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Escravatura: culpa, ressentimento e histórias mal


contadas
05 Novembro 2017
05 Novembro 2017470
José Carlos Fernandes

A acusação contra o Padre António Vieira de ter sido esclavagista é apenas uma das
manifestações de um entendimento enviesado, parcelar e anacrónico da história que tem
vindo a ganhar voga.

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1. A cultura do ajuste de contas com a história
2. Sim, os nossos egrégios avós foram negreiros
3. A culpa intergeracional nunca prescreve?
4. O somatório de tudo o que nunca deveria ter acontecido

No passado dia 5 de Outubro, o grupo Descolonizando tentou protestar – apesar da oposição


de uma contra-manifestação de extrema direita – contra a recém-inaugurada estátua do
Padre António Vieira no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, alegando que o Padre Antóno
Vieira era um “escravagista selectivo”. A sua argumentação porém, era de escopo mais amplo:
apontava também o dedo à Igreja Católica e a Portugal, como responsáveis pelo infortúnio
dos milhões de africanos levados como escravos para o continente americano e dos milhões
de índios que foram vítimas da colonização das Américas. As debilidades e inconsistências da

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acusação contra Vieira foram expostas por Carlos Maria Bonone em Padre António Vieira, um
“escravagista selectivo”?, mas vale a pena reflectir sobre as culpas de âmbito genérico que têm
vindo a ser assacadas a Portugal e aos países europeus no que respeita à escravatura.

A cultura do ajuste de contas com a


história
Nos últimos anos tem ganho difusão a ideia do ajuste de contas com a História: um povo ou
um grupo étnico que se vê a si mesmo como bom, justo e isento de pecado, lembra a outro
que, em tempos, os antepassados do segundo roubaram, mataram, escravizaram ou
oprimiram os antepassados do primeiro. Apoiados numa matemática simplista e tanto mais
fantasiosa quanto mais remotos forem os eventos em causa, os descendentes dos justos
apresentam aos descendentes dos facínoras uma conta detalhada dos danos materiais e
morais sofridos, com as necessárias correcções para a inflação.

Em 2014-15, quando as finanças gregas à beira da bancarrota abriam noticiários, a Grécia


entendeu que ao governo alemão faltava autoridade moral para impor aos gregos medidas
duras e reformas impopulares, como contrapartida pelo programa de assistência financeira,
uma vez que a Alemanha não tinha honrado as reparações devidas à Grécia pelos danos
causados durante a II Guerra Mundial, pelo que ripostou com a apresentação à Alemanha de
uma factura de 278.700 milhões de euros (ver Uma factura detalhada para Angela Merkel).

Se na Europa este desenterrar de contas antigas não é frequente e não costuma recuar mais
longe do que a II Guerra Mundial, há pelo mundo quem se queixe sistematicamente de
agravos bem mais antigos. Uma das questões levantadas mais amiúde, sobretudo a partir do
início do século XXI, é a das reparações pela escravatura. Embora a escravatura seja uma
prática que teve, desgraçadamente, ampla difusão no espaço e no tempo, quando se fala em
“reparações pela escravatura” presume-se automaticamente que os lesados são países
americanos (quase sempre caribenhos) com forte percentagem de população de origem
africana, que os alvos dos pedidos de indemnização são países europeus e que os eventos que
justificam o pedido de indemnização tiveram início há quatro ou cinco séculos e estenderam-
se até ao início do século XIX.

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O navio negreiro, de J.M.W. Turner (1840): perante a eminência de uma tempestade, a tripulação atira
ao mar os escravos negros e moribundos, que se tornam pasto dos tubarões

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Sim, os nossos egrégios avós foram


negreiros
A “acção civlizadora” da Europa, que durante muito tempo foi apresentada, nos discursos
oficiais e nos manuais escolares, como um motivo de orgulho e um sinal evidente da suposta
superioridade da nação em questão, representou para os outros povos do mundo, uma
catástrofe e levou doença, escravidão, opressão, prepotência, humilhações, maus-tratos,
privações, doença e morte a muitas centenas de milhões de pessoas durante séculos a fio. Há
pouco de que os europeus possam orgulhar-se nas suas histórias no que diz respeito às
relações com outros povos, mas nos países europeus com passado colonial continua a
persistir uma auto-imagem fantasiosa e enobrecida do europeu como tendo descoberto novos
mundos e tendo desempenhado uma benigna missão civilizadora junto dos “descobertos”.
Em Portugal, a mundividência patrioteira inculcada pelo Estado Novo amainou após 1974,
mas tem vindo progressivamente a reemergir e a permear os mais anódinos livros de
divulgação histórica (leia-se, por exemplo, As batalhas que mudaram Portugal, de Susana
Lima). Entre as particularidades da imagem que os portugueses têm de si mesmos e da sua
história está a ilusão de que a sua colonização foi particularmente benévola e que o seu
racismo foi atenuado, face aos outros colonizadores europeus.

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Na forma como se posicionam face à História nacional, os europeus dividem-se,
genericamente, entre os que sentem inchar o peito com orgulho (mais conotados com
ideologias de direita) e os que são atormentados pela culpa (os do sector ideologicamente
mais à esquerda), sendo ambos os extremos pouco permeáveis à sensatez e à racionalidade.
Quando em Fevereiro passado, numa visita à Argélia, o (então) candidato presidencial
francês Emmanuel Macron declarou ser “inadmissível fazer a glorificação da colonização” e
condenou esta “como um acto de barbárie”, despertou a indignação dos franceses mais
conservadores.

Há quem entenda que não basta que a história da expansão europeia seja publicamente
reconhecida como “um acto de barbárie”: é necessário que os perpetradores (isto é, os seus
descendentes) peçam desculpa formalmente às vítimas (isto é, aos seus descendentes),
removam o enviesamento patrioteiro dos manuais escolares e ergam memoriais que
recordem as malfeitorias passadas. Há quem vá bem mais longe e entenda que estes actos de
contrição são meramente simbólicos e que a mais elemnetar justiça requer que o ajuste de
contas seja efectivo e material. Foi assim que, em Outubro de 2014, os representantes de 15
nações caribenhas decidiram formalizar um pedido de indemnização dirigido a vários países
europeus, que consideram responsáveis pelo tráfico de escravos que, entre o início do século
XVI e o início do século XIX, arrancou 12.5 milhões de africanos às suas terras natais e os
levou para o Novo Mundo.

Tráfico de escravos com origem em África. De acordo com o website Slavevoyages, no intervalo de
tempo entre o final do Império Romano e o final do século XIX, o tráfico transatlântico terá sido

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equivalente à soma dos tráficos para todos os outros destinos – embora a espessura das setas no mapa
veicule informação que sugere esmagadora preponderância do tráfico transatlântico

Destes 12.5 milhões, estima-se que 5.5 milhões terão tido como destino as possessões inglesas
nas Caraíbas, que correspondem, aproximadamente, ao conjunto de países que hoje forma a
CARICOM (Caribbean Common Market and Community): Antígua e Barbuda, Bahamas,
Barbados, Belize (as antigas Honduras Britânicas), Dominica (não confundir com a República
Dominicana), Granada, Guiana (a antiga Guiana Britânica), Haiti, Jamaica, Montserrat,
Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves (ou Saint Kitts and Nevis), São Vicente e Granadinas,
Suriname (a antiga Guiana Holandesa) e Trinidad e Tobago. Foi da CARICOM, ou, mais
precisamente, da Comissão de Indemnizações da CARICOM (CARICOM Reparations
Commission ou CRC), que partiu a iniciativa de apresentar o pedido formal de indemnização
a sete países europeus: Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Noruega, Portugal, Reino
Unido e Suécia.

Defende a CRC que a escravatura “contribuiu para um legado duradouro e negativo de


racismo estrutural que conduziu ao subdesenvolvimento” da região do Caribe, pelo que exige
aos países esclavagistas o cumprimento de um programa (pouco congruente) de 10 pontos:
“1) Apresentação formal de desculpas, 2) Repatriamento, 3) Plano de desenvolvimento dos
povos indígenas, 4) Instituições culturais, 5) Crise de saúde pública, 6) Erradicação da
iliteracia, 7) Programa do conhecimento africano, 8) Reabilitação psicológica, 9)
Transferência de tecnologia, 10) Anulação de dívidas”.

O assunto causou alguma agitação quando da apresentação formal do pedido, em Outubro de


2014, foi rapidamente esquecido mas reemergiu em Setembro de 2015, por ocasião de uma
visita oficial do (então) Primeiro-Ministro britânico David Cameron à Jamaica.

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Escravos, Jamaica

A polémica foi apimentada pelo facto de Cameron ter remotos laços familiares com Sir James
Duff (1814-79), proprietário de uma plantação de cana-de-açúcar na Jamaica, assente em
trabalho escravo. Quando a Grã-Bretanha aboliu a escravatura em 1833, na sequeência de
revoltas de escravos na Jamaica em 1831, indemnizou os proprietários de escravos pela perda
de propriedade” decorrente da nova lei, o que implicou pagar 20 milhões de libras (40% do
orçamento de Estado) a 3000 proprietários de escravos – pela “perda” dos seus 202 escravos,
o antepassado de David Cameron recebeu 4100 libras (3 milhões de libras a preços de hoje); o
Bispo de Exeter recebeu 12.700 libras pela “perda” de 665 escravos.

Aos olhos de hoje pode parecer de uma ironia cruel que os autores da iniquidade – os
proprietários de escravos – tenham lucrado com a abolição da escravatura e que as vítimas da
iniquidade – os escravos – tenham tido de contentar-se com a recompensa da liberdade. Esta
flagrante injustiça – aos olhos de hoje – tem sido um dos argumentos esgrimidos pelos
descendentes de escravos das Caraíbas para apoiar a sua pretensão a uma indemnização.

Cortadores de cana-de-açúcar, Jamaica. c. 1880: quase meio século após a abolição da escravatura, o
que teria mudado na prática nas condições de vida dos escravos libertados e seus descendentes?

Alguma argumentação a favor das indemnizações recorre à analogia com os três mil milhões
de marcos pagos pela Alemanha ao Estado de Israel, mediante um acordo assinado em 1952,
relativo ao trabalho escravo, à perseguição de judeus e à apropriação de bens de judeus pelo
regime nazi. A questão foi reaberta já no século XXI, nomeadamente através do Ministro das

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Finanças Israelita, que, em 2009, declarou que seria necessário um pagamento extra entre
450 e 1000 milhões de euros, em favor dos sobreviventes dos campos de concentração – uma
reclamação que, surgindo 57 anos depois do acordo que, supostamente, teria liquidado o
terrível débito alemão, parece extemporânea.

Disposição da “mercadoria” no interior do navio negreiro Brookes, c. 1789: a rentabilização do espaço


como critério supremo

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A culpa intergeracional nunca prescreve?


Terra nullius: Viagem aos antípodas, um livro de Sven Lindqvist, datado de 2005 e publicado
em 2015 em Portugal pela Tinta-da-China, traz contributos relevantes para o debate da culpa
do Ocidente e das indemnizações. Embora esteja publicado na colecção de literatura de
viagem dirigida por Carlos Vaz Marques e tenha por pretexto uma viagem pela Austrália, as
paisagens e costumes pitorescos cedem neste livro o primeiro plano à denúncia da forma
iníqua como os brancos trataram os aborígenes australianos. Enquanto o tráfico negreiro teve
lugar há uns séculos, os aborígenes foram vítimas de políticas genocidas e discriminatórias
pelo século XX dentro – é o caso do rapto de crianças mestiças, subtraídas às famílias
aborígenes pelo Estado australiano, que prosseguiu até 1969. Só a partir do final do século XX
o Estado australiano admitiu culpas, nomeadamente através da instituição de um National
Sorrow Day, que evoca as injustiças cometidas contra os aborígenes. Alguns políticos

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australianos, como o primeiro-ministro John Howard (1996-2007), recusaram-se, todavia, a
pedir desculpas formalmente no Parlamento, argumentando que tal presumiria a existência
de “culpa intergeracional”.

A Austrália tratou os aborígenes como sub-humanos pelo século XX dentro

Lindqvist, que acredita na culpa intergeracional, defende que, para que o arrependimento
seja sincero e consequente, não basta dizer “Compreendo que errei; lamento tê-lo feito;
prometo não voltar a fazê-lo”. Para ele, a reconciliação com o passado exige que se vá mais
longe: “Reconhecemos abertamente o que os nossos antecessores fizeram de errado e que
beneficiamos desses erros; pedimos perdão às vítimas dos delitos e aos seus descendentes;
prometemos compensar, de acordo com as nossas possibilidades, as vítimas pelos efeitos
remanescentes dos delitos”.

Como argumento em favor da culpa intergeracional, Lindqvist, que é sueco, narra um


episódio pessoal, quando foi confrontado, na Noruega, com a colaboração dispensada pela
Suécia à Alemanha nazi. Sentindo-se desconfortável perante a acusação dos noruegueses,
Lindqvist ensaiou mentalmente uma resposta – “Não é correcto culpar os filhos por acções
cometidas pelos pais. Cada nova geração nasce livre de culpa” – mas acabou por admitir que
“não [é] realmente verdade. A dívida pública passa de geração em geração. O mesmo acontece
com a riqueza nacional […] Tinha nascido rico só pelo facto de ter nascido sueco. Não era por
mérito próprio que vivia melhor que um congolês ou um indonésio. […] Ao receber os
benefícios de ser sueco, como poderia negar as desvantagens?”

Lindqvist faz um breve inventário de reivindicações de indemnizações pelo mundo fora: umas
mais próximas no tempo, como as das mulheres asiáticas recrutadas para os bordéis das

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tropas japonesas ou as das vítimas do Holocausto. Outras mais remotas, como as do povo
Herero da Namíbia, que foi alvo das políticas genocidas da colonização alemã, dos países
africanos “de onde os escravos eram retirados”, dos índios norte-americanos espoliados das
suas terras, ou dos negros norte-americanos.

Hereros aprisionados pelos alemães: a taxa de mortalidade nos campos de concentração criados pelos
alemães na Namíbia foi de 45-74%

E ainda a dos “60 milhões de negros do Brasil [que] exigiram, em 1995, seis mil milhões de
dólares de indemnização por escravatura” (o valor da indemnização é extraordinariamente
modesto, mas o número de negros brasileiros está claramente inflacionado, sendo provável
que diga maioritariamente respeito aos “pardos”).

O pedido de indemnização pelo tráfico negreiro feito pela CARICOM insere-se nesta
tendência, mas alguns dos raciocínios que lhe estão subjacentes levantam sérias reservas –
algumas das quais se aplicam também para outros ajustes de contas com a história.

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“Escravos na costa ocidental africana”, por François Auguste Biard, c. 1833

 O que fazem a Dinamarca, a Suécia e a Noruega na lista dos países


esclavagistas?

Embora tal esteja hoje um pouco esquecido, a Dinamarca possuiu, durante alguns anos, um
pequeno império colonial, que incluiu uns fortes e entrepostos na Costa do Ouro (no que é
hoje o Gana) e umas minúsculas possessões nas Antilhas (as pomposamente intituladas
Índias Ocidentais Dinamarquesas: São Tomás e São João, hoje parte das Ilhas Virgens, sob
administração norte-americana) e tal deu-lhe o ensejo para participar no tráfico negreiro,
estimando-se que os navios dinamarqueses tenham transportado um total de 100.000
escravos (o que representa menos de 1% do total de africanos levados para as Américas).

Quanto à Suécia, deteve, episodicamente, em meados do século XVII, uns fortes e entrepostos
na Costa do Ouro e, entre 1784 e 1878, a ilha de São Bartolomeu, nas Antilhas, e durante
ambos os períodos a Suécia contribuiu, ainda que muito modestamente, para o tráfico
transatlântico de escravos.

Mais difícil é descortinar as responsabilidades da Noruega: entre 1524 e 1814, a Noruega e a


Dinamarca estiveram unidas numa monarquia dual, mas os noruegueses podem alegar que
também eles foram vítimas, durante séculos, do domínio dinamarquês, não existindo sequer

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como reino entre 1536 e 1660 (digamos que a Noruega esteve, em relação à Suécia, na mesma
situação em que Portugal esteve em relação a Espanha entre 1580 e 1640). Para mais, mal
conseguiu libertar-se da Dinamarca, em 1814, a Noruega caiu sob o domínio da Suécia.
Portanto, em vez de pagar indemnizações, os noruegueses poderão candidatar-se a recebê-las
dos seus dois vizinhos. É difícil afastar a suspeita de que a Noruega está na lista apenas
porque é um país rico e com tradição de generosidade na ajuda humanitária.

Uma Dinamarca nos trópicos: Fazenda Høgensborg, em Sankt Croix, Índias Ocidentais
Dinamarquesas (hoje Saint Croix, nas Ilhas Virgens), gravura de 1833

 Por que razão são os países de destino dos escravos e não os países de
origem a reclamar uma indemnização?

Na verdade, os países de origem já tinham apresentado um pedido de indemnização, através


da Comissão de Indemnizações e Reposição da Verdade do Mundo Africano (African World
Reparations and Repatriation Truth Commission), que, em 1999, exigiu o pagamento de 777
biliões de dólares no prazo de quatro anos – para que se perceba a insensatez deste pedido,
deverá atentar-se em que, em 2014, o PIB português foi de 173 mil milhões de euros (195 mil
milhões de dólares) e o PIB de toda a União Europeia foi de 13 biliões de euros (19 biliões de
dólares).

Numa perspectiva cínica, os países europeus poderiam alegar que, disfrutando os habitantes
da CARICOM de condições de vida (aferidas em termos de PIB per capita, esperança média
de vida, mortalidade infantil, etc.) superiores, em média, às que hoje se registam nos países
africanos de onde proveio parte da sua população, o tráfico negreiro transatlântico prestou
um serviço, senão às suas vítimas directas, pelo menos aos seus descendentes. Pela mesma
razão, se se efectivasse o programa de “repatriamento” (ponto 5 no programa de exigências da
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CARICOM) de habitantes de ascendência africana das Caraíbas para África, teria
provavelmente muito poucos candidatos.

Plantação de cana-de-açúcar nas Caraíbas

 Os valores de indemnização pedidos são razoáveis?

Se os 777 biliões calculados pela Comissão de Indemnizações e Reposição da Verdade do


Mundo Africano parecem descabelados, Sandew Hira, director do International Institute for
Scientific Research, com sede em Amesterdão, e co-editor de uma série de livros intitulada
Decolonizing the mind (que rejeita a ciência burguesa e eurocêntrica e pretende substitui-la
por um conhecimento “de inspiração indígena”), apresenta um valor ainda mais astronómico
para as indemnizações a pagar pela Europa por todos os malefícios da escravatura e do
colonialismo: 300.000 biliões de dólares. Ou seja, nem toda a riqueza gerada pela Europa
durante milhares de anos seria suficiente para pagar 400 anos de malfeitorias no além-mar.

Acontece que no período dos descobrimentos e da subsequente colonização o mundo era


incomparavelmente menos rico e povoado do que hoje, pelo que, mesmo fazendo as
correcções para o efeito da inflação, os PIBs eram muito inferiores aos de hoje. Considere-se o
caso do Reino Unido: em 1500 o PIB per capita era de 714 dólares e hoje é de 39.000; em
1500 tinha seis ou sete milhões de habitantes, hoje tem 64 milhões.

Por muito malignos que possam ter sido os colonizadores – e foram-no, certamente –, como
podem ter causado prejuízos milhares de vezes superiores a toda a riqueza acumulada dos
territórios que colonizaram?

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Navio negreiro

 Porque é a indemnização pedida a quem adquiriu escravos em África mas


não a quem os capturou e vendeu?

Os europeus não capturavam escravos – compravam-nos a “fornecedores” africanos. O tráfico


de escravos era uma das principais actividades económicas do continente africano muito
antes de os portugueses terem começado a aventurar-se ao longo da costa de África.
Inevitavelmente, as guerras e razias entre povos africanos destinadas a obter escravos
aumentaram para dar resposta ao aumento da procura pela parte dos europeus, mas as
responsabilidades dos próprios africanos não podem ser omitidas. E se têm sido muito
publicitadas as infames condições de transporte nos navios negreiros que rumavam às
Américas, o que se traduzia numa elevada taxa de mortalidade, as condições em que se faziam
as marchas das colunas de escravos do interior de África para a costa não eram menos
desumanas, apesar de os escravos serem conduzidos por pessoas com pele de cor idêntica.

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Um raid de traficantes escravos

A formulação usada por Lindqvist, referindo-se aos territórios africanos “de onde os escravos
eram retirados”, omite a primeira etapa do tráfico de escravos, levada a cabo por africanos.
Sem ela, o tráfico negreiro transatlântico teria tido expressão ínfima, pois os europeus não
teriam sido capazes de enviar regularmente expedições de captura de escravos no interior de
um continente hostil, desconhecido e infestado de doenças.

Portanto, os pedidos de indemnização dos países do Caribe deveriam ser também


endereçados aos países dos fornecedores de escravos. E se os países africanos pretenderem
obter indemnizações pelo tráfico negreiro, poderão começar por ajustar contas entre si e no
interior de cada país, onde convivem descendentes de quem viu os seus familiares vendidos e
descendentes de quem os vendeu.

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Escravos africanos, conduzidos por traficantes africanos

 Foram os europeus os únicos a traficar escravos africanos?

Antes do início do tráfico transatlântico, os principais traficantes de escravos africanos foram


os árabes – embora dependessem, ainda que não tão completamente como os europeus, dos
“fornecedores” africanos. A actividade estendeu-se do século IX ao XIX e envolveu um total
de 17 milhões de escravos: quatro milhões foram “exportados” pelos portos do Mar Vermelho,
outros quatro pelos portos do Índico e nove milhões através das rotas trans-saharianas.

Principais rotas de tráfico de escravos no mundo islâmico da Idade Média

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Tal como os europeus, os árabes viam os africanos como raças inferiores e até o muito
viajado, erudito e refinado Ibn Khaldun considerava que os negros se submetiam facilmente à
escravatura, “pois possuíam pouco de humano e os seus atributos eram, essencialmente, os
das bestas irracionais”.

Traficantes de escravos árabes, na zona do Rio Ruvuma; gravura do início do século XIX

Em certas regiões do mundo islâmico, como o sul do Iraque, eram os escravos africanos que
faziam a maior parte do trabalho agrícola, representando cerca de metade da população. E
enquanto todo o mundo ocidental baniu a escravatura em meados do século XIX, no mundo
árabe ela persistiu até muito mais tarde: no início dos anos 60, estimava-se que ainda
existissem 300.000 escravos na Arábia Saudita.

Não sendo este tráfico de escravos menos reprovável do que o tráfico transatlântico e tendo
expressão numérica superior, estranha-se que as acusações recaiam sempre sobre países
europeus e nunca sobre os países do Maghreb e do Próximo Oriente.

Mercado de escravos no Cairo, ca. 1848, segundo desenho realizado in situ por David Roberts

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Mas a questão pode revelar-se ainda mais complicada, já que os próprios africanos
escravizaram outros africanos: no final do século XIX, ainda havia dois milhões de escravos
no Califado de Sokoto (no que é hoje a Nigéria) e em 1930 ainda existiam dois milhões de
escravos na Etiópia. O último país no mundo a abolir formalmente a escravatura foi a
Mauritânia, em 1981, mas estima-se que 600.000 pessoas ainda vivam nesse país em
condições que configuram uma situação de escravatura. A abolição formal da escravatura
também não extinguiu a prática em países como o Sudão, o Níger ou a Costa do Marfim.

Há que ter em conta que, embora os países europeus tenham abolido formalmente a
escravatura ao longo do século XIX, ela continuou a ser praticada, sob formas apenas
ligeiramente menos rigorosas, nalgumas colónias – o Código do Trabalho dos Indígenas das
Colónias Portuguesas de África apenas aboliu o trabalho forçado em 1928 e, ainda assim,
continuou a prever que os a requisição compulsiva de indígenas para realizar os trabalhos que
a administração portuguesa entendesse necessários.

 Não haverá europeus em posição de reclamar indemnizações pelo tráfico


de escravos?

Estima-se que entre o séculos XVI e o início do século XIX os piratas berberes tenham
capturado e vendido como escravos cerca de um milhão de europeus, quer através do
apresamento de navios quer de ataques-relâmpago a povoações costeiras (as “razias”, do
árabe gaziya, “incursão”).

Monges resgatam escravos cristãos capturados pelos piratas berberes, século XVII

A maioria destes piratas contentava-se em atacar aldeias de pescadores, mas alguns capitães
comandavam armadas suficientemente poderosas para tomar temporariamente cidades como

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Bastia (Córsega) ou ilhas como Gozo (Malta). Os países europeus, e em particular Espanha,
França, Itália e Portugal (mas até a Islândia foi alvo de razias em 1627), deverão, pois,
apresentar a conta respectiva aos actuais governos de Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia. E
estes nem sequer poderão alegar que se tratava de uma actividade levada a cabo por
malfeitores à revelia do Estado: os piratas da Costa da Barbária (o nome vem de “berber”)
tinham obrigação de entregar ao pasha ou bey que os governava 10% dos proventos.

As repúblicas da Costa da Barbária foram, durante parte do tempo, entidades políticas


independentes, ainda que fossem, formalmente, vassalos do Império Otomano, que era
também um dos principais destinos dos escravos capturados pelos piratas. Mas esta estava
longe de ser a mais importante fonte de escravos de origem cristã do Império Otomano: as
regiões a norte e ocidente do Mar Negro foram periodicamente assoladas pelo Canato da
Crimeia, entre o século XVI e o final do século XVIII, com o fito da pilhagem e da obtenção de
escravos. Neste período, terão sido capturados cerca de três milhões de escravos, vendidos
maioritariamente ao Império Otomano.

“Depois da incursão”, por Edward Matthew Hale (1852-1924): Os países escandinavos deverão
indemnizar o resto da Europa pelos muitos escravos feitos pelos vikings?

Se o cidadão médio do mundo ocidental está hoje – 40 anos depois da mini-série televisiva
Roots – familiarizado com o tratamento desumano dispensado aos escravos africanos nas
viagens transatlânticas e nas plantações do Novo Mundo, são menos conhecidas as práticas
que envolvem a escravatura noutras paragens. Os testemunhos sobre o tratamento
dispensado pelos tártaros da Crimeia a quem lhes caía nas mãos são eloquentes: “os velhos e

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enfermos, por não valerem muito dinheiro, eram dados aos rapazes […] para que se
iniciassem nas artes da guerra e acabavam por ser apedrejados até à morte, ou atirados ao
mar ou mortos de qualquer outra forma”. Outra testemunha presencial conta que “os tártaros
cortam a garganta de todos os homens com mais de 60 anos considerados inaptos para o
trabalho; os de 40 anos são destinados às galés, os rapazinhos aos seus prazeres; as mulheres
e raparigas, primeiro à propagação da raça e, depois, à venda. Os prisioneiros são divididos
em lotes que têm em consideração a distribuição de idades, de forma que ninguém possa
queixar-se de que lhe calharam demasiados velhos”.

Seja como for, não existindo há muito qualquer entidade que possa responder pelos
desmandos do Canato da Crimeia, a quem poderão dirigir-se os descendentes dos moldavos,
polacos, russos e ucranianos vendidos como escravos? Não adiantará incomodar os presentes
habitantes da Crimeia (onde os tártaros representam 12% da população), pois eles próprios
parecem atravessar uma grave crise de identidade e terão também indemnizações a reclamar
em resultado dos maus-tratos sofridos às mãos do Império Russo, da URSS, da Ucrânia ou da
Rússia.

“Mercado de escravos”, por Jean-Léon Gérôme, c. 1866: O comprador inspecciona a dentição da


“mercadoria”

Regressemos ao Império Otomano: se contabilizarmos também os escravos africanos


adquiridos aos traficantes árabes, não é de admirar que, no início do século XVI, 20% da
população de Istambul fosse constituída por escravos e que boa parte da actividade agrícola
no império estivesse a cargo de escravos (não era algo em que os turcos sujassem as mãos).
Também o “fornecimento de serviços” sexuais assentava largamente em escravos – os haréns

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recheados de beldades provenientes dos mais diversos pontos do Império Otomano há muito
se estabeleceram no imaginário e mesmo que não tenha sido tão expressiva como se poderá
julgar pela obra dos pintores ditos “orientalistas” da segunda metade do século XIX, foi
significativa.

Menos conhecido é o facto de a escravatura sexual no Império Otomano também incluir


rapazinhos atraentes e franzinos, que se apresentavam por regra vestidos com trajes
femininos e pesadamente maquilhados e desempenhavam funções como dançarinos e
músicos, estando também disponíveis para outros “serviços”, que usualmente eram
disputados através de licitações pelos convivas. A difusão e popularidade destes jovens
escravos sexuais, conhecidos como köçek, são hoje assunto melindroso no mundo islâmico, já
que tal prática entra em conflito com a orientação homofóbica que domina a maioria dos
países islâmicos de hoje.

Köçek, final do século XIX

Porém, há que notar que os escravos de origem europeia disfrutavam de um invulgar estatuto
na sociedade otomana, já que não lhes estava vedada a ascensão social e muitos cargos na
mais alta hierarquia do Estado estavam nas suas mãos. Os janízaros, a infantaria de elite
otomana, começaram por ser recrutados entre os prisioneiros de guerra, mas, a partir do final

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do século XIV, as suas fileiras passaram a ser preenchidas por crianças arrancadas à força às
suas famílias cristãs nos territórios sob domínio otomano, sobretudo nos Balcãs.

Recrutamento à força: jovens são retirados pelos turcos às suas famílias, algures nos Balcãs, para
serem educados e treinados como janízaros. Miniatura de Ali Amir Ali Amir Beg (século XVI)

Esta prática, conhecida como devşirme, ou tributo de sangue, era uma forma particularmente
despótica de serviço militar obrigatório e era seguida pela conversão das crianças ao Islão e o
seu adestramento nas artes militares, ou, no caso de mostrarem aptidões para tal, no treino
para uma carreira na administração pública, que era largamente dominada por indivíduos de
origem europeia. O devşirme entrou em declínio em meados do século XVII, sendo
substituído pelo pagamento de uma taxa de isenção do serviço militar, mas é óbvio que o
rapto anual de milhares de crianças no que são hoje a Albânia, Bósnia-Herzegovina, Bulgária,
Croácia, Grécia, Moldávia, Polónia, Roménia, Sérvia e Ucrânia, obrigaria a Turquia a pesadas
indemnizações.

No início do século XIX, sob pressão das potências ocidentais, o Império Otomano pôs termo
à escravização de europeus, banimento que se alargaria a dois outros grupos de pele clara da
zona do Cáucaso: os georgianos e os circassianos, um povo que vivia a norte do Mar Negro
(Sochi, sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, foi em tempos a sua capital). É

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pertinente realçar que era comum os pais circassianos venderem os filhos como escravos, o
que constitui um forte abalo para a mundivisão simplista dos que julgam que o mundo se
divide em bons e maus e em agressores e vítimas. De qualquer modo, os decretos do sultão
Mahmud II não significaram necessariamente liberdade para todos os escravos de pele
branca do Império Otomano, até porque nem sequer previam sanções para o seu não-
cumprimento.

Quanto aos escravos de pele mais escura, a sua situação não melhorou muito, apesar do
encerramento do mercado de escravos de Istambul, em 1846, e das restrições ao tráfico (mas
não à posse). Estas últimas depararam-se com forte oposição dos traficantes árabes e das
autoridades religiosas de Meca, que decretaram a interdição do tráfico contrária à lei
muçulmana e apelaram à guerra santa contra os turcos. Como sustenta Caroline Finkel, em
Osman’s dream: The story of the Ottoman Empire 1300-1923, a escravatura fazia parte da
matriz do Império Otomano e, portanto, só terminou quando aquele se extinguiu em 1923.

Mercado de escravos em Istambul, segundo William Allan, ca. 1838: um comerciante egípcio gaba as
qualidades de uma escrava grega a um potencial comprador turco (a cavalo). Ao contrário de outros
pintores orientalistas, Allan viajou pelo Próximo Oriente e contactou directamente com as realidades
que pintou

Constantinopla teve um papel na escravatura que é bem anterior à chegada dos Otomanos e
ao seu rebaptismo como Istambul: afinal de contas, o primeiro mercado de escravos do
período otomano foi instalado por Mehmed II (1432-1481) no espaço onde antes funcionara o
mercado de escravos bizantino. E o papel de Constantinopla está bem patente na própria
palavra usada na Europa para designar aquele que é propriedade de outrém: escravo, slave,

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esclave, esclavo, schiavo ou sklave derivam de “eslavo”, através do latim medieval sclavus e do
grego sklabos, por serem predominantemente eslavos os infelizes capturados nas fronteiras
setentrionais do Império Bizantino e por estes vendidos aos árabes e outros povos que viviam
a sul do Império (nos tempos do Império Romano a palavra latina para “escravo” era servus).
Tendo o Império Bizantino encerrado a actividade em 1453, a quem deverão os países eslavos
endereçar os seus pedidos de indemnização?

“Mercado de escravos”, por Fabio Fabbi (1861-1946)

 Porquê fazer os pedidos de indemnização recuar apenas até à época dos


Descobrimentos?

Todas as civilizações da Antiguidade Clássica assentaram no esclavagismo, o que oferece


oportunidades ilimitadas para a actividade de comissões de indemnizações, escritórios de
advogados e activistas de direitos humanos.

Do Egipto à Assíria, do Califado Islâmico ao Império do Meio, do Império Romano ao


Império Azteca, é difícil encontrar uma civilização que não tenha assentado na escravatura. A
Antiguidade oferece mesmo casos em que todo um povo foi feito cativo e deportado – mas se
não é descabido que o actual Estado de Israel queira assumir-se como representante legal do
bíblico Reino de Judá, onde poderá encontrar-se hoje no mundo uma entidade capaz de
responder pelo Império Neo-Babilónico, extinto em 539 aC, ou alguém que esteja disposto a
arcar com as culpas de Nabucodonosor II?

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Escravos núbios (mais escuros) e asiáticos (de pele mais amarelada) trabalham ao fabrico de tijolos.
Relevo no túmulo de Rekhmire, vizir de Tutmósis III e Amenhotep II (século XV aC)

Até na Grécia Clássica, tão exaltada como berço da democracia, das virtudes cívicas, da
ciência e do logos, a escravatura floresceu. Aristóteles contestava os que entendiam a
escravatura como injusta e fala mesmo, na sua Política, de “escravatura natural”, um conceito
decorrente da inerente desigualdade entre os homens: “escravos naturais são todos os que
sendo capazes de compreender a razão, não a possuem”. E explicitava que “aqueles que são
tão diferentes [dos outros homens] como a alma é do corpo ou o homem é da besta – e este é
o seu estado se não produzem trabalho senão com o corpo e nada de melhor se pode esperar
deles – são escravos por natureza. E melhor será para eles que sejam governados de acordo
com esta regra”.

Estima-se (dados de The Oxford companion to Classical civilization) que por volta de 450-
320 aC (portanto no apogeu da civilização grega) existiriam na Ática cerca de 80.000-
100.000 escravos para uma população total de 250.000 habitantes. Em Atenas, por cada
cidadão livre do sexo masculino havia em média dois escravos – se isto pode parecer
chocante, é preciso lembrar que sem estes escravos os cidadãos atenienses não teriam tido
tempo nem energia para participar na gestão da polis, assistir a peças de Sófocles, debater as
virtudes das esculturas de Praxíteles, interrogar-se sobre a natureza da luz e ainda passar um
bom bocado no ginásio a mirar os corpos ginasticados dos adolescentes. Aristóteles entendia
que a escravatura não só era legítima como essencial ao funcionamento da sociedade e que
qualquer agregado familiar era composto de homens, mulheres, crianças e escravos e que
estes mais não eram do que “uma ferramenta dotada de vida”. O filósofo e a maioria dos
gregos seus contemporâneos acreditavam que a natureza dos “bárbaros” – uma designação
vaga que englobava todos os povos não-gregos – os tornava adequados a serem escravizados.
Já a escravização de gregos era vista com reprovação, embora nem por isso deixasse de ser
praticada.

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Os escravos ocupavam-se de todo o tipo de tarefas: no topo da hierarquia havia escravos que
desempenhavam funções administrativas (e que pertenciam à cidade, não a particulares), no
fundo estavam os desgraçados que trabalhavam nas minas e cuja esperança média de vida era
assaz breve, pelo meio ficavam os artesãos, os que executavam trabalhos domésticos e os que
labutavam na agricultura.

Escravos na apanha da azeitona. Vaso grego ca. 520 aC

Não falta hoje quem lembre a dívida que o mundo inteiro, e a Europa em particular, tem para
com a Grécia (identificando, fantasiosamente, a constelação de quezilentas cidades-estado da
Grécia Clássica com o Estado moderno que dá por esse nome), mas se vamos desenterrar
dívidas tão antigas, haverá que abater ao crédito da Grécia as indemnizações a pagar aos
bárbaros escravizados que tornaram possível o florescimento da civilização grega. Talvez o
saldo resulte nulo.

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Apresentação de novas escravas a Octaviano (mais conhecido como Augusto), por Rémy Cogghe
(1854-1935): Deverá Itália ser chamada a prestar contas por o Império Romano ter assentado na
escravatura?

 Foram os escravos africanos as principais vítimas da colonização da


América pelos europeus?

Não, foram os habitantes originais da América. Calcula-se que só as doenças levadas pelos
europeus – difteria, gripe, sarampo, tifo, varíola – terão matado, até ao final do século XVII,
90-95% da população indígena americana, embora as dimensões desta à data da chegada de
Colombo sejam muito controversas, com estimativas a oscilar entre 10 e 100 milhões (os
valores mais razoáveis estão compreendidos entre 37 e 54 milhões).

Epidemia de varíola, segundo autor azteca do século XVI

A progressão avassaladora destas doenças deu-se por processos naturais, mas também com
alguma ajuda dos europeus, que, ao perceberem que aqueles povos não dispunham de
resistência a estas doenças, trataram de fomentar a sua disseminação, a fim de debelar as
tribos mais recalcitrantes, nomeadamente através da oferta de cobertores e lenços que
tinham estado em contacto com doentes.

Os que escaparam às epidemias sucumbiram à brutalidade dos conquistadores, que, umas


vezes motivados pela ganância, outras pela obstinação em impor aos indígenas práticas
religiosas e sociais que lhes eram completamente alheias, os escravizaram, torturaram e
massacram em grande número. Nos territórios controlados por Espanha vigorou a
encomienda, em que a Coroa espanhola atribuía a cada colono um certo número de índios,
ficando o primeiro obrigado a cristianizá-los e fornecer-lhes “protecção” e os segundos a
trabalhar para ele, quase sempre em situações penosas – na prática, uma situação de
escravatura.

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Bartolomé de las Casas, que chegou ao Caribe como colonizador mas que, horrorizado com o
tratamento dispensado pelos espanhóis aos índios, acabaria por libertar os seus escravos,
tornar-se frade dominicano e denunciar os excessos cometidos contra os índios e o sistema da
encomienda, afirmou em Brevísima relación de la destrucción de las Indias (1522) que, em
poucas décadas, a população da ilha de Hispaniola caíra de 400.000 índios para 200.

Outra gravura de Theodor de Bry em Brevísima relación de la destrucción de las Indias (1522)

Foi precisamente por o Caribe ter ficado despovoado num ápice, sob o efeito conjunto das
doenças e da violência cega e obtusa, que os europeus se voltaram para a mão-de-obra
escrava importada de África.

A sul, no Brasil, os portugueses defrontavam-se com problemas análogos. Mesmo que a


mortandade entre os índios não tenha aí sido tão completa (até por causa da extensão de
selvas impenetráveis aos europeus), a mão-de-obra escasseava, devido à oposição dos jesuítas
à escravização dos índios e à relutância destes em entregar-se aos trabalhos pesadíssimos que
lhes eram impostos, o que levou os portugueses a considerar o índio “inapropriado” para o
trabalho agrícola. Como escrevem Schwarcz & Starling em Brasil Uma biografia
(recentemente publicado pela Temas & Debates), os portugueses tomaram “como
‘desinteresse’, ou ‘falta de aptidão’, o que na realidade correspondia a uma compreensão
distinta do mundo e das necessidades básicas”. O uso de indígenas em trabalhos forçados
tinha ainda outra desvantagem: fugiam com frequência e era difícil recapturá-los, pois
conheciam o terreno melhor que os colonos e podiam encontrar refúgio nas suas
comunidades. Já os africanos, desenraizados e atirados para uma terra estranha, tinham mais
dificuldade em iludir os perseguidores e sobreviver após a fuga.

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Como poderão os países europeus compensar os indígenas americanos por, em muitas
regiões, terem causado a sua quase completa extinção e se terem apropriado de todo o seu
território (com excepção das actuais reservas índias, de expressão residual)? Como se calcula
o valor de todo um continente? Ou propor-se-á o repatriamento de todos os brancos e negros
de volta aos respectivos territórios de origem dos seus antepassados, deixando a América
para os índios?

Engenho de açúcar, Brasil, 1816

 Como identificar no mundo de hoje os descendentes dos beneficiários e


das vítimas da escravatura e do colonialismo?

Hoje, os “legítimos proprietários” do Brasil – os índios – representam apenas 0.3% da


população e apenas cerca de 7% da população se identifica como negra, enquanto 43% se
identificam como “pardos” e 50% como brancos. Claro que esta é uma auto-percepção que
nem sempre corresponde à realidade e mesmo a realidade tem contornos imprecisos,
admitindo um contínuo de tons de castanho. Mas mesmo que se apurasse que os 7% de
negros são efectivamente descendentes, sem miscigenações, dos escravos trazidos de África,
no caso de os países esclavagistas acordarem no pagamento de uma indemnização, deveriam
ser eles os único receptores, ou deveria esta ser partilhada com os “pardos” de acordo com o
seu grau de “negritude”? Pode também perguntar-se porque é a factura apresentada apenas à
Europa, quando no Brasil de hoje vivem descendentes dos esclavagistas brancos. Se se exige
um ajuste de contas internacional, porque não começar por um ajuste de contas nacional,
com os brancos a pagar aos negros (e os pardos muito atrapalhados no meio, já que são, ao
mesmo tempo, descendentes de vítimas e carrascos)? Para complicar ainda mais a
contabilidade, muitos brancos brasileiros – a maioria, na verdade – descendem de europeus
que chegaram ao Brasil na viragem dos séculos XIX-XX, pelo que poderiam alegar nada ter a
ver com escravatura e colonialismo e subtrair-se ao pagamento de indemnizações.

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“A enraizada e longa experiência social da escravidão […] acabou por dar forma à sociedade
brasileira”, defendem Schwarcz & Starling, autoras de Brasil: Uma biografia

E que dizer dos que descendem da minoria que, na Europa e nas suas colónias, se opôs à escravatura e
que consegiu que ela fosse abolida? Será um cidadão europeu que consiga provar tal ascendência ficar
isento de contribuir para a indemnização?

A história dissolve, funde, fragmenta e recombina incessantemente povos, nações, impérios e


instituições. É hoje impossível encontrar representantes – legalmente imputáveis, entenda-se
– do Império Bizantino, do Ducado de Sabóia, do Império Khazar, da República de Veneza,
do Império Purépecha, ou do Reino Visigótico, o que leva automaticamente à prescrição de
incontáveis crimes contra a humanidade. Ficando-nos pelo século XX, em que medida
poderão os Eslovacos responder pela antiga Checoslováquia ou, recuando um pouco mais,
pelo Império Austro-Húngaro? Ou a Federação Russa pela antiga URSS?

Apenas as nações (abastadas) que têm mantido uma identidade mais ou menos contínua ao
longo da história são alvo de pedidos de indemnização – mas se a Escócia deixar de fazer
parte do Reino Unido, os escoceses serão, ainda assim, chamados a pagar os desmandos
cometidos no século XVII por Inglaterra? Se a Catalunha se tornar independente, ficará
dispensada de responder pela brutalidade da colonização espanhola das Américas?

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“A escravidão no Brasil”, por Jean-Baptiste Debret (1768-1848)

 Quanta da prosperidade de um ex-colonizador resulta dos proventos


extraídos das ex-colónias e quanta da miséria das ex-colónias resulta dos
anos de domínio colonial?

Nem todas as colónias foram lucrativas. É verdade que entre meados do século XVI e meados
do século XVIII, Espanha extraiu 40.000 toneladas de prata das minas de Potosí e que o fez à
custa do trabalho de escravos africanos e índios (e também de índios contratados, ainda que
miseravelmente pagos), quase sempre em condições desumanas, mas nem todas as colónias
foram bafejadas com um Cerro Rico. A uma irracional sofreguidão europeia por colónias, que
teve o seu auge na viragem dos séculos XIX-XX, veio um período, sobretudo após o final da II
Guerra Mundial, em que vários países europeus concluíram que a maioria das colónias
custava mais dinheiro do que gerava, pelo que lhes concederam independência.

Pascal Bruckner, em Le sanglot de l’homme blanc (1983), publicado em Portugal como O


remorso do homem branco (D. Quixote), refere-se ao “terceiro mundismo”, a crença de que
tudo o que aconteceu de mal no mundo foi culpa da Europa – uma crença nascida de uma
contra-cultura ocidental que opõe um Norte predador, calculista e ganancioso a um Sul
acolhedor, desinteressado e generoso, e que logo foi acolhida em muitas ex-colónias.

É verdade que muitas colónias herdaram das antigas potências infra-estruturas incipientes,
populações sem instrução ou qualificações profissionais, estruturas fundiárias inadequadas,
burocracias ineficazes, uma estratificação social marcada e uma desequilibradíssima
distribuição de riqueza. Mas ao fim de algumas décadas de independência o estado
depauperado de um país deixa de poder ser imputável apenas aos ex-colonizadores – até
porque outros países tiveram condições de partida análogas e, entretanto, conseguiram
superá-las.

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Inspecção da “mercadoria”, ao fundo, um sócio do “inspector” negoceia o preço com os traficantes;
gravura c. 1854

 Antes da chegada do homem branco, a vida na América e em África era


paradisíaca?

Em certos círculos instalou-se uma visão das relações entre europeus e outros povos que é
afim da que é veiculada por “Cortez the killer”, uma canção de Neil Young incluída no disco
Zuma (1975). A canção é magnífica, mas apreciá-la obriga a que nos abstraiamos da letra, que
está tão minada por equívocos que se torna ridícula. É verdade que Hernán Cortés (1485-
1547) foi um dos mais brutais, gananciosos e obtusos conquistadores e que a forma como,
num ápice, obliterou boa parte da civilização azteca granjeou-lhe um lugar nada honroso na
história. Porém, a visão da América anterior às conquistas espanhola e portuguesa como um
mundo edénico, está muito longe da verdade: Canta Neil Young que, nessas terras, “Hate was
just a legend/ And war was never known/ The people worked together/ And they lifted many
stones”, mas nada poderia estar mais longe da realidade. A sociedade azteca era
eminentemente bélica e a sua economia assentava na guerra e na captura de prisioneiros – o
sistema de patentes entre os guerreiros aztecas estava ligado ao número de prisioneiros
capturados.

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Progressão ao longo da hierarquia entre os guerreiros aztecas, em função do número de prisioneiros
feitos em combate, com o concomitante aumento da elaboração e luxo nas vestes e ornamentos. Codex
Mendoza, meados do século XVI

Enquanto em muitas civilizações os prisioneiros de guerra eram escravizados e muitas


guerras foram travadas com o único fito de obter escravos, entre os Aztecas os cativos
destinavam-se, sobretudo, a ser sacrificados em sangrentas cerimónias religiosas – estima-se
que a média fosse de 20.000 por ano, mas podia subir na ocasião de eventos especiais (a
consagração de um novo templo a Huitzilopochtli, em 1487, terá custado a vida a 84.000
cativos).

Na sociedade azteca havia escravos, mas tal condição resultava de se ter cometido um crime
grave – embora também houvesse crianças que eram vendidas como escravas pelas suas
famílias, a fim de pagar dívidas. A escravatura não era hereditária e os escravos desfrutavam
de algumas prerrogativas impensáveis noutros sistemas esclavagistas, mas não deixavam de
ser pessoas que eram propriedade de outras pessoas.

Nada disto serve de atenuante à acção destruidora de Cortés e dos restantes conquistadores,
colonizadores e esclavagistas, mas desfaz o ingénuo e maniqueísta contraponto Norte-Sul
hoje tão em voga. Na verdade, um dos factores que possibilitou que Cortés tivesse derrubado
um império com apenas 500 homens e 13 cavalos foi a ajuda que obteve dos povos vassalos
dos aztecas, que não apreciavam de todo o despotismo destes.

Se os descendentes dos aztecas quiserem apresentar contas a Espanha, terão também que
estar dispostos a indemnizar os descendentes dos povos que subjugaram ou que devastaram
com guerras destinadas a obter vítimas para sacrifícios. Mas tal implicaria encontrar alguém
que conseguisse provar descender, em linha directa, dos tepanecas, por exemplo. O problema
é que a miríade de cidades-estado e pequenos impérios que se digladiaram, em alianças em
permanente mutação, no México pré-colombiano não tem qualquer correspondência ou
continuidade no moderno Estado que hoje conhecemos como México.

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Sacrifícios em templo azteca, Codex Magliabechiano

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O somatório de tudo o que nunca deveria


ter acontecido
Em Terra Nulius, Sven Lindqvist está consciente de que “muitos vêem [as exigências de
indemnizações] como chantagem moral e uma globalização do grotesco direito de
responsabilidade civil americano, que alimenta advogados e companhias de seguros e que,
em última análise, é pago pelos consumidores” (“consumidores” é uma bizarra escolha de
palavras – não se trata, de todo, de uma questão de “consumidores” mas de “cidadãos”), mas
está obviamente do lado dos que vêm nelas “uma solução viável para a reconciliação com o
passado”.

“O mercado de escravos”, por Gustave Boulanger, 1882

No final do livro, Lindqvist cita o crítico literário I.A. Richards, que terá definido a história
como “o somatório de tudo o que nunca deveria ter acontecido”, mas não parece tirar da frase
as necessárias ilações desta certeira definição. É que se, quando se põem de lado as visões
heróicas, patrióticas e simplistas da história, esta emerge como um vasto e confuso
emaranhado de erros, injustiças e barbaridades, cometidas por uns povos em relação a outros
(ou por facções ou seitas dentro do mesmo povo), num enredo tenebroso onde dificilmente
alguém poderá exibir um registo inteiramente inocente ao longo dos milénios. A ideia de
tentar compensar monetariamente todos os danos, agravos e ofensas entre povos ao longo da

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história é algo ainda mais insensato e tóxico para as relações internacionais do que a
insistência em reivindicações territoriais mesquinhas e obsoletas face à realidade do mundo
presente (ver Da China a Olivença, a cartografia do rancor).

Lindqvist e os entusiastas do ajuste de contas com a história laboram em vários equívocos:


julgam o passado à luz dos critérios éticos do presente (ver Tintin no Tribunal Penal
Internacional); têm uma visão linear, simplista e maniqueísta da história e da realidade, com
“bons” e “maus” inequivocamente identificados e entidades nacionais estereotipadas, bem
definidas e imutáveis; e não compreendem que, se dermos crédito a reivindicações sobre
agravos cometidos há quatro séculos, nada impede que se façam remontar os pedidos de
reparações até à Suméria e ao Império Acádio, ou até que alguém com uma percentagem de
genes de Homo neanderthalensis acima da média se ache no direito a ser indemnizado pelo
resto da humanidade pelo presumível genocídio cometido pelo Homo sapiens sobre o seu
primo paleolítico. Subjacente às reivindicações indemnizatórias está também a crença de um
povo em que todos os seus descontentamentos e padecimentos presentes decorrem apenas de
“maldades” que lhes foram infligidas por outros no passado – uma mundivisão que convida
ao fatalismo e à inércia.

Mas talvez o mais perigoso equívoco seja o que vê nas indemnizações uma reconciliação com
o passado – compreende-se que se fale de “reconciliação” quando há feridas recentes por
sarar, mas que sentido faz desenterrar ossadas com vários séculos? A única coisa que este afã
justiceiro poderá gerar é o oposto da reconciliação – o ressentimento.

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