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ESCRAVIDÃO NO BRASIL IMPÉRIO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA

LITERATURA E IMPRENSA DA ÉPOCA


Lara de Sousa Lutife1

RESUMO:
A pesquisa ora apresentada tem por objetivo perceber como a escravidão foi discutida na
sociedade oitocentista, sobremaneira, entre os anos de 1850-1867. Para tanto, toma-se como
fontes principais as obras literárias O Demônio Familiar (1858) e Novas Cartas Políticas de
Erasmo (1867), escritas por José de Alencar (1829-1877). Diante disso, é conduzida uma
análise sobre a escravidão, com destaque para como pensou e escreveu o mencionado autor
acerca do tema. Diante disso, considera-se as atuações do escritor no período e as relações
com seus contemporâneos que permitam melhor compreender os debates acerca da
escravidão. Dessa maneira, com base na relação entre História, Literatura e Imprensa, teóricos
como José Murilo de Carvalho (2008), Lilia Schwarcz (1998), João Roberto Faria (1987) e
Sandra Pesavento (2003) são basilares para a discussão desenvolvida nesse estudo.
Palavras-chave: escravidão; José de Alencar; literatura.

No contexto do Brasil no século XIX, a conjuntura Imperial provocou intensas


discussões sobre variados aspectos e desafios sociais que caracterizavam o período. Entre os
quais, ganhou considerável espaço os debates acerca da Instituição escravista no país e os
caminhos possíveis para a liberdade dos cativos. Nessas condições, “se, na expressão muitas
vezes usada na época, a escravidão era o cancro que corroía a sociedade, ela era também o
princípio que minava por dentro as bases do Estado Imperial, e que, afinal, acabou por
destruí- lo. (CARVALHO, 2008, p. 293)

Dessa maneira, percebemos como a escravidão deve ser entendida para além de uma
questão social, pois, significava para a sociedade da época, uma mazela que atingia
estruturalmente o país e os sujeitos escravizados, e, portanto, conferia complexidade aos
impactos sociais no sistema Imperial. Ao abordar esses efeitos, ressaltamos o papel crucial do
Rio de Janeiro, então capital do Império, sendo um epicentro onde a busca por modernidade e
civilidade tinham os padrões europeus como modelo. No entanto, é notável que a persistência
da escravidão confrontava diretamente o ideal de cidade que se almejava construir.

Não se enganem, portanto, aqueles que pensam que o Rio de Janeiro é Paris.
A corte era uma ilha cercada pelo ambiente rural, por todos os lados, e a
escravidão estava em qualquer parte. No fundo, a elegância européia e

1
Mestranda em História no Programa de Pós-graduação em História, Culturas e Espacialidades- PPGHCE da
Universidade Estadual do Ceará- UECE. E-mail: laralutife13@gmail.com
calculada convivia com o odor das ruas, o comércio ainda miúdo e uma corte
diminuta, e muito marcada pelas cores e costumes africanos. (SCHWARCZ,
1998, p. 161)
A autora apresenta uma análise crítica sobre a sociedade da Corte daquele período. Ela
salienta que longe de ser a semelhança de Paris, o Rio de Janeiro oitocentista era um ambiente
onde havia a tentativa de alcançar a sofisticação europeia por parte de muitos habitantes.
Contudo, ao mesmo tempo, era necessário lidar com a convivência da escravidão, fator que
não só evidenciava, mas também exacerbava a desigualdade social. Essa disparidade, muitas
vezes mascarada pelos discursos de prosperidade da Corte, constituía um desafio que
demandava atenção e reflexão.

Inseridos nesse cenário, intelectuais, políticos, jornalistas, senhores de terras e outros


tantos grupos sociais, tomavam partido diante do sistema escravocrata, alguns se opondo
ferrenhamente, outros ponderando a permanência da escravidão no país. Resumidamente,
“[...] não se fazia defesa moral do tráfico ou da escravidão. Reconhecia-se a imoralidade do
fato e a obrigação do país, contraída por convenção internacional, em terminar com o tráfico”
(CARVALHO, 2008, p. 303). Entretanto, a prevalência dos interesses econômicos dos
senhores de escravos suplantava a necessidade imediata de progredir em direção à
emancipação dos cativos.

Desse modo, como principais espaços de debate sobre a questão escravista podemos
mencionar a produção literária, a Imprensa e o Parlamento. Nos jornais, o tema da escravidão
aparecia, sobretudo, como forma de anúncio da venda de escravos. No Jornal O Typographo
em 20 de novembro de 1867, por exemplo, na primeira página, foi nesses termos feito
menção: “Abraçados à palavra – Liberdade – a proclamam sob as cem bocas da fama, mas
ella em vez de exirtir e mostrar-se como é, não serve senão para dar sombra ao systema da
escravidão que com tino sabem todos pôr em pratica”. (TYPOGRAPHO, 1867) Esse trecho
revela que no discurso muito era comentado sobre a liberdade e sua importância, todavia, na
prática essa ideia de liberdade não foi estendida aos escravizados.

Durante a segunda metade do século XIX, também era comum a veiculação diária de
anúncios de venda de escravos nos jornais. Em análise na plataforma da Hemeroteca digital,
no Jornal do Commercio em 3 de janeiro de 1850, na página quatro foi apresentado o seguinte
anúncio “Vendem-se doze escravos chegados da roça para pagamento: há moleques e
molecotes próprios para aprender ofícios ou para pagem; assim como pretos de meia idade,
próprios para chácara, ganho ou serviço ordinário de casa; trata-se na rua do ouvidor n. 24.”
(COMERCIO, 1850).

A passagem acima permite refletir como a prática de destacar características físicas


dos escravizados nos anúncios demonstra não apenas a natureza mercantilizada da escravidão,
onde os cativos eram tratados como propriedade, mas também revela a forma como a
sociedade da época via esses indivíduos: como objetos cujas características físicas eram
destacadas para facilitar sua identificação e comercialização.

A partir dos mencionados trechos, podemos perceber que os jornais constituíam um


dos principais espaços em que se desenvolviam debates políticos. A par disso, sabendo do
alcance e do meio eficaz de difusão de informações proporcionados pelos jornais e imprensa
imperial, muitos intelectuais e políticos usaram esse veículo de divulgação para tratar de
aspectos diversos da sociedade escravista dos oitocentos.

Nessas condições, os debates e posicionamentos políticos no período imperial eram


essencialmente moldados pelos grupos intelectuais da época, os quais abrigavam opiniões e
ideologias distintas em relação a diversas questões. Os grupos intelectuais desempenhavam
um papel crucial na formação de correntes de pensamento político, econômico e social. Os
responsáveis por constituir o cerne dessa intelectualidade, normalmente atuavam em distintos
setores públicos, como no jornalismo, na literatura, advocacia e política. No Segundo Reinado
entre esses intelectuais, “as formações eram diversas, as aspirações profissionais variavam em
função das particularidades de cada especialização, assim como tornava-se mais difícil a
definição de um só perfil socioeconômico para os membros dessas instituições”.
(SCHWARCZ, 1993, p. 34).

Nesse terreno de disputas discursivas e dominado por interesses econômicos, o


intelectual e político cearense José de Alencar (1829-1877), não se absteve em debater o tema
da escravidão nos diferentes espaços em que atuava. Seja na Literatura, nos discursos
políticos ou na Imprensa da época, o autor manifestou seu pensamento acerca da escravidão.
A esse respeito, a priori, cabe enfatizar que o autor

[...] acreditava que a abolição não poderia ser apressada por decretos
ou leis, mas que seria resultado da ação natural do tempo, com a raça
negra, em menor número, sendo absorvida pela raça branca, após
gerações de cruzamentos inter-raciais. O maior temor do escritor era
de que a abolição jogasse o Brasil em um caos econômico e social,
com a possibilidade até mesmo de uma insurreição civil, a médio ou a
longo prazo. (REIS, 2013, p. 67).
Na Literatura, foi através da peça teatral “O Demônio Familiar” que o escritor se
dedicou de forma mais destacada, a evidenciar o negro escravizado na produção literária
nacional. O próprio autor, nas páginas do jornal Diário do Rio de Janeiro, no artigo que
denominou como a Comédia Brasileira explica: “no momento em que resolvi-me a escrever o
Demonio Familiar, sendo minha intenção fazer uma alta comédia [...]” (ALENCAR, 1857, p.
1). No gênero teatral esta foi uma das obras de maior sucesso entre as produções alencarianas,
tanto que para Faria (2009) “[...] tratava-se da primeira comédia realista brasileira, a atestar
uma escolha estética de Alencar que o colocava na vanguarda do teatro de seu tempo.” (2009,
p. 55)

Nesse sentido, Alencar defendia a renovação do Teatro Nacional, pois para ele este
carecia de produções voltadas para o cenário brasileiro, de modo a trazer debates sobre as
questões que envolviam o país. Com esse objetivo “[...] ele preferiu a comédia realista, a alta
comédia, por acreditar que o teatro era uma arte essencialmente educativa e edificante, que
colaborava no aprimoramento moral da vida em família e em sociedade.” (FARIA, 2009, p.
55).

Com base na observação acima feita por Faria (2009) é possível perceber que para
Alencar, o teatro representava mais do que uma mera forma de entretenimento; era, antes de
tudo, um instrumento educativo e moralizante. Dessa maneira, a peça O Demônio Familiar
alinha-se a esse modelo de produção, revelando a intenção do autor de utilizar o palco como
um meio eficaz para transmitir valores, educar a sociedade e moralizar comportamentos.
Nesse sentido,

O enredo da obra é movido pelas vontades e desejos de “ser” e “ter” do


escravo Pedro e gira em torno das intervenções e desordens provocadas pelo
então jovem “demônio familiar” na vida amorosa de 5 personagens
importantes: Eduardo e Henriqueta, Alfredo, Carlotinha e Azevedo. Nesse
contexto, a peça é revestida de um grande “efeito moral” atribuindo-lhe
assim no valor humano e literário. (LIMA, 2019, p. 30).

Pedro tem o médico Eduardo como senhor e convive no ambiente dessa família da
Corte, causando entre os personagens uma série de desentendimentos e desencontros a partir
da tentativa de arrumar casamento para Eduardo com a personagem Henriqueta e de
Carlotinha ora com Alfredo, ora com Azevedo. Sobre a atitude do escravo, “ser cocheiro é o
seu sonho e acredita que, enganando os que lhe cercam, estará fazendo o bem não apenas para
ele, mas para todos.” (MAGALHÃES, 2015, p. 61).
Tendo em vista a construção do personagem Pedro, consideramos como tentativa de
representar o negro escravizado na obra. Diante disso, tomamos essa produção literária para
análise, a fim de compreender as intencionalidades de José de Alencar ao abordar o tema da
escravidão. Todavia, é importante considerar a historicidade que o texto literário carrega, por isso
pensamos

A Literatura, como um registro social, uma reflexão e leitura sobre a cultura


e suas questões, uma agente que institui um imaginário e uma memória, um
produto de criação que envolve memórias e a elas recorre como matéria
ficcional, é permeada de intencionalidades. Ela detém um valor temporal,
histórico, o qual se pode desvelar por meio um processo de historicização,
ou seja, de sua inserção no tempo e na sociedade em que foi produzida,
clareando a relação de trocas recíprocas, de contatos e interações entre essas
dimensões, suas aproximações e seus distanciamentos internos e externos.
(BORGES,2010, p. 105).

Nessa perspectiva, a obra deve ser pensada como uma produção que carrega marcas
históricas da sociedade de seu tempo. Por isso mesmo, a leitura sobre as intencionalidades de
José de Alencar a partir da produção O Demônio Familiar devem ser feitas de maneira
minuciosa. Pensando nisso,

Se atentarmos para a condição social dos personagens da peça, veremos que


Alencar escolheu deliberadamente uma família de classe média, já próxima
das idéias liberais e dos valores burgueses. O demônio familiar do título é
um moleque escravo, resquício dos velhos hábitos, dos quais logo a família
estará liberta. Ou seja, quando resolveu se dedicar ao teatro, estimulado tanto
pelo meio em que vivia quanto pelas peças francesas que lia ou via no palco
do Ginásio, naturalmente Alencar se voltou para a parcela da população do
Rio de Janeiro que considerava mais moderna, para retratar os seus
costumes, apontar as suas qualidades e corrigir os seus defeitos. (FARIA,
2009, p. 56).
Em vista do exposto, Alencar, deliberadamente ancorou seu enredo em torno de
personagens próximos às ideias liberais e aos valores burgueses da época. A designação "O
Demônio Familiar" para o escravo moleque sugere uma visão crítica dos vestígios dos antigos
costumes, dos quais a família está prestes a se libertar. Sobre a representação do escravo, este
é caracterizado, sobretudo, por sua esperteza, gaiatice e as muitas peripécias que comete na
obra, percebendo- se suas danações logo nas primeiras cenas,

SCENA II.
EDUARDO, depois CARLOTINHA.
EDUARDO, entrando pela esquerda.
Pedro!... Moleque!...' O bregeiro anda passeiando
naturalmente ! (Chègando-se á porta da direita)
Pedro!
CARLOTINHA.
O que quer, mano ? Pedro sahio.
EDUARDO.
Onde foi ?
CARLOTINHA.
Não sei.
EDUARDO.
Porque o deixaste sahir ?
CARLOTINHA.
Ora! Ha quem possa com aquelle seu moleque ? É um
azougue; nem á mamãe tem respeito.
EDUARDO.
Realmente é insupportavel; já não o posso aturar.
Quando o procuro anda sempre na rua.
Pedro entra correndo. (ALENCAR, 1857, p. 13)

Através do diálogo entre Eduardo e Carlotinha, percebe-se a complexidade de exercer


controle sobre a personalidade agitada do moleque Pedro, mesmo considerando sua condição
de escravo. Ao que parece suas incursões à rua ocorrem com certa regularidade, de modo que,
esse comportamento não apenas destaca a relativa liberdade de Pedro, dada a dificuldade de
exercer controle sobre suas ações, mas também revela a obstinação e o temperamento
desafiador do escravo. Vejamos outro fragmento da obra.
SCENA VIII.
PEDRO, JORGE.
PEDRO, querendo tomar o livro.
Ande, ande nhonhô; vá lá para dentro! Deixe o livro!
JORGE.
Se tu és capaz, vem tomar!
PEDRO.
Ora! É só querer!
JORGE.
Pois eu te mostrarei!
PEDRO.
Está arrumado! Pedro, moleque capoeira, mesmo da
malta, conta lá com menino de collegio! (Gingando)
Caia! É só neste geito; pé no queixo, testa na barriga!
JORGE
Espera; vou dizer a mamãi que tu estás te engraçando
comigo!
PEDRO.
É só o que sabe fazer; enredo da gente! Nhonhô não
vê que é de brincadeira. (Chegando-se) Olhe este livro;
tem pintura também; mulher bonita mesmo! (Abre o livro.) (ALENCAR,
1857, p. 24)

Na passagem acima identifica-se que o diálogo entre Pedro e Jorge, irmão mais novo
de Eduardo, pode ser interpretado como mais um trecho em que Alencar buscou demonstrar o
caráter desobediente do escravo e como este pode corromper a sossegada paz familiar. Nas
passagens subsequentes da peça, o escravizado Pedro se torna uma figura que compromete os
demais personagens ao tentar intervir nas intricadas tramas de suas vidas amorosas, buscando
arranjar casamentos

Somente no fim da trama todas as artimanhas do escravo Pedro são descobertas, para a
surpresa e decepção dos personagens envolvidos, e levando seu dono, Eduardo, a se reportar
ao escravizado nos seguintes termos:

Os antigos acreditavão que toda a casa era habitada por um demônio


familiar, do qual dependia a felicidade, o socego e a tranquillidade das
pessoas que nella vivião. Nós, os brasileiros, realisamos infelizmente essa
crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes
não partilha comnosco as caricias de nossas mães, os folguedos de nossos
irmãos, e uma parte das affeições da família. Mas vem um dia, como hoje,
em aue elle na sua ignorância ou na sua malícia perturba a paz domestica; e
faz do amor, da amizade, da innocencia, da reputação, 'de todos esses
objectos santos, um jogo de creança, um capricho ridículo. Este demônio
familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo. (Aponta para Pedro.)
(ALENCAR, 1857, p. 155).
No prosseguimento dessa declaração, Eduardo concede-lhe a carta de alforria. Essa
ação foi vista de diferentes maneiras por estudiosos alencarianos, tendo aqueles que a
interpretou como forma de punição ao escravizado e outros que viram como uma forma da
família se libertar daquela presença indesejada. Tal medida intensificou a reflexão sobre como
José de Alencar buscou demonstrar seu posicionamento sobre a escravidão no Brasil.

A ideia de que Alencar era contra a abolição imediata da escravidão prevaleceu entre
os contemporâneos e estudiosos de sua produção. A interpretação mais aceita era que o autor
defendia não ser única e exclusivamente a Lei suficiente para acabar com a escravidão no
Brasil, pois teria que haver por parte do Governo Imperial medidas inclusivas desses sujeitos
na sociedade. Essa concepção foi alimentada, principalmente, frente ao expresso por Eduardo
ao dirigir-se ao escravo no desfecho da peça, afirmando: “[...] porque não terás um senhor que
vele sobre ti, que te aconselhe e te dirija, porque não terás uma família que te alimente e te
estime!' (ALENCAR, 1857, p. 157).

Nesse sentido, percebe-se que Eduardo atribui a carta de alforria como uma forma de
punir o escravo pelo mau comportamento e as consequências de suas ações na vivência dos
personagens. Por essa razão, o desenrolar da trama desenvolvida por Alencar foi entendido
como “[...] um abolicionismo, no entanto, da perspectiva do senhor e dos males da
convivência doméstica com este elemento estranho à desejada boa família burguesa: o
escravo”. (LOPES 2010, p. 88).
Essa linha de pensamento que foi atribuída ao autor ganhou sustentação quando, uma
década após a escrita dessa peça teatral, Alencar produziu as Novas Cartas Políticas de
Erasmo, que se refere a uma série de cartas que para Carvalho (2009) “São páginas
apaixonadas que discutem os grandes problemas do momento, a situação político-partidária, o
Poder moderador, a Guerra e a questão servil”. (2009, p. 19). Desse modo, era um espaço em
que Alencar se utilizava do pseudônimo de Erasmo para levar o público leitor a refletir sobre
os problemas sociais do Brasil Império.

Nessa produção, Alencar destina a segunda, terceira e quarta carta a discutir o tema da
escravidão. De maneira geral, ele aponta como “a escravidão caduca, mas ainda não morreu;
ainda se prendem a ela graves interesses de um povo”. (ALENCAR, 1867, p. 283). Essa
perspectiva pode ser interpretada como uma confissão do autor sobre as complexidades que
envolvem a escravidão e a possibilidade iminente de seu término. No entanto, ressalta-se a
existência de motivos para a sua persistência, sobretudo vinculados às relações de poder e aos
interesses daqueles que se beneficiam com a continuidade desse sistema.

Ao longo dessas páginas, reportando-se a sociedade daquela época, Alencar trata de


enfatizar como,

A escravidão se apresenta hoje ao nosso espírito sob um aspecto repugnante.


Esse fato do domínio do homem sobre o homem revolta a dignidade da
criatura racional. Sente-se ela rebaixada com a humilhação de seu
semelhante. O cativeiro não pesa unicamente sobre um certo número de
indivíduos, mas sobre a humanidade, pois uma porção dela acha-se reduzida
ao estado de coisa. (ALENCAR, 1867, p. 283)
Conforme expresso acima, pode-se perceber que Alencar reconhece os males da
escravidão no Brasil, e, portanto, parece condenar essa prática, dado o caráter desumano de
domínio do homem sobre outro. Além disso, ele apresenta a escravidão como uma
problemática social, e não restrita aos sujeitos envolvidos, o que permite supor que ao redigir
tais palavras, ele demonstra busca por consciência social e moral da sociedade de sua época.

Contudo, ao mesmo tempo, em outra passagem das Novas Cartas de Erasmo, Alencar
diz “[...] que a escravidão não se extingue por ato do poder; e sim pela caduquice moral, pela
revolução lenta e soturna das ideias. É preciso que seque a raiz, para faltar às ideias a seiva
nutritiva. (ALENCAR, 1867, p. 306). Com essa afirmação, o autor reafirma sua compreensão
de que a escravidão é uma instituição social arraigada, indicando que sua abolição não pode
ser realizada de maneira imediata ou mediante legislação isolada. Ao expressar essa visão, ele
parece reconhecer a complexidade estrutural da escravidão, sugerindo que a mudança
necessária requer uma transformação mais profunda nas bases sociais e econômicas.

Dessa forma, na perspectiva de Alencar naquele momento, as tentativas de abolir a


escravidão no Brasil por meio desse tipo de medida não teriam efeito, a menos que a
instituição entrasse em decadência e não fosse mais aceita pela sociedade da época. Havia,
portanto, grande empasse frente as maneiras da escravidão terminar no Brasil. Ainda que
fosse taxado, muitas vezes como antiabolicionista, Alencar tinha fortes críticas a “[...] uma
abolição sem cuidados, sem a preparação necessária ao negro para que ele pudesse “ser gente”
e não largado à sua própria sorte”. (VASCONCELOS, 2006, p. 178

Considerações finais
Diante do exposto, a partir das contribuições Literárias e da Imprensa do século XIX
na sociedade de Corte, buscamos perceber como a escravidão e o processo abolicionista
foram debatidos. Sobretudo, tratamos de entender essas questões sob a perspectiva do escritor
e político José de Alencar. Através da análise das fontes em diálogo com o referencial teórico,
foi possível traçar uma possibilidade interpretativa acerca do pensamento do autor.

Em suma, entendemos que Alencar era um homem do seu tempo, que, envolvido com
as questões sociais e políticas de sua época, buscava apontar os melhores caminhos para o
país. Nessas condições, sobre a Instituição escravista “[...] Alencar concordava e discordava
de determinadas ações que envolviam a abolição, mas obviamente numa posição que lhe era
cômoda, pois a emancipação gradual favorecia à sociedade burguesa”. (MAGALHÃES, 2012,
p. 127).

Sendo assim, tanto em O Demônio Familiar, quanto nas Novas Cartas Políticas de
Erasmo, dedicou-se o autor a levar a sociedade da época a refletir sobre a escravidão, em
busca de demonstrar que esta era um grave problema para a sociedade brasileira, mas que,
devido o enraizamento desse sistema, não seria simples desvincular a figura do negro como
escravo. De igual maneira, não era somente tornando este liberto que iria pôr fim a estrutura
escravista que sustentava o regime Imperial e a economia brasileira até aquele momento.

Nessas condições, as questões aqui desenvolvidas representam uma leitura do


pensamento de Alencar com base nas produções indicadas do autor. Entendemos que, frente a
complexidade que envolve o escritor cearense, suas obras e posicionamento sobre a
escravidão abrem espaço para explicações diversas. Assim, a ambiguidade na interpretação da
cena da alforria destaca a complexidade do posicionamento de Alencar em relação à questão
da escravidão, oferecendo espaço para múltiplas leituras e reflexões sobre o papel do autor
diante da escravidão e outras tantas questões sociais de sua época.

Referências bibliográficas:

ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo. (Org), CARVALHO, José Murilo de. – Rio de
Janeiro: ABL. (Coleção Afrânio Peixoto; v. 90), 2009.
BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas considerações. Goiás: Revista
de Teoria da História, ano 1, n. 3, junho/ 2010.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: A elite política imperial. Teatro de
Sombras: A política imperial. 4° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

FARIA, João Roberto. Alencar Dramaturgo: Uma representação. São Paulo: Rev. Letras –
N° 29(2) – vol.1 jan./jul.- 2009.

FARIA, João Roberto. José de Alencar e o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1987.

ALENCAR, José de. O Demônio Familiar. Rio de Janeiro, 1857.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Mundo como texto: leituras da História e da Literatura.


História da Educação. Pelotas, 2003, p.199 – 232.

SCHWARCZ, Lílian Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Cia. Letras, 1998.

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