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A longa ‘noite da agonia’


Com a autoridade do imperador ameaçada, a primeira Constituinte é fechada
pela força das armas
Vantuil Pereira
2/1/2012

O Largo do Paço, no Rio de Janeiro, esteve agitado naquele 10 de novembro de 1823. Populares
saíram da sessão da Assembleia Constituinte carregando nos braços o deputado Antônio Carlos
Andrada Machado e Silva (1773-1845), após ovacionarem seu discurso no plenário. O alvoroço tinha
começado quando o presidente da Assembleia suspendeu os trabalhos sob a alegação de que os
populares que ali se aglomeraram tinham causado tumulto. Andrada Machado, assim como o
deputado e padre José de Alencar (1794-1860) e outros tribunos, era contra a suspensão da
Assembleia. Do terceiro andar do Paço Imperial, o imperador assistia à cena, que acontecia logo em
frente, no Paço da Cadeia. Mas era só o começo de uma grande tensão que se formou nos dois dias
seguintes.

No dia 11, as primeiras movimentações ainda estavam sob o impacto da agitada sessão da véspera.
Na abertura da sessão, Andrada Machado chamou a atenção do presidente mensal da Assembleia,
deputado João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), para a inquietação. Com aparente interesse
em dar continuidade à dura oposição ao imperador, propunha a instalação de uma comissão especial
para vigiar a segurança da Corte. O que o tribuno não percebeu foi que o quadro havia se alterado.
Se até a sessão anterior, D. Pedro I tinha acompanhado os acontecimentos com relativa paciência,
mas cena a que assistira na véspera foi suficiente para deixá-lo alerta. O imperador passou à
ofensiva, ainda que lhe custasse o fechamento do Parlamento.

A discussão na Assembleia se encaminhava para a limitação do poder do imperador. Além disso,


havia um acirramento entre interesses brasileiros e portugueses: um sentimento antilusitano por
parte dos brasileiros, ainda sob o impacto da proclamação da Independência, no ano anterior, e um
incômodo por parte dos parlamentares e da população em geral com relação à chegada de
emissários do rei português, D. João VI.

Machado já esgotara todas as suas armas. Os ataques contra o imperador, o governo e os lusitanos
de um modo geral tinham produzido fatos políticos, como a ação de soldados inconformados com o
clima antilusitano difundido pelos jornais O Tamoio e Sentinela da Liberdade da Praia Grande.
Depois da publicação de um artigo no Sentinela contrário aos militares portugueses anistiados pelo
governo, foi noticiada a chegada de missões portuguesas ao Rio de Janeiro, enviadas pelo rei D.
João VI. A notícia dizia tratar-se de “corcundas”, isto é, portugueses que aderiram à causa
despótica de “recolonização” do Brasil.
A publicação provocou a fúria dos soldados, que invadiram a botica do açoriano naturalizado
brasileiro David Pamplona, dando-lhe umas bordoadas. Procurando resposta, Pamplona lançou mão
de um poderoso instrumento político da época: o direito de petição ao Parlamento, instrumento
pelo qual todo cidadão teria o direito de reclamar contra o abuso das autoridades quanto aos
direitos civis, de liberdade de expressão e de defesa da propriedade, entre outros.

A relação entre o imperador e a Constituinte não era mesmo boa. A sessão de 11 de novembro nada
mais foi do que um desdobramento dos acontecimentos. Representava ainda uma disputa de força
em torno de projetos de Estado. Era, portanto, mais profunda do que propriamente questões
pessoais. O combate ao imperador levou os liberais a definir os momentos finais da Assembleia
Constituinte, na passagem do dia 11 para 12 de novembro de 1823, que vieram a ficar conhecidos
como a “noite da agonia”.

No desenrolar da sessão, Machado não percebeu a disposição da tropa, que já havia se deslocado
dos quartéis para o Campo da Aclamação (atual Campo de Santana), e o alinhamento que surgiu em

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torno da resistência ao discurso antilusitano, sabiamente politizado pelo monarca.

Logo depois da proposta de Machado, o que se viu foi uma intensa troca de ofensas entre os
parlamentares, interrompida pela chegada de um ofício do ministro do Império, Francisco Vilela
Barbosa (1769-1846), futuro marquês de Paranaguá, que dava notícias no mínimo preocupantes: as
tropas já estavam reunidas no Campo de São Cristóvão. Evasivo, o mesmo ofício aludia à
contrariedade dos militares diante dos ataques veiculados por periódicos, que publicavam notícias
consideradas caluniosas contra a corporação e o imperador. O mecanismo utilizado pelos militares
era idêntico ao que David Pamplona havia recorrido: o uso de petição. No documento dos militares,
havia a clara intenção, à semelhança da oposição de Andrada Machado, de criar embaraços ao
Parlamento quanto aos direitos de cidadãos ofendidos. Eles rogavam ao imperador uma atitude mais
dura e enérgica e se queixavam de um partido dito “brasileiro” que pretendia provocar desordem
pública.

Mas a noite era longa... Mais tarde, chegou ao plenário outro ofício assinado pelo ministro do
Império, respondendo às primeiras questões levantadas por Andrada Machado no início da sessão. A
resposta era taxativa quanto às intenções: impor uma lei de imprensa que controlasse o ímpeto dos
jornais O Tamoio e Sentinela da Praia Grande, e que a Assembleia Constituinte excluísse os irmãos
Andrada (José Bonifácio, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
Machado), importantes formuladores do processo de autonomia brasileira de seus quadros.

A comissão encarregada de avaliar o ofício daria seu parecer já nas primeiras horas do dia 12, e
indicava a disposição de negociar. Acabou admitindo uma lei de imprensa que limitasse a ação
caluniosa dos órgãos citados, mas não tocou na exigência do governo de expurgar os Andrada de
seus cargos.

Andrada Machado era contrário à imposição de uma lei de imprensa e considerava o parecer
“manco”. Coerente com a perspectiva de que qualquer cessão abria caminho para dar razão ao
governo, argumentava que a Assembleia estava sob coação.

Pela leitura dos Diários da Assembleia Constituinte, nota-se que Machado já fazia uma avaliação da
realidade que se passava na cidade e da disposição do monarca de não negociar. Percebia que a
reunião da tropa e sua concentração tinham algo mais do que o simples desejo de permitir a
tranqüilidade, e que havia a possibilidade de qualquer soldado mais esquentado partir novamente
para as “vias de fato”. Isso se comprova pela sugestão apresentada à comissão: deveriam ser
exigidas do governo suas reais intenções. Finalizava afirmando que as tropas tinham que seguir para
fora da Corte. No entanto, seu esforço deu em nada. Alguns membros da comissão rechaçaram a
fala e a proposta de Antônio Carlos. Já o deputado Vergueiro argumentou que, ao juízo da comissão,
havia razões para reconhecer o abuso da imprensa. E ainda entendia que a remoção das tropas
facilitaria a influência dos partidos e facções.

Às 11 horas da manhã do dia 12 de novembro, a situação parecia irremediável. Foi quando entrou
em cena Francisco Vilela Barbosa (1769-1846), ministro dos Negócios do Império. Recém-chegado
de Portugal, tinha assumido a pasta dois dias antes. Quando respondeu aos quesitos centrais do
ofício, foi categórico: a Assembleia deveria gerar uma lei de imprensa e excluir os Andrada.

Ficou claro que os parlamentares, ainda que permanecessem discutindo os encaminhamentos,


reconheciam a delicadeza da situação. Nesse momento, a agonia tomava a forma de angústia. De
tudo o que foi dito por Francisco Vilela Barbosa, ficou evidente que o governo não recuaria. Sabedor
de que os membros da Assembleia também não cortariam “a própria carne”, reconhecendo que a
proposição de uma lei de imprensa era o máximo que poderiam ceder sem que a Assembleia se
tornasse um mero fantoche do governo, o fechamento ou o conflito direto eram os únicos caminhos
possíveis. Mas o quadro era desfavorável para um confronto, pois as tropas pareciam dispostas a
enfrentar qualquer resistência, então desarmada. Ainda que surgissem palavras contra a petição das
tropas, que José Bonifácio (1763-1838) via como um direito e não um abuso, ficou muito clara a
sensação de coação. Esta também foi a interpretação do deputado José de Alencar, que defendeu a
transferência da Assembleia para outro lugar, distante, ou a suspensão dos trabalhos até que se
instalasse a paz.

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A notícia de que a tropa reunida em São Cristovão marchava em direção ao Paço da Cadeia acabou
por consumar a agonia. “Daqui iremos para onde a força armada nos mandar”, declarou o deputado
Andrada Machado. Já sem entusiasmos, a Assembleia caía sob o poder das armas.

Vantuil Pereira é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Ao Soberano


Congresso: os direitos do cidadão na formação do Estado Imperial 1822-1831 (Alameda Casa
Editorial, 2010).

Saiba Mais - Bibliografia

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República – Momentos Decisivos. São Paulo: Editora Unesp,
1999.

MONTEIRO, Tobias. História do Império: A Elaboração da Independência. Belo Horizonte: Editora


Itatiaia; São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1981.

RIBEIRO, Gladys S. A liberdade em construção. Identidade nacional e conflito antilusitano no


Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

SOBRINHO, Barbosa L. et alli. A Constituinte de 1823. Brasília: Senado Federal, 1977.

VARNHAGEN, F. A. de. História da Independência do Brasil até o reconhecimento pela antiga


metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até
essa data. São Paulo: Editora Melhoramentos, s/d.

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