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VELOCIDADE E DO PRAGMATISMO
* Professor Ttular de Direito Constitucional da UERJ. Mestre pela Universidade de Yale. Procurador do Estado e
advogado no Rio de Janeiro.
1 Apontamentos de uma exposicäo feita no / Congresso Brasileiro de Direito POblico, coordenado pelo Professor
Celso Antonio Bandeira de Mello, abril de 2000. A versáo escrita guardou a informalidade da apresentagâo oral.
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56 Luis ROBERTO BARROSO. A SEGURANCA JUR/DICA NA ERA DA VELOCIDADE E DO PRAGMATISMO
2 Constituicäo Federal, art. 50, LIV: "ninguern sera privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal". Na Emenda 5 a Constituigao dos Estados Unidos da America: "No person shall, be deprived of life,
liberty, or property, without due process of law'.
t4,
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4 No inicio de agosto de 2000, já haviam sido editadas, ao longo da viencia da Constituieão de 1988: 571
Medidas Proviserias originarias, terse havido 4.561 reedigOes e 21 rejeigOes.
5 ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960, p. 3-4.
6 MAXIMILIAN°, Carlos. Direito intettemporal, 1946, p. 7.
ICY"4 441,44144,044- 4, t
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Sobre o tema, v. Luis Roberto Barroso, Interpretacao e aplicaeab da Constituicao, 1999, pp. 51 e ss.
11 Nesse mesmo sentido, dentre outros: Rext n° 205.193-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 06/06/97, RTJ 89/
634, 90/296, 107/394, 112/759 e 164/1144.
RTJ 143/724 e ss..
4ar
P4 4 4141111
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E oportuno enfatizar, ainda uma vez, que qualquer lei atribuidora de direi-
tos - seja de ordem pUblica ou nä° - podera gerar direito adquirido, na forma da
qualificagáo acima. Como se demonstrou anteriormente, era equivocada a cren-
ga de que nä° existiria direito adquirido diante da superveniência de lei de ordem
prblica, tese ja rechagada pelo Supremo Tribunal Federal. A distingäo entre leis
de ordem pUblica, que geram relacOes institucionais, e as demais, tern reper-
cussao mais importante sobre o ato juridico perfeito, conceito que se aproxima
mas nä° se confunde corn a de direito adquirido. A utilizagäo de urn exemplo
facilitara a demonstracao do argumento.
Entende-se, sem maior disputa, que a relagao entre o servidor pUblico e a
Uniéo é uma relagéo institucional, regida por lei, e que "nao ha direito adquirido
a determinado regime juridico". 17 Com isso se quer significar que o servidor nä°
tern o direito de ver mantidas as condigOes iniciais de sua relagão corn o ente
pirblico, sena) possivel a modificagäo do regime juridico por uma lei posterior.
Imagine-se, entao, que uma lei alterarao a forma de remuneracao do ser-
vidor seja promulgada no dia 4 (quatro) de determinado més. Imagine-se tarn-
bem que a remuneragão relativa ao més anterior ainda nâo tenha sido creditada,
pois tal somente se verifica no dia 5 (cinco) do riles subseqUente ao trabalhado.
Pergunta-se: a remuneragâo a ser depositada no dia seguinte ao da entrada em
vigor da lei serA por ela atingida? Parece evidente que nä°. Trata-se de direito
adquirido, uma vez que o fato aquisitivo - a prestagäo de servicos ao longo de
um mAs - jA se verificou, restarão apenas os efeitos a serem ultimados.
A lei nova, entretanto, poderA ser aplicada ao mes que se inicia e dali por
diante, sem que o servidor possa contra isso se insurgir, alegando direito as
condigOes vigentes quando de seu ingresso no servigo publico. E este o ponto
fundamental que distingue as chamadas relagOes institucionais das contratuais,
ou meramente privadas. A lei referida no exemplo pode ser aplicada desde logo
as situagOes em curso, respeitado o direito adquirido, apenas por que se tratava
de uma relagäo institucional. Tudo seria diferente se a lei se destinasse a
disciplinar relagOes privadas.
Neste caso, o novo regime legal so poderia aplicar-se as relagOes que
viessem a se formar aptis sua entrada em vigor, e nä° Aquelas em curso, pois
estariam elas protegidas nao apenas pelo direito adquirido, mas tambêm pelo
ato juridico perfeito.
Isso foi o que se passou, por exemplo, com os contratos que se encon-
travam em curso quando da entrada em vigor do COdigo de Defesa do Consumi-
dor, sobre os quais o novo diploma nä° pode incidir 18 ; ou com os contratos de
locagão, em relagäo a nova lei que passou a reger a matAria 18 . A questäo náo
controvertida no Supremo Tribunal Federal, que jA teve oportunidade de manifes-
tar-se reiteradas vezes sobre o ponto, deixarào claro que as relagOes contratuais
" DJU 04.04.94, REsp 31.954-0/RS, STJ - 3a Turma, Rel. p/acördao Min. Waldemar Zveiter: "Por primeiro,
considero que, formalizado o compromisso de venda e compra anteriormente A vigencia da Lei n 2 8.078, de
11.9.90 (COdigo de Protegao e Defesa do Consumidor), nao incide na hipOtese sub judice o preceituado art. 53
do mencionado diploma legal. Conforme ainda ha pouco teve oportunidade de decidir o Sumo PretOrio, no
disposto no art. 50 XXXVI, da Constituicao Federal, se aplica a toda e qualquer norma infraconstitucional, sem
qualquer distingao entre lei de direito pOblico e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pUblica e lei
dispositiva (Agao Direita de Inconstitucionalidade n 2 493-0/DF, relator Ministro Moreira Alves). Alias, no sentido
da inaplicabilidade do COdigo de Defesa do Consumidor a contrato celebrado sob a egide do ordenamento
juridic° anterior por igual se orientou a C. Terceira Turma deste Tribunal, em precedente da relatoria do Ministro
Eduardo Ribeiro (REsp n2 36.455-8/SP)." No mesmo sentido REsp 50.871/RS, REsp 45.666-5/SP, REsp
38.518.0/SP, RSTJ 65/393.
19 DJ 28.09.84, RExt 102.216/SP, 21 Turma, Rel. Min. Moreira Alves: "Direito de preferancia de locatario de imOvel
vendido a terceiro. (...) Em face do paragrafo 32 do artigo 153 da Constituigao, que nao faz qualquer distincao
em materia de ato juridic° perfeito e de direito adquirido, e indubitavel que o contrato valid° entre as panes
ato juridic° perfeito, dele decorrerao, para uma ou para ambas, direitos adquiridos. Se a lei posterior cria para
terceiro direito sobre o objeto do contrato e oporrivel a ambas as partes contratantes, nab pode ela, sob pena
de alcangar o ato juridic° perfeito e o direito adquirido entre as partes, ser aplicada a contratos validamente
celebrados antes de sua vigência."
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regem-se, durante toda a sua existéncia, pela lei vigente quando de sua consti-
tuicao20.
20 RTJ 143/724, ADM 493-DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 25/06/92: "Disso deriva, a nosso ver, que a sobrevivOncia
da eficacia das clausulas livremente pactuadas de um contrato, em mat6ria que, epoca da sua celebragao, era
confiada a autOnoma estipulacOo das partes, nao pode opor-se a lei superveniente, ainda que de ordem
DJU 06.06.97, Rext n2 205.193-RS, Rel. Min. Celso de Mello: "Os contratos submetem-se, quanto ao seu
estatuto de regAncia, ao ordenamento normativo vigente A epoca de sua celebracao. Mesmo os efeitos futuros
oriundos de contratos anteriormente celebrados nao se expOem ao dominio normativo de leis supervenientes.
Os contratos - que se qualificam como atos juridicos perfeitos (RT 547/215) - acham-se protegidos, em sua
integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 51, )000/1, da
ConstituicAo da Reptblica."
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Sobre antinomias e criterios para solucionâ-las, v. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jundico, 1990, pp.
81 e ss.
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Roberto Lyrio Pimenta, eficacia e aplicabilidade des normas constitucionais programéticas, 1999, p. 121 e ss..
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, Trad. Ernesto GarzOn Valdris, 1997, p. 88. A'nâo aplicabilidade
da regra decorre, em geral, de sua iny alidagäo (Inconstitucionalidade) ou da perda de sua viencia, como nos
casos em que ela a revogada por norma hierarquicamente superior ou posterior de igual hierarquia. No caso da
relagao entre norma geral e especial, entretanto, a norma geral deixa de ser aplicada nao por qualquer dessas
duas razCies, mas porque os fatos se realizara de forma especifica a prey isäo da norma especial, que afasta a
incicrancia da geral. Sobre os criterios de solugào de conflito de regras (temporal, espacial, hierarquico e por
especialidade), veja-se nosso, Interpretacao e aplicacao da constituicao,3 , ed., 1999.
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mente. Nä° sac admitidas gradagOes. A excepão da regra ou e outra regra, que
invalida a primeira, ou 6 a sua violacao.
Os principios se comportaram de maneira diversa. Como comandos de
otimizacâo26 , pretenderao eles ser realizados da forma mais ampla possivel,
admitirao, entretanto, aplicagao mais ou menos ampla de acordo com as possi-
bilidades juridicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Esses
r.
limites juridicos, capazes de restringir a otimizacâo do principio, sao (i) regras
que o excepcionam em algum ponto e (ii) outros principios de mesma estatura e
opostos que procurarao igualmente se maximizar, imporao a necessidade even-
tual de ponderacao.27
Pois bem: de acordo com o principio da unidade hierarquico normativa,
normas da Constituinte origin6ria jamais poder6 ser consideradas invalidas, nem
o int6rprete pode deliberadamente escolher uma para prevalecer sobre as de-
mais. A Constituinte, como se sabe, 6 um documento dialetico, fruto de um
compromisso politico, e que, por isso mesmo, abriga principios e direitos poten-
cialmente conflitantes. Quando surgem efetivamente situagOes de conflito- como,
e.g., as que contraponham o principio da livre iniciativa e o da intervencao do
Estado no dominio econOmico, ou o direito de propriedade e o principio da fun-
cao social da propriedade - cabe ao int6rprete buscar a conciliagao possivel
entre as proposigOes aparentemente antagOnicas, procedendo a uma pondera-
cao
- de va/ores.
A ponderacao de valores e tacnica pela qual o interprete procura lidar
com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisäo. Como nao
existe um criterio abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro,
deve-se, a vista do caso concreto, fazer concessOes reciprocas, de modo a
produzir-se um resultado socialmente desejavel, sacrificaräo o minimo de cada
um dos principios ou direitos fundamentais em oposicao. 0 legislador nao pode,
arbitrariamente, escoiher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena
de violar o texto constitucional. Relembre-se: as regras incidem sob a forma de
"tudo ou nada" (Dworkin), ao passo que os principios precisam ser sopesa-
dos.28
Com o refluxo dos positivismos - normativistas, historicistas e sociolOgi-
cos - os principios juridicos deram nova configuragao ao quadro teOrico do
26 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, Trad. Ernesto GarzOn ValdOs, 1997, p. 86.
Confinar-se sobre o terna: Heinrich Scholler, 0 principio da proporcionalidade no direito constitucional e
administrativo da Alemanha, Trad. Ingo Wolfgang Sarlet, Revista Interesse POblico 2, 1999, p. 93 e ss. e Daniel
Sarmento, Os principles constitucionais e a ponderacâO de bens in Teoria dos direitos fundamentals, Org.
Ricardo Lobo Torres, 1999, p. 35 e ss..
Sobre o terna, na literatura nacional, v. o denso estudo de Daniel Sarmento, A ponderacäo de interesses na
Constituicgo Federal, 2000, p. 96.
.1 I
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Concluo a exposicao das vias que pretendi aqui alinhavar analisando uma
distorgäo que se generalizou no Pais e que figura como grave fator de inseguran-
pa juridica: os julgamentos pela imprensa. Os meios de comunicacao, no Bra-
sil, generalizadamente, entregam-se a funcao de apurar, julgar e condenar. Nao
é sequer uma questao de apontar se erram ou acertam nesses julzos: simples-
z' As idêias que se seguem baseiam-se em precioso trabaiho de Joaquim Falai), A noticia que virou fato: a
imprensa em questab, in Monitor pliblko ng 6/5, 1995.
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mente nao integram o legitimo papel dos meios de comunicagao, e sac) realiza-
dos sem conhecimento tecnico, sem o devido processo legal, sem contradithrio
e muito menos ampla defesa.
A explicagão para este feniimeno, todavia, nao é dificil de ser encontra-
da. 0 Poder judiciario tornou-se depositario de urn conjunto de expectativas
apOs a Constituinte de 1988. Novos direitos, novas awes, major consciancia
de cidadania, ampliagao das relagOes de consumo. No entanto, a legislagao, a
cultura judiciaria, aspectos ideolOgicos e de infra-estrutura, o nirmero de juizes,
dentre outros fatores, comprometem a capacidade de as instituigOes judiciais
darem vazao a demanda que se formou. E em qualquer sociedade que aspirë
civilizagao, Justiga é gènero de primeira necessidade. 3° 0 que acontece quando
o Judiciario nao supre de maneira quantitativa e qualitativamente eficaz esta
necessidade? 0 que acontece quando a procura é maior do que a oferta?
Incide a lei do mercado: o cidadão vai procurar justica em outro lugar. E a
imprensa tern suprido a demanda que nä() é atendida pelas instituigOes judicias
prOprias. Desnecessario dizer que corn conseqUancias muitas vezes dramati-
cas. Em passagem inspirada, escreveu Joaquim Falcao:
30 Idem, p. 6.
72 LUIS liggERTO DARR050. A SEGRANCA NA ERA BA VELCIL'IDAN E 158 OrtadmAnsmo
papel a tempo e a hora, a Justica deixa urn vazio que os meios de comuni-
cacao ocupam corn vol6pia, e permite, assim, a condenagäo precipitada de
culpados e inocentes.
Ah, sim! Tambêm tern as comissOes parlamentares de inquerito. Mas
esta é uma outra histbria.