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BLACKBURN, Robin. “Introdução.

Escravidão colonial no Novo Mundo por volta


de 1770” e “As origens do antiescravismo”. In: A queda do escravismo colonial.
Rio de Janeiro: Record, 2002.
INTRODUÇÃO
 A navegação atlântica e a colonização europeia do Novo Mundo fizeram das
Américas a fonte mais conveniente de produtos tropicais e subtropicais para a
Europa. Ainda assim, esta conexão impressionante entre Império e escravidão
estava para entrar em crise terminal. (p.15)
 O período de 1776 e 1848 testemunhou sucessivas contestações dos regimes de
escravidão colonial, levando à destruição quer da relação colonial, quer do
sistema escravista ou de ambos em cada uma das principais colônias do Novo
Mundo. A contestação do Império e a contestação da escravidão eram, em
princípio, projetos dessemelhantes e distintos. Todavia, neste período eles se
entrelaçam quando os colonos resistiram ao domínio imperial e os próprios
escravos tentaram explorar qualquer enfraquecimento do aparato de controle
social. (p.15)
 Depois da Guerra dos Sete Anos (1756-63), todas as potências imperiais
aceitaram a pressão por maior autonomia colonial e promoveram projetos de
reforma. A contestação colonial aos funcionários e mercadores metropolitanos
representava uma aspiração ao autogoverno; foi ao mesmo tempo reivindicação
de maior liberdade econômica e afirmação da nova identidade e da civilização
americana autônoma. (p.15)
 Um dos objetivos deste livro é descobrir por que a crise no modo de
dominação política às vezes detonou uma crise do regime social, em especial
da instituição da escravidão. Esta introdução busca fornecer um esboço dos
sistemas escravistas coloniais de meados do século XVIII e estabelecer seus
pontos fortes e fracos característicos, às vésperas daquela “Idade da
Revolução” na qual teriam papel tão importante. (p.15)
 O lucro britânico no comércio atlântico vinha principalmente da organização
capitalista eficaz do transporte marítimo, do fornecimento de manufaturas e das
finanças comerciais; o lucro comercial francês, que no todo chegava à metade do
comércio colonial de exportação, dependia mais do monopólio mercantilista.
(p.18)
 As vitórias da Grã-Bretanha na Guerra dos Sete anos permitiram-lhe expulsar os
franceses da América do Norte. Desta época em diante, os levantes internos
sobrepujaram e deslocaram a rivalidade imperial do papel-chave na mudança no
hemisfério. (p.18,19)
 Em contraste, as formas anteriores de escravidão eram menos extensas, menos
comerciais e mais heterogêneas. Os escravos do Novo Mundo eram propriedade
econômica, e o principal motivos para possuir escravos era a exploração
econômica. (p.19)
 Nas Américas do século XVIII o uso de escravos na agricultura e na mineração
ajudou a ampliar o alcance do capital mercantil e manufatureiro e forneceu a
regiões em industrialização matérias-primas e mercados. A parceria de
mercadores e donos de plantation no Novo Mundo levou à criação de um
empreendimento manufatureiro e agrícola integrado. As próprias plantations
escravistas incorporaram avanços na técnica agrícola compatíveis com o
trabalho em turmas coordenadas. (p.19)
 Manuel Moreno Fraginals examinou as formas pelas quais o engenho de açúcar
antecipou alguns métodos de um industrialismo capitalista emergente, com sua
calibragem precisa de mão-de-obra e subordinação a um ritmo mecânico. (p.20)
 Todavia, esses autores marxistas distinguem corretamente a escravidão do Novo
Mundo de um regime de produção generalizada de mercadorias. As empresas
escravistas ainda tinham raízes na chamada “economia natural”- o cultivo de
subsistência e trabalho interno, “não-comercializado”. (p.20)
 É necessário distinguir entre a escravidão acessória do início do colonialismo
espanhol ou português e a escravidão sistêmica, ligada às plantations e à
produção de mercadorias, que se tornou dominante no século XVIII. (p.21)
 A força de trabalho no engenho brasileiro do início do século XVII continuou a
ser mista, e combinava fileiras de servos africanos e índios com uma dúzia ou
mais de imigrantes portugueses; e o processamento não era integrado com o
trabalho agrícola, já que a maior parte da cana era fornecida por agricultores
independentes. O termo plantation não se aplicava à propriedade açucareira
brasileira. (p.22)
 A largada para produção em grande escala das plantations foi dada no Caribe
pelos produtores britânicos e franceses, apoiados por mercadores holandeses
independentes, por volta de 1640-50. A escravidão sistêmica tinha de ter caráter
colonial porque plantations escravistas precisavam de garantias navais e
militares que as protegessem de rivais e da ameaça de revoltas escravas. Embora
a escravidão acessória tenha ajudado a reproduzir o império, o império ajudou a
reproduzir a escravidão sistêmica. A plantation era administrada como uma
empresa integrada com acesso privilegiado ao mercado europeu; em pouco
tempo, todas as tarefas braçais passaram a ser realizadas por escravos. (p.23)
 A escravidão colonial do Novo Mundo desenvolveu-se no alvorecer do avanço
capitalista na Europa do século XVII. (p.24)
 Com o desenvolvimento da escravidão “sistêmica”, a “importação” de escravos
cresceu tanto em termos proporcionais como absolutos. A descoberta de ouro no
Brasil no final do século XVII mais que duplicou a importação anual de
escravos naquele território. (p.24)
 Foi apenas no século XVIII que apareceu uma imensa disparidade, com cerca de
seis milhões de cativos africanos chegando ao Novo Mundo, cinco ou seis vezes
o número de europeus. Este inchaço do comércio negreiro refletiu um vasto
aumento da produção das plantations escravistas. (p.24)
 Por que foram as Américas o lugar desta expansão fenomenal e por que
envolveu a escravidão¿ O desenvolvimento capitalista na Europa gerou novas
necessidades que não poderiam ser atendidas com recursos europeus. O Novo
Mundo tinha o clima e o solo necessários para cultivar os produtos exóticos
desejados pelos europeus, e o transporte marítimo era barato. (p.25)
 O cultivo de produtos de plantation envolvia o tipo de trabalho que espantava o
migrante voluntário. Mercadores portugueses, holandeses, britânicos e franceses
descobriram que era agradavelmente lucrativo patrocinar o desenvolvimento de
plantations, mas só conseguiram supri-las de mão-de-obra por meio da garantia
do fornecimento de escravos da costa da África. A escravidão do Novo Mundo
resolveu o problema colonial de mão-de-obra. (p.25)
 A força específica da escravidão colonial britânica e francesa era o aparato
descentralizado e controlado pelo dono da plantation para conter os escravos. A
força da colonização ibérica estava concentrada em centros administrativos nas
próprias colônias. (p.26)
 Fora alguns grandes privilégios, os proprietários de escravos do Novo Mundo
sentiam viva inimizade pelos funcionários coloniais, já que desejavam cuidar de
seus próprios negócios e o funcionalismo colonial tinha a tarefa de ministrar a
regulamentação mercantilista. Havia em geral um nexo antagônico entre dono de
plantation e mercador que, com frequência, intensificava a hostilidade para com
os sistemas coloniais que privilegiavam monopólios mercantis nacionais.
(p.26,27)
 Isto não quer dizer que motivos estritamente econômicos ditaram o padrão e a
sequência da rebelião colonial, mas enquanto fossem eficazes, as estruturas aqui
mencionadas teriam seu impacto na mentalidade e também no cálculo
econômico. (p.30)
 A manutenção da escravidão colonial produziu padrões diferentes de privilégios
raciais, com diversos potenciais de conflito. Em todas as colônias, os brancos
gozavam de status e vantagens especiais. Em 1770 todos os escravos americanos
eram negros, embora nem todos os negros fossem escravos. A escravidão no
Novo Mundo codificou a pele “negra” como característica de escravos; pessoas
de cor livres podiam ser levadas a negar a sua cor – ou a negar a escravidão.
(p.31,32)
 Os que construíram, em cada colônia, empreendimentos baseados em escravos
estavam unidos pela língua, pela identidade cultural e pelo interesse econômico;
e tinham recursos para contratar empregados e garantir aliados junto à população
livre sem escravos. (p.32)
 Os contingentes de escravos condenados a trabalhar nas plantations das zonas
tropicais e subtropicais tinham mortalidade tão alta e fertilidade tão baixa que
exigiam um comércio negreiro de enormes proporções para manter ou aumentar
o nível populacional. (p. 32, 33)
 Enquanto o contingente de escravos fosse dizimado pela doença e pelo excesso
de trabalho, seria difícil para eles resistir coletivamente à opressão. (p.34)
 O grande tamanho das plantations no Caribe diminuiu o impacto cultural dos
proprietários de escravos; este fator favoreceu a sobrevivência de traços
africanos e, afinal, a descoberta de novas fontes de identidade comunitária.
(p.34)
 O mercantilismo colonial protegera a infância dos sistemas escravistas e os
comércios negreiros nacionais, mas a produção cresceu com mais vigor quando
os monopólios oficiais foram desmantelados e suspensas as restrições
mercantilistas. (p.36)
 Em seu estudo clássico sobre A era da revolução, E. J.Hobsbawm examinou o
impacto econômico da revolução industrial da Grã-Bretanha e o impacto político
da Revolução Francesa. Há muita coisa no desenvolvimento europeu e
americano subsequente e no mundo moderno que pode ser rastreada até as
consequências monumentais desta “dupla revolução”. (p.37)
 A literatura sobre a “Era da Revolução” tende a concentrar-se na Europa,
embora R. R. Palmer e J. Godechot tenham ressaltado o impulso democrático
revolucionário das 13 colônias norte-americanas. Mas os acontecimentos na
zona de plantations depois de 1776 – o surgimento de novas propriedades
baseadas na escravidão ou a disseminação da revolução e da emancipação do
Haiti para a América espanhol – não receberam atenção compatível com sua
importância. O presente estudo, por dedicar-se a um capítulo essencial da
história da escravidão no Novo Mundo, vai explorar esta dimensão americana
um tanto negligenciada. (p.38)
 Se a escravidão desenvolveu-se na aurora do capitalismo, como insisti antes,
como é que o avanço capitalista também despertou impulsos antiescravistas¿ No
decorrer deste livro, tentar-se-á resolver o paradoxo de como o capitalismo,
em primeiro lugar, precisou de regimes de trabalho forçado e, mesmo
assim, libertou forças que ajudaram a combater a escravidão americana.
(p.39)
 Em Capitalismo e escravidão (1944), Eric Williams, propõe uma explicação do
abolicionismo segundo a qual os capitalistas industriais desfizeram-se do
comércio negreiro e da escravidão colonial por motivos essencialmente
econômicos. Faz-se referência a tensões sociais mais amplas e a revoltas de
escravos, mas o peso principal da explicação recai sobre o interesse econômico
capitalista. A abolição britânica é abordada como se fosse um processo nacional
bastante autossuficiente, e o destino da escravidão na América independente não
é investigado. Williams não ignora o fato de que o desenvolvimento do
capitalismo e da escravidão foram intimamente relacionados. Mas minimizou o
problema da explicação ao sustentar que a escravidão produzira o capitalismo, e
não o contrário. Em contraste com o entendimento marxista das origens do
capitalismo, Williams não levou em conta a acumulação de capital agrário,
manufatureiro e mercantil na época pré-industrial. Para ele, os sistemas
escravistas do Novo Mundo, longe de serem uma consequência do
desenvolvimento capitalista, foram uma escada descartável pela qual ele subiu.
No final, seu esquema “dialético” de um capitalismo que usou uma escravidão
descartável é mecânico e insatisfatório. (p.39) CRÍTICA
 Em The Problem of Slavery in the Age of Revolution 1776-1823 (1975), David
Brion Davis apresenta uma investigação mais comparativa e complexa dos
abolicionistas, esclarecendo os caminhos pelos quais eles ajudaram a construir
uma nova hegemonia burguesa. Esta obra admirável focaliza principalmente a
ideologia do abolicionismo. Embora as controvérsias metropolitanas sejam
muito bem esclarecidas, o padrão de resistência e a acomodação dos próprios
escravos não é integrado à análise. (p.39)
 O ensaio notável de Eugene Genovese, From Rebellion to Revolution (1979),
explora o desenvolvimento do antiescravismo dos próprios escravos e argumenta
que seu alcance e sua trajetória foram transformados durante a época da
revolução democrática burguesa. Nestas substanciosas obras de interpretação,
baseadas em amplas pesquisas, Davis e Genovese qualificam e matizam a tese
que vincula o antiescravismo ao surgimento da sociedade burguesa. (p.40)
 Davis e Genovese chamam atenção para as tensões e contradições que isso
provocou e colocam o surgimento dos movimentos abolicionistas e a legalização
e o resultado final da emancipação em um contexto de luta de classes tanto na
zona de plantations quanto na metrópole. Com base nessas abordagens, o
presente livro busca construir uma narrativa marxista das verdadeiras
lutas de libertação nas várias regiões das Américas e estabelecer até que
ponto o antiescravismo, em intenção ou resultado, transcendeu a dinâmica
democrática ou capitalista burguesa. A reconstrução narrativa oferecida
também busca reconhecer a contribuição dos senhores de escravos ao processo
revolucionário burguês mais amplo, ao desmantelamento da escravidão colonial
e ao nascimento de novos sistemas escravistas. Isto envolveu reunir a política
colonial e a metropolitana em um relato do destino da escravidão em cada
colônia durante a época revolucionária, país por país. (p.40)
 A especialização acadêmica e a divisão do trabalho têm suas justificativas, mas
as razões da destruição da escravidão colonial não podem ser percebidas se a
abolição metropolitana e as lutas das zonas de plantations forem alocadas em
departamentos diferentes do conhecimento. (p.41)
 O modelo ainda não superado para a compreensão da luta contra a escravidão é
The Black Jacobins: Toussaint l’Ouverture and the San Domingo Revolution, de
C, L. R. James (1938). Nesta obra, James determina o impacto da revolução no
Caribe sobre os acontecimentos na metrópole e explora a fusão extraordinária de
tradições e impulsos diferentes conseguida em São Domingos na década de
1790. A história de James esclarece o funcionamento essencial do capitalismo,
do racialismo, do colonialismo e da escravidão – e as complexas lutas de classes
que provocaram em São Domingos; transmite uma sensação maravilhosa de
irrupção das massas na história. (...) Como explicação, é mais satisfatória e,
como narrativa, muito mais atraente do que aqueles relatos de lutas ligadas à
escravidão colonial que nunca olham para fora das plantations ou, pior ainda,
nunca abandonam as salas de visita ou os salões de debate na metrópole. (p.41)
 Nos relatos a seguir, tentei colocar em contexto as lutas relativas à escravidão
colonial e mostrar que o antiescravismo foi muitas vezes imposto por pressões
externas aos agentes de decisão da metrópole. A pesquisa marxista, em obras de
escritores como James, Genovese, Gorender e Fraginals, já deu uma
contribuição notável à nossa compreensão da formação e da derrubada da
escravidão nas Américas. Mas a relação deste conjunto de obras com a corrente
dominante do desenvolvimento capitalista e da luta de classes ainda não foi
suficientemente apreciada, o que fornece uma razão adicional para o presente
estudo. (p.41, 42)
 O primeiro capítulo examina as fontes do antiescravismo no mundo atlântico de
meados do século XVIII – no sentimento popular, na resistência dos escravos e
na filosofia. Mas foi necessária a crise do império para que o antiescravismo se
tornasse uma questão da política prática, capítulos subsequentes traçam a
irrupção de temas antiescravistas nas crises imperiais e revolucionárias que se
alteraram na história das potências atlânticas até meados do século XIX. (p.42)
 Na verdade, a obra de James deveria ser uma inspiração para identificar o
impacto da “primeira emancipação” sobre as lutas posteriores contra a
escravidão colonial em outras partes da América. O relato detalhado, nos
Capítulos 5 a 9, da desintegração do poder dos senhores de escravos em São
Domingos, do nascimento do Haiti e do impacto deste último sobre os escravos
e seus senhores, sobre os estrategistas do império e sobre o meio flutuante de
aventureiros e revolucionários tenta remediar esta deficiência. Espero mostrar
que é quase impossível exagerar o impacto da revolução haitiana sobre o destino
da escravidão colonial. (p.42,23)
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CAPÍTULO 1: AS ORIGENS DO ANTIESCRAVISMO

 A propriedade de escravos foi não só reconhecida pela Igreja católica, como


tolerada em Roma até o século XVIII. Nem Lutero nem Calvino questionaram a
escravidão. (p.47)
 Inglaterra, França, Portugal, Países Baixos e Dinamarca, todos tinham
companhias oficiais de comércio envolvidas no tráfico negreiro. (p.47)
 Este capítulo vai examinar o surgimento e o significado do antiescravismo em
suas várias formas. Buscará colocar o antiescravismo “filosófico” em seu
contexto e indicar os caminhos pelos quais os filósofos economistas políticos
buscaram responder a um impulso antiescravista que não foi por eles criado.
(p.48)
 O antiescravismo popular era mais que aversão a tornar-se escravo; envolvia a
noção de que a posse e o comércio de escravos não deveriam ser permitidos em
determinado território. (p.48)
 A resistência popular à servidão refletiu não só a ansiedade de evitar se tornar
escravo, mas também o medo do poder desmedido conferido aos senhores em
suas relações com a gente livre. (p.49)
 Quanto às autoridades soberanas, os poderes do proprietário de escravos eram,
em potencial, um limite ao seu próprio poder. Na maior parte da Europa
Ocidental, tanto as leis municipais quanto os decretos reais vieram a estabelecer
uma suposta liberdade e a oferecer a seus cidadãos e súditos o abrandamento da
servidão pessoal. Mas também toleravam uma esfera privada de poder e riqueza
na qual se mantinha a escravidão absoluta. (p.50)
 Os monarcas de Aragão e Castela haviam adotado um código de escravos,
elaborado mas suave, como parte das comemoradas Siete Partidas de Alfonso
Xm o Sábio, Este código concedia muitos direitos aos escravos, inclusive o de
comprar a alforria e, em caso de abuso, de exigir a venda a outro senhor; imitava
o de Justiniano, mas também deve ser visto como uma resposta ibérica às
emancipações municipais e reais de outras partes da Europa ocidental, embora
buscasse regulamentar em vez de eliminar a servidão. (p.51)
 A Igreja, assim como o Estado, acreditava que o senhor de escravos precisava de
tutelagem; proprietários de escravos da Nova Espanha podiam ser denunciados à
Inquisição por maltratarem seus escravos, e houve alguns casos assim. (p.51)
 Estatuto dos Trabalhadores de 1349-51 na Inglaterra. (p.52)
 Jean Bodin produziu a que talvez foi a primeira discussão crítica da escravidão
em Les Six Livres de la République (Os seis livros da república) (1576). Ele
ressaltou que, embora todos os filósofos justificassem a escravidão, os
advogados praticantes eram diferentes: “Os advogados, que medem a lei não
pelos discursos ou decretos dos filósofos, mas segundo o bom senso e a
capacidade do povo, sustentam que a servidão é diretamente contrária à
natureza.”. Ele assinalou a sabedoria dos reis franceses quando baniram as
variedades mais duras de servidão e insistiu que, em vista das crueldades e
perigos a que a escravidão poderia dar vida, seria “muito pernicioso e perigoso”
permitir sequer que escravos entrassem no país. (p.53)
 A escravidão do Novo Mundo, como observamos na Introdução, era
imensamente econômica em seu caráter, e logo recaiu exclusivamente sobre os
de ascendência africana. Na maioria das formações sociais escravistas anteriores
à escravidão fora ao mesmo tempo uma instituição marginal e variada. (p.54)
 Apesar de seu moralismo intenso e radical, os protagonistas da revolta holandesa
e da Commonwealth inglesa aceitaram e promoveram a escravidão negra nas
Américas. No período 1630-1750 o Império Britânico testemunhou uma repulsa
“egoísta” cada vez mais clamorosa, e até mesmo obsessiva, à escravidão, ao lado
de uma exploração quase incontestada do cativeiro de africanos. Assim, John
Locke, que possuía ações da Real Companhia Africana, justificava a escravidão
como um meio de salvar os africanos de um destino ainda pior. (p.54)
 O próprio processo pelo qual se criaram as novas colônias escravistas refletia a
repulsa popular pela escravidão e a facilidade com que podia ser mantida dentro
de limites etnocêntricos. Trabalhadores contratados ingleses e irlandeses ou
engagés franceses não poderiam ser maltratados como um escravo por causa da
solidariedade que despertariam entre os colonos livres. Como os africanos
cativos eram estrangeiros, pagãos e negros, os colonos livres estavam menos
inclinados a identificar-se com eles. (p.55)
 Se os horrores do comércio de escravos se multiplicavam no final do século
XVII e início do XVIII, o mesmo acontecia com o lucro dos que se envolviam
com ele. Isto certamente ajuda a explicar por que os poucos e espaçados
protestos iniciais foram desprezados e ignorados. Em vez de rejeitar a raiz e os
ramos da escravidão, focalizavam preocupações pastorais — o tratamento dos
escravos, em especial se convertidos reais ou potenciais ao cristianismo—ou os
perigos morais de ser um dono de escravos. (p.56, 57)
 A History of the Pyrates (História dos piratas), do capitão Johnson, publicada
em Londres em 1724 e às vezes atribuída a Daniel Defoe, representa outra
manifestação precoce do espírito antiescravista, desta vez de caráter inteiramente
secular. Muitos dos membros franceses de sua tripulação heterogénea eram
huguenotes de Rochelle. Quando capturavam escravos, libertavam-nos e
convidavam ajuntar-se a eles como iguais. Misson e sua tripulação criaram a
colónia de "Libertália" em Madagáscar; a escravidão seria ilegal e o dinheiro
mantido em um Tesouro comum, mas a terra era de posse privada. (p.58)
 No Esprit des Lois, Montesquieu dedicou a maior parte de um dos capítulos à
ridicularização das justificativas convencionais para a escravização de africanos
no Novo Mundo. Suas observações seriam amplamente citadas pelos primeiros
abolicionistas, embora, na verdade, lhes faltasse um sentido antiescravista
completo. No entanto, Montesquieu também reconhecia que às vezes a
escravidão podia ser um mal necessário. (p.59, 60)
 O filósofo escocês Francis Hutcheson, em seu System of Moral Philosophy
(Sistema de filosofia moral, 1755): Sustentava que a escravidão e o comércio de
escravos eram uma violação de "todo senso de justiça natural", de moralidade
cristã ou do senso adequado de "liberdade". Todos os homens têm um forte
desejo de liberdade e propriedade, têm noções de direito e fortes impulsos
naturais para o casamento, a família e a prole, e os desejos mais profundos de
garantir sua segurança." Hutcheson condenava a escravidão porque deixava de
respeitar esta propensão humana natural à reprodução e porque violava o
princípio de que "cada homem é o proprietário natural de sua própria liberdade".
(p.61)
 Hutcheson produziu um tipo de crítica imanente da escravidão, mas por si sós
suas ideias sugeririam uma reforma em vez da abolição total da escravidão e do
comércio de escravos. Parte de sua dificuldade estava no desejo de atacar a
escravidão sem infringir os direitos de propriedade legalmente adquiridos nem
questionar a servidão prolongada, nem mesmo por toda a vida, tal como ainda
sobrevivia nas minas de carvão da Escócia no século XVIII. Em um nível mais
fundamental, Hutcheson preocupava-se em garantir que as atividades dos
homens de negócios e riquezas pudessem seguir princípios gerais elaborados por
filósofos morais, membros de um sistema académico ou clerical. (p.62)
 O primeiro pensador europeu a atacar a escravidão de maneira inequívoca
depois de Bodin provavelmente foi o jurista escocês George Wallace, em seu
livro A System of the Principles of the Law of Scotland (Sistema dos princípios
da lei da Escócia), publicado em 1760. Wallace insistia ainda que a escravidão
deveria ser abolida mesmo que causasse perdas econômicas; seria intolerável
para a humanidade ser agredida "para que nossos bolsos possam se encher de
dinheiro e nossas bocas de guloseimas". (p.63)
 A causa contra a escravidão colonial seria muito fortalecida pelo fato de que
encontraria apoio na nova economia política, mais particularmente no dogma
central relativo à superioridade produtiva da mão-de-obra livre. Tanto os
economistas políticos escoceses quanto os fisiocratas franceses argumentaram
que o trabalho escravo era caro e ineficiente; na opinião de Adam Smith, a
despesa da mão-de-obra escrava só podia ser suportada pelos donos de
plantations graças a seus privilégios monopolistas. O trabalho escravo era
considerado caro por causa da alta mortalidade e da baixa fertilidade dos
escravos, porque o capital de seus proprietários estava preso de forma pouco
produtiva ao gado humano e porque o escravo não tinha motivos para trabalhar
de forma mais produtiva ou eficaz. É interessante observar que tais argumentos
começaram a ganhar terreno em todo o mundo atlântico em meados do século
XVIII. (p.64)
 A crítica do trabalho escravo e do mercantilismo colonial encontraria expressão
clássica em A riqueza das nações de Adam Smith, publicado em 1776. Os
argumentos de Smith e dos fisiocratas tinham ressonância especial entre as
classes médias profissionais. (p.64)
 A perspectiva do antiescravismo primitivo recebeu sua apresentação mais bem
acabada em outra obra do Iluminismo escocês, The Origin of the Distinction of
Ranks (A origem da distinção de classes sociais), de John Millar, publicada pela
primeira vez em 1771 e reeditada três vezes no espaço de uma década. (p.65)
 Em sua crítica da escravidão, um ponto central é a suposta falta de lucratividade.
Embora Millar tenha se enganado ao fazer esta suposição, os itens em que
dividiu os custos suportados pelo dono de escravos mostravam uma percepção
melhor da economia da plantation do que a de alguns proprietários; o erro não
estava nos cálculos da despesa do trabalho escravo, mas sim no feto de não levar
em conta os imensos lucros que a cooperação forçada poderia produzir na
plantation. (p.66)
 A condenação comedida que Millar impõe à escravidão, com base em que esta
seria inimiga da diligência individual, da economia lucrativa e da vida familiar,
corresponde bem de perto ao abolicionismo médio do mundo atlântico na
segunda metade do século XVIII; a denúncia moral e a rejeição mais ferozes
contidas na obra de Wallace, seu patrício menos conhecido, causou impacto,
pelo contrário, em uma faixa mais estreita de antiescravistas radicais. Estes
últimos só obtiveram maior influência em tempos de crise, embora mesmo então
as medidas que propunham buscassem purificar em vez de derrubar a ordem
estabelecida. O abolicionismo radical visava tanto à escravidão quanto ao
comércio de escravos e estava pronto a desafiar a propriedade e o Estado em
nome dos direitos humanos universais. Os abolicionistas moderados pensavam
que medidas graduais e não expropriadoras poderiam fortalecer a posição moral
do Estado e da ordem social predominante; no entanto, até mesmo medidas
moderadas exigiam a disposição de restringir os direitos de propriedade e o
funcionamento do mercado. (p.66)
 Como no caso de Millar, as passagens de Raynal fazem referência à escravidão
do Novo Mundo e exprimem uma visão das instituições metropolitanas — neste
caso, para questionar a autoridade da Igreja e do rei. E, como vimos, o
antiescravismo europeu, popular ou filosófico, era bem consciente de que os
escravos já tinham contestado, e continuariam a contestar, o cativeiro. (p.67)
 E assim como a vida na plantation era marcada pelas formas de resistência
comunitária, as revoltas podiam levar a acordos práticos com o regime colonial
ou escravista. (p.68)
 Revolta escrava em 1789 em uma propriedade perto de Ilhéus, no Brasil, que
levou a uma luta prolongada entre o proprietário e seus escravos. Os escravos da
fazenda fugiram para a mata, levando consigo equipamento valioso. Ofereceram
voltar à fazenda, contanto que: (a) pudessem vetar a escolha de feitores; (b)
tivessem liberdade de cantar e dançar, etc.
1. As canções e danças desejadas pelos escravos brasileiros eram um elemento
vital da cultura afro-americana que surgira com diversas variantes e
combinações em cada colónia e distrito. Como outros componentes da
cultura afro-americana — religião, língua, mito —, a música e as canções
dos negros eram atravessadas por uma dolorosa ambiguidade: ajudavam a
afirmar uma identidade distinta daquela oferecida pela sociedade escravista,
mas também ajudavam a tornar mais suportáveis as condições de vida
intoleráveis. (p.70)
 O exame anterior das fontes mais importantes do antiescravismo também
indicou os seus limites. O preconceito antiescravista europeu tendia a ser egoísta
e etnocêntrico; e, mesmo em sua forma mais generosa, vinha daqueles que
estavam excluídos do poder político de forma mais ampla. A crítica filosófica da
escravidão era predominantemente, embora não exclusivamente, moderada e
reformista em suas implicações, ou mesmo puramente especulativa e retórica; e
ela também era obra de escritores e não daqueles que tinham o poder ou a
responsabilidade diretos. (p.71)
 O surgimento do antiescravismo refletia pressões em todos os níveis da
formação social, e só aconteceriam avanços importantes no contexto de crises
que atingissem toda a sociedade. (p.71)
 A escravização criada pela explosão atlântica não só abalou as noções anteriores
de servidão, africanas ou europeias, como representou um desafio revolucionário
para a distribuição do poder. Criou uma classe de proprietários de plantations e
mercadores coloniais que dificilmente permaneceria para sempre satisfeita com
a tutelagem metropolitana. (p.72)
 A Grã-Bretanha e a França, que possuíam as colónias escravistas mais
florescentes, eram os Estados onde o espírito de ganho comercial e financeiro
parecia estar mais altamente desenvolvido na segunda metade do século XVIII.
Acreditava-se de forma ampla, e não sem razão, que havia uma conexão.
(p.72,73)
 A discussão de Hutcheson e Millar já deixara claro que o final do século XVIII
dera vida a um abolicionismo distintamente burguês. O abolicionismo burguês
enfatizava a necessidade de pacificar e normalizar as relações sociais, de
encorajar a vida familiar, de desenvolver hábitos de dedicação ao trabalho e de
economia. Foi com frequência adotado por profissionais liberais e gente da
classe média, que desempenharam o papel de intelectuais orgânicos de uma nova
ordem social que seria fortalecida por instituições que, segundo eles esperavam,
domariam e civilizariam o capitalismo e suas lutas desregradas de classes. (p.74)
 Tanto os ataques aos ancien régimes quanto à crueldade do poder e da riqueza
privados apelavam ao reflexo antiescravista da cultura popular europeia. Apesar
de tão disseminado, o sentimento antiescravista não chegava necessariamente a
mais do que uma leve benevolência ou mera retórica política. Como o
abolicionismo podia ser adotado com tanta facilidade para obter um efeito
ideológico, ele frequentemente desmoronava ao primeiro contato com alguma
oposição ou interesse "patriótico". (p.74)
 Havia, naturalmente, poderosos interesses ocultos que se opunham a qualquer
forma de abolicionismo, já que os sistemas escravistas davam contribuição tão
imensa à riqueza dos Estados atlânticos. (p.75)
 As décadas de 1750 e 1760 testemunharam as agitações declaradas da revolta
colonial, assim como o início da mudança de maré na opinião culta a respeito da
escravidão. A Guerra dos Sete Anos teve mais efeitos desorganizadores sobre os
sistemas de escravidão colonial do que todas as guerras que a precederam. Ela
envolveu todas as grandes potências atlânticas, despertou vários sentimentos
patrióticos e terminou com uma paz prenhe de conflitos futuros. (p.75)
 O primeiro decreto a banir um ramo do tráfico negreiro atlântico foi emitido em
Portugal em 1761, seguindo o conselho do futuro marquês de Pombal. O decreto
de 1761 foi seguido, depois de um intervalo em que o antiescravismo surgiu por
toda parte no mundo atlântico, por um decreto de janeiro de 1773 que estendia a
liberdade aos escravos de Portugal cujos pais, avós ou bisavós tivessem sido
escravos portugueses. Pombal estava preocupado na época em impedir que o
poder escapasse de suas mãos. Esta prestação modestíssima de emancipação não
foi produto de nenhum movimento, nem foi acompanhada de grandes
reivindicações. Todavia, provavelmente ilustra a forma pela qual se considerava
que o antiescravismo tinha um potencial de mobilização e legitimação de
regimes que precisavam garantir o apoio popular1. (p.75,76)
 O início das revoluções não significou de forma alguma o final imediato ou
automático da escravidão. Os senhores americanos de escravos que apoiaram
a revolução assim agiram para desafiar o vínculo colonial e contaram com a
considerável força inerente dos sistemas escravistas. O antiescravismo só
prevaleceu onde havia um prolongado acúmulo de problemas na ordem
escravista e uma concatenação de diversas forças a ela opostas. A instituição
da escravatura era sustentada pelo respeito à propriedade, pela falta de
respeito aos negros e pelas definições preponderante do interesse nacional —
o antiescravismo só progrediu quando cada um desses fatores foi contestado.
(p.76,77)

1
A. C. de C. M. Saunders, A Social History of Black Slaves and Freedmen in Portugal, Cambridge, 1982, p.
178.

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