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A história do Rei Viking Harald Dente Azul

14 de Maio de 2019

“Up Helly Aa” (ou “festa para todos”) é o nome dado pelos habitantes das ilhas Shetland a esta
comemoração do mês de Janeiro, durante a qual, vestidos com disfarces de outras épocas,
queimam a réplica de um barco viking enquanto entoam cânticos de guerra. Fotografia: David
Moir / Reuteurs

Texto: Siebo Heinken


Fotografias Heiner Müller-Elsner
Ilustrações: Franziska Lorenz e Jochen Stuhrmann

Aproximadamente no ano 960, em algum ponto do que hoje é a Dinamarca,


um guerreiro viking chamado Harald Blåtand (Harald “dente azul”) recebeu
na sua corte um eclesiástico proveniente do sul, enviado pelos germânicos
para cristianizar as gentes do norte pagão.

Tratou-se de um encontro de importância transcendente. No decurso de um


banquete, o rei e o monge Poppo discutiram sobre quem tinha mais poder, se o
deus dos cristãos se os deuses dos vikings. Poppo, provavelmente procedente
de Würzburg, viajava por aquelas paragens para anunciar a palavra de Cristo.
Porém, ao céptico chefe não bastava a mensagem da Bíblia. “Dá-me uma
prova!”, exigiu. O monge pegou então num ferro em brasa (sistema popular
durante a Idade Média para apurar a verdade perante a justiça). Rezam as
crónicas que quando Poppo retirou a mão do metal incandescente não sofrera
nenhuma lesão. Sinal de Deus! Nada mais foi preciso para que Harald se
convertesse.

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O seu baptismo, celebrado em 965, inaugurou uma nova era para Harald
Dente Azul e para os vikings, dando início à sua integração definitiva na
Europa medieval. “Harald Dente Azul era um visionário”, explica Jörn
Staecker, arqueólogo da Universidade de Tübingen e perito em cultura viking.
“As suas políticas transformaram para sempre a Escandinávia e serviram de
base às monarquias nórdicas tal como hoje as conhecemos.”

A ideia de um líder de tal envergadura entre os vikings choca com alguns


preconceitos que a cultura popular construiu sobre os navegadores do Norte.
Não existe provavelmente em toda a história da Europa um povo com pior
fama do que os vikings. Eles saquearam e mataram a bel-prazer, semeando o
terror à sua passagem, desde o mar do Norte até ao Mediterrâneo. Durante
quase três séculos, boa parte do continente viveu sob a ameaça das suas
temidas incursões.

Irromperam no cenário alto-medieval em princípios do Verão de 793, ao


desferirem um ataque contra o mosteiro de Lindisfarne, na costa oriental de
Inglaterra. “No oitavo dia do mês de Junho, a ira dos pagãos destruiu a igreja
de Deus de Lindisfarne com latrocínio e matança.” É com estas palavras que a
“Crónica Anglo-Saxónica” comenta o assalto lançado contra aquele centro
espiritual do reino de Nortúmbria, um dos mais importantes da cristandade
céltica.

Nesse dia, avistaram-se no mar barcos velozes e leves cujo recorte denotava
origem estrangeira. Pouco antes de alcançarem a costa, os seus tripulantes
arriaram as velas quadradas, saltaram para terra e lançaram-se ao ataque com
machados, lanças e espadas. Ninguém poderia travar a sua marcha naquela
indefesa fortaleza da fé. No espaço de poucas horas, os atacantes, que tinham
atravessado o mar do Norte provenientes da Dinamarca ou da Noruega,
acabaram com a vida de grande parte dos monges de Lindisfarne.

Depois da investida, levaram consigo os sobreviventes, na qualidade de


cativos: os escravos rendiam sempre bom dinheiro. Os vikings profanaram os
altares, apoderaram-se do ouro e das jóias e foram-se pelo mesmo caminho
por onde tinham chegado. “No templo de Deus, espezinharam os corpos dos
santos como quem pisa excrementos pelo caminho”, lamentava-se Alcuíno de
York, conselheiro inglês de Carlos Magno.

Incursões deste tipo, nas quais o arqueólogo dinamarquês Ole Crumlin


Pedersen vislumbra o primeiro “conflito entre civilizações”, tornaram-se
conhecidas como “saídas à viking”. Para os antigos escandinavos, que
prestavam culto a Odin e a Thor, os preceitos e proibições dos cristãos não
tinham a menor relevância.

No ano de 841, os víkingr (assim denominados em norso antigo, talvez com


origem em vík, “baía”, ou wik, “mercado”) atacaram a cidade de Rouen, no
Norte de França, e, quatro anos mais tarde, saquearam Hamburgo. Seguiram-
se Paris, York, Dublin e Londres. Dorestad, importante entreposto comercial
localizado onde hoje fica a Holanda, era saqueado praticamente todos os anos.
Ao longo dos grandes rios e do litoral, as populações locais foram construindo
postos de vigilância, que contudo não proporcionavam qualquer protecção
contra o fogo e a morte vindos do Norte. De vez em quando, os vikings
atacavam os mosteiros francos. Eram um tesouro fácil de pilhar e que servia
para recompensar os guerreiros e dar graças aos deuses.

Foi então que surgiu Harald Dente Azul e os cristianizou. Em poucas décadas,
todos os antigos traços de identidade do orgulhoso povo viking sofreram
mudanças profundas. Quem seria aquela personagem que alterou o futuro do
seu povo? Como seria o universo por si governado? Como consolidou o seu
poder? E que legado deixou?

Os historiadores deste Rei dos dinamarqueses baseiam-se sobretudo na


investigação arqueológica. A grande maioria das crónicas dessa época foi
escrita pela pena dos monges evangelizadores e, em geral, são (tal como as
sagas, recolhidas mais de dois séculos depois) pouco rigorosas, tendenciosas
e, por vezes, inverosímeis. “Monges como Adão de Bremen apresentavam
sempre as comunidades pagãs como rudes e brutais, para maior glória do seu
próprio labor”, afirma Jörn Staecker. Por esse motivo, afigura-se fundamental
uma interpretação científica quando se trata de reconstituir o mundo que
Harald Dente Azul veio revolucionar.
OS DOMÍNIOS DE DENTE AZUL: A partir da sua corte em Jelling, Harald Dente Azul
construiu um reino que abrangia, além da actual Dinamarca, a costa ocidental da Suécia e o Sul
da Noruega. A fronteira meridional denominava-se Danevirke, um complexo defensivo com 30
quilómetros de extensão, nas imediações do enclave comercial de Haithabu, formado por sete
muralhas e por um sistema de imobilização de embarcações no rio Schlei cujas origens, segundo
as investigações mais recentes, remontam ao século VII. Mapas: Ralf Bitter / NGM-DE

Nos alvores da Idade Média, a Europa encontrava-se em plena transformação.


Roma não só havia legado ao continente as suas cidades, as estradas
empedradas e a cultura, mas também o cristianismo como religião dominante
na maior parte do seu território. Na segunda metade do primeiro milénio, a
nova fé foi-se consolidando gradualmente no coração do Ocidente europeu. O
baptismo do rei dos francos Clóvis em Reims, no ano de 498, é um marco que
assinala o arranque da cristianização. Os monges viajavam anunciando a
palavra de Deus. Trezentos anos mais tarde, Carlos Magno encabeçava uma
Europa cristã unida pela primeira vez desde o mar do Norte até ao
Mediterrâneo, desde a Normandia até ao Sul de Itália. Em 804, integrou
igualmente os saxões do Elba. A sua área de influência chegava até ao
Danevirke, a muralha fronteiriça dos vikings. Foi neste pano de fundo que, em
962, Otão I assumiu a liderança do Sacro Império Romano-Germânico. O
complexo de muralhas que se erguia nas imediações da actual cidade de
Schleswig (hoje em território alemão) separava a Europa cristã do território
pagão, onde Harald Dente Azul exercia o seu governo.

Para lá do Danevirke, espraiava-se uma paisagem dura e inóspita. A Jutlândia


era uma extensa planura sulcada por rios e pântanos. Para norte, ficava a
península da Escandinávia, uma sucessão infindável de florestas e lagos. Nas
cordilheiras ermas e ao longo do recortado litoral da actual Noruega, o
transporte de mercadorias era particularmente complicado. O único solo fértil
encontrava-se em vales apertados e nas zonas ribeirinhas. Grande parte da
população vivia em condições deploráveis, sujeita ao jugo dos chefes locais.
As incursões melhoravam um pouco essas condições, mas, em regra, serviam
sobretudo para granjear fama e honra.

Desde os fiordes do mar da Noruega às ilhas do Báltico, os vikings


partilhavam uma língua comum e crenças religiosas semelhantes. Guerreiros
valentes e engenheiros navais de excepção, eram também grandes
navegadores e hábeis comerciantes. Numa época em que apenas se possuía
uma vaga ideia da morfologia da Europa (para não falar das outras regiões do
mundo), os vikings percorreram o Norveg, o “caminho do Norte”, até ao
Árctico, cruzaram o oceano Atlântico até à Gronelândia e terão sido os
primeiros europeus a pôr o pé na América, chegando aproximadamente no ano
1000 às costas da Terra Nova. Colonizaram a Islândia e outras ilhas do
Atlântico Norte. Alcançaram o mar Mediterrâneo franqueando o estreito de
Gibraltar com as suas embarcações e navegando pelos rios da Rússia até
atingirem o próprio mar Negro. Mantiveram trocas comerciais com
Samarcanda, no actual Usbequistão, um enclave na Rota da Seda que
prosseguia até à China.

O MUNDO DOS VIKINGS

Após o ataque desferido contra o mosteiro inglês de Lindisfarne em 793, os


vikings tornaram-se o terror da Europa durante quase três séculos, mas
também foram bons comerciantes e exploradores de destinos longínquos.

ATÉ À AMÉRICA: Os vikings colonizaram a Islândia e a Gronelândia e, por volta do ano


1000, terão chegado à costa da Terra Nova. Foram os primeiros europeus a pisar solo
americano, adiantando-se cinco séculos aos navegadores ibéricos.

Na construção naval, eram herdeiros de uma antiquíssima tradição nórdica,


embora importassem a vela das culturas do Sul da Europa. Percorriam
enormes distâncias guiando-se pelo Sol e pela ondulação, pelo voo das aves e
pelas suas próprias referências. Os restos reconstituídos do Roskilde 6 (que,
com 37 metros de comprimento, é o maior navio viking descoberto até à data)
podem ser vistos, junto de outras embarcações da mesma época, no Museu
dos Navios Vikings da cidade de Roskilde, na ilha dinamarquesa de Sjæland.

No fim do século VIII, os vikings fundaram na extremidade do Schlei, um


braço de mar com 42 quilómetros de comprimento no Sul da península da
Jutlândia, um porto comercial a que chamaram Haithabu, nome que, em
tradução livre, significa “povoado do urzal”. A escolha do sítio não podia ser
melhor: as mercadorias destinadas ao mar do Norte precisavam de percorrer
apenas 18 quilómetros por terra até chegarem ao rio Treene, onde
embarcavam rumo à costa ocidental. Evitava-se assim um longo percurso em
volta, passando pelos estreitos de Kattegat e Skagerrak ou pelo fiorde de
Limfjord, no Norte da Jutlândia, numa época em que não havia rede viária
nem, como é evidente, existia o canal de Kiel. Haithabu tornou-se o principal
centro logístico do comércio de longa distância.

Há muito que aquele povoado passou à história, mas um museu recorda hoje o
seu passado glorioso. Uma maqueta mostra-nos como estava edificado. Em
mais de vinte pontões de acostagem, que chegavam a avançar 50 metros mar
adentro, os navios mercantes eram carregados e descarregados. Os estudos
arqueológicos localizaram também em Haithabu vestígios de um navio de
guerra construído no ano de 985, conhecido por Pecio 1. Com 31 metros de
comprimento, veloz e excepcionalmente elegante, pode bem ter sido a
embarcação a bordo da qual Harald Dente Azul e, mais tarde, o seu filho
Svend Barba Fendid visitaram os seus domínios meridionais.

Ao longo de uma via principal construída em tabuado, paralelamente à orla


marítima e às vielas, erguiam-se edifícios baixos e maciços onde fundidores,
ourives, torneiros e tecelões desenvolviam a sua actividade. Albergava
possivelmente uma população máxima de 1.500 habitantes.

Provenientes do Norte, chegavam a Haithabu carregamentos de madeira,


presas de morsa, esteatite, couro e peles que eram trocados, nos próprios cais
da vila, por tecidos, vidro, jóias, sedas, especiarias e prata do Oriente, trazidos
até ao Schlei por intermediários russos. Muitas matérias-primas eram de
imediato transferidas para as oficinas dos artesãos locais. “Era um povoado
ruidoso e, provavelmente, horrível devido às águas residuais e matérias
fecais”, afirma Ute Drews, directora do museu.

Em breve, Haithabu começou também a atrair missionários. A partir de 850,


aproximadamente, o povoado passou a dispor de um templo cristão, talvez
afastado da zona mercantil e que servia igualmente de ponto de encontro para
viajantes.

Os vikings mostraram-se tolerantes para com os forasteiros e permitiram que


os monges cristãos desenvolvessem a sua missão evangelizadora dentro dos
seus domínios. Durante longos serões invernais, os escaldos (os seus poetas e
cantores) entoavam composições que continuavam a falar do reino dos
gigantes e dos deuses, entre os quais se destacava Odin com o seu corcel de
oito patas, Sleipnir. Cantavam sobre a terra de Midgard, o mundo dos homens
(na qual se baseou Tolkien para conceber a Terra Média, de “O Senhor dos
Anéis”), sobre Asgard, o mundo dos deuses, e sobre Utgard, morada das
forças das trevas.

Também entoavam certamente cânticos sobre o Valhala, destino dos


guerreiros valentes tombados em combate, e sobre o Hel, o reino dos mortos.
Alcançavam-no os defuntos a bordo de magníficos barcos: os mais famosos
foram encontrados pelos arqueólogos nos túmulos de Gokstad e de Oseberg,
nos arredores de Oslo. Ou talvez os mortos viajassem em barcos simbólicos,
representados por meio de alinhamentos de pedras sobre as tumbas, como os
que podemos ver em Lindholm Høje, perto do fiorde dinamarquês de
Limfjord: uma paisagem onírica com uma frota inteira varada e petrificada.

A crença no outro mundo própria dos cristãos, a ideia de salvação, era


completamente estranha aos vikings. A alma imortal era indiferente. “As boas
e más acções de um indivíduo não eram importantes. O aspecto mais relevante
era uma boa reputação, sinónimo de que, depois da morte, as povoações
continuaram a falar dele”, explica o filólogo austríaco Rudolf Simek, da
Universidade de Bona. Desta maneira compreende-se igualmente a ideia do
enterro como um grande acontecimento que deixava marcas profundas. Os
vivos jamais esqueciam aquilo que o defunto levava consigo no barco dos
mortos e os mortos permaneciam para sempre na memória.

Harald Dente Azul nasceu e foi criado neste universo maravilhoso, mas a sua
sociedade já começara a abrir as portas à nova religião que, pouco a pouco, se
infiltrava no imaginário pagão. Os vikings estavam dispostos a aceitar Cristo
se este lhes prometesse mais vantagens do que as velhas divindades. Ou se
Odin e Thor os abandonassem.

Gorm, pai de Harald Dente Azul, tinha-se imposto a outros chefes rivais e, em
meados do século X, fundara na Jutlândia central, cerca de 150 quilómetros a
norte de Haithabu, uma monarquia centralizada em que, pela primeira vez, o
poder era hereditário. Tudo indica que Gorm e o seu filho reinaram juntos a
partir de 936, durante aproximadamente duas décadas.

Harald teria cerca de 18 anos quando, num encontro com Unni, arcebispo de
Hamburgo-Bremen, conheceu o cristianismo. Gorm não via com bons olhos
aquela religião, mas, segundo alguns monges, o seu filho era bastante mais
receptivo e, com efeito, autorizou Unni a celebrar missa. É provável que
percebesse também a ameaça que se aproximava vinda do Sul: Otão I,
imperador cristão do Sacro Império Romano-Germânico, estava decidido a
propagar a palavra de Jesus mesmo que fosse pela força, e não somente por
convicção pessoal mas porque isso também lhe asseguraria influência política
e económica.

Ignora-se qual seria o aspecto morfológico de Harald. As únicas imagens dele


existentes são as placas de ouro da igreja de Tamdrup, na Jutlândia, que o
apresentam durante o seu baptismo pelo monge Poppo. Não se sabe também
com segurança a origem do seu apodo. Talvez tivesse um dente necrosado e
enegrecido, ou limasse e colorisse a dentadura, como então se costumava
fazer.
Sob o comando de Harald Dente Azul, as incursões dinamarquesas não
cessaram. Como era habitual, o soberano viajava pelo reino para fazer
demonstrações do seu poder e conquistar o apoio dos chefes locais. Sabe-se
que mantinha contactos com o estrangeiro. Contraiu matrimónio com uma
eslava oriunda da costa báltica. Segundo parece, conhecia – ou em primeira
mão ou por descrição dos seus enviados – os sumptuosos palácios imperiais
de Ingelheim e Paderborn, a catedral de Aix-la-Chapelle e outras sedes
episcopais. É possível que aspirasse a um estilo de vida semelhante ao do Sul
civilizado.

Dente Azul sabia que seria capaz de consolidar e ampliar o seu poder com a
ajuda da Igreja, à semelhança de outros soberanos europeus da Alta Idade
Média. Segundo a concepção cristã do poder político, os soberanos eram reis
pela graça de Deus, na qualidade de representantes divinos na Terra. “O
cristianismo era conhecido na Escandinávia há bastante tempo, mas as elites
políticas adoptaram-no tardiamente”, explica o arqueólogo Mads Kähler
Holst, da Universidade de Aarhus, cujos contributos para o estudo da corte de
Harald Dente Azul em Jelling, símbolo dessa nova era, têm sido decisivos.

COMPLEXO REAL: Harald Dente Azul mandou erigir em Jelling um complexo arquitectónico
monumental que vinculava o passado pagão ao presente cristão. Uma estrutura naviforme com
350 metros de comprimento abrangia o túmulo do pai, Gorm (o montículo mais alto), e a
primeira igreja construída defronte deste, com a forma oblonga de navio característica da época.
Uma paliçada rodeava o complexo. Durante algum tempo, acreditou-se que no montículo
inferior também se alojava uma sepultura, mas a sua escavação revelou que nunca foi usado. As
moradias serviam sobretudo de alojamento a guerreiros. Os quatro edifícios do extremo superior
foram localizados segundo os dados arqueológicos; quanto ao restante, a localização é provável.

Jelling é actualmente um pequeno e tranquilo povoado perto da cidade de


Vejle, na região central da Jutlândia. Ao abeirarmo-nos do centro da cidade
avistam-se duas colinas e, no meio de ambas, uma igreja branca com duas
pedras rúnicas defronte da fachada sul. Junto da igreja destaca-se o cemitério
cristão. Imediatamente a seguir apercebemo-nos das colunas brancas,
dispostas em forma de rombo, que delimitam um grande espaço na zona norte
de Jelling, separado do resto da povoação. Foram construídas em 2013, no
local exacto onde Harald Dente Azul havia mandado construir uma paliçada
para no seu interior albergar a corte real. Esta localização nada tem que ver
com o acaso: não longe do Pequeno Belt, em plena Rota dos Bois (a
importantíssima via comercial que começava no Norte da Jutlândia e
terminava no Elba), mas a uma distância prudente do belicoso imperador
romano-germânico.

Há dois séculos que Jelling é objecto de investigação. As duas colinas foram


escavadas, pois os arqueólogos suspeitavam que pudessem esconder
sepulturas. Mas, na hora da verdade, a colina norte, com 8,5 metros de altura,
já fora saqueada, ao passo que a colina sul, de onze metros de altura, não
albergava sepulturas. Em contrapartida, os investigadores localizaram sob a
igreja os restos mortais de um indivíduo do sexo masculino. Pensou-se
durante muito tempo que pertenciam ao rei Gorm, trasladado da colina norte
pelo filho Harald Dente Azul após a conversão ao cristianismo. Hoje existem
dúvidas. A identidade do dono destas ossadas permanece envolta em mistério.

Chamam sobretudo a atenção as duas estelas rúnicas que se erguem defronte


do templo. A maior tem duas caras. Numa, distingue-se um dragão, ou cervo
heráldico, em combate com uma serpente. Na segunda, vê-se Jesus, não
crucificado mas erguido e pendurado em ramos. E as três caras são abrangidas
por um texto rúnico no qual se lê: “O rei Harald mandou erigir este
monumento em memória de Gorm, seu pai, e de Thyra, sua mãe. Harald
conquistou para si toda a Dinamarca e Noruega e cristianizou os
dinamarqueses.”

A estela rúnica que Harald Dente Azul mandou levantar em memória dos seus
progenitores constitui hoje um monumento a uma nova era. Combina a arte
tradicional viking com símbolos cristãos, entronca na tradição e, ao mesmo
tempo, proclama o cristianismo como nova religião oficial. A estela de Jelling
é a certidão de baptismo de uma nação recém-nascida.

JELLING: OBRA MAGNA DE DENTE AZUL

O lendário complexo real de Jelling, na região central da Jutlândia, simboliza


como mais nenhum lugar do Norte da Europa a transição do paganismo viking
para o cristianismo. Foi projectado de acordo com um plano urbanístico que
integra diversas construções monumentais da época de Harald Dente Azul. O
túmulo setentrional foi provavelmente construído após a morte de Gorm, pai
de Harald, em 958. Localiza-se precisamente no centro de um alinhamento de
pedras em forma de barco de carácter pagão, mas também na intersecção das
duas diagonais da paliçada rômbica, que desenham uma cruz (de provável
inspiração cristã). Junto do montículo, Harald Dente Azul ergueu a primeira
igreja do lugar, diante da qual mandou erigir uma grande estela de pedra em
memória dos seus pais. Figuram nela uma imagem pagã de tipo mitológica e
uma representação de Cristo.
Desenho da planta: Ralf Bitter, NGM-DE
Planta do complexo Jelling
1. Paliçada em forma de rombo com 360 metros de lado
2. Estrutura naviforme com 350 metros de comprimento, contornada com pedras naturais
3. Igrejas
4. Pedras rúnicas
5. Montículo norte com câmara funerária
6. As diagonais do rombo formam ao centro do montículo norte uma cruz cristã(?) de ângulos
rectos
7. Montículo sul
8. Acesso ao complexo real

Há alguns anos, durante escavações, os arqueólogos encontraram uma série de


pedras naturais dispostas em eixo relativamente aos dois túmulos, supondo
que estariam relacionadas com o complexo. No entanto, quando se realizaram
medições geomagnéticas, foram descobertas estruturas enterradas que
lançaram os investigadores na pista mais tarde confirmada pelas
investigações. “Tínhamos procurado a corte real num raio de dez quilómetros
em redor e, de repente, ali estava ela, mesmo debaixo dos nossos pés”, conta
Mads Kähler Holst.
As dimensões do edifício revelam uma exibição do poder, uma precisão
arquitectónica e uma monumentalidade até então sem precedentes no mundo
nórdico. A investigação mostrou que as duas colinas, as pedras rúnicas
erguidas entre ambas e a primeira igreja do lugar tinham estado rodeadas por
um barco de pedra: um casco assinalado com monólitos de pedra, fincados no
solo para trasladar os mortos para o Valhala, com 350 metros de
comprimento. O eixo central passava exactamente pelo meio da câmara
funerária existente na colina norte. O conjunto encontrava-se protegido por
uma enorme paliçada. Cada lado tinha 360 metros de comprimento e a
estrutura fora construída com troncos de carvalho de 25 a 40 centímetros de
grossura que provavelmente atingiram quatro metros de altura. O desenho em
forma de rombo fazia que as diagonais se encontrassem mesmo sobre a colina
norte, onde formavam uma cruz, de novo uma mais que provável combinação
entre simbologia pagã e cristã. Os estudos mais recentes apontam para a
existência de um único acesso ao recinto, o qual media, no seu conjunto, o
equivalente a 17 campos de futebol. Nas imediações, os arqueólogos
descobriram as plantas de três casas de 27 metros de comprimento cada,
embora sem um único indício da sua ocupação.

A análise dendrocronológica dos troncos da paliçada revelou que o complexo


foi construído por volta do ano de 970. Integrava-se num programa
construtivo sem precedentes. “O rei planeou algo nunca visto”, afirma Kähler
Holst. “Era, creio eu, um perfeccionista e, além disso, um gestor inteligente
das numerosas mudanças que a sua época teve de enfrentar.”

Poucos anos depois do seu baptismo, conjecturam os arqueólogos e


historiadores, Harald Dente Azul convidou os chefes locais e outros caciques
do seu reino a deslocarem-se a Jelling para aderirem, sob juramento, à nova
era. Convidou também dirigentes e embaixadores estrangeiros para
impressioná-los e conquistar o seu favor. Presidia à cerimónia a estela rúnica.

Muitos convidados vinham do Sul longínquo e tinham cruzado o rio Vejle. Os


visitantes da corte real ficaram boquiabertos perante a monumental paliçada.
A entrada só era autorizada a quem figurasse no rol de convidados. “Os
convidados deviam apresentar-se envergando as suas melhores indumentárias
de gala. Consigo imaginá-los cobertos de mantos de lã de cores desordenadas,
guarnecidos de peles e enfeitados com fitas de seda com oiro e prata que
reluziam ao sol”, afirma Anne Pedersen, do Museu Nacional da Dinamarca,
em Copenhaga. “Todos ansiosos por apresentar-se e ostentar as suas riquezas.
Harald Dente Azul proferiu certamente um discurso e houve provavelmente
rondas de intervenções como nas cimeiras da actualidade. Às figuras
importantes foi permitido sentarem-se lado a lado com os poderosos.”

Na perspectiva da política externa, o cristianismo proporcionou a Harald


Dente Azul o reconhecimento por parte das casas reais europeias da sua
época; em termos de política interna, deu-lhe poder. A organização
eclesiástica punha os seus escribas ao dispor do rei, colaborava na arrecadação
de tributos e ajudava a construir o novo sistema económico. Contribuía
igualmente para implantar o dinheiro como meio de pagamento, em
substituição dos lingotes de prata fragmentados e ponderados e das moedas
cortadas que até então eram utilizadas.

Harald Dente Azul fez então uma demonstração de força. Iria deixar bem
claro aquilo de que era capaz, até que ponto podia chegar uma monarquia
centralizada de legitimação cristã. Fortaleceu as fortificações fronteiriças do
Danevirke com a intenção de pôr em guarda o seu novo adversário, o
imperador romano-germânico Otão II (objectivo concretizado, excepto
durante um breve interlúdio iniciado com a ocupação de Haithabu em 974).
Construiu calçadas e a magnífica ponte de Ravning que, com os seus 700
metros e dupla via de circulação, atravessava o rio Vejle em Jelling. Entre
Aggersborg (no Norte da Jutlândia) e a Escânia (no Sul da Suécia), erigiu
cinco colossais bastiões circulares – os chamados trelleborgs –, sempre
estrategicamente localizados em vias principais, visíveis a longa distância,
acessíveis por via marítima, mas nunca pela própria costa. Posicionava neles
as suas hostes.

Else Roesdahl, expoente máximo dos investigadores dinamarqueses


interessados na civilização viking, e o seu jovem colega Søren Sindbæk, da
Universidade de Aarhus, têm estudado estas fortalezas circulares. Num
armazém do Museu de Moesgaard, Else mostra-nos uma maqueta do bastião
de Aggersborg, que Harald Dente Azul mandou construir no Limfjord. Trata-
se de uma engenhosa concepção geométrica, com quatro portas. As duas vias
principais delas emergentes formam uma cruz no ponto central, exactamente
idêntica às diagonais da paliçada rômbica de Jelling. Obtém-se assim, como
resultado, quatro “fatias de tarte”, ou secções circulares, que albergavam em
perfeita simetria três pátios interiores com quatro edifícios cada um, todos
iguais, com uma cobertura semelhante a um barco invertido. “Era a casa
prefabricada na versão viking: de construção rápida e simples”, afirma a
especialista.

Os trelleborgs eram sempre construídos a partir de um mesmo modelo e


foram-se tornando mais sofisticados, com terraplenos mais elevados e
acomodações mais confortáveis e seguras. À semelhança do complexo real de
Jelling, a sua construção exigia um importante investimento em recursos e
mão-de-obra. Søren Sindbæk calcula que, para erguer os terraplenos, fosse
necessário mobilizar 15 mil metros cúbicos de terra, o equivalente a 30 vagões
de mercadorias modernos. Para as paliçadas, edificações e caminhos foi
preciso abater e preparar cerca de mil carvalhos. Esta obra só foi possível
graças à colaboração dos chefes locais, com quem Harald Dente Azul tinha de
firmar alianças contínuas para consolidar o seu poder, e mediante o
recrutamento de mão-de-obra masculina em regime de servidão feudal.

A construção dos trelleborgs, tal como as restantes obras arquitectónicas,


obedecia a um plano geral e a uma concepção geométrica muito estudada. As
estruturas circulares de Fyrkat, situadas a meio caminho entre Aarhus e
Aalborg, tinham 120 metros de diâmetro; a de Aggersborg, no Limfjord, mede
o dobro, 240 metros; e a paliçada de Jelling apresenta um comprimento de 360
metros de cada lado (o triplo). “Talvez Harald Dente Azul desejasse exprimir
através da arquitectura o seu desejo de ordem”, conjectura Søren Sindbæk.

Arqueólogos e outros peritos examinaram recentemente várias ossadas


descobertas na necrópole do bastião circular de Trelleborg, em Slagelse, na
zona ocidental da ilha de Sjæland (o primeiro trelleborg encontrado e que deu
o nome genérico a este tipo de estruturas), para apurar a origem das pessoas
ali sepultadas. Recorrendo a técnicas de análise isotópica, apurou-se que
metade dos mortos não era originária da Dinamarca, mas de regiões com
população eslava da costa meridional do Báltico. Jörn Staecker não rejeita a
hipótese de que poderiam ter sido mercenários provenientes de Jomsborg
(actualmente Wolin, na embocadura do Oder, na Polónia), recrutados por
Dente Azul para integrar a sua famosa guarda pretoriana dos jomsvikings,
frequentemente mencionada nas sagas. “Talvez o rei já não pudesse confiar no
seu próprio povo, precisando de uma tropa de elite”, diz Sindbæk.

O reinado de Dente Azul durava já duas décadas, desde o seu baptismo.


Poderiam os seus vassalos projectar a sua destituição? Os achados
arqueológicos apontam para a ocorrência de combates nessa época.
Renovadores contra defensores da velha tradição? O soberano exigiu
demasiado dos seus súbditos? Tornou-se impossível para estes aguentar a
carga fiscal que financiava a construção de estradas empedradas e fortalezas?

“Os elementos disponíveis sugerem que os seus antigos súbditos fartaram-se


dele”, afirma Else Roesdahl. O seu próprio filho primogénito, Svend Barba
Fendida, também se virou contra ele. Talvez se tratasse de um conflito entre
pai e filho, daqueles que de vez em quando acontecem ao longo da história, ou
então uma manobra de retrocesso da parte de Svend Barba Fendida, para
rejeitar de novo o cristianismo.

A tradição oral sugere que, por essa época, Harald Dente Azul sofreu um
ferimento grave em batalha e foi forçado a exilar-se em Jomsborg. Ali, porém,
não podia sentir-se em segurança. Morreu no dia 1 de Novembro de 987. É
provável que o seu cadáver fosse trasladado para uma pequena igreja dedicada
à Santíssima Trindade cuja construção fora ordenada por Harald em Roskilde.

Quanto à paliçada de Jelling, foi devorada pelas chamas, como evidenciam os


restos de cinzas no solo. A imponente construção de Dente Azul foi arrasada.

O novo monarca era um guerreiro à moda antiga. Svend Barba Fendida


retomou as incursões vikings. Juntamente com o seu aliado norueguês, o rei
Olaf Tryggvason, voltou-se sobretudo para Inglaterra, localizada a duas ou
três singraduras de distância através do mar do Norte. Nesta ilha, impôs
tributos cada vez mais elevados, conquistou vastos territórios e pôs em fuga o
rei Æthelred, senhor de Mércia, ascendendo ao trono inglês em 1013. Depois
da sua morte, o filho Canuto (Knud), o Grande, fundou o chamado Reino do
Mar do Norte, ou anglo--escandinavo. Abrangia a Inglaterra, a Dinamarca e
extensas zonas da Noruega e da Suécia, onde pela primeira vez circulou
moeda comum. Em 1035, Canuto foi enterrado numa igreja cristã, a catedral
de Winchester. Sete anos mais tarde terminou o domínio dinamarquês de
Inglaterra.

Nessa mesma época, o cristianismo alargou--se a toda a Escandinávia e


converteu-se em religião oficial dos recém-fundados reinos da Noruega e da
Suécia. Alguns vikings continuavam a utilizar símbolos pagãos ao lado dos
cristãos, mas em breve abandonariam as necrópoles tradicionais e a população
começaria a ser sepultada em cemitérios cristãos.

As incursões vikings cessaram definitivamente. Haithabu continuou a ser um


importante centro comercial durante varias décadas. No âmbito de um
projecto patrocinado pela Fundação Volkswagen, os cientistas do Centro de
Arqueologia Báltica e Escandinava de Schleswig estão a estudar os últimos
anos da povoação e a sua transferência para a cidade medieval de Schleswig,
na margem oposta do Schlei. Há provas de que o porto de Haithabu se foi
assoreando pouco a pouco e a construção de cais de acostagem tornou-se cada
vez mais difícil e dispendiosa. No entanto, os achados arqueológicos indicam
que, em meados do século XI, Haithabu ainda era palco de operações
comerciais e de alguma actividade artesanal.

Até chegar o ano fatídico de 1066.

Hostes eslavas incendiaram Haithabu até aos alicerces. Só então, e não antes,
segundo revelam as investigações mais recentes, é que o porto de Schleswig
foi construído: o novo centro logístico entre o mar do Norte e o Báltico.
“Schleswig passou a ser sé episcopal e civitas christiana, como já o eram,
mais a norte, Roskilde e Lund”, afirma Volker Hilberg, director do projecto. E
alcançou relevo como epicentro do comércio de longa distância.
Nesse mesmo ano, o normando Guilherme, o Conquistador, descendente de
vikings, derrotou Harold II de Inglaterra na batalha de Hastins e fundou a casa
real normanda. Para os historiadores, o ano de 1066 assinala o fim da era dos
vikings.

Na Dinamarca, Harald Dente Azul ainda é visto como o fundador de um novo


Estado e Jelling como um monumento nacional. Aquando da inauguração da
paliçada com colunas brancas, em Setembro de 2013, a rainha Margarida
insistiu em deslocar-se pessoalmente à Jutlândia. Foi uma derradeira
homenagem real a Harald Dente Azul, mais de mil anos depois da sua morte.

MONUMENTO NACIONAL: Jelling é actualmente considerada o berço do reino da


Dinamarca. Junto do túmulo norte, ergue-se a igreja de pedra branca (na parte inferior da
fotografia), construída por volta do ano 1100. A estrutura naviforme e a paliçada exterior são
visíveis graças às intervenções actuais (reconstituídas com lousas e colunas, respectivamente).

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