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O parlamentarismo no Império do Brasil (II)

Representação e democracia

Carlos Bastide Horbach

Sumário
Introdução. 1.Eleições e representação. 1.1.
Os partidos do Império (1847–1889). 1.2. Siste-
ma eleitoral. 1.3. Representação e oposição. 2.
Democracia com coroa? 2.1. O Imperador reina
e governa? 2.2. O Imperador e os Gabinetes.
2.3. A queda do 3o Gabinete Zacarias. 2.4. O
sorites de Nabuco. Conclusão.

Introdução

A partir do início do Segundo Reinado,


o Império do Brasil passou a apresentar prá-
ticas de governo que em muito se aproxima-
vam do modelo parlamentar tradicional,
numa situação institucional que veio a se
consolidar com a edição da Lei no 523, de
1847, por meio da qual foi criado o cargo de
Presidente do Conselho de Ministros.
Essa evolução histórica do sistema de go-
verno imperial, narrada com maiores deta-
lhes na primeira parte deste estudo, deu-se
à margem de uma alteração constitucional,
mantendo os poderes do Império suas atri-
buições originais. Isso significava, na essên-
cia, a prevalência do poder pessoal do Im-
perador no jogo político, em detrimento da
Assembléia Geral, o que contraria a base do
Carlos Bastide Horbach é Doutor em Direi- parlamentarismo, no qual o Parlamento é o
to do Estado pela Universidade de São Paulo,
principal ator da cena política.
Mestre em Direito do Estado e Teoria do Direi-
to pela Universidade Federal do Rio Grande A superação dessa situação dizia com a
do Sul, Professor dos cursos de graduação e Mes- legitimação democrática dos poderes par-
trado em Direito do Centro Universitário de lamentares, com o desenvolvimento de uma
Brasília – UniCEUB, Advogado em Brasília – DF. efetiva representação na Assembléia Geral
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e com um sistema eleitoral capaz de compor Uruguai, o chamado “triunvirato conserva-
verdadeiras maiorias. Esses aspectos, rele- dor”, possuía em Saquarema, Rio de Janeiro,
vantes para a configuração de um regime uma fazenda onde ocorriam reuniões da
parlamentar, serão a seguir analisados, para cúpula conservadora, que ficaram conheci-
que se possa, ao final, tomando como parâ- das como os “consistórios”. Por sua vez, os
metros os critérios expostos por Douglas liberais eram conhecidos como “luzias”,
Verney (1979), avaliar a natureza do parla- numa alusão à Batalha de Santa Luzia, em
mentarismo no Império do Brasil. que os liberais de Minas Gerais derrotaram
as forças do Governo durante a Revolta Li-
1. Eleições e representação beral de 1842.1
Os partidos do Império eram partidos de
A base da representação é um sistema quadros, nunca foram nem pretenderam ser
eleitoral forte, que, por sua vez, somente é partidos de massas. Igualmente nunca tive-
viável ante a existência de partidos políti- ram programas muito definidos ou definiti-
cos organizados. Tais partidos, defenden- vos, eram grupos políticos que variavam de
do os diferentes ideais presentes na socie- posicionamento conforme a postura do opo-
dade, geram as maiorias e minorias no Par- sitor e conforme a posição de situação ou
lamento, formando o governo e a oposição. oposição que ocupavam. Tanto era assim
O correto funcionamento de um sistema que vários grandes nomes do Império troca-
parlamentar passa, necessariamente, por ram de partido no decorrer de suas vidas
esses fatores, que ora são objeto de exame. públicas. Foi assim com Nabuco de Araújo,
que de conservador passou a líder liberal,
1.1. Os partidos do Império (1847–1889) bem como com o Visconde de Abaeté, o Vis-
Para muitos historiadores, o marco do conde do Bom Retiro e o próprio Visconde
nascimento dos partidos políticos brasi- de Rio Branco, todos liberais que se torna-
leiros é o 7 de abril de 1831, a abdicação de ram conservadores.
D. Pedro I, quando as tendências divergen- É importante registrar, entretanto, que,
tes tomaram seus rumos próprios: enquanto os liberais têm a sua semente lan-
“os ‘exaltados’, que, com os repu- çada no projeto de reforma da Constituição,
blicanos e os revolucionários de toda em 13 de outubro de 1831, com propostas se
ordem, agrupar-se-iam no Partido repetindo, de modo mais ou menos extre-
Liberal; os ‘moderados’, os partidári- mado, em programas seguintes, o Partido
os da Constituição que seriam o nú- Conservador apenas assume um comporta-
cleo do Partido Conservador; os rea- mento de reação, que se transforma em imu-
cionários, adeptos da volta do Im- tável compromisso, a partir da queda do re-
perador deposto – o célebre partido gente Feijó, em 1837. Os liberais, assim, apre-
‘Caramuru’ que desapareceu com a sentam vários projetos partidários e os con-
morte de D. Pedro I” (TORRES, [1985?] servadores nenhum. Os luzias tentaram, até
apud CHACON, 1985, p. 28). o fim do Império, modificar o status quo, ob-
Quando da instituição do cargo de Pre- tendo certo êxito até, enquanto saquaremas
sidente do Conselho de Ministros, já está se limitaram a perseverar na resistência, ce-
definido o quadro partidário brasileiro. De dendo aos poucos (CHACON, 1985, p. 35).
um lado, o Partido Liberal; doutro, o Con- O ideal que inspira as ações do Partido
servador. Os conservadores eram popular- Conservador é a rigorosa observância dos
mente chamados de “saquaremas”, isso por- preceitos constitucionais, o que o coloca
que Joaquim José Rodrigues Tôrres (Viscon- numa posição completamente oposta à dos
de de Itaboraí), que integrava, juntamente liberais, que, por reformadores, necessita-
com Eusébio de Queirós e o Visconde do vam reformar o texto de 1824. Mesmo assim,

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admitiam os conservadores inovações políti- partidos imperiais, podemos citar
cas, desde que fossem maduramente estuda- Raymundo Faoro, Azevedo Amaral e
das, sendo esta a característica principal de Afonso Arinos de Melo Franco. Mas a
seus membros que faziam parte do Conselho diferença não é a mesma para os três
de Estado, enfim, prudência extrema. autores. Faoro vê no Partido Conser-
O pensamento dos liberais, por sua vez, vador o representante do estamento
é o de exigir o maior número possível de burocrático já por nós comentado. Os
reformas para a obtenção de algumas pou- liberais representariam os interesses
cas, que consideravam necessárias. O prin- agrários, opostos aos avanços do po-
cipal programa liberal é o redigido em 1869 der central promovido pela burocra-
por Nabuco de Araújo, que pode ser resu- cia. Já Azavedo Amaral vê nos con-
mido nos seguintes pontos: a) reforma eleito- servadores os representantes dos in-
ral; b) reforma policial e judiciária; c) abolição teresses rurais e nos liberais a voz dos
do recrutamento (que era um instrumento grupos intelectuais e de outros gru-
utilizado pelo poder para punir popula- pos marginais ao processo produtivo,
ções inteiras de adversários); d) abolição da tais como os mestiços urbanos. Por fim,
Guarda Nacional (braço armado do Gover- Afonso Arinos considera os liberais
no); e e) emancipação dos escravos. Junto des- como representantes da burguesia
se programa, lançaram os liberais à nação um urbana, dos comerciantes, dos intelec-
manifesto, igualmente redigido por Nabuco tuais e dos magistrados. O Partido
de Araújo, em que concluíam a exposição de Conservador representaria os interes-
suas idéias oferecendo ao povo brasileiro duas ses agrários, principalmente os inte-
opções: ou a reforma, ou a revolução.2 resses cafeeiros do Rio de Janeiro”.
Por outro lado, a visão geral dos qua- Outra formação partidária que não se
dros partidários e das ações de uma agre- pode olvidar é o Partido Republicano. Sua
miação e de outra quando no poder e na origem está numa facção extremada do Par-
oposição faz crer que liberais e conservado- tido Liberal, que, mesmo com a apresenta-
res em muito pouco diferiam, sendo que o ção do programa de 1869, não mais apóia a
famoso comentário de Holanda Cavalcanti, lentidão com que são feitas as reformas no
de que “não há nada mais parecido com um Segundo Reinado. Assim, em 1870, surge o
saquarema do que um luzia no poder”, era Manifesto de Itu e o jornal A República, que
considerado como uma verdade sentida por lançam as bases mais concretas do Partido
todos (NABUCO, 1997, p. 172). Essa seme- Republicano, que tinha como principais re-
lhança é reforçada pela existência, inclusi- dutos São Paulo e Pernambuco, donde vi-
ve, de um ministério de conciliação entre os nham os ideais socialistas, remanescentes
dois partidos, o Ministério Paraná, que du- da Praia (CHACON, 1985, p. 49). Entretan-
rou de 1853 até 1857, reunindo, sob a lide- to, no jogo do parlamentarismo imperial, que
rança de Honório Hermeto Carneiro Leão, o é o que aqui interessa, não tiveram os repu-
Marquês de Paraná, ministros conservado- blicanos muita participação, tendo sido, in-
res e liberais, tendo um respaldo considerá- clusive, subestimados pelos dois tradicio-
vel na Câmara dos Deputados. nais jogadores, que somente nos últimos
Os partidos, para alguns, cumpriam seu anos da monarquia lhes dão a atenção ne-
papel de representar os interesses dos setores cessária.
da sociedade imperial, interesses esses diver-
sos e conflitantes. Nesse sentido, a análise de 1.2. Sistema eleitoral
José Murilo de Carvalho (1996, p. 182-183): Além dos partidos políticos, que são os
“Entre os que admitem diferença principais focos de discussão política num
na origem social dos membros dos sistema parlamentar, é de extrema impor-

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tância a configuração do regime que rege a negando, dessarte, direitos políticos aos não-
disputa entre esses partidos, a configura- católicos.
ção do regime eleitoral. O Direito Eleitoral é Essas eram as regras gerais do sistema
um instrumento precioso do sistema parla- eleitoral do Império, constantes da Consti-
mentar, pois a eleição é o modo mais claro tuição de 25 de março. O artigo 97 determi-
de pressionar o governo, demonstrando as nava que uma lei regulamentar deveria re-
verdadeiras tendências da vontade política grar de forma prática as eleições. Algumas
nacional. Assim, para uma completa visão leis se sucederam na regulamentação dos
de um sistema parlamentar, imprescindível pleitos, mas claramente se pode traçar três
é a análise de seu regime eleitoral, o que ain- períodos do regime eleitoral no Império do
da é mais necessário quando se trata de um Brasil: antes da Lei de 19 de setembro de
estudo sobre o parlamentarismo no Império 1855, entre 1855 e a Lei Saraiva, de 1881, e
do Brasil. depois da Lei Saraiva. Cabe agora arrolar
A Constituição de 1824 adotou um siste- as características básicas desses três perío-
ma de sufrágio parcial e indireto. Resumi- dos distintos.
damente, poder-se-ia dizer que o sistema Antes de 19 de setembro de 1855, as elei-
funcionava assim: os eleitores de primeiro ções seguiam o sistema que ficou conhecido
grau, que deveriam ter uma renda mínima como “eleições por chusmas”. Nesse regi-
anual líqüida de 100$ (cem mil réis), esco- me, o eleitor de segundo grau votava, entre
lhiam os eleitores de segundo grau, que de- uma lista de nomes apresentada por cada
veriam ter renda mínima anual líqüida de partido no âmbito provincial, nos candida-
200$ (duzentos mil réis), que escolhiam os tos que achava os melhores para ocupar os
deputados, cuja exigência era de renda mí- assentos da província na Câmara. Sobre as
nima anual líqüida de 400$, e votavam nas chusmas, discursa o Marquês de Paraná na
listas tríplices para senador, cargo que exi- Sessão de 27 de agosto de 1855 no Senado:
gia uma renda de 800$, de onde o Impera- “As chusmas, senhores, convêm
dor escolhia, segundo as atribuições do Po- muito a alguns, porque é verdade que
der Moderador, o novo membro vitalício do sendo eu eleitor, tendo de votar sobre
Senado (LOPEZ, 1993, p. 67). 10 ou 12, e examinando uma chapa de
Além da restrição financeira, o Capítulo 20, posso deixar escapar um ou outro
VI do Título IV da Constituição de 1824 es- de menos capacidade...” (NABUCO,
tabelecia outras limitações ao direito de su- 1997, p. 207).
frágio. Nas eleições de primeiro grau, as as- É nesse período, que vai até 1855, que se
sembléias paroquiais, eram impedidos de desenvolve a principal característica do sis-
votar os menores de 25 anos (com exceção tema eleitoral de todo o Império, a fraude.
dos casados, dos oficiais militares maiores As eleições eram feitas por agentes admi-
de 21 anos, dos bacharéis formados e dos clé- nistrativos nomeados pelo Governo, pelo
rigos de ordens religiosas); os “filhos-famí- Gabinete que estava no poder. O Governo,
lia”, isto é, os filhos que viviam com os pais com base no artigo 102, no 4, da Constitui-
(com exceção daqueles que servissem em ção, nomeava os presidentes das provín-
ofícios públicos); os criados de servir e os cias, que tinham vastos poderes, inclusive o
religiosos de clausura. Nas eleições de se- de chefiar o Comandante Militar da região,
gundo grau, os conselhos provinciais, não convertendo-se os presidentes nos princi-
poderiam votar os libertos, nem os crimino- pais agentes da fraude eleitoral. Por outro
sos pronunciados em querela ou devassa.3 lado, a polícia era unificada e centralizada
Não se pode olvidar, igualmente, que o arti- na Corte, o judiciário era subordinado ao
go 5o da Constituição estabelecia como reli- Gabinete e o clero igualmente submetido ao
gião oficial a Católica Apostólica Romana, Governo. Essas três categorias, fundamen-

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tais para as eleições, eram ligadas a secreta- Pimenta Bueno foi incluído na lista trí-
rias do Ministério da Justiça, o que trans- plice e escolhido pelo Imperador, tornando-
formava o titular desta pasta noutra impor- se Senador do Império.
tante personagem na manipulação das elei- Outra peculiaridade desse período da
ções. história eleitoral do Império é a contagem
Ilustra bem essa característica do siste- dos votos duvidosos. Ainda que não se ti-
ma eleitoral do Império a eleição para o Se- vesse certeza do conteúdo dos votos, dos
nado no pleito de 1851 em São Paulo. Nesse candidatos escolhidos pelo eleitor, a autori-
ano, foi nomeado para a Presidência da Pro- dade eleitoral poderia interpretar o voto, atri-
víncia de São Paulo o então deputado sa- buindo-lhe valor e contando o duvidoso
quarema José Thomaz Nabuco de Araújo. como se válido fosse. Vários parlamentares
Era Presidente do Conselho de Ministros o se opunham a essa prática, ressaltando que
Visconde de Monte Alegre, que exigiu do a representação não poderia ser duvidosa,
Presidente da Província a eleição de José que os mandatos não poderiam ser presu-
Antônio Pimenta Bueno, futuro Marquês de midos.
São Vicente, para a lista tríplice de senador A ação do governo por meio de seus
por São Paulo. Entretanto, a candidatura de agentes eleitorais era radical, usando-se in-
Pimenta Bueno era repelida pelos líderes clusive de força para coagir o eleitorado. Os
conservadores paulistas, além do que o can- agentes policiais e a guarda nacional agi-
didato contrário, Joaquim José Pacheco, go- am violenta e diretamente no processo de
zava de maior popularidade do que o ungi- fraude, fazendo com que, durante o Impé-
do pelo Governo. Assim, Nabuco de Araújo rio, as eleições ganhassem, desde o pleito
enviou correspondência ao Presidente do de 13 de outubro de 1840, a alcunha de “elei-
Conselho, indagando se não seria mais pru- ções do cacete”, que produziam câmaras
dente abrir mão da candidatura Pimenta unânimes em perfeita harmonia com o Ga-
Bueno, reconhecendo-se a vantagem de Pa- binete.
checo. A resposta de Monte Alegre é preciosa É somente com o Ministério Paraná de
para a compreensão das eleições no Império: 1853 que o quadro eleitoral começa a modi-
“O governo quer que se faça a elei- ficar-se. Desde a instauração do Ministério,
ção dos dois senadores que faltam por a idéia fixa de seu presidente, o Marquês de
essa província, usando de toda a influ- Paraná, era a eleição por círculos, ou distri-
ência legítima que lhe dão o poder e a tos, de um deputado. Paraná desejava, com
opinião. Não deseja que a oposição a reforma, uma representação real do país
vença nem um candidato, e tem como na Câmara dos Deputados4, expressando a
seu principal adversário Joaquim José verdadeira maioria do círculo, fosse quem
Pacheco, que o tem guerreado dentro fosse o eleito. A eleição por círculos, por sua
de suas próprias fileiras mais, e fa- vez, trazia consigo, na visão dos mais con-
zendo-lhe mais danos do que seus servadores, a negação de uma das princi-
descobertos adversários. Já sabia de pais características dos parlamentos libe-
tudo quanto V. Exa. me diz acerca do rais: a natureza do parlamento como um
Pimenta Bueno, mas ele não pode dei- órgão de notáveis. Temiam os opositores da
xar de fazer parte da chapa do gover- reforma que os deputados saíssem não das
no. Os partidos em nossa terra não po- pessoas notáveis e bastante conhecidas nas
dem coisa alguma contra a vontade do províncias, mas de funcionários subalter-
governo, e só a fraqueza do poder e a nos favorecidos por pequenas influências
pouca vontade de os sujeitar à discipli- locais.5
na é que traz as derrotas, quando as A ocasião, porém, era propícia para a
tem havido”(NABUCO, 1997, p. 134). aprovação de reformas, vivia o regime par-

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lamentar do Império sob a égide da Concili- Marquês de Paraná, Presidente do Conse-
ação, que durou todo o Ministério Paraná. lho, observou que não considerava legítima
Dessa forma, o projeto do governo foi apro- a candidatura de seu filho para deputado
vado na Câmara por 54 votos contra 36, con- pela Província de Minas Gerais. Paraná, com
vertendo-se, após a sanção de Sua Majesta- sua têmpera característica, respondeu ao
de Imperial, na Lei de 19 de setembro de Imperador: “Eu, como Honório Hermeto
1855. Carneiro Leão, não preciso do favor do pre-
Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente sidente do Conselho para eleger um depu-
(1857), aborda a mudança de sistema eleito- tado por Minas”. Para Nabuco de Araújo,
ral, ressaltando um dos seus principais be- Ministro da Justiça do Gabinete Paraná, cujo
nefícios, a possibilidade de representação irmão pretendia candidatar-se pelo Pará,
da oposição: enviou soberano o seguinte bilhete: “Li a cor-
“A eleição por províncias tinha respondência que teve para o Pará a respei-
muitos inconvenientes, o sistema dos to da candidatura de seu mano e só tenho
círculos ministra importantes vanta- de observar que a influência do presidente
gens. Facilita a manifestação e repre- a haver outros candidatos dignos não seria
sentação de todos os interesses e opi- conforme ao programa do ministério”. Nou-
niões, desde que tenham alguma im- tro bilhete a Nabuco, D. Pedro II demonstra
portância, pois que desde então con- sua gradual descrença nas eleições do Im-
seguiram maioria em um ou outro dis- pério: “Cada vez me convenço mais da per-
trito, e não serão aniquilados pela mai- niciosa influência dos nossos magistrados
oria provincial; é este um grande me- nas eleições”. Descrença essa que se trans-
lhoramento, é mesmo um princípio de forma, também, em descrença nas reformas
justiça, pois que o direito de ter repre- eleitorais: “Não é o vestido que tornará ves-
sentantes no parlamento pertence a tal a messalina, porém, sim, a educação do
todos os brasileiros, e não deve ser mo- povo e portanto a do governo” (NABUCO,
nopolizado por uma só opinião ou 1997, p. 351-352, 779).
maioria provincial”. A verdade é que a primeira eleição sob o
Mas não só na divisão em círculos de regime dos círculos correu como o progra-
um deputado é que se baseou a reforma de mado pelos reformadores, mesmo diante do
Paraná. Ela também introduziu a eleição de baque sentido pelo Gabinete com a morte,
suplentes de deputados e estabeleceu um em 3 de setembro de 1856, meses antes da
sistema rígido de incompatibilidades elei- eleição, de seu Presidente e principal ideali-
torais. Pela primeira vez, os presidentes de zador das reformas, o Marquês de Paraná.
províncias, os seus secretários, os coman- Apesar de não contar com a presença firme
dantes de armas, os generais em chefe, os de Honório Hermeto Carneiro Leão, o mi-
inspetores gerais da fazenda pública, as nistério, sob a presidência do Marquês de
autoridades policiais, os juízes de paz, mu- Caxias, conseguiu curvar os Ministros e Pre-
nicipais e de direito eram inelegíveis no sidentes, os seus correligionários, os chefes
âmbito de suas atividades (CHACON, 1985, do seu partido e impor a este uma prática até
p. 31). então desconhecida, a liberdade eleitoral.
É nessa época que a preocupação do Im- A mudança foi tamanha que o próprio
perador com as eleições torna-se evidente. Governo sofre derrotas em vários círculos.
No primeiro pleito após a reforma de 1855, O exemplo mais contundente foi, talvez, o
demonstra o monarca o maior empenho em do filho do Marquês de Paraná, derrotado
tornar a eleição a mais livre possível, che- apesar de a vitória ser considerada certa
gando a exigir de seus ministros posições pelo Presidente da Província de Minas Ge-
mais radicais do que as expressas na lei. Ao rais. Pela primeira vez na história do Impé-

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rio, a Câmara formada por uma eleição não extinção da guarda nacional(...), sem
era composta exclusivamente pelo partido a organização do Poder Judiciário cons-
do Governo, sendo que tal realidade levou titucional e independente(...). A refor-
D. Pedro II a afirmar que foi com a lei dos ma eleitoral, finalmente, é incompatí-
círculos que nasceram as minorias no par- vel com essa organização policial que
lamento imperial (NABUCO, 1997, p. 356). possuímos” (NABUCO, 1997, p. 781).
Entretanto, a mais correta análise acerca Não é de se espantar, portanto, que te-
da reforma eleitoral é a do Imperador, ver- nha constado do já referido Programa Libe-
dadeiramente o vestido em nada mudava a ral de 1869 a reforma eleitoral nas bases por
messalina, e de vestal, provaram as eleições Nabuco propostas nesse discurso.
seguintes, pouca coisa tinha o regime dos Todavia, já no Gabinete São Vicente, que
pleitos do Império. O resultado das eleições se inicia em 29 de setembro de 1870, os con-
de 1856 refletiu mais a falta de adaptação servadores passaram a dar sinais de apro-
do esquema de fraude ante a nova realida- vação para a reforma eleitoral, uma vez que
de do que uma real mudança do sufrágio no sua grande bandeira era a conservação do
Brasil. Bastou uma eleição para que as for- elemento servil, como eufemisticamente era
ças regionais que regiam os pleitos apren- chamada a escravidão.6 Mas se não mais
dessem como agir sob o regime que se ins- havia resistência dos saquaremas, ela vinha
taurara, fazendo com que a lei de 19 de se- de esferas mais superiores. O Imperador,
tembro de 1855, apesar de cumprida fiel- reformador adiantado e radical em matéria
mente, não atingisse os seus objetivos. Des- de escravidão, era refratário a qualquer
sarte, passaram os reformadores liberais a mudança político-constitucional, como o fim
imaginar um novo vestido, esse mais elabo- da eleição indireta expressa no texto de 1824
rado e de difícil aceitação tanto por parte (NABUCO, 1997, p. 813).
dos conservadores quanto do Imperador: A única mudança no sistema eleitoral
a eleição direta. efetivada durante a década de 1870 gerou
O espírito reformador, que, como visto, poucas conseqüências práticas. A reforma
estava concentrado no Partido Liberal, pas- foi proposta durante o Gabinete Rio Branco
sou então a propor uma nova reforma elei- em 1874, sendo aprovada somente na ses-
toral, a instituição de eleições diretas no são seguinte, em 1875, já sob o Gabinete
Império, com a extinção dos dois graus de Caxias-Cotegipe. Essa reforma trouxe al-
votação e dos colégios eleitorais, onde ocor- guns pontos importantes como a interven-
ria grande parte das fraudes. Porém, os re- ção da magistratura no alistamento eleito-
formadores já não mais viam o problema de ral, o julgamento das questões eleitorais pelo
forma isolada, as reformas deveriam alcan- Poder Judiciário e o estabelecimento de al-
çar os demais fatores que contribuíam para gumas incompatibilidades eleitorais e par-
o falseamento dos pleitos. Foi Nabuco de lamentares. O mais importante ponto da lei
Araújo, agora o principal líder luzia, que da de 1875, porém, foi a transformação dos cír-
tribuna do Senado, em 17 de julho de 1868, culos de um deputado em círculos de três
mostrou quão abrangentes deviam ser as deputados, no sistema do voto incompleto,
reformas para libertar as eleições no Brasil: em que um terço era deixado à representação
“A reforma eleitoral não será efi- das minorias (NABUCO, 1997, p. 995-996).
caz sem que tiremos ao Poder Executi- Foi somente em 1881, oito anos antes da
vo toda a força, que lhe foi dada para queda do regime monárquico, que o Impé-
reprimir revoltas, e de que hoje se uti- rio deu um passo decisivo na direção da re-
liza para comprimir o povo. Assim, a gularização dos pleitos. Em 1880, chamou
reforma eleitoral de nada servirá sem D. Pedro II um liberal para compor o ministé-
a extinção do recrutamento (...), sem a rio, era o Conselheiro José Antônio Saraiva,

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que desde logo colocou como meta funda- te. Com esse primeiro ensaio de verdade elei-
mental de seu Gabinete a reforma para a toral, o país ficou tão anarquizado quão cor-
instituição das eleições diretas. Saraiva op- rompido; o parlamento veio representar a
tou não pela reforma constitucional, mas doença geral das localidades, a fome de
por uma lei ordinária, que teve seu texto re- emprego e de influência; a dependência para
digido pelo então deputado Rui Barbosa com o governo (NABUCO, 1997, p. 1089).
(CALMON, 1959, p. 1788). Além da eleição Se, antes da eleição direta, o que viciava o
direta, estabelecia a reforma de Saraiva as pleito era a vil influência do poder central
condições de implementação de uma Justiça que emanava da Corte, com a eleição direta
Eleitoral, restabelecia os círculos com um de- surge a não menos vil influência das oligar-
putado, regulamentava as incompatibilida- quias locais, num sistema de “voto de ca-
des, impunha penalidades rigorosas contra bresto”, que nada mais era do que um anún-
as fraudes, alargava o voto aos naturaliza- cio do Coronelismo típico da República que
dos, acatólicos e libertos, além de introduzir se aproximava.
os títulos eleitorais, uma de suas mais impor- O incremento das instituições eleitorais
tantes inovações (CHACON, 1985, p. 31). é uma preocupação que acompanhou a po-
Com a Lei Eleitoral de 1881 pronta, Sa- lítica do Império durante toda a sua exis-
raiva apresentou sua demissão, para que ou- tência, até 15 de novembro de 1889. O últi-
tro gabinete presidisse a eleição, sendo que mo Gabinete da monarquia, organizado
o Imperador negou-se a demitir o ministé- pelo Visconde de Ouro Preto (Afonso Celso
rio. José Antônio Saraiva nomeou então uma de Assis Figueiredo), trazia, no seu progra-
comissão mista, dos dois partidos, para a ma, o projeto de “alargamento do direito de
regulamentação da lei, bem como designou, voto” (CHACON, 1985, p. 32).
para as províncias, presidentes neutros,
deixando claro que não havia candidatos 1.3. Representação e oposição
oficiais. Como visto, o sistema eleitoral do Impé-
Em 31 de outubro de 1881, 96.411 eleito- rio do Brasil era um sistema viciado, seja
res, dos 150.000 alistados, foram às urnas pelo voto censitário, seja pela influência
nos 122 círculos em que estava dividido o fraudulenta do poder central, seja pela ma-
Império. O pleito correu como o esperado nipulação dos resultados por parte das oli-
pelo governo, sendo que o resultado confir- garquias locais. A verdade é que a formação
mava a sua correção: foram eleitos 68 depu- de uma representação condizente com a
tados liberais e 54 conservadores, sendo que vontade da população representada era pra-
dois ministros de Estado, Homem de Melo e ticamente impossível. A própria fluidez dos
Pedro Luís, foram derrotados em seus cír- partidos contribuía para a falta de identifi-
culos. Com a missão cumprida, Saraiva rei- cação entre o eleitorado e as câmaras que
terou seu pedido de demissão ao Impera- ocupavam a cena política no Parlamento.
dor, que dessa vez a aceitou, chamando para As eleições do Império e as câmaras delas
a Presidência do Conselho um outro luzia, advindas não conseguiam fazer presente e
Martinho de Campos, líder da maioria que concreto o eleitorado, o povo brasileiro.
se estabelecera (CALMON, 1959, p. 1789). Isso gerava conseqüências que variavam
O sucesso de Saraiva, por outro lado, foi de época para época. Nos primeiros perío-
relativo. A execução de um pleito honesto dos do Segundo Reinado, houve uma radi-
mostrou quão dividida era a vida partidá- cal dicotomia entre a província e a Corte,
ria brasileira, que antes de 1881 produzia, bem como entre a política feita nesses dois
incrivelmente, câmaras unânimes; mas res- cenários. A conseqüência da falha na repre-
saltou o problema social da falta de um elei- sentatividade nacional fazia com que mui-
torado forte no Brasil, referido anteriormen- tos buscassem, na política local, a satisfa-

220 Revista de Informação Legislativa


ção de seus interesses, deixando para os Está aí, quem sabe, na dicotomia políti-
chamados “diletantes da Corte” a política ca causada pela falha de representação
do Império. Assim, durante um largo perío- no Império, a razão do preconceito contra o
do da monarquia, a política provincial esta- lobby, que ainda hoje persiste e o impede de
va extremamente distanciada da política ser considerado uma forma legítima de de-
nacional, apesar da manutenção de parti- fesa de interesses e mais um instrumento do
dos nacionais, que apresentavam, por sua regime democrático de governo.
vez, variações de orientação de província Por outro lado, ao falsear a representa-
para província. ção, o viciado sistema eleitoral do Império
Entretanto, outra conseqüência dessa dificultava ao máximo o exercício de outra
falta de representação real passou a ser sen- atividade indispensável para o bom funcio-
tida de forma mais presente durante o Gabi- namento de um sistema parlamentar e de-
nete Rio Branco: o lobby. O interessante é mocrático de governo, a oposição.
constatar que, talvez, a opinião que tinham Os teóricos do regime imperial reconhe-
os tradicionais políticos do Império, repro- ciam na oposição um elemento fundamen-
vando o lobby como forma legítima de repre- tal do regime parlamentar que gradativa-
sentação de interesses, nasceu da primeira mente se instaurava. São Vicente a chama
conseqüência da falta de representação real, de “oposição constitucional”, atribuindo-
qual seja, a dicotomia de políticas entre a lhe o dever de fiscalizar a ação do governo,
Corte e a província. Para os “cardeais” dos de reclamar contra toda a violação das ga-
partidos nacionais, a Câmara dos Deputa- rantias sociais, contra o prejuízo dos inte-
dos e o Senado eram cenário da “grande resses públicos abandonados ou sacrifica-
política”, deixando-se para as províncias, dos, ressaltando, ainda, que sua falta “adul-
com suas assembléias, a “pequena políti- tera o sistema representativo, fazendo-o cair
ca”, a dos interesses cotidianos. Assim, em frouxidão e marasmo, em uma atonia
quando surge, nos corredores da Assembléia muito prejudicial, como já temos experimen-
Geral, a atividade de lobby, imediatamen- tado” (BUENO, 1857, p. 267).
te é associada à “pequena política”, que pro- E São Vicente tinha razão, a impossibili-
fanava o solo sagrado das câmaras da Cor- dade de formação da oposição, causada
te, palcos tradicionais dos mais elevados in- pelas eleições fraudulentas, adulterara o sis-
teresses nacionais. tema parlamentar do Império. As câmaras,
O relato de Joaquim Nabuco (1997, p. 987) se não eram unânimes, tinham um ou dois
muito bem demonstra isso, refletindo, pro- deputados de oposição, que não passavam,
vavelmente, a opinião de seu pai, o senador na linguagem do Imperador, de mera “pa-
Nabuco de Araújo: trulha”. Assim, ante a realidade eleitoral
“(...) por fim a aparição ao lado dos adversa, a oposição se vai fazer presente por
ministros, nas bancadas e corredores meio de duas vias, por um lado a tribuna do
das câmaras, nas secretarias de Esta- Senado e, por outro, a tribuna da imprensa.
do, nas redações de jornais, de uma Outra peculiar anomalia da política im-
nova entidade: os intermediários, im- perial, que também tem suas causas no fal-
propriamente chamados ‘advogados seamento das eleições, é a conversão do Se-
administrativos’, que, pouco a pouco, nado, casa com características institucionais
reduzirão a política a súdita do interes- conservadoras, em principal foco da oposi-
se particular, e farão dela, qualquer que ção no Império. Enquanto a Câmara dos De-
seja a abnegação, a dignidade, a pobre- putados era “a representação ativa do pro-
za de seus homens, o auxiliar, o instru- gresso”, deveria ser o Senado, no ideal dos
mento, o autômato, sem o saber e sentir, construtores do Império, “o representante das
da especulação que sitia o Tesouro”. idéias conservadoras” (BUENO, 1857, p. 56).

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Para tanto, para exercer essa representa- votos de desconfiança, tinha de fato o poder
ção das idéias conservadoras, detinha o Se- de derrubar ministérios. Exemplo clássico
nador um mandato vitalício, como visto dessa força é o episódio da queda do Gabi-
anteriormente. Assim, como os partidos al- nete Itaboraí. Em 1868, para substituir
ternavam-se no poder e como ambos frau- Zacarias, chama o Imperador para compor
davam eleições, os senadores eleitos para a o novo gabinete o Visconde de Itaboraí, prin-
lista tríplice donde escolhia o Imperador cipal líder saquarema e membro do famoso
eram sempre do partido do governo, como “triunvirato conservador”. Nessa época,
bem demonstra o episódio da eleição de diante das circunstâncias da queda de
Pimenta Bueno. Os partidos colocavam, no Zacarias, que se verá mais adiante, a oposi-
Senado, seus principais líderes, que, a par- ção liberal no Senado era mais contundente
tir daquele momento, ganhavam vida autô- do que nunca. Assim, no final da sessão le-
noma no cenário político nacional, não de- gislativa de 1870, no dia 19 de setembro, efe-
pendendo mais das eleições, que ora eram tuaram os liberais a manobra que viria a der-
fraudadas por uns, ora por outros. rubar o Gabinete Itaboraí. Tratava-se de um
Assim, o Senado, que teoricamente não aditivo para o orçamento de 1871, no qual os
deveria fazer política, como sustentava liberais destinavam 1.000 contos de réis para
Nabuco de Araújo, tornava-se o principal foco a alforria de escravos, tendo sido redigido por
da oposição, pois, ante o fenômeno das câ- Nabuco e assinado pelos grandes líderes lu-
maras unânimes, era o único locus de debate zias, Zacarias, Souza Franco, Paranaguá,
político no Império onde se conservava a bi- Cansansão de Sinimbu, Chichorro da Gama,
polaridade do sistema Situação x Oposição. Silveira da Mota e Dias de Carvalho.
Novamente é interessante transcrever Aceitar aquele aditivo era demais para
parte do já referido discurso de Nabuco de um Governo conservador como o de Itaboraí,
Araújo de 17 de julho de 1868, na tribuna cuja base partidária era radicalmente con-
do Senado: trária à emancipação. Entretanto, a investi-
“A vitaliciedade do Senado é hoje dura do Gabinete era dupla, não só do par-
um grande bem, porque abriga a oposi- tido vivia um ministério no sistema parla-
ção independente, excluída da Câma- mentar do Império, e é exatamente aí que
ra pelos instrumentos do governo. A reside a crise do Visconde de Itaboraí. O
temporariedade, sem reforma eleitoral, Imperador era simpático à emancipação,
seria uma desgraça; com a liberdade sendo que os primeiros projetos abolicionis-
das urnas, não teria o alcance espera- tas, os redigidos por São Vicente em 1865,
do por seus apologistas”(NABUCO, foram inspirados por determinações do
1997, p.782). monarca. Assim sendo, D. Pedro chegou
A oposição no Senado era combativa, inclusive a enviar um bilhete a Itaboraí ma-
sendo famosa a fiscalização que faziam os nifestando-se favorável ao aditivo. Ante as
senadores dos atos do ministério. Zacarias circunstâncias, somente restou uma opção
de Góis e Vasconcelos, que dividia com ao velho saquarema que honrasse sua con-
Nabuco de Araújo a liderança do Partido dição de “cardeal” do partido e membro do
Liberal, entrou para a história parlamentar “triunvirato”: a demissão.8
do Império não somente pelos três gabine- Tendo somente no Senado a oportuni-
tes que comandou, mas principalmente pela dade de manifestar-se dentro das institui-
oposição firme que, da tribuna do Palácio ções do Estado imperial, a oposição ia bus-
do Conde dos Arcos, impôs a seus êmulos car na imprensa a força que o regime eleito-
conservadores.7 ral lhe negava. Consciente da força que ti-
A oposição no Senado era forte e, apesar nha a imprensa, também os ministérios bus-
de aquela casa não ter a prerrogativa dos caram, por meio dos periódicos de então,

222 Revista de Informação Legislativa


formar a opinião pública. A utilização da nalistas, prática comum e reconhecida sem
imprensa para a formação da vontade polí- maiores preocupações pelos ministros. O
tica da nação é um capítulo intrigante da próprio Marquês de Paraná, quando Presi-
História do Império, uma vez que a liberda- dente do Conselho, defendeu tal subvenção
de de que gozavam os jornalistas contrasta- da tribuna da Câmara dos Deputados, em
va com a realidade eleitoral, totalmente atre- 26 de maio de 1855:
lada ao poder central. “O sr. deputado reconhece que é
Cada um dos grandes partidos tinha o sabido geralmente que em toda a par-
seu órgão de divulgação na imprensa, tanto te onde há sistema representativo, o
na Corte quanto nas províncias. Existiam governo não pode durar muito lutan-
igualmente jornais que, apesar de apresen- do com a imprensa, se em face dessa
tarem certas tendências, guardavam a im- imprensa não houver quem o defen-
parcialidade. Os veículos de imprensa go- da, quem o justifique e quem explique
zavam, no Império, de grande liberdade de a sua política. É sabido, e o sr. deputa-
expressão, sendo que inexistia qualquer tipo do o assinalou, de que esta tarefa de
de censura aos jornalistas, nem assuntos que acabo de falar custa sacrifícios
proibidos para as páginas dos jornais. que não são lucrativos, e por conse-
Essa liberdade de imprensa era, também, guinte é necessário que essa tarefa seja
uma das coisas que mais preocupavam recompensada. Não pretendo que meu
D. Pedro II, seu constante defensor. Até mes- ministério seja diferente dos outros”
mo os veículos republicanos gozavam da (NABUCO, 1997, p. 203).
proteção do monarca. Nada abalava as duas
idéias do Imperador: que não se devia tocar 2. Democracia com coroa?
na imprensa e que as opiniões republica-
2.1. O imperador reina e governa?
nas não inabilitavam nenhum candidato
para os cargos que a Constituição fizera só Ante a análise até agora feita do sistema
depender do mérito. O diálogo de Pedro II parlamentar imperial, cabe discutir até que
com o Marquês de São Vicente, então Presi- ponto é verdadeira a afirmação feita pelo
dente do Conselho, quando da publicação general Bartolomeu Mitre, Presidente da
do manifesto republicano de 1870 e do lan- Argentina (1862–1868), de que o Império do
çamento do A República, é característico Brasil nada mais era do que uma “democra-
dessa posição. Respondendo a São Vicente, cia con corona” (MITRE, [199-?], p. 107).
que lhe pedia para agir contra os republica- Para tanto, há necessidade de recorrer-se aos
nos, disse o Imperador: “Sr. São Vicente, o tradicionais conceitos de democracia, para,
país que se governe como entender e dê ra- assim, compará-los aos praticados na mo-
zão a quem tiver”. São Vicente, preocupa- narquia brasileira.
do, argumentou com o soberano que a mo- Para Carl Schmitt, democracia é a iden-
narquia era um dogma da Constituição que tidade entre governantes e governados, en-
D. Pedro jurara defender. O Imperador riu e tre dominantes e dominados, entre os que
encerrou a discussão: “Ora São Vicente, se mandam e os que obedecem, negando qual-
os brasileiros não me quiserem para seu quer diferença qualitativa entre os que man-
Imperador, irei ser professor” (NABUCO, dam e os que obedecem, formando a igual-
1997, p. 817). dade democrática (SCHMITT, 1992, p. 230).
Outra questão relevante envolvia a im- Esse conceito talvez seja complementado
prensa no Segundo Reinado, qual seja, a pelo de Pontes de Miranda, para quem de-
subvenção por parte dos ministérios. Nas mocracia é a participação do povo na or-
contas das verbas secretas dos gabinetes, dem estatal: na escolha dos chefes, na esco-
havia sempre pagamentos destinados a jor- lha dos legisladores, na escolha direta ou

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indireta dos outros encarregados do poder xima – o Rei reina e não governa – é comple-
público (MIRANDA, [19—?], p. 136). Enfim, tamente vazia de sentido para nós, pela nos-
pode-se ainda usar a fórmula mais que céle- sa Constituição”. Assim, D. Pedro II, que
bre de Lincoln: democracia é o governo do acumulava a titularidade dos poderes Mo-
povo, pelo povo e para o povo. derador e Executivo, tinha todas as prerro-
Surge, portanto, como algo intimamente gativas constitucionais para, além de reinar,
ligado ao sistema parlamentar do Império, governar, escolhendo seus ministros da for-
a questão de se saber quem governa, questi- ma que melhor considerasse, entre aqueles
onar-se se é possível, no Império do Brasil, que o seu arbítrio, e somente ele, recomen-
aplicar a fórmula consagrada por Thiers na dasse. Resta saber se, na prática, verdadei-
França de 1830, a fórmula do “Rei reina e ramente governava o Imperador, ou se eram
não governa”.9 os representantes do povo na Assembléia
Na Assembléia Geral do Império, eram Geral, por meio dos ministérios que apoia-
comuns as discussões acerca dessa maté- vam e compunham, que exerciam o governo
ria. Para alguns, não deveria o monarca go- do Império.
vernar, deixando para os ministros tal tare-
fa, uma vez que, assim, os erros destes não 2.2. O Imperador e os Gabinetes
afetariam diretamente a dinastia. Para ou- Saindo-se da polêmica teórica iniciada
tros, como Paraná, a fórmula era correta, o com a importação para o Império da máxi-
Imperador não deveria governar, mas tam- ma de Thiers, cabe analisar a prática do sis-
bém não deveria ser um mero espectador das tema parlamentar do período monárquico,
ações de seu ministério. Para outros, como traçando-se claramente qual o papel desen-
Zacarias de Góis e Vasconcelos, a questão volvido pelo Imperador como chefe do Po-
fora resolvida pela Constituição, que, no seu der Executivo e como ele influiu, por meio
artigo 126, assim determinava: “Se o Impe- de suas prerrogativas de titular do Poder
rador por causa física ou moral, evidente- Moderador, nos diversos gabinetes de seu
mente reconhecida pela pluralidade de cada reinado.
uma das câmaras da Assembléia Geral, se Nos primeiros gabinetes do Segundo
impossibilitar para governar, em seu lugar Reinado, como visto na primeira parte des-
governará como Regente o Príncipe Imperial, te estudo, o Imperador não influía direta-
se for maior de 18 anos”. Para uns, ainda, o mente nos assuntos de governo, deixando
princípio se estava impondo pela prática para os ministros tais tarefas. Entretanto, a
constitucional brasileira, sendo que alguns partir do Ministério Paraná de 1853, pas-
sustentavam que nem na prática o Impera- sou Pedro II a trabalhar junto a seu ministé-
dor governava. rio, impondo-lhe muitas vezes o seu próprio
Nabuco de Araújo, em sessão de 18 de ritmo.
julho de 1868, sustenta, perante D. Pedro II, Primeiramente, é importante ressaltar
sua posição, tendo constado na ata “que ele que os gabinetes reuniam-se na presença do
conselheiro segue a máxima do rei reina e Imperador, tinham despachos freqüentes
não governa” (NABUCO, 1997, p. 769). Por com o soberano, sendo que os trabalhos so-
outro lado, o Barão de Cotegipe não cansa- mente eram dirigidos pelo Presidente do
va de repetir que “o Imperador reina, gover- Conselho na ausência do monarca. Muitos
na e administra” (CARNEIRO, 1965, p. 36). projetos durante o Segundo Reinado foram
O Visconde do Uruguai (SOUZA, 1965, de autoria de Pedro II, que freqüentemente
p. 342) encerra sua exposição sobre tal polê- pedia a um Conselheiro de Estado ou a um
mica chamando de absurda a idéia de ex- Ministro para apresentá-los, como ocorreu
cluir o Imperador do Governo, uma vez que com Pimenta Bueno no caso dos projetos
era ele o Chefe do Poder Executivo. “A má- emancipacionistas.

224 Revista de Informação Legislativa


Dom Pedro tinha um instrumento fun- missão porque eu não quis anuir à
damental que lhe permitia governar, ele ti- proposta de adiamento das Câmaras
nha o poder para nomear e demitir minis- (...) e o presidido por Zacarias de Góis e
tros, o que fazia quando o governo destes Vasconcelos” (D. PEDRO II, 1958, p. 54
não mais o agradava. O Imperador apud SOUZA JÚNIOR, 1984, p. 391).
“não governa diretamente e por sí Voluntária e diretamente foram estes três,
mesmo, cinge-se à Constituição e às mas, para a retirada de todos, concorreu o
reformas do sistema parlamentar; mas Imperador, de uma forma ou de outra, num
ele só é o árbitro da vez de cada parti- exercício de poder pessoal, o “imperialis-
do e de cada estadista, e como está em mo”, que levou à hipertrofia do Poder Mo-
suas mãos o fazer e desfazer os minis- derador, apontada por muitos como uma das
térios, o poder é praticamente dele. A causas da República.
investidura dos gabinetes era curta, o A expressão “imperialismo”, além de
seu título precário – enquanto agradas- significar o absolutismo constitucional, a
sem ao monarca; em tais condições só que a falta de eleições reais reduzia o regi-
havia um meio de governar, a confor- me representativo, o polichinelo eleitoral
midade com ele. Opor-se a ele, aos seus dançando segundo a fantasia de ministéri-
planos, à sua política, era renunciar o os nomeados pelo Imperador, significava a
poder. (...) É ele só quem regula os aces- ação de um poder irresponsável por parte
sos e as garantias. (...) Ninguém sabe o do monarca, a causa da decadência política
dia seguinte senão ele” (NABUCO, e a aspiração de poder absoluto em um país
1997, p. 1086). livre, nulificando a nação representada no
Ante a falta de um sistema eleitoral ho- Parlamento (NABUCO, 1997, p. 683).
nesto e de um eleitorado capaz de se deci- Entre os exemplos de gabinetes derruba-
dir claramente entre uma opção política ou dos, arrolados por Pedro II à Princesa Isabel,
outra, era o Imperador quem chamava ao o episódio que mais patente deixa o “impe-
poder liberais ou conservadores. Conforme rialismo” é o da queda de Zacarias de Góis
fossem seus planos de governo, chamava e Vasconcelos em 1868, sendo extremamen-
D. Pedro os saquaremas ou os luzias, que te importante o conhecimento dessa passa-
permaneciam no poder até a implementa- gem da história do Segundo Reinado para
ção dos projetos que o monarca considera- se compreender o sistema parlamentar do
va necessários. O Imperador promovia a al- Império.
ternância no poder que os eleitores, por in-
capazes e por estarem submetidos às frau- 2.3. A queda do 3o Gabinete Zacarias
des, não podiam promover. Em 1866, durante a Guerra do Paraguai,
Esse poder era tão grande que Pedro II, chamou o Imperador para organizar o
sem maiores razões, podia diretamente der- novo gabinete o Senador Zacarias de Góis e
rubar um ministério, como ele mesmo admi- Vasconcelos, líder do Partido Liberal, que
te a sua filha, a Princesa Imperial Isabel, Con- tinha a maioria na Câmara dos Deputados.
dessa d’Eu: Entre os novos ministros, permaneceu, da
“Desde 1840 que só para a retirada composição anterior, Ângelo Muniz da Silva
de três ministérios tenho concorrido Ferraz (Barão de Uruguaiana) no Ministé-
voluntariamente e são estes: o que se rio da Guerra, sendo ele protagonista do
retirou em 1843, por ter eu negado a início da crise ministerial de 1868.
demissão do inspetor da Alfândega pe- A crise do Ministério Zacarias inicia-se
dida pelo Ministro Honório Hermeto com a nomeação do Marquês de Caxias para
Carneiro Leão (...); o presidido pelo o comando das forças brasileiras no teatro
Visconde de Abaeté que pediu sua de- de guerra. O problema é que Caxias e Ferraz

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tinham uma desavença antiga, sendo que boraí, que desde 1853 encontrava-se na Eu-
estar submetido às ordens de seu adversá- ropa. Era a volta do último grande líder con-
rio era demais para os brios do Marechal, servador na ativa, o último cardeal, o últi-
que, além disso, era um tradicional saquare- mo membro atuante do “triunvirato” saqua-
ma servindo com os luzias. Assim, no início rema. Ante a reação conservadora, negava-
de 1868, pede Caxias sua demissão, alegan- se o Imperador em demonstrar a autoridade
do estar o Ministério desenvolvendo uma do ministério liberal.
campanha para tirar-lhe a autoridade moral. O episódio final da crise é a nomeação
Ante o pedido de Caxias, o Imperador, de Sales Torres Homem para o Senado, que
que o considerava fundamental para a vitó- Zacarias se recusa a referendar e que o Im-
ria brasileira na guerra, convoca o Conselho perador leva a cabo mesmo assim. A autori-
de Estado10, estabelecendo como pauta de dade de Zacarias fora completamente nega-
deliberação uma singular questão: o Impera- da, sendo que, em 16 de julho, o Presidente
dor deve conceder demissão ao Marechal do Conselho apresenta a demissão do mi-
Caxias, generalíssimo no Paraguai, ou ao nistério, que é de pronto aceita pelo Impera-
Gabinete? dor.
O Conselho de Estado, na Sessão de 20 de Preocupado com o andamento da guer-
fevereiro de 1868, primeiramente foi quase ra, Pedro II não quer arriscar chamar nova-
unânime em conceder a demissão de Caxias, mente os liberais para formar o novo minis-
uma vez que o poder civil deveria prevale- tério, apesar de a maioria na Câmara ser
cer ante o militar, como defenderam conser- luzia. Assim, o Imperador chama o partido
vadores do nível de São Vicente. O Marquês que tinha os quadros em que mais confiava,
de Olinda vota pela demissão de Caxias e o Conservador. Dessa forma, o novo gabi-
do Gabinete. Entretanto, Nabuco de Araújo, nete é formado pelo financista de confiança
liberal, pondera a importância de Caxias de Pedro II, o recém-chegado Visconde de
para a guerra e vota pela demissão do Gabi- Itaboraí, que reúne o militar de confiança
nete. Seguem-se então votos de conservado- do Imperador, Caxias, bem como o seu di-
res pela demissão do Gabinete, vencendo, plomata de confiança, Rio Branco, e o seu
ao final dos debates, uma solução salomô- jurista de confiança, São Vicente (NABUCO,
nica: mantinha-se Caxias no comando da 1997, p. 761). Por sua vontade pessoal, o
guerra, mantinha-se o Gabinete Zacarias e Imperador havia contribuído para a queda
demitia-se Ferraz, o fator de discórdia entre de um Gabinete que tinha a maioria na Câ-
Caxias e o Governo. mara, substituindo-o por outro, que, apesar
Em 20 de fevereiro, saiu o ministério da de sua confiança, não tinha qualquer res-
sessão do Conselho de Estado sem força paldo parlamentar.
política. O Imperador havia hesitado na sua Era a negação de todo o sistema parla-
escolha, tendo ouvido o conselho. Nabuco, mentar que se tentava desenvolver no Impé-
membro da situação, votara contra o gabi- rio, era a negação dos ensinamentos de um
nete. Ferraz, Ministro da Guerra experiente, dos grandes líderes conservadores, Uruguai
era demitido ante pressão do poder militar. (SOUZA, 1997, p. 313), que, em sua obra de
Gradativamente a falta de poder se agrava- 1862, dizia que “nenhum Monarca irá pro-
va, sendo que, em junho, Zacarias profere curar para Ministros homens que não te-
na Câmara o famoso “discurso da caudi- nham apoio nas Câmaras. Nenhum homem
lhagem”, em que sustenta que “a mudança de juízo aceitará o Ministério, não podendo
interna não se pode operar pela influência contar com o apoio das Câmaras”. Aceita-
da espada e da caudilhagem”. ram, entretanto, os conservadores por esta-
A reação conservadora foi imediata, sen- rem certos de que o Imperador usaria de suas
do reforçada pela volta do Visconde de Ita- prerrogativas e dissolveria a Câmara, sen-

226 Revista de Informação Legislativa


do que a eleição seria favorável, obviamen- O Sr. Visconde de Jequitinhonha:
te, aos saquaremas, formando nova maioria – Isso é exato; todas são assim.
e respaldando o governo. O Sr. Nabuco: – Havia um minis-
tério que representava essa política
2.4. O sorites de Nabuco (...) [e para substitui-lo] foi chamada
Derrubado o Gabinete Zacarias, apresen- ao ministério uma política vencida nas
ta-se o Gabinete Itaboraí ante as câmaras urnas, que tinham produzido a maio-
reunidas da Assembléia Geral para a vota- ria que se acha vigente e poderosa no
ção de graças no dia 17 de julho de 1868. É parlamento.
exatamente nessa sessão parlamentar que é Isto, senhores, é sistema represen-
proferido um dos mais famosos discursos tativo? Não. Segundo os preceitos
da vida política brasileira, o célebre “dis- mais comezinhos do regímen consti-
curso do sorites”, de autoria do Senador José tucional, os ministérios sobem por
Thomaz Nabuco de Araújo, homem que di- uma maioria, como hão de descer por
vidia com o demitido Zacarias de Góis e outra maioria; o Poder Moderador não
Vasconcelos a liderança da humilhada mai- tem o direito de despachar ministros
oria liberal. como despacha empregados, delega-
O discurso de Nabuco é curto, cheio de dos e subdelegados de polícia; há de
emoção e, certamente, marca o fastígio da cingir-se, para organizar ministérios,
carreira parlamentar desse grande estadis- ao princípio dominante do sistema
ta do Império. Nabuco está totalmente desi- representativo, que é o princípio das
ludido com o sistema parlamentar do Impé- maiorias. (...)
rio do Brasil, fazendo uma análise cujos Ora, dizei-me: não é isto uma far-
principais pontos merecem ser reproduzi- sa? Não é isto um verdadeiro absolu-
dos, tal como registrados nos anais do Se- tismo, no estado em que se acham as
nado: eleições em nosso país? Vede este so-
“O Sr. Nabuco: – Sr. Presidente, rites fatal, este sorites que acaba com a
sou chamado à tribuna por um moti- existência do sistema representativo:
vo que, em minha consciência (talvez O PODER MODERADOR PODE CHAMAR A
seja um erro), é muito imperioso. Este QUEM QUISER PARA ORGANIZAR MINISTÉRI-
motivo, senhores, é que tenho apreen- OS; ESTA PESSOA FAZ A ELEIÇÃO, PORQUE HÁ
sões de um governo absoluto; não de DE FAZÊ-LA; ESTA ELEIÇÃO FAZ A MAIORIA.
um governo absoluto de direito, pois Eis aí está o sistema representativo do
não é possível neste país que está na nosso país. (...)
América, mas de um governo absolu- No coração do próprio ministério,
to de fato. (...) como na consciência de nós todos, está
Senhores, havia no parlamento o reconhecimento da ilegitimidade do
uma maioria liberal, constituída pela gabinete atual e de todos os ministéri-
vontade nacional; uma maioria tão os que forem saídos, não das maiori-
legítima, tão legal, como têm sido to- as, mas simplesmente da vontade do
das as maiorias que temos tido no poder irresponsável.
país... Esta é a minha opinião.
O Sr. Zacarias e outros senhores: – O Sr. Ottoni e outros senhores: –
Apoiado! Apoiado, muito bem!” (NABUCO,
O Sr. Nabuco: – ... tão legítima, tão 1997, p. 764-767).
legal como podem ser todas as maiori- Aí está o retrato fiel do sistema parla-
as, que hão de vir enquanto não tiver- mentar do Império do Brasil, a análise viva
mos liberdade de eleição (apoiados)... e presente de uma situação clara da política

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imperial. É por meio do discurso de Nabuco sentenciou: “O Imperador levou cinqüenta
de Araújo que se pode entender o porquê de anos a fingir que governava um povo livre”.
o parlamentarismo do Império ser chama-
do de “invertido” ou “às avessas”. Conclusão
Enquanto no parlamentarismo normal,
como o praticado na Inglaterra, a maioria Ante a realidade da política e das insti-
faz o governo, no parlamentarismo do Im- tuições do Império do Brasil, cabe questio-
pério, o governo fazia, por meio de eleições nar a natureza do sistema de governo vi-
fraudulentas, a maioria. Nessa equação po- gente durante o Segundo Reinado, durante
lítica, uma grandeza necessariamente anu- o período que se inicia em 1847, com a Lei
lava outra, o Poder Moderador anulava o da Presidência do Conselho, e se estende
eleitorado, transformando o sistema parla- até 1889, com a Proclamação da República.
mentar num reflexo de sua vontade, de suas Foram as instituições desenvolvidas no Im-
aspirações políticas para o governo. pério exemplo de sistema parlamentar? As
O Imperador não era o árbitro do jogo características do parlamentarismo imperi-
parlamentar imperial, ele era o único joga- al brasileiro eram compatíveis com o padrão
dor, o único que controlava e ditava regras, que a doutrina geralmente estabelece na
era ele quem montava os cenários e chama- qualificação do sistema parlamentarista?
va os atores do teatro político, era ele quem Para tanto, interessante retomar os dez
escrevia os roteiros e dizia como interpretá- pontos elencados por Douglas Verney (1979)
los, era ele quem distribuía os ingressos para e citados na Introdução da primeira parte
a platéia e escolhia os que ficavam de fora deste estudo, pelos quais se pode estabele-
da sala de espetáculos, onde era, a cada cer um padrão básico de sistema parlamen-
Gabinete, encenada a grande peça da polí- tar, cotejando-o com o sistema implementa-
tica brasileira. Durante a encenação, era fá- do no Império do Brasil.
cil notar o sotaque inglês dos atores, que não 1o – O Executivo é dividido em duas partes.
conseguia apagar, porém, o estilo lusitano Desde 1847, o Executivo é, na prática, divi-
de interpretação, uma vez que o autor do dido entre o Imperador e o Presidente do
texto era formado na escola do absolutismo Conselho de Ministros, cabendo ao primei-
português. ro o Poder Moderador e ao segundo a chefia
O povo ficava completamente alijado do do Poder Executivo. Entretanto, a Constitui-
governo. Ainda aqueles que tinham o direi- ção permanece inalterada, garantindo ao
to de votar nas eleições em nada participa- Imperador prerrogativas para governar e
vam, na prática, das decisões relevantes influir diretamente nos rumos dos ministé-
para o país. Nem mesmo os representantes rios.
eleitos, deputados e senadores, atuavam di- 2o – O Chefe de Estado indica o Chefe de
retamente no estabelecimento dos rumos Governo. Cabia exclusivamente ao Impera-
políticos da nação, somente o fazendo sob a dor nomear, na titularidade do Poder Mo-
influência e o beneplácito do monarca. O derador, os ministros de Estado, inclusive o
sistema parlamentar do Império é Pedro II; é Presidente do Conselho, escolhendo-o en-
a vontade pessoal do soberano de dar apa- tre aquelas pessoas que considerasse capaz
rência parlamentarista a um regime de po- para o cargo, numa opção submetida uni-
der pessoal; é, talvez, uma brilhante de- camente ao seu arbítrio.
monstração de despotismo esclarecido. 3o – O Chefe de Governo indica o Ministé-
Provavelmente, o mais fiel retrato do Se- rio. O Presidente do Conselho tinha, apesar
gundo Reinado seja o feito por Ferreira de algumas ingerências do monarca, liber-
Viana, Conselheiro de Estado e membro do dade para escolher os membros do Gabine-
Partido Conservador, que com acrimônia te, que eram nomeados pelo Imperador.

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4o – O Ministério é um corpo coletivo. O Con- completo nos regimes em que os ministros
selho de Ministros era um corpo que delibe- saem do corpo parlamentar. Como no Brasil
rava coletivamente, sendo o Presidente o di- imperial isso não era regra, aqui há um dis-
retor dos trabalhos, um primus inter pares. tanciamento do padrão parlamentarista.
5o – Os ministros são membros do Parlamen- Quanto aos ministros parlamentares, a re-
to. Os membros do Gabinete, durante o Im- gra se aplica, ressaltando-se que, antes de
pério, não precisavam ser membros do par- serem responsáveis diretamente perante o
lamento, eram escolhidos pelo arbítrio do Parlamento, o eram perante o Imperador.
Presidente do Conselho. Entretanto, podi- 10o – O Parlamento é o foco de poder no sis-
am os ministros acompanhar as sessões da tema político. É exatamente nesse ponto, o
Câmara dos Deputados, sendo-lhes permi- que mais fortemente caracteriza o sistema
tida a manifestação e a defesa, da tribuna, parlamentar, que o regime do Império era
de projetos e posicionamentos do governo. totalmente contrário à doutrina parlamen-
6o – O Gabinete é politicamente responsável tarista. Como visto, o foco real de poder no
perante o Parlamento. No sistema parlamen- sistema político do Império era o Impera-
tar do Império, o gabinete recebia a sua in- dor, titular dos poderes Moderador e Exe-
vestidura, em parte, do Parlamento, o que cutivo, que reinava e governava, nulifican-
fazia com que perante ele fosse responsá- do as maiorias formadas no parlamento e
vel. A Câmara dos Deputados dispunha do relegando os representantes da nação a um
mecanismo do voto de desconfiaça para afas- plano secundário da vida política nacional.
tar o ministério que entrasse em choque com Assim, ante a análise dos dez pontos
a política desenvolvida no Legislativo. apresentados por Verney (1979) como ca-
7o – O Chefe de Governo pode recomendar racterísticos do modelo institucional do sis-
ao Chefe de Estado a dissolução do Parlamento. tema parlamentar, somente resta constatar
Na monarquia brasileira, o Imperador tinha que o regime desenvolvido no Império, em
a prerrogativa, expressa no artigo 101, 5o, muitos pontos, dele dissentia. Provavelmen-
da Constituição, de dissolver a Câmara dos te, a evolução das instituições levasse o Im-
Deputados, o que fazia por seu arbítrio, não pério a viver, verdadeiramente, sob a égide
estando tal faculdade submetida a qualquer de um sistema parlamentar, uma vez que,
pedido do Presidente do Conselho, o que, como ressaltava Alves Branco no Senado em
na visão de Verney (1979), caracteriza uma 1841, a interpretação do texto constitucio-
monarquia pré-parlamentar. nal de 1824 variava de geração para gera-
8o – O Parlamento como um todo é superior ção, estando num constante aperfeiçoamen-
ao Governo. Segundo a Constituição de 1824, to, interrompido pela República em 1889.
a Assembléia Geral era, juntamente com o Talvez, os planos de D. Pedro fossem
Imperador, representantante da nação bra- mais audaciosos e prudentes. Talvez, não
sileira. Isso, desde logo, coloca o Parlamen- fosse o advento da República, o reinado de
to acima do Governo, que, no sistema parla- Pedro II teria entrado para a história do Bra-
mentar imperial, era mero agente do Impe- sil como um governo de transição. Transi-
rador, chefe legal do Poder Executivo. En- ção entre o absolutismo cru da tradição por-
tretanto, a prática constitucional brasileira tuguesa representada por seu pai, Pedro I, e
transformou, como visto, o Presidente do um reinado de efetivo regime parlamentar,
Conselho em Chefe de Governo, que tinha chefiado por sua filha, a Princesa Imperial
poder superior ao das câmaras enquanto go- Isabel, futura Imperatriz. Entretanto, isso é
zasse do beneplácito do Poder Moderador. uma especulação e, como pregava Weber, a
9o – O Governo somente é reponsável indire- cátedra não existe nem para os demagogos,
tamente perante o eleitorado. Essa característi- nem para os adivinhos; não sendo, portan-
ca apontada por Verney (1979) tem sentido to, ambiente para especulações.

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A realidade é que o reinado de Pedro II do se faça abstração da conveniência de uma mais
não foi o de um monarca submetido às re- ampla latitude para sua escolha”.
5
Sobre as discussões acerca da reforma eleito-
gras claras do sistema parlamentar, foi um ral na Sessão Parlamentar de 1855, ver NABUCO,
reinado de poder pessoal em que foram en- 1997, p. 205 et seq.
saiadas e testadas as instituições do parla- 6
Esse fato é extremamente interessante quando
mentarismo inglês. O regime de gabinetes se sabe que Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente,
do Império foi uma nuança dentro da referi- o Presidente do Conselho e, assim, pretensamente o
chefe dos conservadores de então, foi o redator, já
da escala de classificação dos sistemas de em 1865, dos cinco primeiros projetos emancipacio-
governo, mais um modelo híbrido que se nistas do Império, que, fundidos, transformaram-
pode constatar na história das instituições se na Lei do Ventre Livre. O posicionamento do
políticas. Foi, para utilizar a expressão de Presidente era um, mas dos seus liderados outro,
Raul Pilla, o “parlamentarismo brasileiro”, totalmente antagônico. Isso contribuiu para a apa-
tia de São Vicente no poder, que tinha sua liderança
com suas características próprias, não po- abalada pela atuação de Paulino José Soares de
dendo ser comparado aos modelos francês Sousa, filho do Visconde do Uruguai e herdeiro do
e inglês. Foi o parlamentarismo que as elites conservadorismo tradicional do “triunvirato” e dos
brasileiras e o fraco eleitorado do Império “consistórios”.
permitiram, um parlamentarismo “às aves-
7
Machado de Assis, que como jornalista cobria
as sessões do Senado, traça, no seu O Velho Senado,
sas”, um parlamentarismo “à brasileira”, um perfil bastante interessante da Câmara Alta do
submetido ao “imperialismo”, um parla- Império, bem como de alguns senadores, como
mentarismo em que homens representavam Zacarias de Góis e Vasconcelos: “Zacarias fazia re-
mais que instituições. viver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor
dos golpes. Tinha a palavra cortante fina e rápida,
com uns efeitos de sons guturais, que a tornavam
mais penetrante e irritante. Quando ele se erguia,
Notas era quase certo que faria deitar sangue a alguém.
Politicamente, era uma natureza seca e sobrancei-
1
Os partidos tinham alcunhas regionais em to- ra. (...) No Senado, sentava-se à esquerda da mesa,
das as províncias, por exemplo: em Sergipe, os ao pé da janela, abaixo de Nabuco, com quem tro-
luzias eram chamados rapinas e os saquaremas cava os seus reparos e reflexões”.
camondongos; no Ceará, havia chimangos e caran- 8
Relato detalhado dessa manobra oposicionista
gueijos; em Santa Catarina, cristãos e judeus; na dos liberais faz Joaquim Nabuco, 1997, p. 802 a 807.
Paraíba, baetas e rasgados; em Pernambuco, prai- 9
Sobre a aplicação do princípio do Rei reina e não
eiros e guabirus, e assim por diante. governa, ver a pormenorizada análise do Visconde
2
“Ou a reforma, ou a revolução. A reforma do Uruguai (SOUZA, 1997, p. 313 et seq), de onde
para conjurar a revolução; a revolução como conse- são retirados os principais dados aqui apresentados.
qüência necessária da natureza das coisas, da au- 10
É importante não confundir o Conseho de
sência do sistema representativo, do exclusivismo Estado com o Conselho de Ministros. Enquanto este
e oligarquia de um partido. Não há que hesitar na é o Governo, aquele é um órgão consultivo da Co-
escolha: A REFORMA! E o país será salvo”. Assina- roa, formado por conselheiros vitalícios escolhidos
ram o Manifesto Nabuco de Araújo, Souza Franco, pelo Imperador. Geralmente os Conselheiros de Es-
Zacarias de Góis e Vasconcelos, Teófilo Ottoni e tado eram também senadores e, porventura, ocupa-
Francisco Octaviano (NABUCO, 1997, p. 785). vam pastas no ministério. Para uma análise da im-
3
Constituição Política do Império do Brasil, portância do Conselho de Estado na política imperi-
artigos 92 e 94. al, ver, por todos, CARVALHO, 1996, p. 327 et seq.
4
A reforma de Paraná não se estendia às elei-
ções para o Senado, no que, segundo São Vicente
(BUENO, 1857, p. 199), acertou: “A sobredita lei,
distribuindo por círculos as eleições dos deputa-
dos e membros das assembléias provinciais, con- Referências
servou o sistema anterior, ou a eleição por provínci-
as quanto aos senadores; e nisso procedeu bem. BUENO, José Antônio Pimenta. (Marquês de São
(...) Os senadores, representantes dos interesses Vicente). Direito publico brasileiro e análise da consti-
gerais e das idéias conservadoras, devem depender tuição do império. Rio de Janeiro: J. Villeneuve & C.,
de uma base mais larga e menos móvel, ainda quan- 1857.

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