra.
Entretanto, se na mitologia escandinava encontramos uma correlação
entre as serpentes com a morte e o submundo (Hel e Nilfhel), Guðmundsdóttir
(2012, p. 1023) também sugere em sua pesquisa que o poço de serpentes
(ormagarðr) talvez não fosse algo concreto, ou seja, não seria um lugar com
cobras propriamente falando, mas sim uma metáfora (kenning) para túmulo ou
cova.
Por exemplo, ela menciona o uso do termo ormagarðr num manuscrito
alemão do século XIII para se referir ao profeta Daniel, conhecido por ter sido
jogado numa cova com leões. Nesse caso, a “cova dos leões” foi nomeada como
ormagarðr (“cova de serpentes”). Na crônica anglo-saxã De gestis regum
Anglorum (1125), William de Malmesbury foi atirado numa cova com um leão

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 73


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

(ormagarðr).
Diferente das cobras, que são animais da fauna britânica, leões não o são,
e é muito improvável que no século XII houvesse algum leão mantido em
cativeiro, logo, ormagarðr parece ter sido uma metáfora para uma cova de
suplício ou uma “cova da morte”, independente de conter ou não víboras.
Sendo assim, talvez a morte de Ragnar Lodbrok num poço de serpentes
tenha sido uma metáfora (kenning), como sugere uma das opiniões de
Guðmundsdóttir, ou talvez um acontecimento inspirado na tradição escrita do
Norte da Europa entre os séculos XII e XV, onde Guðmundsdóttir localizou
várias histórias que dizem respeito a tal suplício.
Nesse ponto, devemos recordar que a Gesta Danorum (XII-XIII) e a Ragnar
saga Loðbrokar (XIII) consistem em manuscritos datados do período que
compreende a maioria das citações sobre poços de serpentes.
Inclusive, não se encontram menções a sua história antes disso, embora
se diga que ele tenha supostamente vivido no século VIII ou IX. Por outro lado,
as referências à lenda de Gunnar e Atli são anteriores à Idade Média Central,
remontando, em termos iconográficos, ao século IX, o que significa que a ideia
de um poço de serpentes é bem anterior à tradição literária, remontando a uma
tradição oral, cuja origem é desconhecida. E talvez possa ter servido de modelo
para outras histórias, o que incluiu a de Ragnar Lodbrok, pois, embora a Ragnar
saga ofereça mais detalhes do que a narrativa da Gesta Danorum quanto à vida
de seu herói, ambas concluem que ele foi executado pelo rei Ælla II num poço
de serpentes.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 74


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

Leandro Vilar Oliveira é mestrando em História (PPGH-UFPB).


E-mail: vilarleandro@hotmail.com

Referências:

ANÔNIMO. Edda Mayor. Tradução e notas de Luís Lerate. Madrid: Alianza


Editorial, S.A., 2004.

ANÔNIMO. Ragnars saga Lodbrokar. Translated by Chris Van Dyke. Colorado:


Cascadian Publishing, 2003.

GRAMMATICUS, Saxo. The first nine books of the Danish history. Translated by
Oliver Elton. London: Nutt, 1894.

GRÄSLUND, Anne-Sofie. Wolves, serpents, and birds. In: ANDRÉN, Anders;


JENNBERT, Kristina; RAUDVERE, Catharina (eds.). Old Norse religion in long-
term perspectives: origins, changes, and interactions. Lund: Nordic Academy Press,
2006.

GUÐMUNDSDÓTTIR, Aðalheiður. Gunnar and the Snake Pit in Medieval art


and Legend. In: Speculum, v. 87, n. 4, 2012, p. 1015-1049.

LANGER, Johnni. O mito do dragão na Escandinávia, parte dois: as Eddas e o


sistema ragnarokiano. In: Revista Brathair, v. 7, n. 1, 2007, p. 59-95.

MCGUIGUAN, Neil. Ælla and the Descendants of Ivar: Politics and Legend in

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 75


Malditas serpentes: um comentário sobre a cena do suplício do poço - Leandro Oliveira 2016

the Viking Age. In: Northern History, v. 52, n. 1, 2015, p. 20-34.

STAECKER, Jörn. Heroes, kings, and gods. In: ANDRÉN, Anders; JENNBERT,
Kristina; RAUDVERE, Catharina (eds.). Old Norse religion in long-term
perspectives: origins, changes, and interactions. Lund: Nordic Academy Press, 2006.

STURLUSON, Snorri. Gylfaginning. Tradução de Jorge Luis Borges e Maria


Kodama. Madrid: Alianza Editorial S. A., 1990.

STURLUSON, Snorri. Heimskringla, vol. I. Translated by Alison Fanley and


Anthony Faulkes. London: Viking Society for Northern Research, 2011.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 76


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

A REPRESENTAÇÃO DO RAGNAROK NA SÉRIE VIKINGS


Angela Albuquerque de Oliveira

O drama histórico aqui analisado trata-se da série televisiva irlando-


canadense “Vikings”, criada pelo produtor e roteirista inglês Michael Hirst e
produzida para o canal a cabo norte-americano History Channel, no Ashford
Studios, Irlanda, com lançamento nos Estados Unidos e Canadá em 2013. Para
fins de análise, foi feito um recorte objetivando examinar a religiosidade
nórdica, concernente ao mito de Ragnarök, sendo este narrado no ciclo de
crenças de concepção nórdica (séculos VIII a XI) do qual trata o fragmento,
arrazoado nessa produção, apresentado, especificamente, no sexto episódio
"Burial of the Dead" (Enterro dos Mortos), da 1ª temporada dessa série.
Sobretudo, será observado como esse evento foi pensado e como cada elemento
foi apresentado, integrando-se ao desfecho final, levando em consideração, para
tal, a complexidade do mito em si, uma vez servir de base para a série.
Iniciaremos nossas postulações a partir do detalhamento do texto
ficcional televisivo, descrevendo cenários e diálogos. Em sequência, faremos um
detalhamento do mito-base a partir de seu desenvolvimento nos manuscritos
que retratam tal mito. Por fim, faremos a apreciação do fragmento selecionado
neste trabalho da série em questão, dito de outro modo, a análise propriamente
dita.
Os cenários, onde o enredo desse seriado se desenvolveu, intencionaram
reproduzir o espaço e o tempo desse mundo histórico que permeia a Era Viking
no ano de 793 d.C., bem como o Eastern Baltic, na costa oriental báltica, onde
Ragnar, fazendeiro e guerreiro, participava de uma expedição de verão,
evidenciado no início do primeiro episódio, em seus aspectos político, social e

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 77


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

cultural. Entretanto, Ragnar reside com sua família perto de Kattegat, região
localizada entre a Dinamarca e a Suécia. Ademais, buscou-se evidenciar,
principalmente, às filmagens das cenas externas, das paisagens físicas e
geográficas irlandesas, somando-se a uma linguagem de cunho mais coloquial,
de fácil compreensão, apresentada no desdobramento desse enredo. É, a partir
desse contexto sociocultural e geográfico, que se encontra inserido o
trecho/fragmento, objeto de nossa análise, o qual trata, como já mencionado, a
respeito da narrativa de Ragnarök e os seus personagens, cenas que serão
descritas em sequência.
Ao iniciar a cena que se reporta a essa narrativa, além do guerreiro e
fazendeiro Ragnar Lothbrok e sua família (a esposa Lagertha e o filho Bjorn),
encontravam-se reunidos, no salão, seu irmão Rollo, Floki — o artesão
construtor de barcos de guerra —, o monge cristão Athelstan, entre outros. Com
a morte do Earl Haraldson, em um duelo com Ragnar, que fora aclamado Earl
Ragnar, este passou a governar aquelas terras.
Após a descrição do cenário, observemos o trecho do diálogo de Ragnar
com o monge cristão em que esse indaga a Ragnar sobre o significado do mito
de Ragnarök:
— Ragnar eu já conheço muita história do seu povo. Mas, me
conte o que é Ragnarök? Já ouvi falar sobre isso várias vezes. Mas,
ninguém nunca explicou o significado.
Ragnar retruca:
— Vamos mostrar a esse cristão ignorante o que é Ragnarök.
Peguem as folhas.

Diante dos que estavam ali presentes, as folhas são amassadas e jogadas
sobre o fogo. Nesse momento, a águia faz um voo por sobre o salão. Em
seguida, a cena apresenta um seiðmaðr, um vidente que descreve os sinais do

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 78


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

Ragnarök, vejamos:
— O crepúsculo dos deuses acontecerá assim: Haverá três anos
de terríveis invernos... E verões de sol completamente negro.
Pessoas perderão toda a esperança e se renderão à ganância, ao
incesto e à guerra civil. Miðgarðsormr, a serpente do mundo, virá
se debatendo do oceano, arrastando as marés e inundando o
mundo. O lobo, o gigante Fenrir, quebrará suas correntes
invisíveis... os céus se abrirão, e, Surt, o gigante do fogo,
queimará as pontes para destruir os deuses. Odin cavalgará pelos
portões de Valhalla para lutar com o lobo, pela última vez. Tor
matará a serpente, mais morrerá do seu veneno. Surt espalhará o
fogo sobre a terra. E por fim, Fenrir engolirá o sol.

Com base na apresentação acima da cena e do diálogo que a envolve, é


possível afirmar que o diálogo de Ragnar com o sacerdote evidencia um
estranhamento mútuo, possibilitando uma leitura sobre as diferenças culturais
entre os povos por eles representados, em que o sacerdote professa a um único
deus (o que é estranho para os demais ali presentes), e Ragnar, os muitos
deuses de sua crença. Vale destacar que tal estranhamento residia, também, em
um histórico de convivência: Athelstan foi um dos monges cristãos
sobrevivente do ataque ao mosteiro, na Nortúmbria, Inglaterra, numa incursão
realizada por Ragnar, em busca de pilhar tesouros. E assim como outros padres,
feito prisioneiro, seria vendido como escravo. O monge passou a habitar a casa
de Ragnar juntamente com sua família, onde, nesse convívio, ouviu relatos
sobre aqueles povos de cultura e religião tão diferentes da sua. A partir daí,
demonstrou interesse em saber, especificamente, sobre o Ragnarök e o seu
significado, pois escutava essa história por muitas vezes sem que ninguém lhe
elucidasse o que poderia representar. Nisso, Ragnar pareceu não querer
acreditar que alguém pudesse ser tão ignorante quanto Athelstan a ponto de
nunca ter ouvido falar a respeito do que representaria o Ragnarök, posto que ele

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 79


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

mesmo, Ragnar, era descendente direto de Odin.


Observando o desenvolvimento da ação, a descrição da narrativa pelo
vidente apresenta quatro sinais, os quais esmiuçaremos, a saber: “o terrível
inverno, a serpente do mundo —Miðgarðsormr — o lobo Fenrir e o gigante do
fogo Surt”, diretamente ligados ao desencadeamento da catástrofe final, o
Ragnarök. Dessa maneira, de forma mais genérica, a destruição do cosmos e a
morte de alguns deuses, apresentada na construção dessa série, encontram-se
associadas à soltura da serpente de Midgard e do lobo Fenrir, e do gigante do
fogo Surt. Esses mesmos eventos são citados nos textos dos poemas Völuspá e
Vafþrúðinismál, da Edda Poética e no Gylfaginning, 51, da Edda em Prosa, ambas
do século XIII.
O primeiro desses sinais, a que se refere esse fragmento, é relativo à
descrição de invernos rigorosos e consecutivos que perdurariam por três anos,
bem como a descrição da ausência de luz (de sol) ao reportar-se aos “verões de
sol completamente negro”. Ressalta-se que “as pessoas perderão toda a
esperança e se renderão à ganância, ao incesto e à guerra civil”.
Apesar do poema Völuspá não fazer referência direta ao grande inverno,
a estrofe 45 anuncia que precederiam, a esse evento, “Eras de machados, de
espadas, de ventos e de lobos”. De modo específico, podemos inferir que a “Era
de ventos” prenuncia as baixas temperaturas e as tempestades desencadeadas
nos invernos por eles provocadas.
Ainda nesse sentido, o poema Vafþrúðinismál (estrofe 26) menciona um
diálogo em que Odín (Gagnrad) questiona ao gigante Vafþrúðnir sobre a
origem do inverno. O gigante (estrofe 27) revela que o pai do inverno é
Vindsval, o vento frio. O poema afirma também que, no fim do céu, vive o
gigante Hrésvelg (estrofe 37) com a aparência de uma águia, e que os ventos

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 80


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

que sopram por sobre todos os homens vêm de suas asas.


Além disso, é relatado que ocorreria um tempo de horrores, descrito no
poema Völuspá (estrofe 45) com contendas entre irmãos, provocando lutas e
mortes, em que os parentes entrariam em discórdias, atos incestuosos e
adultérios. O poema Vafþrúðinismál (estrofe 44) anuncia, como primeiro sinal do
Ragnarök, o “grande inverno”, não se referindo por quanto tempo perduraria. A
Edda em Prosa (1984, 125), no Gylfaginning, também menciona um terrível
inverno, o Fimbulvetr, com duração de três anos, que antecederia o momento
final dos deuses.
Em sequência, no diálogo apresentado, observamos o segundo sinal, que
corresponde à descrição da terrível criatura Midgardsormen, a serpente do
mundo que viria do oceano, “arrastando as marés e inundando o mundo”. A
respeito dessa passagem, o Völuspá descreve à fúria de gigante, em que
Jormungand, a serpente de Midgard ou a Serpente do Mundo, mexe-se no
oceano, trazendo dilúvio e maremoto (estrofe 50). No manuscrito, a profetisa
adverte que essa serpente, o cinto do mundo (estrofe 55), abre sua boca acima
do céu. Para além, o poema Vafþrúðinismál (estrofe 51) faz referência à luta
travada por Tor com Jormungand.
O terceiro sinal versa sobre o lobo Fenrir, que “quebrará suas correntes
invisíveis...”. O relato trata da consequência que estaria por vir quando o lobo
se libertasse. O Völuspá, igualmente, faz referência a Fenrir que rompe com as
correntes, soltando-se (estrofes 47, 49 e 54). Odin seria devorado pelo lobo
Fenrir (estrofe 53) e, posteriormente, vingado por seu filho Vidar (estrofe 55). O
Vafþrúðinismál (estrofe 53) traz relato também semelhante.
O quarto sinal aborda que “Os céus se abrirão, e, Surt, o gigante do fogo,
queimará as pontes para destruir os deuses”. No tocante a esse trecho, o Völuspá

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 81


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

(estrofe 47) alude sobre o parente de Surt, o fogo, como aquele que logo
devoraria o cosmos. Descreve ainda que, da direção oeste (estrofe 51), virão
pelo mar, de barco, os filhos de Múspel, o mundo do fogo, com Loki ao leme; e,
do sul (estrofe 52), desponta Surt trazendo o fogo. Já no Vafþrúðinismál há
breves referências (estrofes 50 e 51) aos deuses que sobreviveriam a Surt.
Retomando a fala do vidente, no diálogo, “Odin cavalgará pelos portões
de Valhalla para lutar com o lobo pela última vez”, o Völuspá (estrofe 53)
menciona esse evento como a “segunda dor de Frigga”, em que Odin será
devorado pelo Lobo Fenrir, porém Vidar cravará no peito de Fenrir a sua
espada, vingando a morte de Odin. A “primeira dor de Frigga” se reporta a
morte de seu filho, o deus Balder, pelo irmão Hoder que, enganado por Loki,
atira-lhe um visco em forma de flecha (estrofes 31, 32 e 33). O Vafþrúðinismál
(estrofe 53) comunica, apenas, que Odin será devorado por Fenrir e vingado por
Vidar.
Ao fazer referência à passagem do diálogo, “Tor matará a serpente, mais
morrerá do seu veneno,” o poema Völuspá (estrofe 55) afirma que Tor, possuído
de raiva, principia uma luta com a terrível serpente. Logo após a façanha de
matá-la, deu nove passos, caindo morto (estrofe 56). Em suma, a morte de
outros deuses é anunciada, a saber: Odin (estrofe 53), Balder (estrofes 54) e o
fim dos deuses de um modo geral (estrofes 47 e 55). No Vafþrúðinismál, há
apenas uma breve referência à morte de Tor (estrofe 51).
A partir dessas considerações, é possível afirmar que a narrativa chega
ao seu ápice anunciando o fim do cosmos em que “Surt espalhará fogo sobre a
terra”. O Völuspá (estrofe 52) descreve que, do encontro entre o fogo e o vento,
“o céu racha-se”, dando início a uma guerra em Midgard; depois, o sol
desaparece, a terra submerge nas águas, as estrelas caem do firmamento e o

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 82


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

fogo se eleva, atingindo o céu (estrofe 57). O Vafþrúðinismál faz referência


(estrofes 50 e 51) aos deuses Vidar e Vali (filhos de Odin) e Modi e Magni (filhos
de Tor) que sobreviveriam quando o fogo de Surt apagasse.
A conclusão desse mito, relatado pelo vidente, anuncia que quando o fim
dos deuses tiver acontecido, conforme detalhado acima, o lobo Fenrir irá
devorar o sol. Essa passagem está descrita tanto no Völuspá, quanto no
Vafþrúðinismál. No primeiro, a profetisa narra sobre a “Era de lobos”, em que
Fenrir, Skol e Hati, seriam responsáveis pela fúria cósmica (estrofe 45). O
nascimento dos lobos, filhos de Fenrir, que devorarão Sól (Sol), Skol, e Mani
(lua), Hati, é citado nesse poema (estrofe 40), bem como que o céu ficaria
tingido de sangue quando o lobo Hati devorasse Mani (estrofe 41). No Völuspá,
apesar de a lua ser posta em maior evidência que o sol, há destaque ao sol
(negro) que voltaria a brilhar no verão.
É pertinente dizer que Fenrir, filho de Loki e Angrboda, serão
responsáveis pela morte de Odin (estrofe 53). Depois, Vídar, filho de Odin,
vingará a morte de seu pai (estrofe 55). No Vafþrúðinismál (estrofe 46), Odin
indaga ao gigante Vafþrúðinir de “onde surgirá um sol, quando Fenrir engolir
Sól?”. Logo, assim como foi visto no trecho do seriado, o Vafþrúðinismál também
denomina o lobo que tragará o sol de Fénrir. De acordo com a tradução de Luiz
Lerate, em nota de rodapé, o lobo Skol é tratado, nessa estrofe, pelo seu nome
genérico Fenrir. Assim sendo, fica esclarecido que, de fato, o lobo Skol, que
consumirá Sól, trata-se de um filho de Fenrir. Antes de ser devorada, essa teria
uma filha que iria substituí-la (estrofe 47). Além disso, o casal de humanos, Lif e
Liftrásir, protegidos sob as raízes de Yggdrasil, daria origem a outras gerações,
assim, povoando o mundo (estrofe 45). Odin fala ao ouvido de Balder no seu
leito de morte (estrofe 54). Esta é a hora final dos deuses (estrofe 55).

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 83


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

A mitologia nórdica é marcada pela narrativa de Ragnarök, “consumação


dos destinos dos poderes supremos, ou ainda, ragnarökkr, crepúsculo dos
poderes supremos” (LANGER, 2012, p. 3). Esse texto profético é citado na Edda
Maior ou Poética e na Edda Menor ou em Prosa, ambas do século XIII,
provavelmente transmitido de modo oral no mundo pré-cristão, séculos VIII a
XI, e, posteriormente, compilado. É pertinente lembrar, segundo Langer (2012),
que já havia, nos séculos VIII e IX, representações visuais sobre a mitologia
nórdica, as quais, em sua maioria, reportavam-se a figura de Odín, mas, apesar
disso não foram encontradas imagens pré-cristãs a respeito do tema do
Ragnarök.
Esclarece Davidson (2004) que a narrativa de Ragnarök se refere a eventos
futuros em que sinais seguidos de desastres na natureza se pronunciariam,
havendo de ocorrer até a submersão do mundo nas águas, anunciando o fim de
todas as coisas e a fatalidade reservada a alguns deuses que lutariam contra os
monstros, na batalha final, em que ambos pereceriam. Sublinha, ainda, que os
filhos dos deuses subsistiriam, repovoando o cosmos. Assim sendo, aconteceria
uma desintegração cósmica do universo para que, em seguida, surgisse um
novo mundo. As forças dos astros e dos fenômenos que os acompanhavam
constituam-se em elementos que provocariam a instabilidade do cosmos e a sua
destruição. Para a referida autora, a destruição do mundo e a liberação dos
monstros faziam parte do pensamento pré-cristãos.
Nesse sentido, baseado nas generalizações de Langer (2013), tal mito
relata que ocorreria uma fúria cósmica, provocada pelos lobos filhos de Fenrir,
Skol e Hati. Em seguida, o gigante Surt espalharia fogo por todo o firmamento.
E ainda, antes mesmo que ocorresse o enfrentamento entre deuses e monstros,
no campo de Vigrid, a abóbada celeste seria consumida pelo fogo.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 84


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

À luz de Bernárdez (2010), o fim do mundo nórdico, o mito de Ragnarök,


não concebe nenhum juízo final, separando os maus dos bons para que os
mesmos possam receber os seus castigos. Assim, desencadeou a batalha final
que se deu entre as forças da ordem, as divindades Ases e Vanes; os espíritos
naturais e os guerreiros do Valhalla; Einhejar e as forças do caos; os gigantes do
gelo, do exército dos mortos de Hel, da deusa do inferno, de Loki e dos lobos.
Diante de todo o caos ali estabelecido, era-se entendida a impossibilidade
de se vencer o confronto, evitando que o freixo Yggdrasill fosse atingido pelas
forças que o destruíria. Observamos, assim, que a narrativa evidencia este fato
dos deuses não poderem salvar-se a si mesmos e ao cosmos, resignando-se a
um destino que denota um acontecimento esperado e natural.
Para a regeneração do cosmos, haveria de se passar por uma destruição
total, livrando-se de todo o caos, para que só então ocorresse a renovação do
cosmos. Desse modo, não haveria outra possibilidade de restaurá-lo senão pelo
seu fim e da morte de alguns deuses, estabelecendo, portanto, a vida desse
universo escandinavo. Somente a alguns filhos dos deuses e a um casal de
humanos a vida foi permitida.
Assim, o Ragnarök, a grande batalha final, se deu através de um
confronto entre as forças das divindades Ases, Vanes, os espíritos naturais, e
dos guerreiros do Valhalla, Einherjar e as forças dos gigantes do gelo, do
exército dos mortos de Hel, da deusa do inferno, de Loki e dos lobos.
A partir de todo detalhamento do mito, além do entendimento sobre a
importância e magnitude desse evento como fonte a respeito da concepção
apocalíptica nórdica, é perceptível que o objeto de nossa análise — o sexto
episódio “Burial of the Dead”, da 1ª temporada dessa série dramatúrgica
(descrita no início das apreciações) — reservou um trecho relativamente curto

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 85


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

para a apresentação do mito de Ragnarök, detendo-se apenas a fazer citações dos


sinais que prenunciariam o fim dos tempos, o que, ao nosso parecer, constou-se
incompleto e pouco explorado em seus aspectos narrativos.
Embora a série tenha sido classificada como um drama histórico, ao
mesmo tempo em que se apresentam elementos ficcionais — referentes à
imprecisão do ano e da localização geográfica em que se passa a história —
deixa a desejar, pois o recorte espaço-temporal em que se insere a religiosidade
nórdica pré-cristã se reflete, essencialmente, no objeto de nossa análise.
Destaca-se, ainda, que os mitos de Balder e de Loki não se fazem presentes no
desenvolvimento dessa narrativa, o que se torna um problema, uma vez que é
fundamental o fato de que o deus Balder, juntamente com seu irmão Hoder,
repovoariam o cosmos, evidenciando a importância desse mito, sendo referido
nos poemas Völuspá e Vafþrúðinismál. Loki, que faz parte da dinâmica desse
texto, não foi sequer mencionado, seja como pai do lobo Fenrir, que irá devorar
Odin, ou da serpente Jormungand, que com o seu veneno atingiria Tor,
mortalmente, mesmo visto como aquele que comandará o exército que lutará
contra os deuses, citado no Völuspá.
Apesar do propósito dessa série televisiva ser retratar a cultura guerreira
nórdica, no fragmento em estudo, a batalha que se daria no campo de Vigrid,
entre Surt e os deuses — de que trata o poema Vafþrúðinismál — não foi
relatada. Além disso, não se descreve sobre a renovação do cosmos após o
Ragnarök, menos ainda de que linhagem seriam os deuses que iriam sobreviver
à catástrofe, repovoando o mundo.
Por fim, cabe frisar, seguindo nossa lógica de apreciação, que em relação
ao cenário e aos efeitos de sonoplastia utilizados nesse fragmento, não se
estabelece uma contribuição com a linguagem que constituiu a sequência da

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 86


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

narrativa que descreve a respeito dos sinais, o que, claramente, poderiam ter
enriquecido o próprio texto, reproduzindo mais que uma citação desses
eventos, precipuamente, aludindo o significado do fim do mundo para essa
cultura. Da mesma forma, as falas/texto dos atores que fizeram parte dessa
plateia não conseguiram repassar a perplexidade sugerida pelo momento do
anúncio da destruição do mundo, restringindo-se a olhares mútuos apenas.
Diante da expectativa da continuidade desse seriado, visto à relevância
dessa tônica, defendemos que um evento a respeito da concepção apocalíptica
da crença nórdica pré-cristã sobre o fim do cosmos e de alguns deuses
mereceria um maior aprofundamento dessa discussão, com vias a melhor
compreensão e caracterização no que se refere à sua descrição textual.

Angela Albuquerque de Oliveira é mestranda em Ciências das Religiões pela UFPB e membro
do NEVE.
E-mail: gel-oliveira1@hotmail.com

Referências:

ANÔNIMO. Edda Mayor. Tradução e notas de Luis Lerate. Madrid: Alianza


Editorial, 1984.

BERNARDEZ, Henrique. Los Mitos Germânicos. Madrid: Alianza Editorial,


2010.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 87


A representação do Ragnarok na série Vikings - Angela Oliveira 2016

DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Deuses e mitos do Norte da Europa: uma


mitologia é o comentário de uma era ou uma civilização específica sobre os mistérios da
existência e da mente humanas. Tradução de Marcos Malvezzi Leal. São Paulo:
Madras, 2004.

LANGER, Johnni. A morte de Odin? As representações do Ragnarök na arte das


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________. Os cometas na Era Viking. In: Notícias Asgardianas, n. 4, março-maio


de 2013.

STURLUSON, Snorri. Edda Menor. Tradução e notas de Luis Lerate. Madrid:


Alianza Editorial, 1984.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 88


História e ficção em Vikings - François Dontaine 2016

HISTÓRIA E FICÇÃO EM VIKINGS


François Dontaine
(Tradução de André de Oliveira)

“I especially had to take liberties with ‘Vikings’


because no one knows or sure what happened
in the Dark Ages. Very little was written then.”
“We wanted to show the real world and culture
o the Vikings from their own eyes.”
Michael Hirst

Se eu não tivesse lido essas duas frases em entrevistas, não acho que teria
arrumado o tempo para escrever este artigo. Segundo Michael Hirst, não se
poderia esperar uma série séria, ou que tentaria ser como tal. Teria sido melhor
abster-se de qualquer entrevista. Em um lado temos o canal History Channel que
é especializado nessas programações ditas “históricas”, com mais ou menos
seriedade, e no outro Michael Hirst que é conhecido pelas suas séries
aproximadamente históricas (“Os Tudors”, “Os Bórgias”), e não seria seu
consultor histórico (e produtor associado) Justin Pollard (“Piratas do Caribes: A
fonte da Juventude”, “Alice no País das Maravilhas” de Tim Burton, “Os
Tudors”) que levantaria a qualidade. O trailer é apenas os créditos da série,
então não tivemos escolha a não ser esperar o lançamento para ver se os nossos
medos eram justificáveis. Desde o primeiro episódio, o tom é dado e a
proporção da discussão sobre a primeira temporada só fica pior.
Com base em alguns textos, como o Gesta Danorum de Saxo
Grammaticus, ou a Saga de Ragnar Calças-peludas, a história começa,
coincidentemente, em 793 e acompanha a história de Ragnar Calças-peludas e
sua família. Atenção, qualquer semelhança com pessoas ou situações existentes

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História e ficção em Vikings - François Dontaine 2016

ou que viriam a existir é coincidência. Na verdade, com a exceção do jogo de


corte de Ragnar e Aslaug, não existem quaisquer outras semelhanças. Apenas
algumas descrições dos textos foram adaptadas com mais ou menos seriedade,
com o fim de servir de fio condutor à construção da história (sacrifícios, prática
funerária, etc.). Com uma verba de 40 milhões de dólares americanos para nove
episódios da primeira temporada e com as técnicas atuais, temos o direito de
pedir mais no nível qualitativo. Se o cenário é muito bem escrito, a parte
material é repleta de erros grosseiros. Utilizar-se de vestimentas histórica e
arqueologicamente compatíveis não custa mais caro do que foi apresentado, e
eles também não são obrigados a usar os mesmos materiais, uma vez que
apenas o visual importa para eles. E o mesmo é válido para o resto, pois os
erros mais visíveis não ajudam em nada à trama. Para o cenário, as pessoas que
visitaram o Kattegat sueco e em Uppsala será surpreendido, o exemplo mais
gritante é o templo de Uppsala, que é encontrado em uma montanha. Deve ser
dito que, por razões fiscais, as cenas exteriores (70% da série) foram filmadas na
ilha Esmeralda, enquanto as cenas internas foram realizadas em um estúdio.
Apenas algumas cenas foram filmadas na paisagem do oeste da Noruega.
Pode-se dizer que não passa de cinema, e que suas influências sobre os
telespectadores é ínfima. No entanto, eles transmitem ideias estereotipadas
sobre os vikings, que têm um impacto direto sobre o espectador. Desde o
lançamento do primeiro episódio, uma nova onda de interesses chegou em
fóruns especializados na reconstituição e evocação do período viking e em
outras redes sociais. Infelizmente, a maioria deles leva a série como uma
referência histórica. Ao disseminar esse tipo de produção e entrevistas do
criador da série, podem impor novos estereótipos que alimentam o mito viking.
Isso é lamentável! O cenário é baseado em uma figura semi-lendária, os autores

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História e ficção em Vikings - François Dontaine 2016

da série deixaram a porta aberta a todas as liberdades, alegando a credibilidade


histórica e arqueológica.
Embora a série contenha muitos erros, o espectador ainda tem o mesmo
prazer com a visão. Os fãs de séries pseudo-históricas vão se deixar levar por
um roteiro eficaz e bem trabalhado, enquanto aqueles mais exigentes se
divertiram dissecando os anacronismos e outras aproximações. Em vista um
relatório da série, pensei em escrever um artigo com a lista de erros da série.
Mas, como na escrita, a atividade se mostrou difícil e parecia não acabar. Não
querendo infligir nos leitores desta coluna muitas páginas para ler, eu decidi
militar a uma amostra.
Para a sinopse, o autor se inspirou no personagem semi-lendário de
Ragnar Calças-peludas. Se nos mantivermos à primeira temporada, o autor
colocou sua influência no ciclo nórdico orbitando no relato desse personagem
feito por Saxo Grammaticus na Gesta Danorum. Pelo menos o suficiente para
dizer em que fontes ele é baseado. A série começa em 793 e conta a história de
Ragnar Lodbrók, guerreiro e pescador, casado com Lagertha e pai de dois
filhos, Björn e Gyda. Ele é igualmente um vassalo de Jarl Haraldson. De acordo
com as fontes escritas, que são mais próximas ao mito do que a verdade
histórica, Ragnarr Lodbrók foi o filho do rei dinamarquês Sigurdr Hringr.
Sendo este último o filho de Ingialld Illråde, é, portanto, da famosa dinastia real
dos Ynglingar, de ascendência divina. Entretanto, de acordo com Saxo
Grammaticus, ele não foi rei, pois é sueco e não dinamarquês. Sobre sua
ascendência, a série mantém o fato de ele descender de Odin, e o Jarl Haraldson
não acreditar nele. Ainda de acordo com a Gesta Danorum, sua primeira esposa
foi Lagertha, a mesma que matou o rei Siward, o avô de Ragnar. Em
contraposição, Lagertha não teria um filho chamado Björn, mas um chamado

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História e ficção em Vikings - François Dontaine 2016

Fridlevus, segundo os textos. No entando, Björn Járnsida seria filho de Ragnar


com sua união com Thóra Borgarhjörtr. Somente Saxo Grammaticus faz menção
a Lagertha. Nos outros textos que são dedicados a ele, sua primeira esposa foi
Thóra Borgarhjörtr. Ao final da primeira temporada, Ragnar tornou-se Jarl,
encontrou Aslaug e se apaixona, apesar de ser casado com Lagertha. Será o
epônimo da saga. A descrição da reunião é quase idêntica ao texto — feito raro
na série. Nós finalmente descobrimos que Ragnar tem um irmão chamado
Rollo… Isso nos deixa imaginando o cenário possível para a próxima
temporada. No que diz respeito a assuntos de ordem material, a série toca o
fundo do poço. Pode-se entender que o script toma certas liberdades com o
mito, a credibilidade e a cultura material (roupas, casas e os locais) da Era
Viking que poderia ter sido minimamente respeitada. Os cenários, assim como
as casas, fazendas ou salões não se parecem com nada dos dados arqueológicos.
Não há nem uma casa longa e os interiores são nem um pouco similares. A esse
respeito, o templo de Uppsala é apresentado como uma apresentação grosseira
de uma stavkirke. Quem dirá as vestimentas? As cores são maçantes, as sessões
são dignas das melhores palavras. Até mesmo os ricos tem vestimentas
semelhantes às dos pobres. A parte da vestimenta está muito longe da
realidade. As roupas de guerra são do mesmo nível, com a sua cota de malha
com cortes mediocremente realizados. Menção especial para a “bússola”
escandinava da série. Fiquei agradavelmente surpreso ao descobrir que a
explicação sobre a sua utilização foi consistente. No entanto, eles podem ter
ganho ao ignorar a pedra do sol que não é atestada até o século XIII. As
tatuagens que proliferam ao gosto dos personagens na série apresenta um outro
assunto de controvérsia sobre os vikings. Exceto por uma vaga descrição de Ibn
Fadlan, não existe nem uma evidência arqueológica ou histórica dessa prática

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História e ficção em Vikings - François Dontaine 2016

no norte antigo.
A configuração geográfica é supostamente a região do Kattegat, ou a área
que se estende a partir de hoje de Jutland à província sueca de Halland. Um
ponto problemático para a filmagem: essa região não possui zonas
montanhosas. Nem os personagens deveriam atravessar uma montanha para
chegar em Uppsala. Sobre animais, Frédéric Hanocque confirmou que as raças
equinas usadas durante as filmagens são incorretas. É o mesmo para as cobras
no poço do rei Ella que são Boas e Pythons. As ovelhas não são da raça correta, e
o mesmo para os gansos. As encenações com o sacrifício de cabras em Uppsala
deveriam ter pelos longos e grandes chifres. Os suínos da Era Vikings também
estão incorretos, sendo que tinham pelos compridos como javalis. E o Irish
Wolfhound somente chegaria na Escandinávia após suas viagens ao oeste.
A análise espiritual é menos crítica do que se poderia pensar. Algumas
partes são muito interessantes e até surpreendentes no contexto da série. No
templo de Uppsala, o escravo cristão Athelstan é surpreendido com a visão de
animais e pergunta o que eles são. Ragnar explica que eles são usados em um
quadro de sacrifício e há nove de cada tipo (cordeiro, porco, cabra e humano).
Essa parte, embora sujeita à controvérsia por anos, é consistente com as
descrições de vários autores como Adão de Bremem, Saxo Grammaticus e
Snorri Sturluson. A cena do sacrifício humano é apresentada como uma
interpretação livre, mesmo se a suspensão do corpo para as árvores se reflete
nos textos e na tapeçaria de Oseberg.
Os detalhes legais de ordem jurídica são cumpridos. Na série, durante a
segunda incursão na Inglaterra, Lagertha mata o homem de confiança enviado
pelo Jarl — homem de confiança que é igualmente um irmão bastardo do Jarl.
Ela se opôs a uma tentativa de estupro de uma mulher local, e ele se virou para

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História e ficção em Vikings - François Dontaine 2016

ela, tentando fazê-la sofrer o mesmo destino. Mas ela o matou. Entretanto,
quando o Jarl perguntou onde está o seu meio-irmão, Ragnar explica o que
ocorreu e é acusado de assassinato. Conforme a lei de Vestrogothie, uma das
peças mais antigas da legislação que temos a nossa disposição para a Suécia, os
casos de homicídio voluntário e involuntário são altamente regulamentados e
previu-se múltiplos cenários. O julgamento na série é bem longe de apresentar a
cultura processual do Norte antigo. Na verdade, basta ler qualquer saga para
perceber. A lei de Vestrogothie estipula que “se uma mulher matar qualquer um,
deve-se buscar seus parentes mais próximos; eles devem pagar a multa ou fugir
para salvar a paz”. As notas de Ludovic Beauchet falam um pouco mais: “A
mulher é, do ponto de vista penal, considerada menor. A mulher não tem nem
uma responsabilidade pessoal e a reparação do delito é, por consequência,
responsabilidade de seu responsável civil”. Finalmente, no duelo judicial
(hómlganga). Essa prática aparece em numerosas sagas islandesas, o mais
conhecido caso é narrado na saga de Kormak. Se os três escudos apareceram na
tela, o resto é, como a série, muito longe da descrição dos textos.

Texto original em francês escrito por François Dontaine e publicado no boletim Valland, n. 6,
2013. Disponível em: <https://www.academia.edu/3828789>.

Tradução de André de Oliveira (PPGH-UFMT/NEVE).

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

HISTÓRIA E CULTURA ESCANDINAVA MEDIEVAL NA TV E NA


UNIVERSIDADE: O PROJETO DE EXTENSÃO “CICLO DE CINEMA
SÉRIE VIKINGS” DA UFSM
Semíramis Corsi Silva
Luana da Silva de Souza

Introdução

Desde o século XVIII e XIX têm sido muito presentes as representações


dos povos escandinavos medievais na literatura e no mundo das artes em geral
(LANGER, 2009, p. 47-57). No século XX essas representações aumentaram,
sendo os vikings, como os referidos povos passaram a ser chamados a partir do
século XIX, personagens de histórias em quadrinhos e de inúmeras produções
cinematográficas.
No entanto, o estudo dos vikings no Brasil ainda é algo alijado dos
currículos da maioria de cursos superiores de História, ainda que os esforços
tenham aumentado nesse sentido, crescendo o número de pesquisadores na
área e tendo mesmo um congresso nacional que busca reuni-los anualmente, o
Colóquio de Estudos Vikings e Escandinavos (CEVE). Mas, mesmo com estes
esforços, a História Medieval que se ensina em nosso país continua sendo, na
maioria dos cursos, a História do Ocidente Medieval, e quando se trabalha
povos não europeus, é dada atenção, em especial, aos árabes. Ainda assim, o
árabe aparece na História Medieval por conta da expansão islâmica e das
Cruzadas, ou seja, por seu contato com a Europa ocidental medieval.
Porém, diante das transformações que a historiografia vem passando nas
últimas décadas; com as críticas e reflexões dentro da História Cultural, quando

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 95


História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

o tradicional conceito antropológico de cultura como mundo concreto e


delimitado de crenças e práticas passa a ser criticado com base na afirmação de
que as culturas são locais de conflitos e integrações (BURKE, 2004); vemos o
despertar do interesse por outras histórias e outros povos que não os
tradicionalmente estudados pela historiografia e presentes nos tradicionais
currículos de História. Assim, outros povos medievais, como os escandinavos,
têm chamado muito a atenção dos historiadores mais atentos a esses debates.
Toda essa discussão historiográfica é fruto de seu próprio contexto,
afinal, como acreditamos, toda história é história contemporânea de certa
forma. Neste sentido, o processo de globalização que vivemos e as contestações
e desmantelamentos das tradicionais afirmações identitárias estão levando a
historiografia a revisar seus objetos, conceitos e teorias.
O mesmo processo cultural que transforma a historiografia, por sua vez,
também desperta a curiosidade e o fascínio do público em geral por outras
culturas menos exploradas ou exploradas de maneira estereotipada nas artes e
mídias em geral. Diante disso, os estudantes que estão chegando nos cursos
superiores de História estão cada vez mais interessados nos povos chamados
por tanto tempo, de forma pejorativa, de “bárbaros”, entre eles os nórdicos da
Era Viking. Tal percepção trata-se de uma observação das autoras deste artigo,
uma delas professora de cursos superiores de História há dez anos e outra
estudante de graduação de História em vésperas de concluir o curso. Portanto,
são duas gerações diferentes de historiadoras percebendo o mesmo processo: a
vontade em se compreender melhor culturas que interagiram com as que
estudamos já tradicionalmente, como o Império Romano (como no caso dos
celtas, germanos, partos e persas, por exemplo), o Império Carolíngio (como no
caso dos escandinavos e árabes, por exemplo) e também o moderno Império

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 96


História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

Português (como a importância dos africanos e indígenas na formação cultural


do Brasil, por exemplo). Isso não significa, de maneira alguma, ignorar culturas
e histórias tradicionalmente inclusas nos currículos dos cursos superiores de
História, significa revisar seus conteúdos e transmissões, percebendo as
interações culturais tão típicas do desenvolvimento histórico humano.
Frente à mencionada curiosidade dos estudantes de História com relação
a “outras histórias”, foi montado a partir de 2014, pelos próprios alunos e
alunas, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), um projeto de
extensão para trabalhar e debater a série televisiva Vikings (History Channel) e
temas históricos sobre a cultura nórdica medieval. O objetivo deste artigo é
relatar e refletir sobre a montagem desse projeto, seu desenvolvimento e os
principais resultados obtidos.

O projeto Ciclo de Cinema Série Vikings da UFSM

Em 2014 um grupo de estudantes de História da UFSM, como já


mencionado, empolgado com a Série Vikings se reuniu com a proposta de
criação do Ciclo de Cinema Série Vikings no âmbito do curso e do
Departamento de História. A priori, como os mesmos não possuíam um
professor especialista para as cadeiras de História Antiga e Medieval, tais
estudantes receberam apoio do então chefe de departamento, Prof. Dr. Carlos
Armani. Tal fato, possivelmente, foi mais um motivo que fortificou para que
neste ano fosse aberto um concurso para a carreira de História Antiga e
Medieval no mesmo departamento. O que mostraria, sem dúvidas, mais um
argumento em favor da importância do trabalho, uma vez que a existência de
diferentes especialistas em um curso de História é algo essencial. A existência

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

de profissionais especialistas em Antiguidade e Medievo nas graduações em


História, por exemplo, possibilita, como bem observou Ana Teresa Marques
Gonçalves e Gilvan Ventura da Silva (2008), a ampliação do olhar para o outro,
distante temporalmente e espacialmente, o que, consequentemente, amplia a
própria noção de identidade e respeito às diferenças.
Diante disso, em 2015 foi nomeada, após aprovação em concurso público,
como professora do Departamento de História da UFSM, uma das autoras
desse artigo, Profa. Semíramis, especialista em História Antiga, assumindo as
cadeiras de Antiguidade e Idade Média. A esta professora, os organizadores do
primeiro ciclo de 2014 se dirigiram pedindo que continuasse o projeto como
coordenadora em 2015.
O objetivo do projeto, desde o primeiro ciclo, foi levantar discussões
sobre a cultura nórdica medieval, a história dos vikings e a maneira como estão
presentes até hoje em nossa cultura contemporânea, especialmente através dos
meios de cultura de massas. Foi pensado, com isso, poder discutir uma
concepção ilustrativa a respeito deste povo por meio da série em diálogo com
obras historiográficas e com a própria documentação e, desta forma, conseguir
construir o conhecimento histórico.
O ciclo de 2014 (1ª temporada da série) obteve um grande e inesperado
público, houve participação não só de alunos do curso de História, mas também
de Filosofia, Ciências Sociais, Artes Visuais, Comunicação, Letras, Engenharias
e outros cursos, além de alunos de outras universidades e pessoas da
comunidade não acadêmica. Primeiramente, foi realizada a exibição de
capítulos da série e, logo após, os debates. Foi debatida a adaptação dos
personagens, suas origens e se eram literários ou históricos. Nesse caso,
podemos citar como exemplo o personagem principal, Ragnar Lodbrok, que

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

aparece nas sagas, poemas antigos e no livro Gesta Danorum, história sobre as
tradições e os feitos dos heróis dinamarqueses, escrita por volta do século XII-
XIII pelo historiador dinamarquês Saxo Grammaticus. Segundo os estudiosos,
não há comprovação sobre a existência histórica do herói Ragnar. Os demais
personagens em destaque também foram estudados e apresentados.
Posteriormente, foram mostrados aspectos sobre a tecnologia militar e naval
utilizadas pelos nórdicos. A respeito da tecnologia náutica, foi ilustrado como
seria a cadeia operatória da construção de diferentes barcos, algo de extrema
importância para os nórdicos expansionistas. Sobre o assunto tratamos do
personagem Floki, que é o responsável por criar um novo protótipo de barco
que permitiu que os vikings do seriado desbravassem o mar aberto.
Aconteceram também apresentações de comunicações sobre religião e mitologia
nórdica, sociedade e questões de gênero. Para finalizar, encerramos com a
discussão sobre a expansão marítima e territorial dos nórdicos da Era Viking.
Em 2015 dois novos ciclos foram organizados, o primeiro (2ª temporada
da série) no final de julho e início de agosto e o segundo (3ª temporada da série)
no mês de novembro. Com a inserção de uma coordenadora participante de
eventos e grupos de pesquisas sobre Antiguidade e Idade Média foi observada
a necessidade de se estabelecer contato com especialistas brasileiros na temática
a fim de aprofundar os debates. Assim, foi convidado o Prof. Dr. Johnni Langer
(UFPB/NEVE) e realizada a conferência virtual “O imaginário dos Vikings no
cinema”, chegando a ter mais de cem participantes presentes para assistir a
mesma. As comunicações do segundo ciclo versaram sobre os contatos entre
anglo-saxões e escandinavos na Grã-Bretanha medieval, funerais vikings, as
valquírias e a representação de gênero, dragões na cultura viking, os
estereótipos vikings no ensino de História Medieval, berserkir e ulfhednar, a

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

apropriação da imagem viking pelo nacional socialismo alemão e as


interpretações iconográficas do monumento pétreo Hammar I. Obtivemos um
grande público e o sucesso foi repetido. A maioria dos temas das comunicações
estava em diálogo com a temporada exibida.
No terceiro ciclo foi aberto com a conferência virtual da Profa. Ma.
Luciana de Campos (UFPB/NEVE), também especialista em estudos nórdicos
medievais, intitulada “A mulher nórdica na Era Viking: debates atuais”. Quanto
às comunicações, novos alunos se propuseram a realizá-las, aumentando o
grupo organizador do projeto. Os temas das comunicações foram sobre o
personagem Harbard nos poemas eddicos Hárbarðsljóð e Grimnismál, mitos
celestes nórdicos e etnoastronomia, o papel feminino na magia entre os vikings,
a cristianização da Escandinávia medieval, a mitologia e o cotidiano no mundo
nórdico, a disputa acerca das origens do povo Rus e o cerco viking a Paris.
Ainda nesse ciclo foi ministrado pelo Prof. Me. Pablo Dobke (PPGH/UFSM e
GEMAM/UFSM) o minicurso “Runemal: onde história e mitologia se
confundem...”. O objetivo do minicurso foi elucidar alguns pontos interessantes
para a compreensão do alfabeto rúnico conhecido por “FUTHARC”.
Ressaltamos que metodologicamente alguns elementos importantes da
relação entre produções cinematográficas/televisivas e História foram sempre
discutidos entre a coordenadora e os organizadores para que fossem levantados
durante os debates. Diante disso, apresentaremos alguns elementos dessa
relação que não deixamos de pensar.

Cinema, História e a série Vikings do History Channel

Um dos grandes atrativos de trabalhar obras

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

cinematográficas/televisivas como a série Vikings para o ensino de História é


que as mesmas atraem muito a atenção dos estudantes não apenas pelo tema
em sim, mas pela linguagem que lhes é familiar. Porém, é preciso perceber
como o grande público atualmente está propenso a consumir obras como essa
de maneira pasteurizada e padronizada. Abordá-las em uma universidade com
estudantes que serão, em sua maioria, professores, possibilita ao aluno
compreender sua linguagem comercial e refletir sobre a mesma (BICEGO,
2004). Portanto, mais uma possibilidade nos é colocada em questão, a de pensar
o cinema enquanto arte e enquanto indústria cultural e posicionar os
participantes em aspectos da própria realidade em que vivem.
Porém, ao trabalhar obras cinematográficas ou séries televisivas que
retratam contextos históricos, como Vikings, visando ao ensino e às reflexões
sobre determinado contexto histórico, a primeira coisa que devemos ter em
mente é apresentar aos alunos que o filme/série não deve ser visto enquanto
imagem da sociedade que retrata, mas da sociedade que o produz. Nesse
sentido, o filme deve ser tomado como resultado da época que o produziu, de
seus problemas, anseios e estratégias de ação conscientes ou não. Os elementos
históricos que o filme/série ambientam podem e devem ser tratados com apoio
de obras de historiadores e documentos, mas o contexto de produção da obra e
seus valores é fundamental de ser trabalhado.
Também estamos de acordo com Robert Rosenstone (2010), para quem
devemos deixar com que os filmes históricos sejam filmes, esperando dele o que
se espera de um filme e não de uma obra historiográfica. Assim, se um filme
histórico apresenta uma “falha” em relação ao que transmite sobre o passado,
enquanto historiadores e professores de história devemos analisá-la dentro da
produção do filme em si, olhando-o como representação.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 101


História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

Partindo desses pontos metodológicos, cumpre apresentar elementos de


produção e de críticas à série Vikings que apareceram durante o projeto. Foram
muitos os pontos em debates, iremos apresentar apenas os destacados.
Comecemos fazendo uma breve apresentação da série.
Vikings é um projeto realizado em conjunto entre Irlanda e Canadá,
escrito por Michael Hirst para o canal de televisão History Channel. A série, em
três temporadas, estreou no dia 3 de março de 2013. Atualmente, o contrato de
gravação foi renovado para a quarta temporada.
Com filmagens na Irlanda, Vikings conta a história de Ragnar Lodbrok,
rei semi-lendário da Suécia e Dinamarca. No seriado, Ragnar (Travis Fimmel) é
inicialmente um jovem fazendeiro casado com Lagertha (Katheryn Winnick),
com quem tem dois filhos. Ragnar participa com o seu irmão Rollo (Clive
Standen) e um grupo de homens de viagens de exploração e pilhagem no
Báltico oriental, mas seu desejo é ir para o oeste, contrariando as ordens do earl
Haraldson (Gabriel Byrne). Ragnar, então, pede o auxílio ao amigo Floki
(Gustaf Skarsgård), que realize a construção de um barco forte e rápido. Ragnar
e seu grupo conseguem chegar à Inglaterra, onde saqueiam o monastério de
Lindisfarne, e retornam a sua terra de Kattegat cheios de tesouros e com
escravos, sendo um destes o monge cristão Athelstan (George Blagden), que se
torna com o tempo o melhor amigo de Ragnar. Athelstan se torna um viking,
passa a se vestir, a guerrear e a seguir hábitos diversos dos nórdicos com que
vive, embora nunca consiga renunciar suas crenças, convivendo com a fé em
Cristo e também nos deuses nórdicos. O tema foi explorado nos debates do
ciclo, pois tratar da diversidade, das identidades culturais, dos contatos entre
culturas, negociações e interpenetrações é algo extremamente presente nas mais
atuais discussões e obras de Ciências Humanas. Athelstan também é um

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

modelo de como as culturas e indivíduos podem manter múltiplas identidades,


algumas vezes em conflito e/ou interpenetrações. Além disso, é interessante
perceber como o protagonista, o viking Ragnar, aceita bem o amigo cristão e
todos seus conflitos, o que faz com que muitos expectadores da série o associem
com uma pessoa moderna que respeita e convive com o diferente, realidade
bem atual, portanto. Esse elemento da elaboração de Ragnar faz com que o
público contemporâneo se aproxime ainda mais do personagem.
A série retrata também a questão da mulher guerreira, algo que chamou
bastante a atenção do público e que talvez tenha sido o tema mais comentado.
Há mais de uma mulher guerreira na série, mas a mais importante é Lagertha,
também registrada pelo historiador Saxo Grammaticus em Gesta Danorum. Na
série, Lagherta é uma skjaldmö (donzela do escudo) e, embora não seja referida
com esse termo na documentação medieval, ela é uma guerreira na obra de
Saxo Grammaticus. Portanto, a série não cria nada de novo que não esteve
presente no imaginário medieval, mas que possivelmente recebeu tanta atenção
das mulheres atuais por ser muito independente e corajosa, uma espécie de
símbolo das lutas feministas contemporâneas. Lagherta, também a exemplo de
tantas mulheres atuais, se separa de Ragnar após uma traição. Destacamos que
não existem evidências arqueológicas da existência de mulheres guerreiras na
Era Viking, embora haja sepulturas de mulheres junto a armas e armaduras, o
que parece estar ligado à afirmação de um status social elevado da sepultada
(OLIVEIRA, 2012). Predominantemente, as mulheres nórdicas medievais
tinham a função de cuidar dos afazeres domésticos. Interessante também foi
perceber como personagens femininas mais tradicionais, como a segunda
esposa de Ragnar, Aslaug (Alyssa Sutherland), não foram bem aceitas pelo
público da série, em especial pelas mulheres, que talvez tenham visto nela um

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História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

papel de submissão e função feminina para a maternidade que muitas vezes


tem sido negado em nossos dias.
Por fim, outro tema que apareceu nos debates em destaque foi o
predomínio da representação dos vikings como guerreiros, o que é uma
imagem muito presente não apenas na série, mas em outras tradições sobre tais
povos. Pensamos esse aspecto enquanto lutas de representações a fim de criar
imagens ora positivas, ora negativas, conforme os anseios dos representantes.
Deixando de lado a existência de agricultores, criadores de animais, sacerdotes,
etc., também existentes e fundamentais nessas sociedades.

Considerações finais

Por fim, concluímos que os resultados do projeto foram positivos tanto


do ponto de vista da construção do conhecimento histórico, como do papel da
extensão na universidade pública, que é proporcionar a expansão do
conhecimento além dos limites da sala de aula e não apenas aos acadêmicos.
Também com este projeto foi possível estruturar e consolidar o Grupo de
Estudos sobre o Mundo Antigo e Medieval da UFSM (GEMAM/UFSM), sendo
que a maior parte dos alunos envolvidos no projeto passou a fazer parte do
GEMAM como estudante ou colaborador, e o público dos ciclos pode conhecer
o trabalho do grupo e participar de seus eventos.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 104


História e cultura escandinava medieval na TV... - Semíramis Silva e Luana Souza 2016

Semíramis Corsi Silva é professora da UFSM e membro do GEMAM.


E-mail: semiramiscorsi@yahoo.com.br
Luana da Silva de Souza é graduanda em História pela UFSM e membro do GEMAM.
E-mail: theluana2010@gmail.com

Referências:

BÍCEGO, M. História a 24 quadros - A História, o Cinema e seu uso em sala de aula.


São Sebastião do Paraíso: Editora e Gráfica São Luiz, 2004.

BURKE, P. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

LANGER, J. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília:


Editora da UNB. 2009.

OLIVEIRA, Ricardo W. M. de. Sutiã de Aço: a representação da mulher


guerreira no filme Como treinar seu dragão. In: II Seminário de Estudos Medievais
da Paraíba, 2012. v. 1. p. 351-358. Disponível em:
<https://ufpb.academia.edu/RicardoMenezes>. Acesso em: 13 de janeiro de
2016.

ROSENSTONE, R. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e


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SILVA, G. V.; GONÇALVES, A. T. M. Algumas reflexões sobre os conteúdos de


História Antiga nos livros didáticos brasileiros. In: História & Ensino, v. 7,
Londrina, 2001, p. 123-142. Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12313>

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 105


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

OS VIKINGS INVADEM A TV:


ALGUMAS ABORDAGENS SOBRE HISTÓRIA E FICÇÃO
Marlon Ângelo Maltauro

A série de televisão Vikings surgiu no canal The History Channel em 2013


tem causado uma sucessão de polêmicas tanto no meio acadêmico quanto no
público leigo. Devido ao seu enorme sucesso, sites da internet tem fervilhado de
especulações a respeito da veracidade do contexto histórico da série. A cultura
nórdica na Era Viking sempre foi um tema muito utilizado pela indústria
midiática, no entanto quase todas as produções constantemente mostravam-na
com imprecisões históricas.
Devido à amplitude de temas que podem ser discutidos a respeito da
série, nossa proposta não é trabalhar um tema em específico, pois vários foram
analisados por outros pesquisadores ao longo deste boletim; o que pretendemos
é abordar de forma genérica alguns dos aspectos mais notórios, bem como
indicar algumas leituras de cunho acadêmico em português a respeitos dos
tópicos.
A primeira cena da série retrata uma batalha onde Ragnar e seu irmão
Rollo derrotam um grupo de guerreiros no leste europeu. Nesse momento o
protagonista tem devaneios no qual vê o deus Odin juntamente com um grupo
de valquírias escolhendo os combatentes mortos na contenda. A representação
de Odin condiz muito com as fontes literárias, as quais o descrevem como um
velho caolho, com um chapéu de abas longas enterrado na cabeça, vestindo um
manto azul ou preto com os corvos Hugin e Munin sobre os ombros, portando a
lança Gungnir. As principais fontes escritas sobre o deus estão contidas na Edda
Poética, Edda em Prosa, Ynglynga Saga, Volsunga Saga e Gesta Danorum.

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Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

Ainda referente a essa primeira cena podemos ver as valquírias levando


as almas dos guerreiros mortos, sendo outro aspecto bem acertado pelo
produtor Michael Hirst, já que a imagem das valquírias aparecem em forma de
espectros, tendo em vista que suas representações são controversas até mesmo
nas fontes escritas, sendo vistas ora como donzelas guerreiras, ora como
entidades monstruosas. No entanto, se em um primeiro momento a ideia de
apresentá-las como espectros é bem acertada, em episódios posteriores
apresenta a segunda esposa de Ragnar, Aslaug, como uma valquíria aos moldes
de uma donzela, mas que não é uma guerreira. As fontes literárias que
descrevem as valquírias muitas vezes são as mesmas que relatam sobre Odin.
Ainda no tocante a religiosidade, a primeira temporada relata a visita ao
templo de Uppsala. A produção se baseia na obra Gesta Hammaburgensis de
Adão de Bremem; seguindo o relato da obra, a série demonstra o templo
adornado com ouro, as estátuas dos deuses Thor, Odin e Frey, demonstra
também os sacrifícios tanto de animais como de humanos, os enforcamentos
realizados nas árvores ao entorno do templo, os ritos orgiásticos destinados a
Frey e os rituais religiosos feitos pelos sacerdotes.
Dentre os problemas apresentados no episódio, inicialmente está sobre a
própria veracidade da existência do templo em Uppsala tal como descrito por
Bremem, já que muitos pesquisadores não são unânimes em afirmar que ele
realmente tenha existido, sendo que o próprio cronista não foi testemunha
ocular dos fatos que descreveu. Os rituais apresentados no episódio, de maneira
geral, são estereotipados, alguns lembrando em muito com missas e ritos
cristãos. Uma das maiores imprecisões da série certamente são os próprios
sacerdotes, tanto do templo quanto o residente na vila; os de Uppsala lembram
muito com alguns monges cristãos, todos com a cabeça raspada e vestidos com

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Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

roupas semelhantes a batinas, já o sacerdote da vila é apresentado como um ser


monstruoso, sendo visivelmente uma cópia dos oráculos apresentados no filme
300 de Esparta.
O consenso entre pesquisadores é de que não havia uma classe
profissional entre os nórdicos, sendo os cultos domésticos realizados pelo chefe
da família e os públicos por líderes locais, já as práticas divinatórias e magia
eram praticadas tanto por homens e mulheres versados nestas artes e descritos
em grande quantidade nas sagas.
O Gesta Hammaburgensis de Adão de Bremem não possui tradução
integral para o português, o trecho da obra em que descreve o templo de
Uppsala foi traduzida por Rodrigo Mourão Marttie — este pesquisador também
fez a análise do referido templo (2015, p. 487-491). A respeito dos templos e
edifícios no período viking, dispomos da análise de Munir Lufte Ayoub (2015,
p. 491-494). Tais estudos estão contidos no já citado “Dicionário de Mitologia
Nórdica”. A respeito das práticas divinatórias e do uso da magia, dispomos do
livro “Na trilha dos Vikings” de Johnni Langer.
O último aspecto ligado à religiosidade que pontuaremos se refere aos
rituais de sacrifício presentes na série. Rituais de sacrifício tanto de animais
como humanos são bem atestados nas fontes escritas e arqueológicas. Os
sacrifícios apresentados no templo de Uppsala e o feito por Lagertha, embora
estereotipados, apresentam uma certa consistência, analisadas em artigo inicial
neste mesmo boletim.
Talvez uma das maiores incongruências da série é o fato de o monge
Athelstan não ter sido sacrificado (primeira temporada), e um homem livre
tendo tomado seu lugar. Em uma sociedade estratificada como era a nórdica na
Era Viking, escravos ou criminosos eram as vítimas preferenciais para

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Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

imolações e, embora qualquer pessoa pudesse se oferecer para ser sacrificada,


dificilmente a vida de um escravo cristão seria substituída pela de um
guerreiro.
A obra Gesta Danorum de Saxo Grammaticus não possui tradução para a
língua portuguesa. Referente à religiosidade e às formas de sacrifício, Johnni
Langer desenvolve no primeiro capítulo (2009, p. 17; 44) de seu livro intitulado
“Deuses, Monstros, Heróis”, um excelente estudo sobre essa questão.

Discrepâncias ligadas às incursões

Michael Hirst inicia a série abordando o episódio que historicamente deu


início à Era Viking, o ataque ao mosteiro de Lindisfarne ocorrido em 793 d.C. na
costa nordeste da Inglaterra. O ataque foi muito bem reproduzido,
demonstrando uma investida rápida, objetivando saquear as relíquias do
mosteiro. Também foi bem acertado a irrelevância dos vikings a respeito dos
objetos considerados sagrados pela cristandade, vendo-os apenas como coisas
lucrativas.
Se por um lado o produtor descreve com certa propriedade o saque ao
mosteiro, por outro demonstra uma incongruência ao creditar a Ragnar a
descoberta de novas terras ao Oeste, já que historiadores são unânimes ao
afirmar que os nórdicos tinham contato com o Oeste europeu antes mesmo da
Era Viking. Ao contrário da descoberta da Islândia, Groelândia e Vinland
(América), cujos descobrimentos são creditados a determinados personagens, o
relato da chegada à Inglaterra não descreve quem era o comandante da
expedição, no entanto é fato que não foi Ragnar Loðbrók.
Ragnar Loðbrók é considerado um personagem semi-lendário, que

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Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

supostamente viveu no século IX, sendo líder da expedição viking que saqueou
a cidade de Paris em 845 d.C., vindo a morrer em 865 d. C. As aventuras de
Ragnar foram registradas na Ragnars Saga Loðbrókar e Ragnarssona þátt. Ele
também é mencionado na Heinskringla saga e na Gesta Danorum, não havendo
nenhuma destas obras em português. Uma breve observação no tocante às
datas em que ocorreram o ataque à Lindisfarne em relação à invasão à Paris, é
suficiente para percebermos a incongruência da série, já que existe um lapso de
setenta anos entre uma data e outra. No tocante a isso ainda temos a conquista
da Normandia, realizada por Rollo em 911 d.C., que embora ainda não tenha
sido mencionada em nenhum episódio, possivelmente será tema da quarta
temporada. Relacionando o ataque à Lindisfarne com a conquista da
Normandia, o lapso é ainda maior, sendo de cento e dezoito anos.
De maneira geral fica claro que o roteirista não tem nenhuma
preocupação com a cronologia dos acontecimentos históricos. Seu escopo é
elencar os acontecimentos mais audazes e impressionantes da história e da
mitologia da Era Viking, objetivando incrementar o enredo da série e
atribuindo-os a Ragnar. O objetivo do roteirista fica bem evidenciado no
episódio em que se desenrola o cerco de Paris. Depois de algumas tentativas
frustradas, Ragnar finge estar gravemente ferido, pede para ser batizado; caso
morra, para ser enterrado na igreja. Após seu suposto falecimento é levado ao
local onde sai de seu caixão conseguindo obter êxito. O engodo apresentado na
realidade foi supostamente feito por Hasting e não Ragnar, segundo o
historiador Johannes Brøndsted. Em seu livro “Os Vikings”, Hasting chega à
cidade italiana de Luna acreditando ter chegado em Roma; lá seus
companheiros contam que ele havia morrido como cristão e reivindicam o
sepultamento na igreja da cidade. Durante o velório Hasting levanta do caixão,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 110


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

mata o bispo e junto com seus companheiros saqueia a cidade (BRØNDSTED,


sd, p. 151).
Outros dois temas que têm suscitado discussões por parte dos
historiadores, referem-se às vestimentas usadas nas incursões e o cristal
utilizado como bússola solar para navegação. No que concerne ao vestuário
bélico, o que chama a atenção nas batalhas da série é o fato de eles praticamente
não utilizarem nenhuma proteção. Embora haja o debate acadêmico sobre as
vestimentas, todos são unânimes em afirmar que era comum o uso de cotas de
malha e capacetes cônicos. Se por um lado não é mostrado nenhum
equipamento de proteção, ao menos os produtores da série não repetiram o erro
de tantos outros filmes referente aos famosos elmos com chifres. Dentre as
obras que versão sobre a vestimenta, dispomos do trabalho traduzido para o
português de James Graham-Campbell, chamado “Os Vikings”, o qual possui
um artigo sobre as guerras (2006, p. 38-57) e outro sobre o vestuário (2006, p.
67). Quanto ao elmo com chifre e os falsos estereótipos, o capítulo “A origem
dos estereótipos sobre os vikings” (2009, p. 133-143) do livro “Deuses,
Monstros, Heróis” de Langer é bem elucidativo.
As pedras solares também têm sido tema de inúmeras discussões entre
pesquisadores que não descartam a hipótese de elas terem sido utilizadas pelos
vikings. Por enquanto as suposições mais aceitas são as de que a orientação era
feita pela posição do sol e das estrelas, utilizando gnômons solares para marcar
a latitude. Em dias nublados as hipóteses são as de que os vikings se guiavam
por pássaros migratórios, ou, como descreve Ian Atkison em seu livro “Los
barcos vikingos” — obra sem tradução —, havia a possibilidade de corvos
serem levados nas embarcações — caso os marinheiros se perdessem, ao soltar
as aves, se houvesse terra, elas voariam em sua direção (1990, p. 6).

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Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

As representações das mulheres e crianças

A primeira temporada demonstra alguns aspectos corretos sobre as


mulheres, onde o enfoque recai sobre Lagertha, representando a população que
vivia nas fazendas como pessoas livres e Siggy, demonstrando a aristocracia.
Em um primeiro momento o papel de Lagertha se assemelha com os
indícios históricos. Quando Ragnar sai para suas empreitadas, ela fica
responsável pela tutela da fazenda. A sociedade nórdica era muito estratificada
e com papéis de gênero bem definidos, sendo responsabilidade das mulheres os
afazeres domésticos bem como o cuidar das crianças (MALTAURO, 2005, p. 34).
Grande parte desses afazeres são demonstrados na série. Uma cena que chama
a atenção é quando Ragnar e seu filho deixam a fazenda e esta é invadida por
dois homens. Segue então uma luta entre eles e Lagertha, que os expulsa
demonstrando certa destreza marcial. Pesquisadores acreditam que as mulheres
nórdicas poderiam receber um certa instrução marcial, já que as incursões e
expedições faziam com que o homens ficassem longos períodos fora de casa,
sendo essencial que elas soubessem se defender. Na ausência do homem, a
mulher ficava encarregada da autoridade doméstica; o símbolo dessa
autoridade era representado pelo molho de chaves que ela carregava preso ao
cinto (LANGER, 2009, p. 175).
Inicialmente a retratação de Siggy também é similar aos dados históricos.
Sendo uma mulher da nobreza, ela se dedica aos afazeres domésticos próprios
dessa casta, que envolvia servir bebidas, tear e bordar; outras atividades
domésticas eram realizadas por servas. O comportamento de Siggy condiz com
as fontes históricas, sendo uma mulher que se submete à autoridade do marido,
atuando como conselheira, agindo de modo a persuadi-lo e às vezes manipulá-

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 112


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

lo. Na maioria das cenas em que os guerreiros estão reunidos no salão, Siggy
faz sua voz ser ouvida por meio de seu esposo de forma a não sobrepor sua
autoridade.
Se de início o papel das mulheres é bem representado, o mesmo não
ocorre no decorrer do seriado, que se envereda pelo fantástico e fantasia.
Referente às representações cinematográficas relacionadas às mulheres nórdicas
medievais, dispomos do estudo de Josyleia Almeida no estudo “Ficção e
História: aspectos e representações das mulheres escandinavas nas apropriações
cinematográficas” (2012, p. 355-389).
No decorrer do seriado Lagertha se divorcia de Ragnar, se casa
novamente e passa a ser jarl (conde) de uma região. Tais fatos realmente
poderiam acontecer entre os nórdicos, onde diversos historiadores atestam que
as mulheres poderiam pedir divórcio, ter propriedades e bens legais, bem como
havia a possibilidade de se tornarem poderosas com a herança de seus maridos.
No entanto, o fato de ela se tornar guerreira e participar de incursões é algo não
comprovado nas sociedades da Era Viking. Como salientamos anteriormente, as
relações de gênero eram bem definidas nessa época e região.
A jornada de Siggy também comete muitos equívocos, do ponto de vista
histórico. Após Ragnar matar seu esposo, o jarl Haraldson, e assumir o poder,
as hipóteses mais compatíveis com o destino de Siggy na série seriam ela ter
sido assassinada junto com seu marido, pedir para que fosse sacrificada para
acompanhá-lo na morte, se tornar escrava ou ser exilada. Porém, ela se torna
aldeã livre e vira amante de Rollo. No decorrer da trama Siggy tem uma série
de relações adúlteras, buscando vingança ou a volta ao poder. Diversos
historiadores descrevem que embora pudessem haver adultério entre os
vikings, eles eram raríssimos por parte das mulheres, já que a punição para isso

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 113


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

era uma morte humilhante.


Outra incongruência relacionada às mulheres aparece com Porunn, que
surge como uma escrava, ganha a liberdade, se torna guerreira e casa com
Bjorn. Em uma sociedade estratificada como a nórdica, escravos pertenciam à
mais baixa camada social. Obviamente que escravos poderiam ganhar a
liberdade, porém virar guerreira e se casar com um membro da nobreza é
totalmente descabido; o mais provável era que uma escrava se tornasse
concubina de algum nobre. A personalidade de Porunn é de um gênio
indomável, não aceita a possibilidade de não se tornar guerreira, desobedece e
insulta seu marido, representando uma transgressora das regras sociais por
excelência, algo que seria inaceitável entre os escandinavos da Alta Idade
Média.
Com relação às crianças, suas representações são de modo geral bem
corretas. Embora as fontes citem as crianças de modo muito sucinto, tornando a
reconstituição delas algo penoso para os pesquisadores, é pertinente deduzir
que ajudavam nos afazeres domésticos, que a taxa de mortalidade infantil era
alta e que elas eram submetidas à autoridade do pai. Nas classes mais distintas
da sociedade, a educação dos meninos envolvia um conjunto de habilidades
físicas e intelectuais que incluíam técnicas de luta, equitação e natação, bem
como aprender poesia, runas e um jogo de tabuleiro similar ao xadrez. Parte do
exposto acima é demonstrado na série.
Dentre as cenas envolvendo crianças na série, dois eventos que mais
chamam a atenção são a passagem de Bjorn para a vida adulta e a recusa de
Ragnar pelo filho recém nascido que apresenta deficiência.
Tanto o rito de passagem para a vida adulta quanto a idade em que ela
ocorria são temas de debates entre historiadores. Muitos acreditam que não há

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 114


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

nada que ateste um rito de passagem, embora não descartem a possibilidade de


ter ocorrido algum tipo de provação, o que torna o episódio impreciso do ponto
de vista histórico. Quanto à idade para o menino ser considerado homem, ela
poderia variar dependendo do status social, mas no geral ocorria entre os
quatorze ou quinze anos, embora não possa ser descartada que ela poderia
ocorrer mais precocemente, o que concede uma certa veracidade ao episódio.
A respeito do abandono do filho recém nascido por parte de Ragnar, ao
que tudo indica, esse tipo de situação ocorria entre os nórdicos e era uma
decisão que dependia exclusivamente do pai, sendo que as crianças eram vistas
como filhos ou filhas do pai, nunca da mãe, sendo responsabilidade dele dar os
nomes, como também era sua prerrogativa rechaçar a criança recém nascida,
que poderia ser abandonada em algum local ficando à mercê dos animais
selvagens.

Considerações Finais

A série “Vikings”, como toda obra produzida pela indústria cultural, não
pode ser vista como um instrumento de formação educacional, não assume fins
didático-pedagógicos, ela utiliza a História como um produto de
entretenimento. Embora a série demonstre certos aspectos condizentes com os
dados históricos, fica claro que ela produz e reproduz um conjunto de pseudo
informações, projetando valores, crenças, preceitos, modos de agir, pensar e
valorizar dentro de uma visão de mundo atual e de forma massificadora.
Uma enorme quantidade de sites na internet tem postado entrevistas
com o produtor Michael Hirst, nas quais ele é enfático ao dizer que se a série
fosse um relato histórico, atingiria apenas centenas de pessoas, como produto

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 115


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

da cultura pop ela atinge milhares. Ele também relata que muitas cenas foram
produzidas erroneamente do ponto de vista histórico de propósito, justamente
para abranger um público maior, o que a torna mais atraente para as mais
variadas faixas etárias.
Embora a série apresente uma pseudo representação sobre o passado,
fazendo com que o público leigo acredite ser uma representação realista da
história, ela também está suscitando cada vez mais informações sobre a
sociedade nórdica, basta uma breve observação no número de acessos de blogs
sobre o assunto para confirmarmos a alegação. Se por um lado as imprecisões
históricas apresentadas transmitem uma idéia errônea aos expectadores sobre
os vikings, por outro a popularização nunca foi tão abrangente, e apesar de boa
parte da comunidade acadêmica criticar de maneira incisiva a série, ela está
abrindo espaço para que mais pessoas se interessem pelo tema, dando a
oportunidade para futuros estudos sérios e elucidativos para o público.

Marlon Ângelo Maltauro é especialista em História pela FAFI-UV e membro do NEVE.


E-mail: marlonmaltauro@yahoo.com.br

Referências:

ATKISON, Ian. Los barcos vikingos. Madrid: Ediciones Akal, 1990.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 116


Os vikings invadem a TV: algumas abordagens sobre História e ficção - Marlon Maltauro 2016

AYOUB, Munir Lutfe. Templos e Edifícios Religiosos. In: LANGER, Johnni


(org.) Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra,
2015.

BRØNDSTED, Johannes. Os Vikings. São Paulo: Hermus, s.d.

DAVIDSON, Hilda R. Ellis. Deuses e Mitos do Norte da Europa. São Paulo:


Madras, 2004.

GRAHAM-CAMPBELL, James. Os vikings. Barcelona: Folio, 2006.

LANGER, Johnni. Deuses, Monstros, Heróis: ensaios de mitologia e religião viking.


Brasília: Unb, 2009.

_____. Odin. In: LANGER, Johnni (org.) Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos,
mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015.

MALTAURO, Marlon Â. A Representação da Mulher Viking na Volsunga


Saga. In: Revista Brathair 5(1) 2005. Disponível em:
<http://brathair.com/revista/numeros/05.01.2005/mulher_viking.pdf>.

MARTTIE, Rodrigo Mourão. Adão de Bremem. In: LANGER, Johnni (org.)


Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra,
2015.

_____. Templo de Uppsala. In: LANGER, Johnni (org.) Dicionário de Mitologia


Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015.

PAGE, Raymond Ian. Mitos nórdicos. São Paulo: Centauro, 1999.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 117


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

LÃ, SEDAS E ADORNOS:


A INDUMENTÁRIA FEMININA NA SÉRIE VIKINGS
Luciana de Campos

A série televisiva “Vikings” apresentou ao público uma série de


personagens femininas que imediatamente cativou o público seja masculino,
seja feminino. Personagens marcantes: valentes, destemidas, não hesitam em
expressar o que sentem ou pensam seja verbalmente, seja empunhando uma
espada. As mulheres apresentadas na série refletem muito dos desejos e anseios
das jovens mulheres — também dos homens! — contemporâneas espectadoras
da série. Desde a primeira temporada as personagens femininas ganharam um
grande espaço na narrativa televisiva e são peças fundamentais na trama.
Essas mulheres descritas na série, além de suas características
psicológicas singulares, também são marcantes pelos trajes que utilizam nas
mais variadas situações, que muitas vezes não estão em consonância seja com o
ambiente, seja com a situação que está se desenrolando na trama, e muito
menos com a indumentária feminina da Era Viking. Esta que atualmente recebe
especial atenção de arqueólogas, historiadoras entre outros pesquisadores
principalmente na Suécia onde o estudo e a reconstituição de trajes e acessórios
femininos e masculinos da Era Viking têm sido largamente estudados.
Na primeira temporada uma personagem que chama muito a atenção
talvez seja Siggy, interpretada pela atriz canadense Jessalyn Sarah Gilsig e que
representa o papel da esposa do Jarl Haraldson, interpretado pelo ator Gabriel
Byrne. Naquele momento da série, Siggy é a mulher mais poderosa, rica e
importante da comunidade, status esse conferido pelo seu casamento com o jarl.
A personagem comporta-se como uma típica “esposa aristocrática” por

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 118


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

excelência: seus modos de agir e de se comportar, suas vestes e joias são as


mais luxuosas e extravagantes, pois esses são os distintivos sociais mais
significativos para uma mulher daquela posição e refletem tanto o poder do
esposo como o seu próprio advindo do matrimônio. Portanto, ostentar roupas e
joias caras e, consequentemente, únicas na comunidade vai além da vaidade: é
um demonstrativo de todo o poder político, administrativo e também militar do
jarl que está refletido nas vestes e joias de sua esposa.
Em uma cena de banquete na primeira temporada da série, no momento
em que o Jarl recebe a visita de Ragnar, a personagem Siggy recebe alguns closes
que mostram com detalhes a roupa que veste para aquela ocasião. Todos os
homens e as demais mulheres que estão presentes no salão naquela noite estão
trajados com roupas pesadas e quentes usadas durante o inverno, pois a cena se
passa justamente nessa estação. Mas contrariando a regra, Siggy não utiliza
uma indumentária apropriada aos rigores do frio escandinavo. Ela traja um fino
vestido que parece ser confeccionado em seda com um longo jabot (neckwear)
dourado, confeccionado aparentemente com fios metálicos — que dão a
impressão de serem finos fios de ouro tecidos — e alças de metal que lembram
uma espécie de colar conhecidos como “afogadeira”, pois está bem rente ao
pescoço. O vestido e os acessórios que compõem o visual da personagem
reforçam seu status social elevado. O vestido da esposa do jarl é diferente de
todos os vestidos que aparecem naquela cena: é o mais chamativo entre todos e
foge do padrão comum da indumentária nórdica feminina que era composto
pelo côte — uma espécie de túnica confeccionada em linho ou lã penteada bem
fina, utilizada somente pelas mulheres mais ricas, pois os tecidos utilizados
eram mais elaborados e preparados. As mais pobres também utilizavam com
côte mais simples de lã ou linho grosseiro que não recebia nenhuma espécie de

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 119


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

tratamento ou de tingimento.
O surcôte, ou avental, que podia ser colorido, era confeccionado em lã ou
linho e preso por broches de metal trabalhado em filigranas dos quais pendia
um colar de contas de vidro, metal, ossos, conchas, pedras preciosas e âmbar.
Essa vestimenta típica feminina era utilizada por todas as mulheres de todas as
idades: o colar e os broches, quanto mais trabalhados fossem, quanto mais raros
fossem as contas utilizadas na sua confecção, demonstravam que a sua
proprietária era rica, e os tecidos utilizados também eram um distintivo que,
além de refletir a riqueza da mulher que o usava, proporcionava conforto e
calor suficiente para enfrentar o inverno — diferentemente dos vestidos mais
rústicos utilizados pelas mulheres mais pobres, que muitas vezes forneciam
pouca proteção e calor. Um vestido de tecido fino e que cobrisse o corpo
convenientemente para protegê-lo do frio era inviável, mesmo que esse fosse
um grande distintivo social.
A indumentária de Siggy chama a atenção não somente pela
extravagância dos tecidos e dos acessórios, mas principalmente por estar em
discordância do restante do vestuário feminino, colocando dessa forma a sua
personagem em evidência. A licença poética dos figurinistas no contexto da
série — e apenas nele — é perfeitamente aceitável pois trata-se de uma ficção, e
também é preciso levar em conta que uma das intenções da série nesse
momento é reforçar a importância política e social da personagem, além de
conferir a esta um exotismo que a torna diferente das outras mulheres, o que
condiz perfeitamente com o seu status. Ao jarl e à sua família tudo é permitido!
Abaixo analisamos duas imagens da personagem Siggy portando o
vestido que descrevemos acima. Podemos observar que na primeira imagem a
personagem também utiliza uma espécie de adorno na cabeça, fazendo lembrar

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 120


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

uma coroa que circunda toda a cabeça e, no alto da testa, sobe ao alto,
prendendo os cabelos e deixando que as madeixas caiam soltas pelos ombros,
conferindo à personagem um adorno exótico a mais e contrariando os adornos
capilares costumeiramente utilizados pelas mulheres casadas — que é o caso
específico de Siggy —, que eram tranças variadas e muito elaboradas, muitas
vezes combinadas com nós e pequenas tiras de couro ou tecido. O uso do véu,
ou mesmo lenço, que observamos em reconstituições contemporâneas podem
ser uma variação regional, o que necessariamente não explica se a mulher que o
usa é solteira ou casada, e, apesar de serem citadas nas sagas islandesas, até o
presente momento não foram detectadas pela Arqueologia. Uma outra
explicação para o uso desse adorno seria uma possível influência cristã já no
final do período viking.

Figura 1: Cena da primeira temporada da série Vikings. Fonte: http://stagedoordish.com/wp-


content

Podemos observar o adorno utilizado na cabeça de Siggy como um


acessório que faz às vezes de uma coroa e reforça ainda mais sua posição. As

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 121


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

alças do vestido são de metal que, além de parecerem desconfortáveis, também


não existiam na indumentária feminina nórdica, ainda mais um vestido de alças
usado em um local onde a temperatura é muito baixa durante boa parte do ano.
Mesmo dentro da casa, com as lareiras acesas, seria muito desconfortável
utilizar uma peça assim, mesmo que ela fosse utilizada apenas para demonstrar
poder, riqueza e — por que não dizer? — exotismo. Mas não só o vestido era
demonstrativo de riqueza e os colares extravagantes que pendiam entre os
broches que seguravam os aventais mostravam o quanto a mulher que o usava
era rica. As contas de vidro e âmbar eram trabalhadas e quanto mais rica e
poderosa fosse a mulher mais contas caras e raras estariam em seu colar. Outro
distintivo que certamente a esposa de um jarl ostentaria em seu traje como um
acessório de poder seria o molho de chaves dos baús e armários onde se
guardavam as provisões, as agulhas dos teares, as lãs para serem tecidas e
outros objetos de valor. Quanto maior fosse o molho de chaves que uma mulher
carregava, maior seria o seu poder na comunidade. Esse detalhe não é
encontrado na roupa de Siggy. A esposa do jarl, mais do que demonstrar o seu
poder pela sua indumentária, demonstra um excesso de sensualidade, e
naquela cena de banquete ela parece mais preocupada em seduzir com o olhar,
com os cabelos soltos e os braços nus do que com as vestes típicas de uma
mulher nórdica que na mesma cena são usadas pelas outras mulheres que estão
no salão, sejam elas esposas de outros guerreiros, sejam serviçais encarregadas
de servirem a comida e a bebida aos comensais. Para reforçar essa imagem de
sensualidade e sedução, Siggy segura um pequeno xale brilhante e transparente
que envolve os seus braços — essa peça do vestuário também era muito
utilizada como um agasalho envolvendo todo o tórax e os braços, e muitas
vezes até a cabeça, tanto por mulheres como por homens, para garantir que as

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 122


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

roupas ficassem secas e protegê-los do frio. Mas aqui o xale ganha uma outra
conotação com a personagem: de velar/revelar o corpo como uma peça a mais
no jogo de sedução que a esposa do jarl parece querer jogar com os homens e
até com o próprio esposo que está presente no salão.
Na outra imagem que analisamos, que se encontra abaixo, é possível
observar como o contraste entre a indumentária feminina usada por Siggy que
remete à sensualidade e leveza e de forma alguma combina com os rigores do
inverno nórdico com a do jarl que está ao seu lado. Já o esposo de Siggy, o jarl
Haraldson, está totalmente coberto e agasalhado mesmo dentro dos salões onde
o ar é aquecido pelas lareiras e fogões e também pela presença das pessoas
troando o ambiente quente e abafado. O jarl tem sobre os ombros uma pele
negra que parece ser de ovelha, que lhe serve como manto e está preso com dois
grandes e bem trabalhados broches de metal, que reforçam o seu poder e
riqueza. Ele veste uma túnica grossa e bordada que além de aquecê-lo também
pode ser vista como um traje de luxo que alia conforto, beleza e riqueza.
Observamos também que o jarl está sentado em uma grande cadeira, e no
encosto há uma pele de animal que oferece conforto e calor. Ao contrastarmos
as duas personagens, podemos observar que há uma discrepância entre a
indumentária masculina e feminina do casal mais poderoso e rico desse
momento da série: Siggy usa um vestido leve com adornos metalizados que não
eram utilizados na Era Viking — muito menos uma esposa e mãe apareceria em
público com os longos cabelos soltos sem aos menos estarem trançados com as
tradicionais tranças utilizadas pelas mulheres mais poderosas daquela
sociedade, e que já foi tema de pesquisa de nossa parte. O vestido
confeccionado com um tecido leve e preso por colares de metal que lembram
correntes finas deixando à mostra os braços não é adequado para o clima frio e,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 123


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

quando observamos os dois personagens lado a lado, constatamos que estão em


dissonância com o ambiente: o jarl está vestido de maneira adequada, e o que
difere a sua indumentária dos outros homens presentes no salão são apenas o
tecido e os adornos de suas vestes. Os outros homens também estão trajando
túnicas, calças e botas para se protegerem do frio e alguns também utilizam
mantos presos por broches. O que difere as roupas dos outros homens das do
jarl é apenas a quantidade de adereços e bordados. Quando observamos as
outras roupas femininas, vemos que a roupa da personagem Siggy usada
naquele momento nada mais é do que uma forma de destacar a personagem e
torná-la única na cena: a mulher mais poderosa não necessita de preocupação
com o clima e nem com o esposo e as outras mulheres: ela goza de liberdade
para vestir-se e comportar-se como bem entender — que, via de regra, não
estava de forma alguma em consonância com a maneira de viver das mulheres
da Era Viking.

Figura 2: Cena da primeira temporada da série Vikings. Fonte: http://stagedoordish.com/wp-


content

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 124


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

A personagem feminina que ora analisamos é apenas um pequeno


exemplo das muitas e variadas licenças poéticas no que diz respeito à
indumentária feminina, pois é possível observarmos como diferentes
personagens utilizam roupas e acessórios de acordo com a personalidade de
suas personagens e não como as mulheres vestiam-se na Era Viking.
Observamos que a personagem Porrun enquanto ainda era escrava traja um
vestido simples de tecido rústico condizente com a sua posição social. Assim
que a personagem conquista a sua liberdade e, consequentemente, desperta o
desejo e o amor do personagem Bjorn, ela passa a usar calças, portar armas e
abominar os trajes femininos e dá a entender que o uso das calças por uma
mulher naquele espaço é uma marca de liberdade e independência. Nesse
ponto temos duas questões que merecem atenção. A primeira diz respeito ao
cabelo da personagem que, na sua condição de escrava aparece com ele
comprido preso por algumas pequenas tranças que se mantêm depois de
conquistada a sua liberdade. Como escrava, Porrun teria seus cabelos cortados
bem curtos, indicando sua posição social na Escandinávia da Era Viking. Uma
forma de distinção social: cabelos longos e trançados de maneira simples ou
elaborada era um privilégio das mulheres livres.
A segunda questão diz respeito ao uso de calças compridas. Vale
ressaltar que na Era Viking o uso de roupas de mulheres por homens ou vice-
versa era considerado uma falta muito grave, sendo esse um dos motivos para
qualquer uma das partes poder solicitar o divórcio e, claro obtê-lo, pois, o uso
de calças por mulheres e de vestidos por homens era extremamente mal visto e
combatido nas leis islandesas. A Laxdaela saga 35 apresenta uma passagem sobre
essa questão do uso de roupa de homens por mulheres e vice-versa: a
personagem Aud é acusada de usar calças masculinas e seu marido recorre às

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 125


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

leis islandesas — que proibiam terminantemente o homem de usar roupas


femininas e a mulher roupas masculinas — para assim obter o seu divórcio.
Portanto, seria inadmissível uma escrava usar os cabelos longos e trançados, e,
depois de livre, usar calças.
A personagem em questão salta de uma posição servil para uma posição
guerreira abandonando não somente a indumentária e modos servis — ela
passa por uma transformação radical e, assim, adota roupas masculinas, um
corte de cabelo nada usual tanto para homens como para mulheres, e manuseia
a espada com habilidade ímpar. A personagem Porrun personifica muito dos
desejos bélicos das jovens mulheres da atualidade que, fascinadas pelo universo
da mulher guerreira divulgado pelos jogos de RPG, vídeo-games, filmes e
histórias em quadrinhos, passam a perceber a ficção como verdadeira e
conferindo às mulheres um poder que foi supostamente perdido.
A indumentária feminina principalmente aquelas confeccionadas para
algumas personagens da série que possuem algum traço marcial como Porrun
ou mesmo Lagertha que usa no inicio da série a tradicional veste feminina: côte,
surcôte e colar e, depois passa a usar vestidos com brocados em momentos de
festa e calças, botas e cotas de malha quando vai para a batalha para mostrar
como ela ocupa dois espaços distintos, o do lar e o da guerra. Essas mudanças
nas vidas das personagens que condizem com a sua nova “personalidade” são
refletidas nas roupas que vestem pois, mais do que caracterizar as personagens
ou uma determinada época a indumentária faz parte não só da composição das
personagens mas ela apresenta ao público o que esse deseja ver em suas
personagens preferidas, que, especificamente no caso da série Vikings, é
encontrar as figuras femininas sempre representadas como mulheres fortes,
destemidas e guerreiras sem deixar de serem lindas e sensuais.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 126


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

Um olhar minucioso e analítico sobre a indumentária feminina da série


Vikings é capaz de detectar muito mais anacronismos do que detectamos neste
ensaio, como por exemplo o uso de brocados nos vestidos da personagem
Lagertha durante a segunda e terceira temporadas, que começaram a ser
empregados tanto em vestes femininas como masculinas a partir do século XIV.
Portanto, os vestidos usados pela personagem — aqui não nos atentaremos nem
ao corte e nem à modelagem, comuns à indumentária feminina no século XII! —
estão temporalmente deslocados da época em que a trama da série é
ambientada.
A nossa análise sobre a indumentária feminina teve o intuito de levantar
e propor questões sobre esse tema pois observamos que atualmente há um
interesse crescente sobre indumentária nórdica tanto em festivais como muitos
cosplays mas que não se preocupam em uma reconstituição fidedigna
semelhante a que se observa na série que possui um compromisso com a ficção
e não com a História e portanto nesse contexto toda a licença poética é
permitida. Resta-nos não cometermos o equívoco de deixar que essas licenças se
transformem em uma suposta realidade do passado.

Luciana de Campos é doutoranda em Letras (PPGL-UFPB) e membro do NEVE.


E-mail: fadacelta@yahoo.com.br

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 127


Lãs, sedas e adornos: a indumentária feminina na série Vikings - Luciana Campos 2016

Referências:

ANÔNIMO. Laxdaela saga. Tradução de Magnus Magnusson e Hermann


Palsson. London: Penguin, 1969, pp. 125-126.

BOUCHER, François. História do Vestuário no Ocidente. São Paulo: Cosac Naify,


2010.

LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

O’HARA, Georgina. Enciclopédia da moda. São Paulo, Companhia das Letras,


1992.

WARD, Cristine. Viking Age Hairstyles, Haircare, and Personal Grooming.


Disponível em: <http://www.vikinganswerlady.com/hairstyl.shtml>.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 128


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

ONDE ESTÃO OS ARCOS? A ARQUEARIA NA SÉRIE VIKINGS


Hiram Alem

O aspecto militar dos povos germânicos e escandinavos no período


medieval é frequentemente realçado tanto na historiografia quanto em suas
representações midiáticas. Não é incomum vermos em filmes e seriados os
guerreiros escandinavos ali representados como ferozes combatentes, portando
escudos, machados, espadas ou mesmo lanças. O combatente escandinavo é,
portanto, apresentado como um guerreiro de frente de batalha, lutando corpo-
a-corpo contra seus oponentes.
Este ensaio, no entanto, busca contestar, ainda que brevemente, a suposta
ideia de uma escassa ou, em alguns casos, inexistente quantidade de arqueiros
entre os guerreiros escandinavos. Para tanto, trazemos para nossa análise, a
série televisiva Vikings, do canal History, a qual contrastaremos com registros
materiais arqueológicos e literários a respeito do uso de arcos e flechas entre os
povos nórdicos.

Os vikings da série

Antes de iniciarmos a análise, devemos aqui discriminar que a época em


que a série nos situa. Vikings inicia-se supostamente por volta de 793, com o
ataque ao mosteiro de Lindisfarne e, poucos anos depois, podemos ver o cerco à
Paris, que só viria a acontecer após quase um século. Esse cerco, no entanto,
aparenta ser uma versão mesclada do saque à Paris de 845 com o cerco de 885,
dado que o personagem histórico Rollo viria a nascer apenas no início do século
IX, ao passo que na série este já está vivo e, inclusive, é irmão de Ragnar.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 129


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

Considerado tudo isso, é difícil precisar o cômputo dos anos


transcorridos na série, dadas as liberdades tomadas em sua produção. Isso, no
entanto, não é o objeto de nosso estudo aqui, nem irá provar-se um empecilho
para tanto.
Cabe aqui ressaltar que, embora na série o número de arqueiros entre os
guerreiros nórdicos seja muitas vezes nulo, o mesmo não pode ser dito dos
outros povos, como os anglo-saxões e os francos, que são vistos empregando
arcos em combate, para ataque e defesa.
No oitavo episódio da terceira temporada, durante o já mencionado
cerco, podemos notar alguns poucos arqueiros em embarcação nórdica
disparando contra as muralhas de Paris, numa tentativa pouco eficaz de
retornar fogo. Em contrapartida, os francos defendendo as muralhas de Paris
portam tanto arcos quanto bestas, que utilizam para rechaçar os vikings
sitiantes.
A figura do guerreiro escandinavo e/ou viking como avesso ou pouco
dado à arquearia, no entanto, não é correta. Se por um lado o arco não era a
principal ferramenta de combate, sendo machados, espadas e lanças preferidas,
tampouco era ela desconhecida ou não utilizada, como veremos a seguir. Para a
breve análise aqui proposta, nos utilizaremos tanto da cultura material
arqueológica quanto da literatura da época de forma a melhor elucidar o lugar
da arquearia e do arqueiro entre os povos escandinavos, face a sua
representação midiática contemporânea.

Arqueologia

No que diz respeito aos achados arqueológicos, podemos encontrar na

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 130


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

região norte da Jutlândia (parte do atual território da Dinamarca), túmulos que


datam do fim do período neolítico ao início da Idade do Cobre. Nesses túmulos,
podemos observar diversas pontas de flecha enterradas junto com adagas, o
que, para Saraw (2007, p.75), indica uma cultura que utiliza o arco para a
guerra, mais até do que para a caça, tendo em vista a economia primariamente
agrícola destes povos.
Ademais, temos ainda os arcos simples (selfbows), isto é, feitos de uma
peça única de madeira, achados em charcos nas regiões de Vimose, Nydam e
Thorsbjerg, as duas primeiras na Dinamarca e a última na região de Schleswig-
Holstein no norte Alemanha. Cabe ressaltar que em Nydam, foram encontrados
36 arcos além de centenas de pontas e corpos de flechas. Esses achados datam
do período Neolítico, aproximadamente entre os séculos II e IV a.C., e possuem
características morfológicas semelhantes aos dos Arcos Longos (Longbow)
ingleses, como apontou Clark (1963, p. 86-88). Isto é, em linhas gerais, arcos
simples (selfbows) que guardam uma proporção em suas dimensões de
aproximadamente 1.1:1 entre profundidade e largura, em relação ao tamanho.
Cabe ressaltar aqui a notória a escassez de registros arqueológicos após o
período entre o fim do Neolítico e o início da Idade do Bronze, embora ainda
seja possível encontrar indícios da presença de flechas nas regiões já
mencionadas (idem, p. 84).
Todavia, os achados arqueológicos acima mencionados pertencem a uma
época muito anterior a daquela abordada pelas séries que aqui comparamos.
Destarte, ambas as produções televisivas buscam retratar, aproximadamente, o
período de expansão dos povos escandinavos, entendido comumente como a
“Era Viking”, por volta do século IX. Não obstante, ainda é possível nos
apoiarmos na cultura material para revelar a presença de arcos e flechas nas

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 131


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

regiões por onde passaram esses povos.


Matthew Strickland (2005, p. 55) nos fala do túmulo de um guerreiro
nórdico encontrado em Orkney, na Escócia, região de grande riqueza
arqueológica para estudos escandinavísticos. No túmulo, estavam enterradas
diversas pontas de flecha e, em outro túmulo, um guerreiro aparentemente
perfurado por quatro flechas. Strickland (ibidem) aponta ainda que claramente
os arcos não eram restritos apenas aos guerreiros de status humilde.
Tendo considerado os indícios materiais, passemos para a literatura e as
sagas, para melhor compor o quadro e compreender o lugar dessas armas em
combate.

Literatura

A literatura escandinava do período medieval mostra-se como um rico


repositório de referências a arqueiros, nos revelando um pouco mais sobre seu
emprego em combate, seja ele em confrontos entre navios, seja em terra firme.
A primeira das obras que aqui trazemos é a Gesta Danorum do clérigo
danês Saxo Grammaticus. A obra, escrita no início do século XIII, a pedido do
arcebispo Absalon de Lund, de acordo com o próprio Saxo, busca registrar mais
de dois mil anos de história dos daneses (HOLMAN, 2003, p. 101). Em sua
gesta, Saxo nos conta da batalha de Bravalla, ocorrida por volta do século VIII,
na qual ele descreve os homens de Gotland como habilidosos arqueiros, cujas
cordas estariam tão firmes nos arcos que suas flechas perfuravam escudos e
armaduras (DAVIDSON, 1979, p. 242). Devemos destacar também a presença
de um exímio arqueiro de nome Ani (DAVIDSON, 1979, p. 168-9), o qual
possui alguns pontos de comparação, com o arqueiro Án, do qual falaremos

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 132


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

mais abaixo. Esse paralelo, contudo, é terreno fértil para estudos outros que não
concernem nosso ensaio no presente momento.
Strickland (2005, p. 56) ainda nos traz exemplos de arqueiros em diversas
outras sagas nórdicas, como a saga de Njall, cujo autor desconhece-se, em que o
personagem Gunall precisa defender sua moradia de atacantes e o faz
utilizando uma lança e então um arco. Ademais, temos também mencionada a
saga do rei Olaf Trygvasson, escrita pelo islandês Snorri Sturluson e parte da
problemática Heimskringla. Nela, a última batalha travada pelo rei Olaf possui
grande destaque para o uso do arco em combate naval. Nesta batalha, as forças
de Olaf enfrentam guerreiros suecos e daneses, ambos os lados atirando flechas
de seus navios.
Ressaltamos, no entanto, que ambas as sagas, embora registrem
acontecimentos relativos aos séculos X e XI, estas foram escritas tardiamente no
século XIII. Poderíamos ainda questionar a confiabilidade dos escritos de
Snorri, porém, para o fim de demonstrar a presença e o lugar da arquearia entre
os povos escandinavos, os relatos acima nos servem. Todavia, para Strickland
(ibidem), “o uso do arco nessa e em outras batalhas navais é confirmado pela
poesia mais antiga do décimo e décimo primeiro século, conhecidas como verso
skáldico, contido como moscas em âmbar dentro dessas sagas posteriores”.
Entre os exemplos dos poemas em períodos anteriores, conforme
mencionado acima, está um excerto de seu Sexstefja, do skald islandês Þjóðólfr
Arnórsson, tendo este vivido no século XI nas cortes dos reis Magno I e Haroldo
III (Harald Hardrada):
O valente rei de Uppland retesou seu arco por toda a
noite; o senhor fez com que flechas chovessem contra os
escudos brancos. As pontas encharcadas de sangue
causavam ferimentos sobre os homens com cotas de

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 133


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

malha, onde as flechas se alojavam nos escudos; o voleio


de lanças do dragão [navio] se intensificava. (POOLE,
1991, p. 62-3)

Escrito no século XI e versando sobre a vida de seu rei, Haroldo, o trecho


por nós escolhido do Sextefja, nos conta de quando a armada de Hardrada
lançou-se ao mar e de sua vitória em batalha contra o rei danês Sveinn.
Por último, é necessário mencionarmos, ainda que brevemente, a Áns
Saga Bogsveigis, cujo personagem principal, Án, é exímio arqueiro, conseguindo
acertar com suas flechas, à distância, um pedaço de carne cozida, em seguida
um prato e, por último a empunhadura de uma faca. Destacamos ainda que
tanto o arco como as flechas de Án são mágicos, tendo sido feitos por um anão
que Án encontrou em uma floresta, quando ainda tinha apenas doze anos de
idade (CEOLIN, 2013, p. 44).
Embora essa saga retrate acontecimentos que teriam ocorrido,
aproximadamente, no século VIII, estima-se que a Saga de Án date do século
XIV (HUGHES, 2005, p. 291). Ela faz parte de um conjunto de histórias
chamado de Hrafnistumannasögur, isto é, a saga dos povos de Hrafnista, nome
antigo da ilha de Ramsta, localizada na Noruega.

Considerações finais

A série, que busca observar o período de expansão marítima nórdica a


partir de seu personagem principal, Ragnar, apresenta-se como uma ficção
amparada pela história, ainda que não se prenda a esta com muito rigor. Seu
destaque é para o protagonista, sua família e corte, os condutores da trama.
Portanto, é esperado que no tocante aos combates, a ênfase maior seja dada ao

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 134


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

combate próximo, corpo-a-corpo, para destacar as capacidades físicas de seus


personagens. Mais ainda, é imprescindível considerarmos o fascínio que o
guerreiro escandinavo exerce ainda na contemporaneidade, com suas paredes
de escudo e a suposta ferocidade que os diferenciava de outros guerreiros na
época.
Todavia, da mesma forma como não devemos representar o guerreiro
nórdico utilizando elmos com chifres ou exércitos inteiros desprovidos de
qualquer armadura, quando sabemos que dominavam técnicas metalúrgicas,
não podemos deixar de lado uma arma tão ubíqua quanto o arco.
Curiosamente, não é raro vermos em filmes, arqueiros atirando flechas
flamejantes de forma a atear fogo em barcos carregando o corpo de alguma
figura nobre junto com seus pertences.
Decerto que os daneses, noruegueses, islandeses e outros povos nórdicos
não baseavam suas forças de combate em torno da arquearia como, por
exemplo, os ingleses do século XV, é errôneo pensarmos que estes guerreiros
não faziam uso de arcos e flechas.
Trazemos a presença tanto arqueológica quanto literária desse tipo de
arma e guerreiro de forma a também apontar para um possível estereótipo que
se perpetua de forma quase invisível, aquele de que o combatente escandinavo
não fazia uso de armas outras senão machados, espadas e, quando muito,
lanças.
A prática da arquearia entre os povos escandinavos é um terreno fértil
para o escandinavista que deseje analisar tal fenômeno. Esperamos contribuir
para fomentar o debate e motivar a crítica não somente das presenças
(anacronismos) como também das ausências nas representações
contemporâneas sobre a Idade Média.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 135


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

Hiram Alem é mestrando em História (PPGHC-UFRJ) e membro do NIELIM e GEHM-CEIA.


E-mail: hiramalem@gmail.com

Referências:

CLARK, J.G.D. Neolithic bows from Somerset, England and the prehistory of
archery in north-western Europe. In: Proceedings of the Prehistoric Society.
Cambridge, v. 29, 1963.

CEOLIN, Martina. Saga di Án l’Arciere - Proposta di traduzione con commento


filológico. Veneza: Università Ca' Foscari Venezia, 2013. Disponível em:
<http://dspace.unive.it/bitstream/handle/10579/2454/830530-
1155239.pdf?sequence=2>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2016.

DAVIDSON, H. E. Saxo Grammaticus: The history of the Danes, Books I-IX.


Cambridge: D.S.Brewer, 1979.

HOLMAN, Katherine. Saxo Grammaticus. In: ___. Historical dictionary of the


Vikings. Oxford: Scarecrow Press, 2003, p. 101.

HUGHES, S. F. Saga of Án Bow-Bender. In: OHLGREN, T. H. (ed.) Medieval


outlaws: twelve tales in modern english translation. Indiana: Parlor Press, 2005.

POOLE, R. G. Viking poems on war and peace: A study in skaldic narrative. Toronto:
University of Toronto Press, 1991.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 136


Onde estão os arcos? A arquearia na série Vikings - Hiram Alem 2016

SARAUW T. Male symbols or warrior identities? The ‘archery burials’ of the


Danish Bell Beaker Culture. In: Journal of Anthropological Archaeology, n. 26, p. 67,
2007.

STRICKLAND, M.; HARDY, R. The great warbow: from Hastings to the Mary Rose.
Gloucestershire: Sutton Publishing, 2005.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 137


"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

ARTIGOS

“ACORDE GROA, ACORDE BOA MULHER”:


A PRÁTICA NECROMÂNTICA NA EDDA POÉTICA PELA GRÓGALDR
Bárbara Rebecca Baumgartem França

Segundo o Webster's Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English


Language, necromancia é definida como: suposta arte da adivinhação através da
comunicação com os mortos, e uma arte negra. Porém nem sempre foi assim, o
contato com os mortos de fato percorreu e pertenceu a épocas e sociedades
distintas, assim como afirma Jean-Claude Schmitt (1999, p. 11), no paganismo
greco-romano havia o culto dos mortos na cidade ou na gens (grupo de família
consanguínea com um antepassado comum). Dessa forma, é também na
Antiguidade que surge a etimologia da palavra necromancia, proveniente do
grego antigo definido εκ ό (Nekros), como “corpo morto”, e α τεία
(Mantéia), “profecia” ou de “adivinhação”.
É no medievo com a ascensão da Igreja que a prática e o conceito da
palavra irão sofrer uma modificação, quando se iniciam os relatos de
aparecimento de fantasmas, que faziam contatos com os vivos. Por um bom
tempo esses escritos autobiográficos foram bem aceitos e até mesmo utilizados
para reforçar a liturgia da Igreja. Todavia, dado momento houve uma recusa
com relação a essa aproximação, pois as práticas que envolviam os mortos
seriam uma forma de manter as crenças do paganismo antigo, no qual, os cultos
funerários eram reprovados, domesticados ou ocultados pela Igreja. Dessa
forma, a necromancia que antes era a adivinhação pelos mortos, ganha o
sentido de nigromancia, uma magia negra e de invocação do diabo. É no século

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 138


"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

XII que a ampla participação das reflexões de Agostinho de Hipona será muito
importante, pois passa a defender que era impossível qualquer comunicação
entre os vivos e os mortos, defendendo a ideia de um banimento de qualquer
culto material dos mortos. (SCHMITT, 1999, p. 11-37).
Segundo Santo Agostinho, como dissemos, o corpo morto
não merece nenhum “cuidado” (cura), a não ser por
razões de conveniências sociais. Em compensação, a alma,
o princípio divino que está no homem (animus, spiritus)
não morre: apenas “separada” do corpo, a alma, a menos
que seja imediatamente salva ou condenada, sofre provas
“purgatórias” (ou mesmo, a partir do século XII, ganha o
purgatório depois de um julgamento particular) na espera
da salvação definitiva. (SCHMITT, 1999, p. 25)

A necromancia já estigmatizada é possível de ser encontrada na bíblia,


nas passagens do Livro de Samuel (1 Sm. 28), segundo Schmitt (1999, p. 15)
escrita de maneira negativa, onde a necromancia é realizada clandestinamente
pela feiticeira de Em Dor a favor do rei Saul, que inclusive havia proibido as
práticas mágicas em seu reino. Na passagem, se dirige então a feiticeira,
pretendendo saber o que aconteceria com ele no desfecho da batalha contra os
filisteus. O procedimento de invocação do morto não é descrito, apenas relata
que a feiticeira vê Samuel e o descreve como velho, depois o morto se dirige a
Saul e ambos têm uma longa conversa, no qual Samuel anuncia que a morte de
Saul seria no dia seguinte.
Ao pensarmos o contexto medieval e todas as interpolações que
vinculam as crenças e realidade, com relação à necromancia é possível
identificar todo um imaginário social imbuído de significados. Parafraseando
Bronislaw Baczko (1985), através dos imaginários sociais do medievo, baseada
através da crença e regida pela Igreja, essa coletividade designa sua identidade

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 139


"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

que acaba por elaborar uma representação de si mesma, estabelecendo papéis,


ou seja, do clero e dos fiéis, que de certa forma acaba por definir suas próprias
posições sociais. A igreja, como principal detentora de poder desse período,
impôs crenças que fossem comuns a todos, na tentativa de extinguir qualquer
prática que mantivesse ou lembrasse as práticas pagãs do medievo. Com o
auxílio de pensadores influentes como Santo Agostinho, construiu uma espécie
de “código de comportamento” em que essa sociedade se incluiu criando uma
espécie de imaginário social, que atuava como força reguladora de sua vida
cotidiana. Dessa forma, aos poucos foi se distinguindo de outras sociedades.
Assim, qualquer “código de comportamento” que viria a ser contrário as suas
normas de conduta passariam a ser estigmatizadas, ou seja, classificadas como
forças ímpias e diabólicas.
Foi a partir de 1960 que a historiografia contemporânea passou a formar
uma nova concepção sobre os nórdicos (LANGER, 2009, p. 13). O conhecimento
sobre os povos escandinavos se encontra ainda limitado no Brasil, muitas vezes
relacionados a saques, invasões, vinculando a ideia de bárbaros ferozes.
Entretanto, devemos entendê-los como famílias que viviam em fazendas e
também em sociedade (MUNIR, 2013, p. 20-22). Além disso, por trás dessa
sociedade, há todo um complexo de artes, estruturas sociais, concepções
mitológicas e religiosas (LANGER, 2009, p. 14). A Escandinávia é composta
essencialmente por três países: Noruega, Suécia e Dinamarca, e sob medida de
estudo também são incluídos: Islândia, Finlândia e Groelândia, formando os
países nórdicos. Inicialmente, os escandinavos eram povos nômades que vivam
da caça e da coleta, só iniciaram as atividades agrícolas por volta de 4000 a.c.,
adjunto a essa herança circula a história oral, na qual, eram contados os mitos
do passado, encarregados de funções educativas. Hoje em dia, o contato com as

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 140


"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

reminiscências dessa cultura, é possível através das sagas (histórias sobre


heróis, reis, bispos e santos) e as Eddas poéticas ou prosaicas (temas
mitológicos, relatos sobre deuses, gigantes e diversas criaturas) (MUNIR, 2013
p. 12-19). Essas fontes escritas passaram a ser produzidas após o século XI
quando houve o início do processo de conversão, resultando em documentos
provenientes de um imaginário coletivo híbrido, resultado do encontro entre
cristianismo e religião pré-cristã, que aos poucos adicionou novos elementos,
tendo resultado nas fontes atuais (BURKE, 2003, p. 31).
Na sociedade escandinava, a magia se encontra muito presente na vida e
no cotidiano. Sob estes conceitos, mesmo que genéricos, Johnni Langer (2005, p.
55-82; 2004, p. 98-102; 2009, p. 68) explicita que um dos termos mais comuns
encontrados nas sagas, a magia, é apresentada como fjölkynngi (conhecimento),
além disso, as técnicas relacionadas à magia mais referidas são a seiðr (canto) e o
galðr (sons mágicos). As praticantes dessas magias também recebiam
denominações: no caso das seiðkonas (mulheres praticantes do seiðr), galdrakonas
(mulheres praticantes do galdr) e as völvas (profetisas). Além disso, pode-se
perceber que em ambas há a existência de um padrão que envolvia sons,
canções ou poesias mágicas. As duas principais técnicas estavam vinculadas à
manutenção da ordem como: curas, profecias, controle do clima e da natureza,
mas também podiam provocar malefícios como: controle, desilusão, assassinato
e maldições.
Como dito anteriormente, uma das características da Galdr era o controle
climático, utilizada também para aprisionar ou desfazer outros encantos e como
no caso do poema em questão, utilizada como um artifício de proteção. Através
de elementos analisados mais profundamente, a prática da Galdr nas sagas e
Eddas trazem um pouco da permanência das tradições religiosas escandinavas,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 141


"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

mesmo após um período de transformação dada a permanência da religião


cristã. Assim, o próprio caráter individual, privado e diversificado contribuiu
para a sobrevivência da prática.
O Grógaldr, ou o Feitiço de Groa, é o primeiro de dois poemas publicados
sob o título de Svipdagsmál, a Balada de Svipdagr. O Grógaldr juntamente com a
Fjölsvinnsmál, a segunda parte do poema, foram escritos aproximadamente no
século XII. Esse poema éddico, assim como o Völuspá, estão vinculados à prática
mágica que envolve os mortos, sob a nossa compreensão, a necromancia.
As Eddas podem ser divididas tanto em prosaicas quanto poéticas,
muitas consideradas como uma das maiores fontes de estudos sobre a mitologia
escandinava. Um dos principais manuscritos da Edda poética é o Codex Regius,
descoberto em 1643, totalizando 29 poemas, porém há edições mais modernas
que contabilizam 35 a 37 poemas que complementam com outros manuscritos.
As temáticas abordadas dentro desses poemas podem variar como contos
mitológicos, relatos sobre deuses, gigantes e outras diversas criaturas. Todavia,
a Grógaldr é um poema que não se encontra no Codex Regius, ela faz parte de um
conjunto, assim como outros manuscritos, encontrados no século XVII
(LANGER, 2015, p. 146-147).
O poema se inicia com o jovem Svipdagr indo ao monte tumular de sua
mãe. Aqui notamos a primeira evidência da relação na sociedade escandinava
com os mortos, os montes tumulares. Na Escandinávia haviam dois tipos de
enterro: o crematório e inumações, em ambos os casos, o corpo era
acompanhado de roupas, alimentos e alguns pertences do cotidiano, pois
acreditavam que, depois de morto, a vida continuava no túmulo (LANGER,
2009, p. 45-46). Svipdagr então invoca Groa dos mortos, com o objetivo de
auxiliá-lo na conclusão de uma missão, a qual, ele teria que ir em busca de

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"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

Menglöð.

Vaki þú, Gróa, «Wake up, Groa!


vaki þú, góð kona, Wake up, good woman!
vek ek þik dauðra dura, At the gates of death I wake thee!
ef þú þat mant, if thou rememberest,
at þú þinn mög bæðir that thou thy son badest
til kumbldysjar koma. to thy grave-mound to come.»

A necromancia nesse momento se mostra presente como uma prática


mágica comum, diferente da demonizada como é concebida na Idade Média
cristianizada, mais próxima então da representação antiga, em que traz o culto
aos mortos como uma atividade relativamente comum. Além disso, evidencia
como a magia se encontrava presente, mesmo na forma de um conto, na vida da
sociedade escandinava. A prática mágica da Galdr é evidenciada no despertar
da Groa. Svipdagr explica a finalidade de sua invocação e receoso com sua
jornada, pede para que Groa cante para ele.

Galdra mér gal, «Songs you more sing,


þás góðir ro, which are good.
bjarg þú móðir męgi, Protect you, mother! thy son.
á vegum allr Dead on my way
hykk at verða mynak, I fear to be.
þykkjumk til ungr afi. I seem too young in years.»

O ato de cantar estaria intimamente ligado à execução da mágica. Não


somente a Galdr, mas também a Seidr, utilizavam de sons, canções ou poesias
mágicas como uma espécie de fórmulas específicas. Através do canto, Groa

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 143


"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

entoa nove estrofes, dedicadas a levar benefícios para seu filho e malefícios para
tudo ou qualquer coisa que pudesse feri-lo ou atrapalhá-lo na jornada. Ao
utilizar nove canções entoadas por Groa é possível perceber a referência ao
número Odínico (LANGER, 2009, p. 78). Além disso, ao entoar proteção ao
filho, Groa realça mais uma vez a particularidade da Galdr, ou seja, a de
proporcionar benefícios. Em várias das estrofes, Groa menciona elementos da
natureza, como montanhas, rios, ventos, mais uma vez mostrando o domínio
sobre o clima, característica proveniente da Galdr, e também das próprias sagas
islandesas (LANGER, 2009, p. 74).
A título de curiosidade, na segunda parte do poema, intitulada
Fjölsvinnsmál, após a longa jornada, o jovem chega em um castelo no topo de
uma montanha, guardado por um gigante chamado Fjölsviðr. No poema, se
passa um longo jogo de perguntas e respostas entre Svipdag e Fjölsviðr, em que
o ponto crucial da trama é o fato de Fjölsviðr insistir para que Svipdag revele
seu nome, porém o faz somente no final do poema. Ao revelar seu nome, as
portas são abertas e lá se encontra com Menglöð.
Através desta sondagem inicial, podemos concluir que a necromancia,
como uma atividade que envolvia os mortos, fazia parte da sociedade
escandinava, na qual as práticas mágicas estavam presentes no cotidiano,
principalmente em seu conjunto de crenças. É interessante notar que o termo
“necromancia” o qual entendemos hoje, assim como na Idade Média
Cristianizada, compreendia a prática da “nigromancia” como uma modalidade
demonizada, nos faz refletir como a Escandinávia, assim como outras
sociedades, viam essa prática e como a compreendiam. Mesmo que o conceito
tenha origem na Antiguidade, não podemos caracterizar a prática específica
como modelo realizado em outras sociedades. O que procuro demonstrar é que

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"Acorde Groa, acorde boa mulher": A prática necromante na Edda... - Bárbara França 2016

a necromancia como uma prática que envolve os mortos estava presente em


ambas sociedades, sem afirmar, contudo, que a Escandinávia tinha como
imaginário uma ótica semelhante à Antiguidade.

Bárbara Rebecca Baumgartem França é graduanda em História pela UFES.


E-mail: barbara_brbf@hotmail.com

Referências:

ANÔNIMO. Grógaldr. Traduzido por Hollander, Lee M. The Poetic Edda.


Texas: University of Texas Press, 2012.

ANÔNIMO. Grógaldr. Disponível em:


<http://heimskringla.no/wiki/Grógaldr>. Acesso em: 28 de janeiro de 2016.

AYOUB, Munir L. Godkynningr: O rei escandinavo como ponte entre deuses e


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BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et All.


Anthropos- Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

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Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 145


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BURKE. Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2013.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martin Fontes, 1992.

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Mitologia Nórdica. São Paulo: Hedra, 2015, pp. 146-149.

LANGER, Johnni. Deuses, Monstros e Heróis. Brasília: Editora UNB, 2009.

______________. Seidr: magia feminina e xamânica entre os vikings. In: LUPI,


João (org.). Druidas, Cavaleiros e Deusas: estudos medievais. Florianópolis: Editora
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______________. Galdr e feitiçaria nas sagas islandesas: Uma análise do poema


Buslubaen. In: Brathair, v. 9, n. 1, 2009.

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PIERUCCI, Antônio Flávio. A magia. São Paulo: Publifolha, 2001.

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SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Editora


Companhia das Letras,1999.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 146


Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

LITERATURA E CRISTIANISMO: ASPECTOS DA CRISTIANIZAÇÃO DA


ESCANDINÁVIA E SEUS REFLEXOS N’A SAGA DE EIRIK, O VERMELHO
Letícia Santos

A cristianização dos reinos escandinavos e da Islândia, segundo Tiago


Quintana e Álvaro Alfredo Bragança Jr. (2010), foi um processo lento, gradual,
que se deu de modo heterogêneo em cada uma dessas regiões. Com o advento
do Cristianismo, há, como ressalta Théo Moosburger (2011, p. 20), “o
florescimento da escrita na Islândia”. A partir desse momento, tomando como
instrumento de base as letras latinas e o pergaminho, narrativas mitológicas e
heroicas islandesas, que circulavam no âmbito da oralidade, puderam, por fim,
ser compiladas. Não obstante os escandinavos possuíssem muito antes disso
uma forma de registro própria, as runas, a importação de um alfabeto e tradição
literária estrangeiros representou uma grande revolução na literatura e cultura
desses povos, uma vez que textos de maior extensão, que circulavam apenas no
campo da oralidade, passaram a ser redigidos. Devido à limitação espacial que
as runas possuíam, anteriormente, somente pequenos textos foram transcritos.
Contudo, esse fato, embora tenha reduzido drasticamente o uso da escrita
rúnica, não chegou a anulá-la:
Mucho antes de la cristianización ya se usaba em el Norte la
escritura. Se conocen inscripciones del siglo III en protonórdico
que utilizaban el alfabeto rúnico en madera, piedra, hueso y
metal. Las condiciones para el desarrollo de uma cultura escrita
no se dieron hasta que no se conocieron materiales adecuados
para la producción de textos de cierta amplitud.
La Iglesia trajo consigo el conocimiento tanto del alfabeto latino
como el uso de los pergaminos, pero el alfabeto rúnico se siguió
utilizando como, por exemplo, en inscripciones, mensajes cortos,
etc. (ALVAREZ & ANTÓN, 2003, p. 15)

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

No entanto, se por um lado a cristianização dos países nórdicos


contribuiu para a preservação e registro de parte de sua tradição oral, que
poderia ser perdida naturalmente ao longo dos séculos, esse acontecimento
também sufocou, paulatinamente, determinadas práticas rituais e culturais
desse povo. Além de tudo, a escrita desses relatos, como veremos mais adiante,
também não ocorreu de forma tão neutra, como se possa, talvez, imaginar.
Sendo assim, por vezes, observa-se na escolha do foco narrativo, por exemplo, e
na atitude de alguns personagens, indícios de ideologias eminentemente cristãs.
Ainda segundo os autores, a Dinamarca foi o primeiro dos países
escandinavos a adotar efetivamente a religião cristã. Conforme Quintana e
Bragança Jr. (2010), Harald Klak foi o primeiro rei dinamarquês a ser batizado.
Os autores apontam, ainda, motivações de caráter político para essa conversão,
visto que o monarca desejava o apoio do regente francês Luís I, o piedoso, após
ser deposto pela primeira vez no ano de 814 da era cristã. Ao retornar ao trono,
Harald trouxe consigo, ainda, alguns monges, dentre eles São Ansgar, que
foram responsáveis por realizar trabalhos missionários em territórios vizinhos.
Todavia, antes mesmo do processo de cristianização, a Escandinávia já possuía
contatos com territórios cristãos do continente europeu, com a Irlanda e com as
Ilhas Britânicas. As primeiras expedições vikings de que se tem notícia, de
acordo com Alvarez e Antón (2003), ocorreram em meados do século VIII. Tais
empreitadas possuíam propósitos dos mais variados, como o comércio e a
colonização de novas terras.
A origem das sagas remonta, porventura, esse período de circulação oral.
Sobre elas, afirma Jorge Luís Borges (1951, p. 70), “este arte empezó siendo oral,
oír cuentos era uno de los pasatiempos de las largas veladas de Islandia”. Em
grande parte, esses textos possuíam autoria anônima, uma vez que a matéria da

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

qual eles tratavam era considerada como uma informação de domínio do


público a que se destinava. Essa forma literária, genuinamente escandinava,
surge no período medieval e identifica-se bastante com as epopeias, não apenas
por seu caráter épico, mas também por buscar resgatar por meio de sua
narração um passado heroico de um povo, um mito fundador e a constituição
de uma identidade cultural e histórica. Comumente classificadas por meio de
referenciais temáticos, elas são subcategorizadas em alguns tipos, como: sagas
de reis, de bispos, de islandeses ou de família, lendárias e cavaleirescas – esta
última dialoga diretamente com a literatura medieval cortês –, dentre outras.
Originalmente, as sagas de família possuem uma função histórica. A elas
cabe o relato da vida de alguns dos primeiros colonizadores da Islândia, bem
como suas conquistas, disputas territoriais e familiares (PEREIRA, 2006). Por
meio dessa forma literária também pode-se constatar, como afirmam Antón e
Pedro Casariego Córdoba, influências que muitos de seus autores receberam da
doutrina cristã:
Las Islendingasögur, Sagas de los Islandeses o Sagas de Familia,
forman el conjunto más valioso y original y también el que aquí
más nos importa. Expresión de uma Islandia que fue el último
reducto de la recia cultura pagana de los escandinavos, nos
muestran también el peso que el cristianismo tenía em la época
de sus autores. Escritas en el siglo XIII, cuentan las vidas de los
islandeses y los enfrentamientos entre sus famílias durante el
período que transcurre entre la primera ocupacióm de Islandia y
el final de la primera generación cristiana, hacia 1030, y que es
conocido con el nombre de Edad de las Sagas. (1986, p. 21 – grifo
dos autores)

A Saga de Eirik, o Vermelho, de autoria anônima e escrita provavelmente


em meados do século XIII, encaixa-se na subcategoria de saga de família
(LANGER, 2010). Essa obra, juntamente com a Saga dos Groenlandeses, narra

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

as viagens e conquistas territoriais dos povos escandinavos medievais em sua


trajetória pela Islândia, Groenlândia e a descoberta e tentativa de colonização
da América do Norte por volta do século XI. Os dois textos em questão
possuem um enredo bastante semelhante — as peripécias de heróis lendários
vikings —, contudo, há ainda algumas diferenças entre eles na construção da
trama. Conforme Johnni Langer (2010, p. 183), esse texto sobreviveu e chegou
até nós atualmente por ter sido conservado em dois manuscritos medievais: “o
Hauksbók (1302-1310) e o Skálholtsbók (c. 1420)”, ambos baseados em um escrito
original que se encontra perdido ainda hoje.
Remontando às primeiras linhagens que povoaram e constituíram a
Islândia antiga, a Saga de Eirik, o Vermelho relata eventos relacionados à vida
de um homem importante e guerreiro chamado Eirik — de origem norueguesa
—, de sua linhagem e de homens que o eram do seu convívio, mas não apenas
isso. Além disso, apesar de ser Eirik a dar nome à saga, o protagonismo de fato
cabe aos seus descendentes.
Dentre os acontecimentos mencionados ao longo de toda a obra,
destacam-se sobremaneira as conquistas bélicas e territoriais, a expansão e
disseminação nas terras escandinavas de uma religião estrangeira àquele povo:
o Cristianismo. Uma parcela dos personagens é confessadamente não cristã e
resiste o máximo que pode a essa crença criada e disseminada após a morte de
Jesus Cristo, alguns abraçam-na e buscam difundi-la, enquanto outros
convertem-se, com certa resistência, a ela. Em meio ao contexto das batalhas e
viagens marítimas dos vikings, há no texto um choque cultural e religioso entre
os adeptos e os não adeptos ao Cristianismo. Eirik é um dos que rejeitam, o
máximo possível, abrir mão da crença religiosa de seus antepassados em prol
de outra até então desconhecida:

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

Eirik took coldly to the proposal to forsake his religion, but his
wife, Thjodhild, promptly yielded, and caused a church to be
built not very near the houses. The building was called
Thjodhild’s Church; in that spot she offered her prayers, and so
did those men who received Christ, and they were many. After
she accepted the faith, Thjodhild would have no intercourse with
Eirik, and this was a great trial to his temper. (ANÔNIMO, 20__,
p. 6)

Apesar de sua esposa Thjodhild converter-se ao Cristianismo sem


apresentar oposição e de tal fato afetar, de certo modo, seu matrimônio, Eirik,
ainda assim, renega a essa religião estrangeira. Contudo, apesar de não desejar
ser cristão, o herói viking não só respeita a decisão da mulher, como também
compreende a impossibilidade da união carnal entre ambos enquanto ainda
houvesse divergências de crenças religiosas no âmbito do casamento. Outro
fato interessante em relação a esse personagem é que sua recusa em abandonar
sua antiga religião não o faz um homem menos heroico ou mais perverso, pelo
contrário, sua respeitabilidade mantém-se e sua descendência é reconhecida,
por reis convertidos à religião cristã ou não, pela força que ele teve.
Como pudemos observar, as antigas crenças do povo escandinavo e o
Cristianismo conviviam com ressalvas. No caso de Eirik e Thjodhild, tal fato
impedia que eles convivessem plenamente como marido e mulher. Podemos
compreender melhor esse tipo de postura quando lemos no Novo Testamento, a
segunda carta de Paulo à igreja de Corinto, que traz o seguinte conselho: “Não
vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a
justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas? / E que
concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel?” (II
Coríntios 6:14-15). Ou seja, embora o total rechaço ao praticante de um credo
oposto não seja diretamente estimulado, visto que o próprio Jesus Cristo

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

chegou muitas vezes a acolher pessoas de religiões distintas da sua, pregou-se


após a sua morte e ainda hoje que não poderia haver a conjunção entre pessoas
cristãs e aquelas que não fossem.
Embora o convívio entre indivíduos que se converteram à crença cristã e
aqueles que ainda cultivavam os antigos credos e ritos se mostre possível na
obra, enfatiza-se, em diversos momentos, a necessidade de levar o Cristianismo
a todo o território escandinavo. Tal missão cabe a Leif, filho de Eirik e
Thjodhild, que, após unir-se à corte do rei Olaf Tryggvason, aos moldes de um
bom cavaleiro cortês, obedece às ordens de seu suserano, que lhe manda pregar
a religião cristã na Groenlândia:
Now, when Leif sailed from Greenland during the summer, he
and his men were driven out of their course to the Sudreyjar.
They were slow in getting a favourable wind from this place, and
they stayed there a long time during the summer ... reaching
Norway about harvest-tide. He joined the body-guard of King
Olaf Tryggvason, and the king formed an excellent opinion of
him, and it appeared to him that Leif was a well-bred man. Once
upon a time the king entered into conversation with Leif, and
asked him, "Dost thou purpose sailing to Greenland in
summer?". Leif answered, "I should wish so to do, if it is your
will." The king replied, “I think it may well be so; thou shalt go
my errand, and preach Christianity in Greenland”. (ANÔNIMO,
20, p. 6)

Nessa saga, há personagens cristãos que apresentam duas posturas


distintas em relação à religião escandinava: de total rejeição ou de respeito e
convivência pacífica, embora com algumas ressalvas. A exemplo disso, temos
Gudrid que, não obstante se diga cristã, conserva todos os ensinamentos da arte
divinatória escandinava transmitida a ela por meio de sua mãe. Do outro lado,
há também personagens ditos “pagãos” que apresentam esses dois tipos de
comportamento: alguns reprovando veementemente a prática cristã por ferir

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 152


Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

costumes ancestrais e outros tolerando-a pacientemente. Por meio dessa obra


literária, podemos observar alguns pontos cruciais do processo de cristianização
dos territórios escandinavos, da difusão da nova crença religiosa e de suas
diferentes recepções no decorrer da narrativa. Além disso, nota-se os choques
culturais entre os cristãos e não cristãos, seus diferentes códigos de ética e
conduta e, por vezes, a interpenetração de ambos:
And when the (next) day was far spent, the preparations were
made for her which she required for the exercise of her
enchantments. She begged them to bring to her those women
who were acquainted with the lore needed for the exercise of the
enchantments, and which is known by the name of Weird-songs,
but no such women came forward. Then was search made
throughout the homestead if any woman were so learned.

Then answered Gudrid, "I am not skilled in deep learning, nor


am I a wise-woman, although Halldis, my foster-mother, taught
me, in Iceland, the lore which she called Weird-songs."

"Then art thou wise in good season," answered Thorbjorg; but


Gudrid replied, "That lore and the ceremony are of such a kind,
that I purpose to be of no assistance therein, because I am a
Christian woman." (ANÔNIMO, 20, p. 5)

No trecho anterior, podemos observar que, embora certos ritos não


cristãos sejam conhecidos e façam parte da cultura de Gudrid, há uma confessa
resistência justificada em nome do credo cristão que impede, em um primeiro
momento, que a personagem se disponibilize a participar da cerimônia
organizada com a chegada da sibila. Todavia, tal oposição logo é vencida
quando Thorkell exerce sua autoridade sobre Gudrid, que obedece e então
passa a entoar os antigos cantos.
Além de tudo o que foi mencionado, a crença cristã, como podemos
constatar no texto, interfere também nos costumes daquele povo. Um exemplo

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 153


Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

disso é o tratamento dado aos mortos, que, a partir da presença do


Cristianismo, é modificado:
It had been a custom in Greenland, after Christianity was
brought there, to bury men in unconsecrated ground on the
farms where they died. An upright stake was placed over a body,
and when the priests came afterwards to the place, then was the
stake pulled out, consecrated water poured therein, and a funeral
service held, though it might be long after the burial.
The bodies were removed to the church in Eiriksfjordr, and
funeral services held by the priests. (ANÔNIMO, 20, p. 9)

As ações dos personagens nessa saga não raramente são vistas de forma
subjetiva, sob a lente da religião cristã, a qual condena fortemente toda prática
contrária aos dogmas cristãos. Além disso, um propósito até certo ponto
cruzadístico, como vimos, também permeia a obra, pois se salienta sempre a
importância de levar o Cristianismo aos povos que ainda não conheciam essa
“Verdade” pela força do diálogo e do convencimento por meio dele ou da
espada. Em algumas passagens, é evidente também a presença de
acontecimentos que pertencem à ordem do sobrenatural.
No interior da narrativa, vê-se o Deus dos cristãos operando seus
prodígios milagrosos ou miraculas, revelando-se, então, muito mais poderoso e
benéfico que os deuses nórdicos e do que qualquer rito de evocação aos
mesmos. Nesse sentido, o Deus cristão revela-se como soberano. Há, em
diversos momentos, uma mensagem implícita de que só Ele, ao contrário das
demais divindades, possui pleno poder para auxiliar os guerreiros em suas
empreitadas.
A sorte e a bem-aventurança parecem estar, com bastante frequência, do
lado daquelas pessoas que decidem se converter aos ensinamentos da Igreja
cristã. Todas as vezes que uma prática "pagã" choca-se com as cristãs, não

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Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

raramente esta primeira é abordada de um modo um tanto quanto negativo ou


vista com certa desconfiança. Vejamos a passagem na qual, após muitos dias de
fome, em desespero e perdendo a fé no Deus cristão, Thorhall pede auxílio e
enaltece ao deus Thor:
After that they called upon God, praying that He would send
them some little store of meat, but their prayer was not so soon
granted as they were eager that it should be. Thorhall
disappeared from sight, and they went to seek him, and sought
for three half-days continuously. On the fourth half-day Karlsefni
and Bjarni found him on the peak of a crag. He lay with his face
to the sky, with both eyes and mouth and nostrils wide open,
clawing and pinching himself, and reciting something. They
asked why he had come there. He replied that it was of no
importance; begged them not to wonder thereat; as for himself,
he had lived so long, they needed not to take any account of him.
They begged him to go home with them, and he did so. A little
while after a whale was driven ashore, and the men crowded
round it, and cut it up, and still they knew not what kind of
whale it was. Even Karlsefni recognised it not, though he had
great knowledge of whales. It was cooked by the cook-boys, and
they ate thereof; though bad effects came upon all from it
afterwards. Then began Thorhall, and said, "Has it not been that
the Redbeard has proved a better friend than your Christ? This
was my gift for the poetry which I composed about Thor, my
patron; seldom has he failed me". Now, when the men knew that,
none of them would eat of it, and they threw it down from the
rocks, and turned with their supplications to God’s mercy. Then
was granted to them opportunity of fishing, and after that there
was no lack of food that spring. They went back again from the
island, within Straumsfjordr, and obtained food from both sides;
from hunting on the mainland, and from gathering eggs and
from fishing on the side of the sea. (ANÔNIMO, 20, p. 11)

De imediato, os que estão presentes ali reconhecem uma espécie de


castigo do Deus cristão pelo fato de Thorhall ter engrandecido o nome de outra
divindade. É necessário que todos percebam o erro e, acima de tudo,
supliquem, unidos, o perdão e a misericórdia pelo que entoado em nome de

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 155


Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

Thor, para que a tranquilidade e a fartura de alimentos fosse restituída entre


eles. Inclusive, no capítulo seguinte, Thorhall e todos aqueles que insistiram em
segui-lo recebem um fim doloroso: o primeiro morre de modo violento e
aqueles que estavam ao seu lado são escravizados.
Olaf Tryggvason, reconhecido como um dos “reis missionários”, teve
historicamente um papel fundamental na convenção dos vikings ao
Cristianismo e recorreu, para isso, à força bruta em diversos momentos. Sua
atuação na saga é de suma importância, pois a sua iniciativa e o seu apoio
incondicional configuram-se como a verdadeira força motriz no processo de
cristianização dos povos vizinhos.
Em nome de Olaf, Leif Eriksson e aqueles que o acompanhavam
empenharam-se em levar a mensagem cristã adiante à força da espada e de uma
numerosa quantidade de homens. Apesar disso, em nenhum momento
qualquer brutalidade utilizada no processo de expansão do Cristianismo é
questionada ou vista com maus olhos. O contrário ocorre, como vimos, com
alguns ritos, crenças e procedimentos da antiga religião, que não obstante
fizessem parte daquela cultura, muitas vezes eram tratados com certa reserva
pelos que aderiram ao Cristianismo ou até mesmo condenados, como se dá, por
exemplo, no episódio da baleia.

Letícia Santos é mestranda em Letras pela UFPE.


E-mail: le_09876@hotmail.com

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 156


Literatura e cristianismo: aspectos da cristianização da Escandinávia... - Letícia Santos 2016

Referências:

ÁLVAREZ, Mª Pilar Fernández; ANTÒN, Teodoro Manrique. Antología de la


Literatura Nórdica Antigua. Edición Bilíngüe. 1ª ed. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 2003.

ANÔNIMO. The Saga of Eirik the Red. Disponível em: <


http://sagadb.org/files/pdf/eiriks_saga_rauda.en.pdf>. Acesso em: dezembro
de 2015.

BORGES, Jorge Luis. Antiguas literaturas germánicas. México-Buenos Aires:


Fondo de Cultura Económica, 1951.

CÓRDOBA, Antón; CÓRDOBA, Pedro Casariego. Prólogo. La Saga de los


Groenlandeses; La Saga de Eirik el Rojo. Trad. Antón y Pedro Casariego Córdoba.
Madrid: Ediciones Siruela, 1986.

LANGER, Johnni. História e sociedade nas sagas islandesas: perspectivas


metodológicas. In: Alethéia: Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo, vol. 1,
2009.

MOOSBURGER, Théo de Borba. Introdução. In: ANÔNIMO. Saga dos


Volsungos. São Paulo: Hedra, 2009.

QUINTANA, Tiago; BRAGANÇA JR., Álvaro Alfredo. A Cristianização da


Noruega e o Fortalecimento da Monarquia Norueguesa: uma perspectiva
histórico-literária. In: Brathair, vol. 10, n. 1, 2010, p. 41-53.

PEREIRA, Valéria Sabrina. Die küneginne rîch: o mundo feminino em A Canção dos
Nibelungos e A Saga dos Völsung. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/cp030738.pdf>. Acesso em: 5
de janeiro de 2016.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 157


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

REPENSANDO OS VIKINGS EM SALA DE AULA:


UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID HISTÓRIA E(M) IMAGENS
Bruno Ercole
Thiago Natário

Introdução

A confecção deste artigo se embasa nas experiências obtidas com o


projeto PIBID UFPR História 2: História e(m) Imagens, na aplicação de quatro
aulas para estudantes do primeiro ano do Ensino Médio no Colégio Bento
Munhoz da Rocha, em Curitiba. O tema selecionado para a atividade que será
aqui apresentada e discutida foi: Cristãos e vikings: a visão do outro no período
medieval.
Seguindo a proposta do projeto PIBID História e(m) Imagens — a
utilização do cinema e das histórias em quadrinhos como ferramenta de ensino
e aprendizado —, buscamos utilizar diferentes recursos didáticos para discutir
com os alunos a construção de um ideal do que é o outro em oposição a si
mesmo, focando nossas atenções na relação entre cristãos e vikings durante o
período medieval. Dois importantes materiais utilizados por nós na aplicação
das aulas foram trechos de filmes e quadrinhos do personagem Hagar, visando
a demonstrar como conceitos construídos sobre os vikings por escritores
cristãos do século IX perduram até os dias atuais como um estereótipo
consolidado sobre tal povo.
Devido à importância de tais recursos e a natureza de nosso projeto,
julgamos necessário que, antes de entrar em uma descrição mais detalhada das
aulas ministradas, o presente artigo contenha uma breve discussão sobre a

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 158


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

aplicação de ambas as mídias no ensino.

A utilização do cinema como ferramenta didática no ensino de História

Ao realizar a aplicação do cinema como um recurso em sala de aula há


diversas variáveis a se considerar. Segundo Silva (2004), um dos maiores
problemas que podem decorrer da utilização do cinema em sala de aula é a
transformação do filme em um elemento ilustrativo, ou seja, algo que substitua a
experimentação com o fato histórico. O resultado dessa má aplicação do cinema
é a possibilidade de que os alunos acabem por tomar o filme exibido pelo
professor como o passado em si e não uma representação deste.
Conforme aponta o autor, o maior efeito deste processo é que o
estudante passa a perceber o filme enquanto uma fonte documental, como se
tratasse propriamente de uma fonte do período. Essa percepção por sua vez
bloqueia na mente do aluno a noção de que o filme é também um texto, uma
representação do passado, e que se deve aplicar os mesmos métodos de leitura
do que para textos de demais suportes, eliminando boa parte do senso crítico de
tal aluno quanto ao objeto analisado.
A fim de evitar essa indesejável possibilidade, deve haver por parte do
professor um trabalho anterior à exibição do filme, uma discussão com os
alunos que lhes dê ferramentas para uma melhor compreensão do material que
se pretende utilizar. Dessa forma, antes de se trabalhar com o filme, é preciso
que o professor o coloque em seu próprio lugar no tempo, seu próprio contexto
de produção. O intuito disso é fazer com que o aluno compreenda que, assim
como qualquer texto historiográfico, o filme faz referência a um passado, mas
não serve como substituição deste. É necessário trabalhar também com os

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 159


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

alunos, anterior e posteriormente à exibição do filme, a noção, também


apresentada por Silva, de que todo filme carrega em si um subtexto, uma
mensagem contemporânea que pretende transmitir, usando a representação do
passado como um meio para fazê-lo.
Se utilizado com precaução, de modo a evitar sua transformação em
elemento ilustrativo como abordado acima, o cinema pode ser uma grande
ferramenta didática a ser aplicada em sala de aula, pois pode ser tanto uma
fonte de entretenimento quanto de aprendizado, ofertando ao professor a
possibilidade de dinamizar suas aulas. E, como o cinema, os quadrinhos
também desempenham esse papel.

A utilização das histórias em quadrinhos como ferramenta didática no ensino


de História

Assim como o cinema, as histórias em quadrinhos são uma grande


possibilidade para que o professor consiga estabelecer um melhor diálogo com
seus alunos. Porém, diferentemente do que se observa em relação aos filmes,
muito mais utilizados como elemento didático, os quadrinhos ainda enfrentam
um preconceito quanto à sua aplicação em sala de aula. Segundo as
considerações feitas por Vergueiro (2005), os quadrinhos ainda sofrem uma
espécie de desconfiança com relação aos efeitos que podem provocar em seus
leitores. O autor aponta que os adultos, incluindo muitos dos professores, têm
dificuldade em acreditar que os quadrinhos, que geralmente visam a um
público mais jovem, possam ser fonte de conhecimento e aprimoramento
cultural para seus leitores.
Segundo o que destaca o autor, um dos maiores responsáveis pelo

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 160


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

surgimento dessa desconfiança é o elemento imagético presente nas histórias


em quadrinhos, vistas como um elemento que afastaria os jovens de leituras
mais profundas, ou seja, serviria mais para desestimular do que incentivar a
leitura. Entretanto, segundo o que aponta Santos (2003), um dos principais
potenciais didático-pedagógicos dos quadrinhos é justamente o incentivo à
leitura. Para o autor, a utilização dos quadrinhos pode ser uma grande aliada
na empreitada de iniciar o jovem no caminho de consolidação do hábito e
prazer de ler. É justamente a natureza imagética dos quadrinhos que pode ser
um incentivo à leitura.
Podemos observar, segundo aponta Vergueiro, que nas últimas três
décadas do século XX deu-se o surgimento de vários estudos abordando as
vantagens da utilização dos quadrinhos no ensino. Dentro desse processo, ele
aponta que os quadrinhos vêm sendo utilizados com sucesso em livros
didáticos há três décadas. O autor comenta que o mau uso da ferramenta pode
gerar consequências indesejadas, como por exemplo o reforço de estereótipos.
Entretanto, a linguagem dos quadrinhos pode torná-los grandes aliados do
ensino. Segundo ele, a união entre texto e desenho consegue tornar mais claros
para o jovem conceitos que continuariam abstratos se confinados
exclusivamente à palavra. Da mesma forma, a sequencialidade estrutural da
narrativa nos quadrinhos, com um desenho sucedendo ao outro de forma
fragmentada, exige uma maior participação do leitor, que precisa usar da
imaginação para preencher os momentos não mostrados.
Elísio aponta que basta que educadores e pais percam seu preconceito
em relação à história em quadrinhos para que percebam nela um forte aliado na
formação dos jovens. Seu emprego no processo de aprendizado pode auxiliar a
transição de conhecimentos, despertar interesse e criar o hábito da leitura,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 161


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

incentivar uma leitura mais crítica e desenvolver a criatividade. A partir da


utilização dessas duas fontes didáticas, cinema e quadrinhos, planejamos a
atividade aqui apresentada.

Atividade "Cristão e vikings: a visão do outro no período medieval"

A atividade aqui apresentada consistiu em uma oficina que ocupou


quatro aulas da disciplina de História de uma turma de primeiro ano do Ensino
Médio, série na qual os alunos têm o contato com o mundo medieval. A escolha
do tema, como o próprio título sugere, vem da necessidade que identificamos
em explorar a construção da imagem dos povos, realizada ao longo da História.
Nos propusemos a trabalhar com os alunos a maneira pela qual essa prática
ocorre, muitas vezes estabelecendo ou reforçando estereótipos que, não raro,
chegam aos nossos dias, como é o caso dos vikings, tratados de maneira mais
específica por este artigo. Além disso, como afirma Langer (2002), entendemos
que o espaço dedicado aos nórdicos nos currículos do Ensino Básico é ainda
bastante inexpressivo, situação que procuramos mitigar com a realização da
oficina.
Consideramos também importante, numa época em que o mundo vê
emergirem conflitos diários acerca da construção de identidades, a exemplo da
situação dos refugiados pelo mundo, trabalhar com os alunos a maneira pela
qual a História pode, ainda que tentando fugir de anacronismos, nos ajudar a
entender conflitos e os preconceitos nos quais eles são enraizados. Assim,
buscamos demonstrar com a atividade que, seja no mundo medieval, seja no
contemporâneo, a imagem que se tem do outro ainda é um fator primordial
para as relações entre os povos. Tendo esse planejamento como base,

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 162


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

apresentamos o desenvolvimento da oficina.

Aula 01 - Aproximação com os alunos

A primeira aula consistiu na apresentação do planejamento que estava


sendo proposto. Para tanto, optamos por tratar de maneira um pouco mais
detalhada as propostas do projeto História e(m) Imagens, demonstrando para
os alunos a maneira pela qual o cinema e as histórias em quadrinhos podem ser
trabalhados como fontes didáticas, tema que acabou por atrair o interesse dos
participantes.
Utilizamos um questionário para diagnóstico do que os alunos
conheciam sobre os vikings, composto de três questões: na primeira,
fornecemos a imagem estereotipada do que seria um viking, um homem alto e
forte, com o capacete em chifres e um machado desproporcional. Os alunos
deveriam listar as três primeiras palavras que relacionavam com a imagem. As
respostas à questão foram bastante próximas, e as associações com roubo,
violência, ganância e barbárie foram frequentes. A segunda questão pedia que
os alunos descrevessem como achavam que as relações entre os povos cristãos
medievais e os não-cristãos haviam sido. Nessa questão, a maioria das respostas
apontou também para uma relação cheia de conflitos e com pouco
entendimento entre os povos. A última questão foi voltada para o tipo de
recurso que seria utilizado na atividade, questionando se os alunos acreditavam
que poderiam aprender História a partir do cinema e dos quadrinhos. A grande
maioria das respostas para esse questionamento foi afirmativa, o que pode
indicar que as nossas considerações feitas sobre o tema no início da aula podem
ter sido levadas em conta na resposta. Como não solicitamos que os alunos se

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 163


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

identificassem nos questionários, as respostas foram bastante sinceras e


proveitosas para a elaboração das aulas.

Aula 02 - Apresentando os cristãos e os vikings

Esta aula foi o momento mais teórico da atividade, de apresentação de


conceitos fundamentais acerca dos cristãos e dos povos vikings, e também de
informações sobre construção de identidades. Primeiramente, consideramos
necessário discutir com os alunos o próprio conceito de Europa, problematizado
por Febvre (2004). Visto que tanto a região escandinava quanto setentrional do
continente, bem como as áreas mediterrâneas e as ilhas ao norte fazem parte do
que hoje podemos até chamar de unidade cultural e geográfica, era importante
explicar por que na Idade Média não havia essa unidade cultural por todo o
território, levando-se em conta que essas mesmas áreas abrigavam povos de
tradições bastante distintas. Sendo assim, utilizando a ideia de Cristandade,
tratamos da diferença entre esse mundo cristão e latino e o mundo no qual
viveram os povos vikings. Na sequência, apresentamos os chamados povos
vikings, buscando caracterizá-los como um grupo que vivenciava todos os
aspectos do cotidiano e não apenas o aspecto do conflito que assumiam nas
raids que empreendiam contra os cristãos. O objetivo de apresentarmos esses
conceitos foi o de mostrar que a concepção do viking como bárbaro é uma
construção, feita por indivíduos que viram apenas uma das faces desse povo.
Além disso, buscamos demonstrar também que a convivência entre os cristãos e
os vikings foi realmente marcada por muitos conflitos e inimizades, porém
repleta de trocas e acordos políticos, visto que muitos nórdicos acabaram se
estabelecendo em territórios cristãos.

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Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

Aula 03 - Os vikings no cinema e nos quadrinhos

Dando sequência à oficina, procuramos enfatizar o aspecto mais prático


da atividade. Nessa etapa, exibimos uma animação em curta metragem
intitulada A Saga de Biorn — The Saga of Bjorn, no original. Neste vídeo, os
alunos puderam acompanhar a história de Biorn, um viking já velho que
procura incessantemente a morte em batalha que o levará ao Valhalla, o palácio
que, de acordo com a religião nórdica, era destinado à alma dos guerreiros.
Outro vídeo exibido nesta etapa da oficina foi o trailer do filme Desbravadores
—Pathfinder, no original — que apresenta, de maneira estereotipada, uma
viagem de guerreiros vikings ao novo mundo, onde aterrorizaram a população
local.
A próxima etapa da atividade envolveu análise de tiras de quadrinhos
do personagem Hagar, o horrível. No total de sete histórias que foram
entregues aos alunos havia temas diversos, como a relação entre os vikings e os
cristãos, entre os próprios vikings, a violência, o excesso no consumo de comida
e bebida, e sobre a ação de missionários cristãos em terras escandinavas. Essa
etapa da oficina também contou com o interesse e com a participação por parte
dos alunos, que leram os quadrinhos em voz alta, seguindo as falas dos
personagens. Com a apresentação desses materiais, promovemos uma
discussão acerca de como os estereótipos não representam as populações, mas
focam-se em características específicas e as perpetuam, estabelecendo-as como
verdades.

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Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

Aula 04 - Avaliando a mudança no entendimento sobre os vikings

A última aula da oficina foi dedicada a avaliar o que os alunos


aprenderam com o trabalho realizado acerca da construção de identidades.
Dessa maneira, realizamos uma atividade avaliativa individual e com consulta
às anotações de aula, que se consistiu de perguntas que buscavam instigar a
capacidade dos alunos de analisar documentos históricos.
A primeira questão trabalhou com descrições medievais sobre os vikings,
retratando-os de maneira pejorativa. Questionamos os alunos se essas
descrições eram tudo o que os povos escandinavos representavam. Na questão
seguinte, buscamos oferecer um contraponto com o mundo contemporâneo,
fornecendo o trecho de uma reportagem que tratava da vida de refugiados
sírios na Alemanha, e de como as pessoas que os acolheram haviam aprendido
a questionar os estereótipos, que não se confirmaram no convívio entre as duas
culturas.
Com o resultado das avaliações, pudemos perceber que a maioria dos
alunos mudou de opinião em relação aos vikings no decorrer da oficina, pois
pudemos comparar as respostas da avaliação com o questionário inicial
aplicado na primeira aula da atividade. Eles passaram a entender que o
estereótipo clássico sobre os vikings é pejorativo, focado em apenas um aspecto
deturpado de sua cultura, e não representa a totalidade das atividades em
sociedades escandinavas. Assim, a elaboração da oficina mostrou-se positiva e
os objetivos de trazer uma nova imagem sobre os vikings foram alcançados,
além da relação positiva que realizou-se com o presente, abordando a questão
dos refugiados.

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Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

Conclusão

Como aponta Langer (2002), estereótipos estão presentes no imaginário


da sociedade contemporânea, e assim estiveram também em mundos passados.
O caso aqui estudado trabalhou a construção desses estereótipos sobre os
vikings na Idade Média, problematizando e questionando a veracidade de tais
interpretações. Como uma oficina voltada para o público do Ensino Médio,
optamos por trazer esse tema relacionado aos conflitos presentes acerca de
refugiados vivendo em países dos quais não são naturais, que têm sido
noticiados nos meios de comunicação.
Assim, com as aulas ministradas, identificamos que, se em um primeiro
momento os alunos compartilhavam da visão do viking como o bárbaro que é
tradicionalmente atribuída a este povo, pudemos, através da utilização deste
mesmo estereótipo presente ainda hoje no cinema e nas histórias em
quadrinhos, ajuda-los a repensar essa proposição. Passando a entender a
cultura viking como todo um universo que vai muito além do aspecto
guerreiro, os alunos puderam também entender como essa imagem acerca dos
povos do norte foi construída pelos cristãos medievais e legada a nós.
Procuramos aqui apresentar a importância dessas discussões, uma vez
que os estereótipos construídos sobre determinado povo acabam cristalizados e,
sem a devida problematização, podem ser considerados como verdades. Não
raro, os povos assim representados são alvo de preconceitos e julgamentos.
Desta maneira, é tarefa dos educadores trabalhar para problematizar e
questionar essas interpretações, estimulando a reflexão mais crítica por parte de
seus alunos.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 167


Repensando os vikings em sala de aula... - Bruno Ercole e Thiago Natário 2016

Bruno Ercole e Thiago Natário são graduandos em História pela UFPR.


E-mail: bruno.ercole.camargo@gmail.com
E-mail: thiago_natario@outlook.com

Referências:

DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Guerras e cinema: um encontro no tempo


presente. In: Tempo, v. 8, n. 16, 2004, p. 1-22.

FEBVRE, Lucien. A Europa: Gênese de uma Civilização. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

LANGER, Johnni. Os vikings e o estereótipo do bárbaro no ensino de História.


História e Ensino, Londrina, v. 8, 2002, p. 85-98.

SANTOS, Roberto Elísio. A história em quadrinhos na sala de aula. In:


Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2003.

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: Como usar as histórias em
quadrinhos na sala de aula, v. 4, 2005, p. 7-30.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 168


Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do black metal... - Lauro Ericksen 2016

REMINISCÊNCIAS DO SAGRADO E AS ORIGENS NÓRDICAS DO


BLACK METAL NORUEGUÊS
Lauro Ericksen

Introdução

O artigo visa a abordar a questão atual do conteúdo lírico, poético e


filosófico, reminiscente da Era Viking, no Black Metal norueguês, em específico,
na banda Borknagar. Para tanto, é necessário fazer uma breve digressão
histórica na cena musical do Black Metal na Noruega do início da década de 90,
explicitando os objetivos iniciais do movimento denominado de Inner Circle, a
gênese desse cenário musical, observando sua tendência notoriamente anti-
cristã.
Ao abordar o Inner Circle e sua formação, justifica-se a escolha da banda
Borknagar como sendo o foco da presente abordagem, uma vez que ela se
diferencia em sua temática das demais bandas satanistas do início do
movimento. Sua temática viking se afasta da noção primitiva de anti-
cristianismo posta em relevo pelos demais membros do Inner Circle.
Em termos filosóficos, uma seção será destacada para fazer o resgate da
poesia nórdica/viking contida nas obras musicais do Borknagar, sob a égide do
pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, para o qual, “o poeta nomeia
o sagrado”. Combina-se à análise linguística de Heidegger, a ideia central do
pensamento de Platão de que o conhecimento é reminiscência, de modo que
lembrar algo é conhecer algo. Trilhando essas duas ideias principais,
argumenta-se filosoficamente que o Borknagar atinge um nível de expressão
pós-filosófica em suas músicas, por meio de sua temática.

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 169


Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do black metal... - Lauro Ericksen 2016

Inner Circle e a gênese do Black Metal: satanismo e anti-cristianismo

O Inner Circle foi um movimento iniciado, principalmente, por Øystein


Årseth, conhecido pelo codinome de Euronymous, líder da icônica banda
Mayhem, e que junto com outros amigos, como Kristoffer Rygg (Garm), Varg
Vikernes, Tomas Thormodsæter Haugen (Samoth) e Bård “Faust” Eithun
(principais membros), reuniram o embrião do Black Metal norueguês em sua loja
de discos Helvete, inferno, em norueguês (PATTERSON, 2013, p. 161). Sua base
ideológica consistia, precipuamente, em um forte teor anti-cristão, no retorno à
religiosidade nórdica pré-cristã e, eventualmente, em anti-semitismo (embora o
próprio Årseth fosse declaradamente um militante de esquerda).
Nesse turbilhão de segmentos culturais, molda-se a musicalidade e a
essência lírica do Black Metal norueguês nos anos 90. O grande ponto de
dissenso para os pesquisadores que se debruçam sobre esse tema consiste em
debater se o Inner Circle era um movimento eminentemente satanista ou se ele
apenas agregava tendências anti-cristãs, e, por isso, abarcava também
elementos culturais não necessariamente religiosos (numa luta ideológica),
dentre esses elementos, resquícios culturais vikings.
Os fatos mais marcantes desse movimento foram os incêndios
criminosos de igrejas na cidade de Bergen. O incêndio mais emblemático foi o
de Skjold, quando Samoth e Varg incendiaram uma igreja, foram presos, e
posteriormente a foto da igreja queimando foi usada como capa para um dos
Extended Plays (EP) da banda Burzum, liderada por Varg. Esparsamente, ao ser
perguntado pela motivação do incêndio, Samoth indicou que queria apenas
trazer de volta a religiosidade pagã dos vikings. Ainda que o movimento não
fosse propriamente organizado ou voltado para uma causa pagã ou viking em

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 170


Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do black metal... - Lauro Ericksen 2016

específico, há certas combinações entre rituais satanistas (perpetrados por


Euronymous no Mayhem) e supostas declarações em prol de uma temática
viking, como a retratada por Samoth.
Ainda assim, o conteúdo pagão ou viking contido no Inner Circle está
mais próximo de uma ritualística satânica que viking propriamente dita. A
história relata que as queimas de igrejas pelos vikings tinham o intuito de saque
e de conquista (econômica), como o assalto a Lindisfarne de 793 (GARDELL,
2003, p. 306), e não um direcionamento político, ideológico, ou religioso. Com
os incêndios, como no caso de Lindisfarne, os vikings queriam assegurar a
conquista do local, impingir terror aos monges cristãos e assolar o território.
Não havia nenhuma ritualística pagã em tais queimas de igrejas, como
supostamente levantou Varg quando foi preso, ao rememorar Lindisfarne como
inspiração para seus atos. Não é pelo fato de Varg tentar dar algum sentido
pagão aos seus atos criminosos que eles se convertem, automaticamente, em
uma defesa do paganismo. Sua personalidade bastante controversa mistura
elementos pagãos, satanistas e até cristãos, já que o nome da sua banda
principal, o Burzum, ainda que signifique “escuridão”, na língua élfica, deriva
da trilogia “O Senhor dos Anéis”, escrita por J. R. R. Tolkien, e tem um
conteúdo cristão evidente.
Os casos narrados servem apenas para expor que as principais
motivações das ações e das atividades dos membros do Inner Circle eram
ideologicamente comprometidas, eminentemente, com o satanismo, e não com
uma perspectiva viking direcionada a remeter ao passado de seus
antepassados.
Afirma-se, portanto, que o Inner Circle era um movimento
comprometido com temáticas satânicas em sua expressão artística (WESTON;

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 171


Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do black metal... - Lauro Ericksen 2016

BENNETT, 2013, p. 60), no entanto, nem todos os membros ficaram restritos a


tais atividades, nem ao próprio Black Metal. Esse foi o caso de Kristoffer Rygg,
conhecido como Garm. Sua banda principal, o Ulver, integrou o Inner Circle no
início da década de 90, e teve uma estreita relação com o satanismo. No entanto,
posteriormente, ele chegou até mesmo a se distanciar do Black Metal (Ulver se
direcionou para a música eletrônica) e ele fundou uma nova banda, o
Borknagar.
O nome Borknagar possui uma dupla explicação, a princípio. Refere-se,
inicialmente, ao mito escocês do Loch Nagar. Todavia, essa versão foi
desmentida pelo guitarrista da banda (membro fundador), Øystein G. Brun. A
segunda explicação, mais plausível e condizente com a temática da banda,
enuncia que Borknagar é um anagrama da palavra Ragnarök, acrescida de um
“B” para ficar pronunciável. Essa versão, ainda que mais plausível que a
anterior, nunca foi confirmada (ou desmentida) por nenhum membro da banda
(atualmente, o Brun é o único membro fundador que remanesce).
O Borknagar ganha especial destaque nesse trabalho por dois motivos:
sempre trilhou uma perspectiva viking em suas letras e em sua estética sem se
aproximar do satanismo do Inner Circle, e, por outro lado, nunca se associou ao
Viking Metal ou Folk Metal propriamente dito, não incorporando instrumentos
alheios ao Black Metal em sua musicalidade — exceto o álbum “Origin”, que é
totalmente acústico, e incorpora alguns instrumentos folclóricos como a Harpa
de Boca, Jew’s Harp (WAGNER, 2010, p. 274). Embora esse lançamento espúrio
possa ser tido como um ponto fora da curva na estética da banda, pois
nenhuma outra obra deles repetiu essa fórmula. Assim, o Borknagar é uma
banda que retém a essência (ou a reminiscência) viking em sua música sem
abandonar a estética do Black Metal por completo, assumindo, o que se

Notícias Asgardianas 10, Dossiê: Série Vikings 172


Reminiscências do sagrado e as origens nórdicas do black metal... - Lauro Ericksen 2016

verificará, mais adiante, uma perspectiva pós-filosófica no Black Metal.

Borknagar, Vikings e Filosofia: de Heidegger a Platão

Para que se possa chegar à noção delineada no final do parágrafo


anterior, é de grande importância situar o cenário filosófico em que a atual
discussão se localiza. Há dois grandes pensadores que fornecem os elementos
estruturais necessários para que o presente debate seja empreendido
satisfatoriamente: Martin Heidegger e Platão.
Martin Heidegger é um filósofo alemão do século XX, um dos grandes
pensadores de todos os tempos. Ele se dedicou, principalmente, a debater a
questão do ser, ou Seinfrage, como ele aponta em seus escritos. Ele possui 3 fases
bastante distintas de pensamento (PÖGGELER, 1987, p. 61), a primeira delas é
expressa em Ser e Tempo, obra em que ele aponta que tempo é ser, e que o
homem se compreende finitamente a partir dessa noção. A segunda fase do seu
pensamento está contida na obra O que é Metafísica, e envolve basicamente o
debate sobre a questão da técnica e equipara o ser à historicidade. Na última
fase de seu pensamento, caracterizada nos Beiträge, Heidegger se foca na
questão da linguagem e como a poesia é a expressão máxima dos valores e do
sagrado. Suas duas primeiras fases são associadas, respectivamente, ao
cristianismo e ao existencialismo, ao passo que a terceira fase é identificada com
uma perspectiva pós-filosófica gnóstica (pagã).
Heidegger (1969, p. 33) coloca que o filósofo pensa o ser, mas o poeta
nomeia o sagrado, ou seja, a tarefa de dar uma estruturação plausível para a
realidade humana é a tarefa do pensador, do filósofo que se debruça sobre esses
temas, como o ser, o nada, a substância e a essência das coisas. No entanto, em

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um grau ainda mais elevado, cabe ao poeta nomear o sagrado, ou seja, é o poeta
quem, em última instância, estabelece os valores essenciais para uma sociedade,
é ele quem coloca algo ou algum posicionamento como digno de respeito ou,
inversamente, busca retirar aquele valor como correspondente a uma boa
conduta dentro do aspecto comunal.
O poeta, nessa perspectiva, trilha o caminho de um “crítico de gosto”
contemporâneo. Por meio do seu julgamento do que é valorativamente
relevante, o poeta, retoricamente, estabelece os padrões de conduta e de
convivência na sociedade. Ele não define, estruturalmente, por meio de
definições sobre o “ser”, o que é ontologicamente adequado ou verdadeiro. De
uma maneira artística, o poeta nomeia quais os valores que são devidos e como
eles devem ser ritualisticamente entranhados na sociedade.
Heidegger (2008, p. 12), na primeira fase de seu pensamento, assumia
uma perspectiva anti-metafísica (rejeição de conceitos e de sistemas filosóficos);
na segunda fase assumia uma postura anti-filosófica (rejeitava a possibilidade
de uma totalidade e de uma essência); na terceira fase, utilizada
metodologicamente na presente abordagem, Heidegger acaba por assumir uma
perspectiva pós-filosófica. Por pós-filosofia não deve se entender que ele rejeita
todo o conteúdo filosoficamente apreensível pelo homem. Aliás, pelo contrário,
ao se falar em pós-filosofia deve-se sempre ter em relevo que ela se orienta pelo
norte filosófico de toda a história ocidental. A pós-filosofia só pode ser
compreendida na mesma medida em que se compreende a filosofia como uma
forma de explicar o mundo desde a antiguidade.
A perspectiva pós-filosófica tem como definição principal que a
filosofia não é mais o centro das atenções do pensamento humano. Ela não é a
pedra de toque de todas as definições relevantes, tampouco é a única capaz de

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julgar todo o conhecimento ou todas as formas de apreensão de conhecimento


que são disponíveis ao homem. Assim, a filosofia não é o epicentro de todo o
conhecimento, tampouco deve se prestar a tal papel. Outras apreensões
estéticas, políticas, e culturais tomam seus respectivos círculos de valores,
espraiando-se para onde a filosofia não alcança, nem deve se intrometer.
Avançando para a segunda parte do argumento filosófico, é necessário
trazer ao debate a ideia platônica de que a reminiscência (ou anamnese) é que o
conhecimento é obtido apenas por meio de lembrança (ou memórias). No
universo dual platônico, dividido em mundo inteligível e mundo sensível, há
apenas plenitude no mundo inteligível, onde as ideias perfeitas não sofrem
depreciação, como no mundo sensível. Dessa forma, no mundo sensível temos
acesso apenas parcial à verdadeira essência das coisas, a própria sensibilidade
do mundo que nos é acessível deturpa a realidade. Assim, o que se tem acesso
como conhecimento, no mundo sensível, não é nada além que uma mera
lembrança (anamnese) de como aquilo ou aquela coisa é efetivamente disposta
no mundo inteligível. Dessa forma, conhece-se apenas por lembrança, de tudo
aquilo que há no mundo inteligível.
Recordar, portanto, é aprender, para Platão (1983, p. 82). A
reminiscência de algo passado é o elemento chave para o desenvolvimento do
homem, seus valores e suas perspectivas sociais encontram-se todas
engendradas com base na reminiscência. Aquilo que ele é capaz de recordar e
de lembrar é o que forma efetivamente a sua compreensão da realidade. Com
base nessa ideia platônica, é fácil compreender o modo como Heidegger coloca
o poeta como um crítico de gosto. Ao julgar o que ele já conhece, ele põe, ao
acesso de todos, um modo de conhecer os valores por ele cultivados, os quais,
aliás, já se encontravam disponíveis muito antes dele. Esse conhecimento

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ancestral, repassado de modo reminiscente, é a forma poética de se conhecer o


passado e de modelar o futuro a um só tempo.
Condensando os argumentos finais para o presente trabalho, há de se
sinalizar que o Borknagar agrega em suas músicas vários elementos traçados
até então, até mesmo no nome de algumas canções isso já fica evidente, como é
o caso da música “Future Reminiscence” do álbum “Epic”. Pode-se enquadrar
que a mencionada banda assume, portanto, uma postura pós-filosófica, e tem
em seu cerne musical um conteúdo epistemológico platônico evidente.
Primeiramente, ela pode ser considerada pós-filosófica, dentro do
contexto do próprio Black Metal, por não se ater nem às perspectivas satanistas
do início da década de 90 do Inner Circle, tampouco por não reproduzir uma
temática com direcionamento anti-cristão em seu conteúdo lírico. Ainda que o
ensejo pagão, com sua temática viking, seja mais do que evidente (vide músicas
como “The Eye of Odin” ou “To Mount and Rove”), o Borknagar não necessita
de uma contraposição, nos moldes hegelianos (composto metodologicamente
de uma sequencia encadeada por tese, antítese e síntese), para que seja obtido
um resultado musicalmente adequado, ou para que haja um reforço ideológico
em sua estética. A perspectiva pós-filosófica exposta defende justamente que é
indiferente que haja essa defesa ferrenha dos ideais pagãos para que os
objetivos propostos na temática poética da banda sejam alcançados.
O conhecimento oferecido pós-filosoficamente pelo Borknagar reside na
reminiscência da cultura viking, e é nesse ponto que reside a sua inovação e a
sua singularidade perante outras bandas do cenário do Black Metal norueguês.
Não há, portanto, uma rejeição direta e evidente por sua parte nem do
satanismo nem do cristianismo, sua perspectiva de compreensão poética e
estética está muito além dessa dualidade, por isso, sua dinâmica é pós-

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filosófica. Assim sendo, há de se reconhecer que, liricamente, o Borknagar se


coloca como um poeta que nomeia o sagrado, por meio da ambientação viking e
de seus elementos culturais, inserindo essa temática nos círculos culturais
contemporâneos, principalmente nos meandros da cultura do heavy metal.

Considerações finais

Derradeiramente, há de se colocar que o Borknagar assume uma


postura inovadora, tanto do ponto de vista musical, quanto estético em um
sentido mais amplo, político, se possível, ao se direcionar rumo a uma pós-
filosofia poética em sua expressao artística. Apartando-se do satanismo
tradicionalmente atrelado ao Black Metal, do mesmo modo que não se faz uma
oposição direta e forte ao cristianismo, o Borknagar consegue o status de ser
uma banda única e inovadora, que promove a reminiscência de valores
culturais caros aos vikings, em suas narrativas mitológicas e em seus valores de
convivência.
Assim, a banda em relevo se destaca perante outras que surgiram no
Inner Circle, ou em decorrência de sua fama nos anos 90, sendo um modelo pós-
filosófico na música contemporânea, podendo-se estender aos seus músicos a
pecha de poetas que nomeiam o sagrado.

Lauro Ericksen é doutorando em Filosofia (UFRN).


E-mail: lauroericksen@yahoo.com.br

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Referências:

GARDELL, Mattias. Gods of the Blood: The Pagan Revival and White Separatism.
Durham: Duke University Press, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Beitra ge zu einem Kolloquium mit Heidegger aus Anlass


seines 80. Heidelberg: C. Winter, 1969.

___________. Ser e Tempo. Trad. Márcia Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008.

WAGNER, Jeff. Mean Deviation: Four Decades of Progressive Heavy Metal. New
York: Bazillion Points, 2010.

PATTERSON, Dayal. Black Metal: Evolution of the Cult. Port Townsend: Feral
House, 2013.

PLATÃO. Fédon. Trad. Maria Teresa Schiappa Azevedo. Coimbra: Instituto


Nacional de Investigação Científica, 1983.

PÖGGELER, Otto. Martin Heidegger's Path of Thinking. Atlantic Highlands:


Humanities Press International, 1987.

WESTON, Donna; BENNETT, Andy. Pop Pagans: Paganism and Popular Music.
Durham: Acumen, 2013.

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LANGER, Johnni. Review of Viking Age Iceland (resenha). Notícias Asgardianas


n. 44, fevereiro-março de 2004.

LANGER, Johnni. Vestígios de cabelos vikings estão sendo estudados na


Inglaterra (tradução). Notícias Asgardianas n. 45, julho-agosto de 2004, p. 16.

LANGER, Johnni (Organização de entrevista). Medievalismo e literatura


medieval: entrevista com Prof. Dr. José Rivair Macedo. Notícias Asgardianas n.
44, fevereiro- março de 2004.

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