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FLUMINENSE
MACAÉ
2024
Lucas Ventura da Silva busca contestar as sociabilidades, estratégias e engajamentos
realizados pelas elites no processo de abolição em Petrópolis, limitando-se aos quatro
anos finais da escravidão na cidade imperial. Nesse período, com o sentimento
abolicionista dominando as ruas e as mentes e o cenário internacional aplicando pressão
no tráfico de escravos brasileiro, a escravidão no Brasil é guiada para seu fim em um
processo singular e contraditório, como a dissertação de Silva debate.
Festas, bailes, quermesses e o Livro do Ouro são apontados pelo autor como alguns
dos mecanismos para arrecadar fundos para alforrias na cidade imperial. Esses eventos,
organizados e frequentados pelas elites de Petrópolis, quando não também pela família
imperial, concluíam uma dinâmica abolicionista eficiente e dedicada. Ao total, houve na
cidade 17 eventos em prol dos escravizados. Para chegar à parte quantitativa dos eventos,
assim como valores de alforrias, Silva utilizou periódicos como o Mercantil, que marca
presença por boa parte da dissertação, e o Livro de Ouro de Petrópolis, também bastante
utilizado ao longo do trabalho. Com estas duas fontes, o autor obteve sucesso em ilustrar
as liberdades concedidas, além do valor de cada uma destas com os dados extraídos do
Mercantil. Com o Livro do Ouro, Silva realiza um ótimo trabalho ao analisar as
sociabilidades envolvidas em todo o processo de emancipação. Com isso, prosseguiremos
para o primeiro capítulo, no qual o autor amplia para uma visão nacional do processo de
abolição.
Com o Fundo de Emancipação, dispositivo do Estado para arcar com os prejuízos dos
senhores diante da perda de sua mão de obra escravizada, a independência dos processos
de liberdades foi se desenhando. Com o Fundo de Emancipação, e posteriormente com o
Livro de Ouro, as liberdades não mais dependiam dos senhores, e sim do Estado Imperial.
Relevante pontuar a preocupação, ao longo de todo esse processo de abolição, com a
preservação da situação dos proprietários – eram ressarcidos pelas liberdades, assim como
se beneficiavam da gradualidade das medidas tomadas pelo Estado. Este fato, com a
abertura dos Livros de Ouro e a crescente onda de ideais abolicionistas dominando as
ruas, a escravidão passa a caminhar para seu fim.
Na década de 80 do século XIX, a questão não era mais se haveria abolição, mas como
o processo seria guiado. As discussões abolicionistas se intensificaram, de forma que os
períodos abordavam a temática constantemente – o Mercantil, fonte relevante da
dissertação de Silva, foi um dos veículos de informação que atualizava diariamente o
povo das notícias do mundo parlamentar. De caráter abolicionista, o Mercantil publicava
dados como o valor das alforrias, o número de escravizados libertos, além da divulgação
dos eventos em prol da emancipação. Antes disso, o periódico elogiou os municípios que
abriram seus Livros de Ouro o que, segundo o autor, incentivou o processo de abertura
do de Petrópolis, em 1884. Silva defende que, mesmo com certa relevância, os periódicos
falhavam em chegar aos analfabetos, que na época contabilizavam parte considerável da
população de Petrópolis. Dessa forma, podemos perceber que os periódicos não eram uma
conexão tão direta do mundo parlamentar e do mundo das ruas, já que não eram todos
que tinha acesso a essas informações. A influência se limitava aos letrados e, neste
exemplo do Mercantil, a notícia dos Livros de Ouro de outros municípios conversou mais
com as elites do que de fato as ruas, que participavam das discussões de outras formas.
Com a intenção de arrecadar fundos para as liberdades, foi feita uma quermesse em
prol dos escravizados, como podemos notar na imagem abaixo, retirada da dissertação de
Silva:
Essa quermesse foi um dos 17 eventos com fins emancipatórios que a Petrópolis
imperial presenciou. Como todos os demais, a quermesse foi organizada pela comissão
emancipatória, composta por membros da elite que se ocupavam de tal ofício. Esses
eventos eram frequentados, além das elites, pela família imperial, que passara a engajar
aberta e frequentemente em movimentos pró-emancipação. Um desses eventos foi o
Carnaval de Petrópolis, que não carregava, inicialmente, cunho emancipatório – quando
o periódico Correio Imperial divulgou o evento, os assinantes insistiram que a festa fosse
em prol das liberdades dos escravizados. Assim, podemos notar a posição favorável das
elites diante da abolição. O Carnaval foi um dos eventos mais lucrativos do período de
movimentações pró-emancipação, arrecadando três contos, oitocentos e vinte mil réis,
valor que foi direcionado às alforrias. Além do valor expressivo, o evento contou com o
apoio pessoal da princesa Isabel – acontecimento que impulsionou o sentimento
abolicionista na Petrópolis imperial.
Em seguida, o autor utiliza Dom Pedro II como exemplo. Primeiro a doar para o Livro
de Ouro de Petrópolis, o príncipe participou de diversos eventos em prol da emancipação
das pessoas escravizadas, defendendo publicamente a causa abolicionista. Porém, como
pontuado por Silva, o príncipe se comunicava, com certa frequência, com cientistas
ligados à teoria de evolução e raça, como Armand de Quatrefages, Louis Agassiz, Arthur
de Gobineau e Paul Broca. Dom Pedro simpatizava com os ideais monogenistas, o que
não o impedia de manter comunicação com Agassiz e Gobineau, cientistas poligenistas
que defendiam que havia vários centros de criação do homem, o que justificaria as
assimetrias físicas e morais entre as raças. Quatrefages, cientista que se tornou grande
amigo de Dom Pedro II, era quem mais dialogava com as crenças do príncipe.
Monogenista, ele defendia uma origem única do homem, se atrelando ao evolucionismo.
Para ele, existia uma escala civilizacional, na qual as raças eram mais ou menos
civilizadas que as outras; sendo os brancos europeus o auge da civilização entre os povos,
e os negros africanos os menos civilizados. Os povos menos civilizados, ou mesmo
selvagens, poderiam se aproximar do padrão europeu se passassem pelo processo de
aculturação ou branqueamento ou, idealmente, pelos dois juntos.
Assim, podemos notar que as elites não só não defendiam a diversidade, como
caminhavam bem distante dela. Com o exemplo de Dom Pedro II que, importante
pontuar, não se limita a ele, é reforçado o caráter racialista das elites da cidade imperial.
Ao acreditar que os escravizados eram descendentes de povos bárbaros, que nunca
alcançariam o ideal de civilização, é notório como as elites pouco se preocupavam com o
parecer dessas pessoas depois que a abolição fosse concretizada. Da forma que fosse, a
escravidão precisava acabar, e as liberdades eram uma consequência – por isso que,
mesmo defendendo que os povos europeus eram superiores dos demais, a família imperial
se solidarizava com a causa e se empenhava no processo de abolição.
Essencial neste momento do trabalho de Silva pontuar como eram concedidas honrarias
na Petrópolis imperial. Havia duas maneiras de receber um título: a primeira,
financeiramente, que o autor expressa como eram custosos os títulos no período; e a
segunda, com um feito político de relevância. É tão essencial quanto expor que todos os
membros da comissão emancipatória foram agraciados com títulos de honra pelos seus
atos na década de 80 do século XIX. Os títulos, concedidos depois de 1888,
comemoravam o sucesso do processo da abolição da escravatura que, como percebemos
ao longo do trabalho, ocorreram dentro dos desejos e moldes das elites petropolitanas.
Bem-sucedidas, as elites da comissão emancipadora esbanjavam de motivos para celebrar
– além da abolição, essa que ocorreu de forma favorável a estes, também contaram com
a ascensão social que os colocou ainda mais próximos da família imperial.
É interessante como Silva demonstra que, em certo sentido, a Princesa Isabel já era
praticamente encarada como imperatriz, sendo representada como tal em diversas obras
artísticas, além do já citado horizonte de expectativa das elites petropolitanas.
Neste vitral, presente no prédio da Ilha Fiscal, podemos notar uma dessas
representações da princesa. No centro, a imagem da esperada imperatriz, cercada pela
coroa, no topo, e os brasões da Casa Imperial Brasileira e da Casa Orleans,
respectivamente à esquerda e direita da princesa. Por não ser este o único exemplo de
Silva, podemos ter dimensão do que estava no horizonte dessas elites e da família
imperial. Pelas obras expostas pelo autor, é bastante interessante analisar essas
representações perpassando o meio artístico, o que funciona como rica ilustração das
expectativas que rodeavam a Petrópolis imperial nesse período.
Podemos tirar várias conclusões do trabalho de Lucas Ventura da Silva. A primeira é
que, inegavelmente, o movimento abolicionista de Petrópolis era extremamente
contraditório. As elites defendiam a monarquia e lutavam pela abolição da escravatura,
ao mesmo tempo que eram, muitos desses, racialistas. Outra conclusão, que conversa
diretamente com a primeira, é que a luta das elites petropolitanas pela abolição da
escravatura não era a luta pelas pessoas escravizadas. A abolição era necessária para a
eminente reforma do regime monárquico – novamente considerando o que estava no
horizonte das elites da cidade imperial –, e assim se procedeu o processo das
emancipações. Em um contexto que a escravidão se tornara algo obsoleto na cena
internacional, o Brasil, e por consequência Petrópolis, percebem a urgência da ruptura da
longa relação com o regime de trabalho forçado. Dessa forma, a preocupação pela
renovação da monarquia (para o Terceiro Reinado) moveu os processos emancipatórios.
É perceptível que o interesse das elites ia além das pessoas escravizadas. Buscando a
ascensão, além dos próprios almejos, engajaram em uma pauta social que, no fim das
contas, e mesmo que discordassem desta em alguns pontos, lhes concederia o que
desejavam – e assim quase foi, ou foi por pouco tempo.