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ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.).

História da vida privada no Brasil: a Corte


modernidade nacional. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
Capítulo 1: vida privada e ordem privada no Império – Luiz Felipe de Alencastro
p.11-93
● A transferência da corte trouxe para a América portuguesa a família real e o
governo da Metrópole. Trouxe também, e sobretudo, boa parte do aparato
administrativo português. (p.12)
● Esta é a ideia que fundamenta todo o capítulo – o escravismo não se apresenta
como uma herança colonial, como um vínculo com o passado que o presente
oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um
compromisso para o futuro: o Império retoma e reconstrói a escravidão no
quadro do direito moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre
a contemporaneidade. (p.17)
● Organizando a legislação nacional o Código Criminal do Império do Brasil
(1830) adaptou a escravidão à modernidade oitocentista. (p.17)
● Desde 1828, o Primeiro reinado começa a erodir o autonomismo municipal,
restringindo a competência das câmaras às matérias econômicas locais e
proibindo que os vereadores deliberassem sobre temas políticos provinciais ou
gerais. A regionalização instaurada pelo Ato Adicional (1834) cria as
assembleias provinciais, mas a tendência antimunicipalista prossegue. (p.17)
● Ora o exercício do poder público por autoridades designadas pelos presidentes
de províncias, ou seja, pelo governo central – em detrimento das autoridades
locais escolhidas pelos proprietários, eleitores qualificados da região – afigurou-
se como uma ameaça à ordem privada, isto é, à ordem em geral. (p.17)
● Em suma, durante as revoluções do Império, podia-se abrir fogo contra as tropas
legais, sublevar os cidadãos, desencadear a guerra civil. Desde que um e outro
campo guardassem “as mesmas convicções” básicas do consenso imperial: o
respeito á ordem privada escravista. (p.20)
● Etapas bem distintas marcaram o crescimento do Rio de janeiro. No decurso do
século XIX, os cativos representam da metade a dois quintos do total de
habitantes da corte. Um contraste nascerá entre a densidade de escravos na
cidade e as pretensões civilizadoras da corte e da Coroa, orgulhosa de seu
estatuto de única representante do “sistema europeu” da monarquia – na
América tomada pelo sistema republicano. (p.24)
● No entanto, ao contrário do que sucedia na Antiguidade, o escravismo moderno,
e particularmente o brasileiro, baseava-se na pilhagem de indivíduos de uma só
região, de uma única raça. Em outras palavras, no moderno escravismo do
continente americano a oposição senhor/escravo desdobra-se numa tensão racial
que impregna toda a sociedade1. (p.24) COMPARAR COM BLACKBURN
● Outros municípios e cidades brasileiras e americanas tinham proporções maiores
de cativos. Uma das mais fortes deve ter sido registrada defronte à corte, em
Niterói, onde, em 1833, quatro quintos da população eram escravos. (p.28)
● Com o término do tráfico de africanos em 1850, um fluxo intenso de imigrantes
lusitanos, por vezes embarcados na frota negreira reciclada neste novo tipo de

1
Moses I. Finley, Esclavage antique et idéologie moderne. P.130
transporte, chega à corte. Cruzada pelos fluxos migratórios dos cativos
transferidos para a zona rural, e dos portugueses que chegavam ao seu porto, a
corte conservou praticamente o mesmo número de habitantes entre 1850 e 1872.
Mas a composição étnica e social do município alterou-se de maneira radical: o
número de portugueses dobrou, subindo de um décimo para um quinto da
população total. Paralelamente, caíam as percentagens referentes aos escravos.
(p.30)
● A corte, as embaixadas estrangeiras, o comércio marítimo, as escalas contínuas
de viajantes que cruzavam o Atlântico Sul, a chegada de profissionais europeus,
engendram no Rio de Janeiro um mercado de hábitos de consumo relativamente
europeizados (...) (p.35,36)
● Vários fatores demonstram que houve um forte acréscimo na entrada de
importados – bens de consumo semiduráveis, duráveis, supérfluos, joias, etc. –
destinados aos consumidores endinheirados da corte e das zonas rurais vizinhas.
(p.37)
● Com a inauguração, a partir de 1850, de uma linha regular de navio a vapor
entre Liverpool, na Inglaterra, e o Rio de Janeiro, o tempo imperial entra em
sincronia com o tempo da modernidade europeia. Compras e vendas de
mercadorias, cartas e encomendas, taxas de câmbio, juros comerciais, viagens de
parentes e amigos possuíam, doravante, um parâmetro temporal fixo. Chovesse
ou fizesse sol, com vento ou sem vento, a Linha de Paquetes a Vapor de
Liverpool mantinha o ritmo de seus vapores Brazileira, Luzitana, Olinda e
Bahiana com uma pontualidade naturalmente britânica: um ou outro desses
navios, “novos e de primeira marcha”, saía sempre de Liverpool cada dia 24 do
mês para chegar ao Rio exatamente no dia 21 do mês seguinte. (p.38,39)
● Positivismo, homeopatia e o kardecismo. (p.44)
● Á exceção do piano, todos os outros instrumentos apontados já estavam, de
muito, pautados pelos ritmos afro-brasileiros (...) Não se tratava de um problema
rítmico, ou mesmo instrumental (...) A onipresença dos ritmos afro-brasileiros
derivava da onipresença da escravidão afro-brasileira. (p.45)
● De alto valor agregado e de imediato efeito ostentatório – as duas características
que fazem desde então a felicidade respectiva dos importadores e dos
consumidores brasileiros de renda concentrada – o piano apresentava-se como
um objeto de desejo dos lares patriarcais. Comprando um piano, as famílias
introduziriam um móvel aristocrático no meio de um mobiliário doméstico
incaracterístico e inauguravam – no sobrado urbano ou nas sedes das fazendas –
o salão: um espaço privado de sociabilidade que tornará visível, para
observadores selecionados, a representação da vida familiar. Saraus, bailes e
serões musicais tomavam um novo rimo. Vendendo um piano, os importadores
comercializavam – pela primeira vez desde 1808 – um produto caro, prestigioso,
de larga demanda, capaz de drenar para a Europa e os Estados Unidos uma parte
da renda local antes reservada ao comércio com a África, ao trato negreiro.
(p.47)
● A privatização da festa pública: o Carnaval de salão se torna marca de status,
enquanto o entrudo, o Carnaval de rua, é alvo da repressão policial. (p.50)
● Entretanto, nos bailes maiores, mais públicos, ocorreu uma ruptura fundamental.
Separou-se a festa da rua, popular e negra, embora de origem portuguesa – o
entrudo -, da festa do salão branco e segregado, o Carnaval. (p.52)
● Os bailes carnavalescos de salão – privatizando um divertimento público para os
sócios dos clubes e os que podiam adquirir ingresso – haviam se tornado marca
de distinção, coisa de gente fina. Em oposição ao “entrudo moleque”, festa
pública para o grande público, evento de rua e alvo designado das cacetadas da
polícia. (p.53)
● É sabido que a Independência desencadeou um movimento lusófobo e nativista
de troca de nomes de batismo. (p.53)
● Outros indícios ligados à evolução da prática sexual dos casais confirmam a
emancipação da vida privada ao arrepio da liturgia católica. (p.59)
● Ao lado de surtos violentos, e ás vezes sangrentos, de antilusitanismo, o
nacionalismo brasileiro desenvolveu uma maneira de ser, um comportamento
individual, privado, que tinha um significado público de afirmação da
singularidade nacional. (p.60)
● Como na Europa e na América do Norte, o recurso às amas de leite parecia ser
bastante comum no Império (...) O aluguem de amas de leite representava uma
atividade econômica importante nas cidades. Pequenos senhores de escravos
exploravam esse mercado, alugando a terceiros suas cativas em período pós-
natal. (p.63)
● Nessa época [a partir dos anos 1850], a imigração portuguesa, e em particular
originária dos Açores, mais feminizada, traz para a corte uma oferta de amas de
leite brancas que passam a competir com as mucamas de aluguel(...) (p.64)
● Na Europa há toda uma discussão sobre as vantagens do aleitamento
materno, a fim de garantir melhores cuidados ao bebê e, supostamente,
transmitir-lhe, pelo leite, as qualidades culturais de sua mãe. Pouco a pouco
o costume das amas de leite de aluguel declina, e o médico, baseado numa
nova especialidade – a puericultura -, intervém cada vez mais no cuidado
dos bebês, em detrimento das práticas e da autoridade materna. Com base
nas ideias cientificistas, ocorre uma masculinização de ofícios e práticas
exercidos exclusivamente pelas mulheres. (p.64,65)
● Febre amarela, surtos de cólera e varíola. (p.67)
● O ambiente epidemiológico da corte levou a família imperial a tornar regulares,
a partir de 1847, os veraneios em Petrópolis, vila promovida a cidade dez anos
mais tarde em meio a uma febre de construções (...) Nesse contexto, Petrópolis
surgia como uma solução de sanitarismo urbanístico, como uma medida
profilática em benefício da família real e da elite da corte: dado que era
impossível sanear o Rio no verão, tempo de todos os perigos, o imperador e seus
próximos batiam em retirada, mudavam-se para a montanha. (p.68)
● Anúncios de remédios e de médicos indicam que as doenças venéreas
proliferavam pelo Império afora. Mas o assunto permanecia tabu no seio das
famílias. (p.74)
● É de crer que o dr. Chomet, e a generalidade dos médicos do Império,
encontrasse intransponíveis resistências paternas e maritais no atendimento
clínico das moças e das senhoras. (p.75)
● Paralelamente, editam-se os manuais médicos dirigidos aos fazendeiros e
versando sobre o tratamento dos escravos. Mas aqui prevalece a peculiaridade
brasileiro e os preceitos médicos assumem um caráter escrachadamente
mercantil. Diante da cessação do tráfico negreiro – prevista desde os tratados
anglo-portugueses de 1810 assinalados no Rio e efetivada em 1850 -, os autores
exortam os senhores a proteger a saúde das escravas grávidas a fim de garantir a
reprodução de seu investimento. (p.77, 78)
● O paradoxo do sanitarismo no contexto da escravidão ficou evidente no caso do
uso do sapato, reservado aos livres e libertos, à exclusão dos escravos. Os
documentos registram e as fotografias da época ilustram: um escravo de ganho –
dono de um pecúlio tirado da renda obtida para seu senhor no serviço de
terceiros – podia ter meios para vestir calças bem postas, paletó de veludo,
portar relógio de algibeira, anel com pedra, chapéu coco e até fumar charuto de
vez em vez de cachimbo. Mas tinha de andar descalço. Nem com tamancos, nem
com sandálias. De pé no chão. Para deixar bem exposto o estigma indisfarçável
do seu estatuto de cativo. Uma das astúcias dos escravos fugidos no Rio
consistia em arranjar sapatos, calçá-los, e misturar-se aos negros e mulatos livres
e libertos que circulavam pela cidade (...) Sucedeu que um dos preventivos
aconselhados durante os surtos de cólera dos anos 1850 consistia, justamente, no
uso de sapatos. (p.79)
● Diante da reumanização do cativo pelo moderno sanitarismo, novas teorias
classificatórias do gênero humano entram em cena. Como se sabe, o
poligenismo ganhara suporte científico, na sequência de descobertas da
paleontologia oitocentista, ao propor, contra o monogenismo bíblico, a ideia
de que as raças contemporâneas provinham de troncos originalmente
distintos do gênero humano. Mais tarde, essas ideias dão lugar à frenologia
– o estudo comparativo das medidas do crânio e do cérebro – e ao racismo
científico: as medidas do crânio tornam-se o vértice da razão ocidental.
(p.79,80) COMPARAR COM lilia schwarcz
● Efetivamente, as teorias cientificistas combinam-se com a hierarquia social
preexistente para também justificar o escravismo: as novas ideias ratificam a
prática e os argumentos tradicionais. Desse modo, o argumento tradicional da
evangelização, defendido com alta retórica pelo padre Antônio Vieira no século
XVII, e professando que os negros haviam sido retirados da África e do
paganismo para receber no Brasil a luz do cristianismo, continuará sendo
plenamente avalizado pelo Império. (p.82)
● Os organizadores do censo de 1872 decidem que cada um dos 1 508 566
escravos do país devia ser computado como católico (...) A fraude do argumento
associando a posse de escravos ao dever de catequização dos negros. Dever do
qual, supostamente, desincumbiram-se os senhores. A ordem pública ditava a
manipulação estatística que ocultava a desordem privada. (p.82)
● A iluminação a gás na parte central do Rio prolonga a vida social nos parques e
nas ruas da cidade. O Passeio Público, no Rio de Janeiro, era lugar de ver e de
ser visto. (p.84)
● Nesse contexto, o Império, e a corte em particular, apresentava-se como um
excelente mercado para os fotógrafos, cabeleireiros, droguistas e outros
profissionais que prometiam mudar a aparência de seus clientes. Como
demonstra Ana Maria Mauad no capítulo 4, a fotografia, novidade mundial,
participa do processo de fabricação da autoimagem da elite imperial. O início da
iluminação a gás na parte central da cidade atrai para fora das casas – para os
cafés, confeitarias e os restaurantes – as famílias que antes só se expunham ao
olhar público nas missas dominais e, às vezes, nos teatros. (p.84.85) O VER E
SER VISTO, SURGIMENTO DO ENTRETENIMENTO, DO PRIVADO
AO PÚBLICO. É POSSÍVEL FAZER RELAÇÃO COM O QUE FOI
ESTUDADO EM HISTÓRIA SOCIAL DO FUTEBOL NO RIO DE
JANEIRO.
● O censo de 1872: por decisão eminentemente ideológica, os organizadores do
recenseamento decidiram que não havia, em nenhum canto do Império, nenhum
escravo branco. Todos os computados como pretos (69%) ou pardos (31%). À
diferença da escravidão na Grécia e na Roma Antiga, o escravismo moderno
reforça o estatuto legal do cativeiro com a discriminação racial: o escravo só
podia ser preto ou mulato, nunca branco. (p.88)******
● Patenteava-se a erosão dos pactos senhoriais que haviam assegurado, durante
três séculos, a submissão dos escravos. Na grande cidade, o individualismo e a
sede de lucro pareciam incompatíveis com a solidariedade escravocrata
tradicional: a envenenadora fora passada adiante. A ordem pública da corte não
podia mais ser garantida por causa da desordem privada escravista. (p.91)
● Depois do golpe fatal que a supressão do tráfico negreiro deu no escravismo, o
Oeste paulista modernizou-se graças, em parte, à resistência dos próprios
escravos. O custo de manutenção do arcaísmo, isto é, do controle dos escravos
ladinos, tornara-se elevado demais em comparação ao custo de gestão de mão de
obra imigrada. (p.93)
● Diante da resistência dos escravos ladinos, a política imigrantista, agora com a
carta da imigração italiana na mão, começa a ganhar mais adeptos. A supressão
do tráfico negreiro minava as bases da ordem privada escravista, pondo em
xeque, ao mesmo tempo, a reprodução dos escravos e a reprodução da própria
classe escravista (...) Aristóteles vivia num mundo em que a sociedade sem
escravos parecia absolutamente inconcebível. Enquanto no século XIX,
dominado pelo trabalho livre, o escravismo apresentava-se como uma grotesca
exceção que o Império do Brasil era o último país do mundo aferrado em
manter. (p.93)

Capítulo 7: Laços de família e direitos no final da escravidão- Hebe M. Mattos de


Castro p.337-384
● Nas sociedades ditas tradicionais, o privado se opunha ao público antes como
poder do que como direito. É o poder privado do senhor sobre seus escravos que
define essencialmente uma ordem escravista. (p.338)
● A continuidade da escravidão na jovem monarquia se fez fundamentada no
direito positivo: o direito de propriedade dos senhores sobre seus escravos,
assimilados estes, juridicamente, a simples mercadorias. Do ponto de vista legal,
portanto, esvaziava-se a relação escravista de seu liame senhorial para enfatizar
seu sentido comercial. Ao fazê-lo, a monarquia exacerbava – em princípio – o
poder privado dos senhores sobre seus cativos, transformando em simples direito
de propriedade. (p.341)
● Não era o convite de Lisboa e Isabel para que Ramos jantasse em sua casa – um
homem livre, ao que tudo indica descendente de africanos – o que causava
estranheza às testemunhas, mas o fato de que, nessa situação, a anfitriã o tivesse
chamado de “negro”, desqualificando- o desse modo como hóspede à mesa do
casal. Como regra geral, o que se depreende da leitura desse processo, bem
como a de outros documentos similares, é que a palavra negro foi utilizada na
linguagem coloquial, por quase todo o século XIX, como uma espécie de
sinônimo de escravo ou de ex escravo, com variantes que definiam os diversos
tipos de cativos, como africano – comumente chamado de “preto” até meados do
século – ou o cativo nascido no Brasil – conhecido como “crioulo” -, entre
outras variações locais ou regionais. (p.342)
● Para 65,22% dos nascidos nas áreas onde viviam em cativeiro, podem-se
identificar relações familiares, muitas vezes remontando a mais de uma geração.
(p.344)
● Apesar do incontestado poder senhorial de Antônio Pais, nos cômodos de sua
casa, bem como nas demais casas de propriedade dele, definiam-se espaços
privativos dos diferentes núcleos familiares que viviam naquele domicílio.
(p.347)

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