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As origens do antiescravismo

Branco diz o preto furta Preto furta com razão Sinhô branco também furta Quando faz a
escravidão Canção brasileira dos tempos da escrawdão

[...] the king and his othcr lord[...] found there [Milc End] threescore thousand men of divers
villages and of sundry countrics in England. Só the king cntered in among them and said to
them sweetly, 'Ah, yc good people, I am your king. What lack yc? What will yc say?' Then
such as understood him said: 'We will that ye makc us free for ever oursetves, our heirs and
our lands, and that we be called no more bond, nor só reputed1. 'Sirs', said the king. 'I am
well agreed thercto. Wíthdraw ye home into your own kouses and into such villages as ye
carne from[...] and I shall cause writings to be made aad seal them with my seal[...]
containing everything that ye demand' [...] These words appeared well to the commom
people, such as werc simple, good, plain men.* FrQÍs$ará"s Chronicle

[..,] o rei e seus outros lordes [,..] encontraram lá [era Milc End] sessenta mil homens de
aldeias de mergulhadores e de diferentes regiões da Inglaterra. E então o rei foi para junto
deles e disse-lhes docemente: "Ah, boa gente, sou vosso rei. O que vos falta? O que direis?"
Então aqueles que o compreenderam disseram: "Desejamoí que nos torneis livres, a nós,
nossos herdeiros c nossas terras, c que não sejamos mais chamados cativos, nem assim
considerados." "Senhores", disse o rei, "estou bem de acordo com isso. Rclirai-vos para
vossos tares, para vossas próprias casas e para as aldeias de onde viestes [...] c eu farei com
que os textos sejam escritos e selá-losei com meu selo [...] contendo tudo o que pedis." [...]
Tais palavras soaram bem para a geníe do povo, que eram homens comuns, bons, simples.

ROBIN BLACKBURN

MARYLAND VIRGÍNIA , CAROL1NA DO NORTE J CAROLINA DO SUL GEÓRGIAj'

Nova York

Escravos representam um décimo ou mais da população

AMÉRICA DO NORTE BRITÂNICA

Zona de desenvolvimento baseado em escravos Centro de resistência escrava ou de


atividade de maroons

ILHAS VIRGENS (Dinamarca) J- . .ILHAS DE SOTAVENTO (Grã-Bretanha) Vf^GUADALUPE


(Franca)

Gft
SÃO VICENTE «?~* MARTINICA (Franca) *** " - , fi 'BARBADOS (Grâ-Bretanhi ^I^Caracasí-^-
GRANADA (Grã-Bretanha) ^HfcwíTw.

Rio de janeiro

RIO DA PRATA (Espanha)

Zonas de desenvolvimento baseado em escravos e de resistência escrava por volta de 1770

ntes de meados do século XVIII, a opinião dominante na Europa e no Novo Mundo, quer
religiosa quer secular, sempre aceitara a escravização. No primeiro livro do Velho
Testamento afirmava-se que Noé havia condenado uma porção da humanidade, "os filhos
de Cam", à servidão perpétua, porque Cam vira seu pai despido. A justificativa judaica da
escravização fora adotada por muçulmanos e cristãos; pensava-se que a noção de uma
mancha hereditária justificava a escravidão racial. No século VI o imperador Justmiano
promulgou um código de escravos que admitia a propriedade de pessoas, a servidão
hereditária e os poderes dos senhores de escravos, embora proibisse a violência gratuita e
permitisse a possibilidade da manumissão; regulamentos inspirados neste código foram
estendidos ao Novo Mundo pelas potências ibéricas, enquanto o renascimento da lei
romana no final da época medieval também fortaleceu o respeito pela propriedade. Os
filósofos da Antiguidade não haviam oferecido nenhuma crítica fundamental da escravidão;
o mesmo pode ser dito dos primeiros padres cristãos, dos teólogos da Igreja medieval, dos
líderes da Reforma e da Contra-re forma. A opinião cristã de que o servo ou escravo devia
servir fielmente a seu senhor é encontrada tanto em São Paulo quanto em Lutero e em
textos posteriores. A propriedade de escravos foi não só reconhecida pela Igreja católica,
como tolerada em Roma até o século XVIII. Nem Lutero nem Calvino questionaram a
escravidão; Lutero, tomando deliberadamente o caso extremo, argumentou que seria
errado para um escravo cristão roubar-se a si mesmo de um proprietário turco infiel.1 Os
tratados internacionais entre os Estados europeus reconheciam e regulamentavam o
comércio de africanos; o Tratado de Utrecht, de 1713, o fez de forma bastante explícita no
caso do asiento, o comércio de escravos com a América espanhola. Inglaterra, França,
Portugal, Países Baixos e Dinamarca, todos tinham companhias oficiais de comércio
envolvidas no trafico negreiro; e se em sua maioria os Estados também permitiram o livre
empreendimento no comércio africano, foi porque este provou-se mais eficaz para
aumentar o fornecimento de escravos às colónias. Grotius, defensor do maré liberum e da
doutrina dos direitos naturais, aceitava a escravidão como instituição legítima. Enquanto a
tradição santificava a escravidão, o mesmo fizeram as novas doutrinas do "individualismo
possessivo", já que o escravo era realmente propriedade, um bem que o senhor
normalmente adquiria através de uma transação legal e perfeita. Todos reconheciam que o
destino do escravo não era invejável e que inspirava piedade; ainda assim, sustentava-se
que esta era a melhor ou a única forma de trazer à civilização os pagãos e selvagens. Desde
a publicação de History oftheAbolition ofthe British S!ave Trade, de Thomas Clarkson, em
1808, tem sido comum identificara origem do antiescravismo com a

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A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL; 1770-1848

obra dos homens cultos que primeiro publicaram críticas à escravidão ou ao tráfico
negreiro. Mas abordar o assunto desta maneira envolve uma séria distorção. É ver* dadeiro
e notável que os ataques filosóficos à escravidão do Novo Mundo — quer dizer, à própria
instituição em vez de aos excessos cruéis de determinados senhores ou comerciantes —
foram extremamente raros antes de meados do século XVIII; Bodin fez uma aguda crítica em
1576, depois da qual houve um prolongado silêncio até a publicação de Esprit dês Lois (O
espírito das leis'), de Montesquieu, em 1748, com sua passagem fundamental sobre a
escravização de negros. Mas o surgimento do antiescravismo serviu de escoadouro para a
repugnância popular à servidão e ao poder privado ilimitado que precedeu de muito as
críticas à escravidão colonial. E, naturalmente, os próprios escravos, quando se apresentou
a oportunidade, não esperaram a aprovação dos filósofos para se levantar era defesa da
liberdade. Este capítulo vai examinar o surgimento e o significado do antiescravismo em
suas várias formas. Buscará colocar o antiescravismo "filosófico" em seu contexto e indicar
os caminhos pelos quais os filósofos e economistas políticos buscaram responder a um
impulso antiescravista que não foi por eles criado.

controle da terra e não da mão-de-obra. Indivíduos escravos, quando disponíveis, eram


comprados para trabalhar nas terras reservadas ao próprio senhor ou para operar o
moinho; mas estes escravos ou seus filhos acabavam por adquirir o síatus de ho-^ mens
livres. Nos séculos XIV e XV, o impacto devastador da Peste Negra, a disseminação das
revoltas camponesas e o crescimento do comércio de bens de primeira necessidade e de
luxo estimularam os senhores de servos de muitas áreas do noroeste da Europa a trocar
pelo arrendamento a prestação de trabalho pelos servos. O fortalecimento das relações
económicas de propriedade criou o contexto para a luta de classes contra todo tipo de
servidão.2 A resistência popular à servidão refletiu não só a ansiedade de evitar se tornar
escravo, mas também o medo do poder desmedido conferido aos senhores de escravos em
suas relações com a gente livre. Este antiescravismo "egoísta" podia odiar tanto o escravo
quanto seu dono como ameaças à independência dos livres. Os de origem escrava podiam
ser usados como guardas ou capangas. Onde a servidão estava em declínio, a escravidão
tornou-se ao mesmo tempo mais valiosa para os senhores e mais vulnerável. Não
desapareceu nem da Europa oriental nem da ocidental, embora no final tenha trocado de
nome. "Servus", antigo termo para escravo, subiu na escala de estima social e transformou-
se em "servo". O termo "slave" (escravo) disseminou-se na Europa ocidental, refletindo a
origem "eslava" de muitos escravos europeus dos séculos XIV e XV* A privatização da
riqueza e do poder na sociedade do fim do período feudal e do início da era moderna
ofereceu novo espaço à escravidão total, mas também estimulou a oposição do povo.
Embora alguma escravidão tenha sobrevivido na Europa ocidental, especialmente na Itália e
na Península Ibérica, era muito mais comum no leste, embora lá também tenha diminuído
gradativamente quando a servidão consolidou-se. A insegurança física e económica
relativamente maior da vida nas terras pantanosas orientais ajudou a criar condições
propícias à escravidão e a encorajar a venda de si mesmo daqueles em situação
particularmente vulnerável. No leste havia abundância de mão-de-obra, tornando vantajoso
o controle desta; no ocidente a escassez relativa da terra permitia o domínio dos senhores
quando podiam controlar o acesso à terra sem necessidade de servidão pessoal estrita.3
Nas lutas de classes do norte e do oeste da Europa, as cidades tornaram-se pontos de apoio
para a resistência ou fuga às formas mais duras de servidão. As comunas medievais
gostavam de proclamar que o aar livre" da cidade ou vila era incompatí-

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E paradoxal que o surgimento da escravidão colonial não tenha alterado o consenso


popular, nos dois lados do Atlântico, de que a condição de escravo era odiosa e que a posse
de escravos ameaçava a liberdade e a condição dos nascidos livres. O antiescravismo
popular era mais que aversão a tornar-se escravo; envolvia a noção de que a posse e o
comércio de escravos não deveriam ser permitidos em determinado território. Enquanto
elemento da cultura popular da Europa do início da era moderna, deve ser considerado
aqui, já que serviu de trampolim para os apelos abolicionistas posteriores. Embora as
técnicas de agitação abolicionista fossem inovadoras, o sentimento antiescravista que
canalizaram era tradicional e espontâneo. As raízes do abolicionismo primitivo remontavam
sem dúvida à Idade Média. A escravidão era uma força marginal mas não insignificante na
Europa feudal, e os senhores viam os escravos, quando conseguiam mante-los, quer como
acessório quer como alternativa à servidão. O fornecimento de novos escravos minguou
quando as fronteiras da cristandade se estabilizaram, já que a escravização fora promovida
pelos choques entre culturas radicalmente diferentes. No sul e no leste da Europa, em
especial na Península Ibérica, o padrão de guerra permaneceu propício à escravização e
havia algum fôlego para o uso de escravos na agricultura. No norte e no oeste da Europa a
consolidação da servidão associou-se à diminuição da escravidão total: as técnicas agrícolas
mistas com uso extensivo do arado pesado não davam vantagens produtivas ao cultivo por
turmas de escravos e encorajavam os senhores a concentrar-se no

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"Vários dicionários conferem também à palavra portuguesa "escravo" a mesma etimologia,


por meio do latim idavn (eslavo). (N. da T.)

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A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

vel com a servidão. Tbulouse, em 1226, e Pamiers, em 1228, adotaram estatutos que as
transformaram em refúgios onde os escravos eram automaticamente libertados; os reis da
França preferiram encorajar este princípio. O affranchisement toulousain buscava minar o
poder dos senhores locais e aumentar a população e os recursos da cidade. Soberanos que
exerciam o poder da emancipação transformavam os libertos em súditos perfeitos, livres de
obrigações incomodas. Em algumas vilas e cidades a proteção da liberdade civil levou à
exclusão em vez da alforria dos escravos. Os cantões da Suíça também estabeleceram
proibições à entrada daqueles de condição servil. Os cidadãos do norte da Itália não
impediram os ricos de comprar escravos domésticos, mas Veneza excluiu os escravos da
frota municipal e da fabricação de tecidos finos. As guildas e arti da Europa do fim da Idade
Média garantiam um princípio de autonomia e dignidade ocupacional que era inimigo da
escravidão. As municipalidades e os monarcas podiam ambos ser persuadidos de que a
posse de escravos era uma instituição que minava a integridade da ordem social ao remover
uma categoria especial do alcance da lei. Quanto às autoridades soberanas, os poderes do
proprietário de escravos eram, em potencial, um limite ao seu próprio poder. Na maior
parte da Europa ocidental, tanto as leis municipais quanto os decretos reais vieram a
estabelecer uma suposta liberdade e a oferecer a seus cidadãos e súditos o abrandamento
da servidão pessoal. Mas também toleravam uma esfera privada de poder e riqueza na qual
se mantinha a escravidão absoluta. Veneza possuía colónias agrícolas no Mediterrâneo e
permitia a posse de escravos tanto nelas quanto em casa. Apesar da sobrevivência da
escravidão doméstica, a Itália renascentista produziu um ideal de virtude cívica incompatível
com a servidão generalizada. Maquiavel teve pouco a dizer sobre a escravidão, mas
argumentou que uma república saudável precisava de uma quantidade considerável de
cidadãos livres, e seria corrompida pela pretensão dos senhores ou pela nobreza ociosa. E
ressaltou que, mesmo em um reino não fundamentado na extensa liberdade civil, ainda
cabia ao monarca garantir a segurança pessoal de seus súditos, como fizera o rei da França.
Por outro lado, pequenos bolsões de escravidão e servidão sob contrato de estrangeiros
eram aceitáveis para Maquiavel e para o patriotismo civil italiano. As atividades de Veneza,
Génova e Ragusa no comércio de escravos despertaram controvérsias, mas, ainda assim,
vingaram. Em contraste, as municipalidades da França e do norte da Europa algumas vezes
tiveram sucesso na eliminação completa dos extremos de servidão pessoal dentro de suas
fronteiras. As lutas de hussitas, luteranos e anabatistas na Alemanha e na Europa central
divulgaram uma doutrina de liberdade e igualdade cristãs com fortes tonalidades seculares;
a hostilidade à escravidão provavelmente era mais intensa no campo do que nas cidades, já
que lá era menos limitada em seus efeitos e

que a posse de escravos estava, de qualquer forma, vinculada ao luxo e à civilização. Não
houve uma "abolição" no final da Idade Média ou no início da era moderna, mas sim a
crença popular generalizada de que aos ricos e poderosos não deveria ser permitido dispor
à vontade do corpo de pessoas do povo. O funcionamento cotidiano de uma formação
social na qual o poder económico e o trabalho não livre assumiam novas formas renovava e
realimentava continuamente a repulsa à servidão.4 As leis medievais não visavam ao
sistema ou à coerência da legislação moderna nem eram amplamente obedecidas, e assim
muitas vezes a escravidão sobreviveu nos interstícios da formação social. Mas na época em
que Países Baixos, Inglaterra e França estabeleciam colónias escravistas no Novo Mundo, na
prática a instituição já tinha desaparecido da metrópole. Até na Espanha e em Portugal,
onde a escravidão persistiu, sua importância declinava, embora escravos africanos tenham
sido introduzidos nas Ilhas Canárias e na Madeira. Os monarcas de Aragão e Castela haviam
adotado um código de escravos, elaborado mas suave, como parte das comemoradas Siete
Partidas de Alfonso X, o Sábio. Este código concedia muitos direitos aos escravos, inclusive o
de comprar a alforria e, em caso de abuso, de exigir a venda a outro senhor; imitava o de
Justmiano, mas também deve ser visto como uma resposta ibérica às emancipações
municipais e reais de outras partes da Europa ocidental, embora buscasse regulamentar em
vez de eliminar a servidão. Durante o primeiro meio século da colonização espanhola do
Novo Mundo, esta tradição protetora sofreu nova mudança de rumo quando o declínio
catastrófico da população indígena e a falta de confiança real nos conquistadores levou, na
década de 1540, à promulgação de uma lei que proibia a escravidão de índios. Este
abolicionismo real seletivo na verdade preparou o caminho para importações maiores de
escravos africanos, considerados mais capazes de suportar os rigores do cativeiro. Enquanto
Bartolomé de Ias Casas denunciava a escravização de índios, dois outros religiosos do século
XVI na América espanhola, Tomás de Mercado e Alonso de Sandoval, atacavam os excessos
do comércio negreiro. Mas mesmo estes críticos não atacavam o princípio e a instituição da
própria escravidão; seus protestos ajudaram a fortalecer a causa da regulamentação. A
Igreja, assim como o Estado, acreditava que o senhor de escravos precisava de tutelagem;
proprietários de escravos da Nova Espanha podiam ser denunciados à Inquisição por
maltratarem seus escravos, e houve alguns casos assim. Os códigos escravistas das
potências católicas deram certa proteção a alguns escravos domésticos ou urbanos, mas os
grandes empreendimentos operados por escravos no campo iriam se desenvolver fora do
alcance da vigilância secular ou religiosa, e ali regulamentos benéficos para os escravos
eram letra morta.*

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A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

Na Inglaterra e na França a escravidão havia definhado sem sequer tornar-se ilegal, como
Thomas Smith ressaltaria em seu De Rzpublka Anglorum (1565). Depois de esboçar a
distinção entre escravos absolutos e servos vinculados à propriedade das terras, ele declara:
"Nem de um tipo nem de outro temos nenhum na Inglaterra. E do primeiro nunca conheci
nenhum no reino em minha vida; do segundo há tão poucos, que nem vale a pena falar.
Mas nossa lei os reconhece em ambos os tipos." A explicação de Smith para esta evolução
indica tanto a religião quanto os métodos alternativos de garantir a força de trabalho:
"Penso que na França e na Inglaterra a mudança da religião para um tipo mais gentil,
humano e igualitário [...] fez com que este velho tipo de servidão e escravidão fosse levado
a esta moderação [...] e pouco a pouco se extinguiu ao encontrar meios mais civis e gentis e
mais igualitários de fazer o que no tempo do gentio (paganismo) [isto é, na Antiguidade
pagã] fez a servitude ou o cativeiro."6 E difícil acreditar que os poderosos fossem por
natureza mais gentis e humanos na Inglaterra e na França do que em outras partes da
cristandade; no caso da Inglaterra, o feroz Estatuto dos Trabalhadores de 1349-51
certamente sugere o contrário. Portanto, é a posse de outros "meios" para o mesmo fim
(presumivelmente, o controle da mão-de-obra) que deve suportar o maior peso da
explicação para o desaparecimento da servidão e da escravidão. A revolta popular, não
mencionada por Smith, também ajudou a determinar a escolha dos meios, ainda que, como
na revolta camponesa inglesa de 1381, ela fosse derrotada ou anulada. Alguma combinação
de poder do mercado e poder do Estado poderia entregar trabalhadores sem terra nas mãos
de senhores de terras ou seus arrendatários sem necessidade do estorvo da servidão direta.
A servidão e os impostos fixos uniam os explorados; o mercado não poderia dividi-los. A
pressão popular não provocou diretamente a abolição, mas encorajou as autoridades
governantes a se apresentar como fiadoras da liberdade pessoal elementar. Semelhante a
uma muralha entre a ordem feudal e a ameaça de revolta camponesa ou a oposição urbana,
o aparato repressivo centralizado dos regimes absolutistas tornaram a servidão redundante.
A construção do absolutismo não exigiu a intensificação da servidão pessoal nem extinguiu
os privilégios particularistas. Os que propunham o poder monárquico frequentemente
desconfiavam da privatização espontânea das relações sociais quando surgiram formas de
acúmulo de capital mercantil e agrário nas formações sociais da Europa ocidental. Eles
elaboraram um modelo de realeza que deixava pouco espaço para a escravidão na
metrópole. Insistiam que o poder de custódia do soberano devia estender-se por igual sobre
todos os súditos.

Jean Bodin, um dos primeiros expoentes da nova teoria de soberania, também produziu a
que foi talvez a primeira discussão crítica da escravidão em Lês Stx Livres de Ia Republique
(Os seis livros da república) (1576). Ele ressaltou que, embora todos os filósofos
justificassem a escravidão, os advogados praticantes eram diferentes: "Os advogados, que
medem a lei não pelos discursos ou decretos dos filósofos, mas segundo o bom senso e a
capacidade do povo, sustentam que a servidão é diretamente contrária à natureza." As
observações de Bodin sobre este tópico foram diretamente inspiradas pela tradição
municipal francess do affranchisement. Ele assinalou a sabedoria dos reis franceses quando
baniram as variedades mais duras de servidão e insistiu que, em vista das crueldades e
perigos a que a escravidão poderia dar vida, seria "muito pernicioso e perigoso" permitir
sequer que escravos entrassem no país. Em uma época em que a França não conseguira
estabelecer colónias no Novo Mundo, Bodin atacou a escravidão praticada por Espanha e
Portugal no Novo Mundo, mas não mencionou o uso de escravos nas galés francesas.7 A
condição de escravo formalizara e acomodara anteriormente a presença de estrangeiros ou
de pessoas que não tinham nenhum direito de berço e que eram inteiramente absorvidas
pela casa de seu proprietário. A recusa de admitir esta condição assinalou o nascimento de
uma nova consciência civil que não combinava com a escravidão. O Parlamento inglês foi
convencido a aceitar a escravidão como uma punição por mendicância em 1547, mas
abandonou a lei sob protesto popular. Um famoso julgamento inglês de 1567 impediu que
um viajante trouxesse um servo da Rússia, com base em que "o ar da Inglaterra era livre
demais para um escravo respirar". O culto francês da liberdade civil não era menos vigoroso.
Em 1571 o Parlement de Guyenne descreveu a França como "mãe da liberdade" e declarou
que a escravidão não poderia ser ali tolerada. Quando um capitão holandês trouxe uma
carga de escravos africanos para Middleberg em 1596, a municipalidade obrigou-o a libertá-
los. O Grande Conselho de Mechlin declarou, no início do século XVII, que todos os escravos
levados a Flandres pelos espanhóis seriam libertados assim que chegassem.8 Os que
primeiro propuseram a colonização americana, como Walter Raleigh ou o holandês
Usselinx, insistiram que se baseasse na imigração livre. A revolta holandesa, a convocação
do Estates General francês em 1618 e a Guerra Civil inglesa deram azo para a reafirmação
das liberdades metropolitanas. Uma condenação da Câmara Estrelada inglesa em 1640 citou
a decisão judicial contra a escravidão de 1567, e constitui seu único registro escrito a
sobreviver até os nossos dias. Um membro do Parlamento inglês, ao atacar a venda de
realistas cativos como servos

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contratados em 1659, declarou com indignação: "Somos o povo mais livre do mundo." Em
semelhante estado de espírito, o bispo de Grenoble descreveu a França em 1641 como "a
monarquia mais livre do mundo", enquanto Massilon declarava que os monarcas deviam
lembrar-se: "Não governais sobre escravos, governais uma nação livre e inflamada, tão ciosa
de sua liberdade quanto de sua lealdade." A celebração da liberdade inglesa e francesa
tinha um elemento de mitificação, mas pelo menos tais mitos atendiam ao antiescravismo
popular.9 A escravidão do Novo Mundo desenvolveu ferocidade, escala e focos novos.
Como observamos na Introdução, era imensamente económica em seu caráter, e logo
recaiu exclusivamente sobre os de ascendência africana. A escravidão dasplantations da
América, embora mal constestada por outros que não fossem os próprios escravos,
despencou sobre a vida de milhões de cativos com um implacável frenesi comercial. O Novo
Mundo não reproduziu simplesmente as características anteriores da escravidão na Europa,
no Mediterrâneo ou na África. Provocou o que poderia ser chamado de degradação da
escravidão, ao violar em escala maciça até as noções tradicionais do que significava a
escravidão. Na maioria das formações sociais escravistas anteriores à escravidão fora ao
mesmo tempo uma instituição marginal e variada: os escravos não haviam sido
concentrados totalmente nas ocupações mais árduas e desprezíveis. Mas quando os
sistemas escravistas se estabeleceram no Novo Mundo, tornou-se impossível conceber uma
escravidão "honrada"; não havia administradores nem soldados escravos, e muito poucos
reconheciam as concubinas escravas. Sob o ímpeto da explosão atlântica, a escravização
intensificou-se e acumulou-se. A escravidão tinha uma nova permanência. Em muitas
formações sociais a escravidão fora um meio para que indivíduos estrangeiros se
incorporassem à sociedade que os recebia, com a perspectiva de que eles ou seus filhos
acabariam por sair da escravidão. A grande maioria dos escravos afro-americanos estava
destinada a morrer na escravidão, assim como seus filhos; a perspectiva era especialmente
ruim para os escravos no campo e os escravos nas colónias inglesas. Apesar de seu
moralismo intenso e radical, os protagonistas da revolta holandesa e da Commonwealth
inglesa aceitaram e promoveram a escravidão negra nas Américas. No período 1630-1750 o
Império Britânico testemunhou uma repulsa "egoísta" cada vez mais clamorosa, e até
mesmo obsessiva, à escravidão, ao lado de uma exploração quase incontestada do cativeiro
de africanos. Assim, John Locke, que possuía ações da Real Companhia Africana, justificava a
escravidão como um meio de salvar os africanos de um destino ainda pior. Mas quando
escreveu sobre seu próprio país em Two Treatises of Government, ele declarou sem rodeios:
"A escravidão é um Estado do Homem tão vil e miserável, e tão diretamente oposto ao Tem-

A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

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peramento Generoso e ao Espírito de Nossa Nação, que mal se pode conceber que um
Inglêsy muito menos um Cavalheiro, possa defendê-la."10 Locke aqui atacava a filosofia
política patriarcal de Filmer, discípulo de Bodin e defensor da autoridade monárquica; não
tinha a intenção de desafiar a adequação da escravidão de plebeus africanos. O próprio
processo pelo qual se criaram as novas colónias escravistas refletia a repulsa popular pela
escravidão e a facilidade com que podia ser mantida dentro de limites etnocêntricos.
Trabalhadores contratados ingleses e irlandeses ouengagés franceses não poderiam ser
maltratados como um escravo por causa da solidariedade que despertariam entre os
colonos livres. Como os africanos cativos eram estrangeiros, pagãos e negros, os colonos
livres estavam menos inclinados a identificar-se com eles. As identidades seculares e civis
tendiam a ser mais exclusivas e locais do que as ideologias religiosas que substituíram. Mas
eram também mais intolerantes às exigências do senhor de escravos, que poderia com
facilidade dominar outros cidadãos. A maioria dos colonos ingleses e franceses na América
tropical e subtropical lá chegaram como trabalhadores não-livres. Mas seus contratos de
servos ouengagés lhes ofereciam alguma proteção; com frequência os senhores foram
levados à justiça por seus servos ou por amigos de seus servos, algo que dificilmente
aconteceria no caso dos escravos. O servo inglês ou francês tinha direitos, como súdito, que
não poderiam ser reivindicados pelo africano cativo. Servos ou engagés também estavam
em melhor posição para fugir; suas chances de não serem detectados em áreas de povoação
colonial com certeza eram bem maiores que as dos negros. Os europeus dessa época não
tinham os conceitos raciais de uma época colonial posterior, mas preferiam ver os negros no
trabalho mortal dzsplanfaíions do que executá-lo eles mesmos.11 No final do século XVII
alguns viajantes às novas colónias do Caribe recordaram seu choque frente ao tratamento
desumano dos negros, tais como George Fox, o quacre, ou Aphra Behn, a escritora. Mas
seus comentários não constituíram oposição consequente à própria ideia de escravidão. Fox
instou os senhores a tratarem seus escravos com cuidado e consideração, caso se
importassem com suas almas imortais; sugeriu que trinta anos de trabalho levassem à
manumissão. A novela Oroonoko (1688), de Aphra Behn, condenava especificamente a
escravização de um príncipe africano que, como Behn deixou bem claro, estava à parte de
sua raça; ele instiga uma revolta cujo fracasso, sugere-se, derivou da natureza subserviente
daqueles que ele tentava sublevar. Tanto Fox quanto Behn ficaram ultrajados com a
desumanidade dasplantations sem ainda ver além da escravidão, mistura que ecoou em
algumas cartas e diários particulares, em atos isolados de caridade e na precária tolerância
às vezes concedida a um pequeno número de negros e negras libertos. Conforme de-

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senvolveu-se um núcleo de escravos responsáveis, de escravos crioulos e de convertidos ao


cristianismo, a definição racial de escravidão tornou-se mais pronunciada; mas este
amadurecimento das sociedades escravistas caminhou de mãos dadas com a consolidação
dos interesses materiais dos senhores.12 Na Introdução, foi observado que a escravidão
racial do Novo Mundo impôs um dilema especialmente agudo às pessoas livres de cor. Os
primeiros desafios à escravidão e ao tráfico negreiro vindos daí foram oriundos do Império
Português; eram ao mesmo tempo mais persistentes e mais eficazes do que o questiona
mento anterior e isolado dos padres espanhóis. Nos anos 1684-6, o Santo Ofício recebeu
várias petições que atacavam a brutalidade do comércio de escravos e protestavam contra a
"escravização permanente" que caía sobre os descendentes dos africanos levados para o
Novo Mundo, até mesmo daqueles que eram cristãos e "brancos". O mulato brasileiro
Lourenço da Silva de Mendonça redigiu e apresentou vários destes protestos; ele era o
procurador leigo de uma das irmandades religiosas permitidas a negros e mulatos, livres e
escravizados, do Brasil e de Lisboa. Tais protestos receberam o apoio da Ordem dos
Capuchinhos, ativos na busca de conversões no Congo, que demonstrou que poucos
africanos vítimas do comércio negreiro podiam ser considerados como escravizados de
forma justa. Em março de 1686 o Santo Ofício aprovou a condenação da forma pela qual era
conduzido o comércio de escravos em uma resolução que parecia abrangente. Não só não
havia sanção, tal como a excomunhão, prevista para os mercadores de escravos, como a
própria resolução tornou-se letra morta e não foi novamente mencionada por mais de um
século. O engavetamento da resolução é explicado em uma minuta de um secretário de
Estado do Vaticano, que ressaltou que o comércio de escravos era uma fonte de receita e
um interesse imperial vital para as Mui Católicas Majestades os Reis de Espanha e
Portugal.I3 O apoio momentâneo do Vaticano aos protestos de Lourenço de Mendonça
podem ter ajudado a inspirar a promulgação do Code Noir francês em 1688. A
regulamentação era a solução preferida pelo absolutismo aos excessos do crescimento dos
novos sistemas escravistas. Sob os termos do código de Luís XIV, as pessoas livres de cor
tinham de partilhar os mesmos direitos dos outros colonos. Tanto esta cláusula como outras
favoráveis aos negros seriam desrespeitadas com frequência, às vezes com a conivência
ativa de administradores reais, à medida que se acelerou o ímpeto do desenvolvimento
fasplantations. Se os horrores do comércio de escravos se multiplicavam no final do século
XVLT e início do XVIII, o mesmo acontecia com o lucro dos que se envolviam com ele. Isto
certamente ajuda a explicar por que os poucos e espaçados protestos iniciais

A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848


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foram desprezados e ignorados. Mas também é preciso terem mente que os protestos eram
limitados pelos próprios termos em que foram expressos. Em vez de rejeitar a raiz e os
ramos da escravidão, focalizavam preocupações pastorais — o tratamento dos escravos, em
especial se convertidos reais ou potenciais ao cristianismo—ou os perigos morais de ser um
dono de escravos. Até mesmo a crítica mais veemente da escravidão na época tendia a
comprometer seus pontos de vista e a enredar-se no seguinte dilema: ou aceitavam a
ordem estabelecida, e neste caso defendiam uma melhora pastoral das condições de vida
do escravo em vez da derrubada da escravidão ou rejeitavam o rei e a Igreja em nome de
uma esfera privada, e neste caso a moralidade da posse de escravos tornava-se um caso de
consciência individual. O antiescravismo radical exigia a existência de um espaço público
secular e o preparo para argumentar que até um senhor de escravos completamente
piedoso e humano estaria cometendo uma injustiça. Na Pensilvânia, os quacres tinham
responsabilidades seculares que obrigaram quatro Friends* de língua holandesa de
Germantown a encaminhar uma censura severa a uma reunião na Pensilvânia em 1688. A
petição de Germantown é, entre os antigos protestos, o que chega mais perto de um ataque
radical à escravidão, embora mesmo aqui a questão seja vista, provavelmente, como caso
de consciência pessoal de um pequeno grupo de correligionários: Diz o ditado que devemos
fazer a todos os homens o que faríamos a nós mesmos, sem distinção de nascença,
ascendência ou cor. E aqueles que roubam ou furtam homens, e aqueles que os compram
ou adquirem, não são eles todos semelhantes? Aqui há liberdade de consciência, o que é
certo e razoável; aqui deveria haver da mesma maneira liberdade de corpos, exceto dos
malfeitores, o que é outro caso. Mas trazer homens para cá e roubá-los ou vendê-los contra
sua vontade, somos contrários. Na Europa há muitos oprimidos por motivo de consciência; e
aqui há oprimidos que são de cor preta [...] Isso depõe contra todos aqueles países da
Europa, onde se ouve dizer que vós, quacres, aqui tratam os homens como lá se trata o
gado [...] Caso esses escravos (que dizem ser homens tão perversos e estúpidos) pudessem
se unir — lutar por sua liberdade -— e tratar seus senhores e senhoras como eles antes os
trataram; tomariam nas mãos a espada esses senhores c senhoras para guerrear contra
esses pobres escravos (...) não têm esses negros tanto direito de lutar por sua liberdade,
como tendes de mante-los como escravos?14

•Membros da SSocicty of Friends, Sociedade de Amigos, doutrina cristã criada em 16ÍO por
George Fox; o termo quaker (qua never shall be slavef ("Dominai, Britannia, dominai as
ondas/ Bretões jamais, jamais, jamais serão escravos.") Em outro registro, os acordes
emocionantes dos magníficos oratórios de

ROBIN BLACKBURN

A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

Handel encorajaram um tipo de religiosidade secular que combinava autoconfiança com


responsabilidade. O novo senso de um destino secular nacional recebeu sua expressão
militante na ideologia do "patriotismo", que gabava as glórias da Grã-Bretanha, sua
constituição e suas liberdades. A vocação marítima e imperial da Grã-Bretanha era o tema
patriótico predileto; recebeu expressão notável na oratória parlamentar de Pitt, o Velho, nas
décadas de 1730 e 1740, que levou à guerra com a Espanha e a França e denunciou a
corrupção confortável da "robinocracia" de Walpole. O engrandecimento imperial podia
serviste como causa popular porque prometia facilitar a emigração, encorajar o
desenvolvimento colonial, promover a exportação de manufàturas e impulsionar o
fornecimento de produtos dasplanlalians. O embaixador da França em Londres, no final da
década de 1730, ficou impressionado com o feto de que artesãos e trabalhadores humildes,
assim como pares do reino, uniram-se no grito pela guerra contra a Espanha para garantir e
ampliar o império britânico na América. E ficou alarmado com a capacidade dos patriotas de
criar discussões, distorcer questões complexas e manipular o preconceito popular. A * War
ofjenkitf s Ear" foi o primeiro fruto deste novo tipo de agitação patriótica.7 O patriotismo,
arraigado como estava nas pretensões e na identidade do "inglês nascido livre", era uma
ideologia que apelava para a ala radical e expansiva da oligarquia, e ajudou a fornecer-lhe
seguidores. Alegava representar interesses e aspirações populares. Mas a oposição dos
tories e membros do "partido agrário" deram sua própria contribuição à invenção do
patriotismo e da ideologia social do "inglês nascido livre". O líder tory Bolingbroke elaborara
uma teoria de oposição patriótica que se tornou corrente nas décadas de 1730 e 1740. Para
quem por algum tempo foi um legitimista, o patriotismo de Bolingbroke era um eco curioso
do republicanismo renascentista de Maquíavel: atacava a corrupção dos governos
hanoverianos, como uma ameaça à liberdade inglesa e à virtude cívica. Bolingbroke e os
tories articularam a desconfiança âogentkman do campo para com Westmínster e o caro
envolvimento nas guerras europeias. Mas os próprios tories representaram um papel na
consolidação da orientação imperial e marítima da política britânica e do Estado britânico;
patrocinaram a estratégia de "mar aberto" durante a Guerra da Sucessão Espanhola, vista
como alternativa mais barata e lucrativa ao envolvimento militar na Europa, e também
tiveram sua responsabilidade no Tratado de Utrecht A grande maioria dos tories não só
aceitava os hanoverianos como desejava sublinhar sua dedicação à constituição e a uma
liberdade responsável e ordeira. Assim, as virtudes peculiares da constituição equilibrada da
Grã-Bretanha seriam resumidas nas seguintes palavras de um jornal de oposição de
tendência íory, The Freeholder Journal^ em 1769:

A constituição de nosso governo inglês (o melhor do mundo) não é uma tirania arbitrária,
como a do Grão-senhor da Turquia ou a do rei francês, cujas vontades (ou melhor, desejos)
dispõem das vidas e fortunas de seus infelizes súditos; nem uma oligarquia onde o(s)
grande(s) (como peixes no oceano) caça(m) e vive(m) devorando os menores à vontade;
nem, ainda, uma democracia ou Estado popular, muito menos uma anarquia, onde todos
são, confusamente, camaradas iguais. Mas, sim, uma excelente monarquia mista ou
qualificada, onde o Rei detém grandes prerrogativas, suficientes para sustentar a
Majestade; c limitado apenas pelo poder de causar mal a si mesmo ou a seu povo [(•--)] a
nobreza adornada com privilégios para ser uma proteção para a Majestade e uma sombra
refrescante para seus inferiores, e a gente comum também, em pessoa e em propriedade
tão bem guardada pela cerca da lei, que os torna homens livres, e não escravos.'
90

Assim, até a tendência mais conservadora da ideologia dominante inclinava-se, como a frase
que aqui conclui, a adular a gente comum com o elogio da liberdade. Enquanto os ixhigs e
radicais patriotas defendiam as pretensões do povo, os whigs e tories mais conservadores
gostavam de ressaltar que a liberdade social era perfeitamente compatível com a
subordinaçãopo//íàr? au X Siècles dês Lumtères, ftris, 1971, pp. 151-60. 16. Antoine-Nicolas
de Condorcet, "Reflexions sur 1'esclavage dês nègres, 1781", em A. Condorcet O'Connor e
M. F. Arago, Clewres de Condorcet, Paris, 1847, VII, pp. 61140 (com adendo de Condorcet,
pp. 137-40). 17. Serge Daget, "A Model of the French Abolitionist Movement", em Bolte
Drescher, Afíii-S/avery, Religion and Reform, pp. 64-79, especialmente pp. 66-7. 18. Eloise
Ellery, Brissotde Waruille, Boston, 1915, pp. 182-215; a qualificação de Brissot da
propriedade acumulada como roubo é estudada em Rtcherches Philosophiqttes sur lê
DroitdePropriétéctsurle W(1780). Rira um esboço intelectual c biográfico, ver Norman
Hampson, WillandCircumstance, Londres, 1983, pp. 94-106,171-92; o anticapitaíismo deste
porta-voz burguês é observado nas pp. 186-7. 19. Davis, The Problem ofStavery in the Age
ofRevolution, p. 97. Sobre o alcance limitado das atividades dos Amis dês Noirs depois deste
entusiasmo inicial, ver Daniel P Resnick, "The Société dês Amis dês Noirs and the Abolition
of Slavery", French Hisíorical Studies, vol. 7, n°. 4t outono de 1972, pp. 529-43. 20. Gabriel
Debien, Lês Cólons de Saint-Dominguc et Ia Révoíutio», Essai sur lê Club Massiae, Paris,
1953, pp. 60-7. Gouy d'Arsy, às vezes escrito d'Arcy, era homem de riqueza considerável,
com propriedades em São Domingos no valor de 3 milhões de livres segundo Chaussinand-
Nogaret (French Nobility, pp. 56-7). No entanto, o duque d'Orléans tinha

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ROBIN BLACKBURN uma renda anual de 3 milhões de livres. Sua contribuição para a
desestabilização do regime em 1787-90 foi enorme, e o Pilais Royal tornou-se o principal
centro de agitação revolucionária em ftris. Embora seja difícil provar o papel dos maçons na
promoção da agitação revolutionária nas colónias, este parece ter sido considerável. Sobre
seu papel

em termos mais gerais, ver o clássico da contra-revolução e da "teoria conspiratória da


História", irregular, mas não totalmente incorreto, John Robison, Proofs ofa Conspiracy
againsí Ali the Religions and Governments ofEurope, Londres e Nova York, 1798. 21. Citado
em C. L. R. James, The Black Jacobins: Toussaint LOuverture and the San Domingo
Revolution, Londres, 1980 (ed. revista), p. 60. 22. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et
Ia Révolution, pp. 67-78. 23. Garrett, The French Colonial Question, p. 35. Sobre cenas
semelhantes em Guadalupe, ver Anne Pérotin-Dumon, Etre Patriotasousles Tropiques, Basse
Terre, 1985, pp. 107-36. 24. Geggus, Slavery, WarandRtvolution, pp. 34-5; J. Santoyant, La
Colonisation Française penãantla Révolution, 1789-1799, Paris 1930, 2 vols., II, p. 425;
Urnery, LaRévolution Française â Ia Martinique, pp. 21-42. 25. Ottobah Cugoano, "Reflexions
sur Ia traite et Fesclavage" (1789), reeditado em EDHIS (Editions d'Histoire Social), La
Révolution Française et VAbolition de l'Esclavage, Paris, 1968, 12 vols., X. 26. Michael L.
Kcnnedy, The Jacobin Clubs in the French Revolution: The First Years, Princeton, 1982, p.
202. 27. Garrett, The French Colonial Question, pp. 35-48; Debien, Lês Cólons de Saini-
Domingue et Ia Révolution, pp. 187-9. 28. Esta afirmativa sarcástica saiu da pena do patriota
Loustalot em Lês Révolutions de Paris e mostra que não eram só os reacionários coloniais
que davam as cartas no Clube Massiac; cf Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia
Révolution, p. 84. Outro escritor que se envolveu com este tema, embora de maneira
menos agressiva, foi Choderlos Laclos (p. 135). 29. Gairett, The French Colonial Question, p.
51. 30. Garrett, The French Colonial Question, p. 53. 31. Lémery, La Révolution Française à Ia
Martinique, pp. 80-1. 32. Georges Lefebvre, The French Revolution, Londres, 1962, p. 145.
Adiante Lefebvre observa: "As afirmações uníversalistas da Declaração de Direitos
indicavam que os homens de cor — mulatos e negros livres — iriam reivindicar seus
benefícios" (p. 172). Como a necessidade de ter propriedades para conquistar o direito de
voto, com exigências ainda mais duras para se apresentar como candidato a representante,
já tinha sido aceita, seria mais fácil ignorar os direitos civis dos escravos. Na verdade, cerca
de três milhões de homens franceses e todas as mulheres estavam privados do direito de
voto (cf. Soboul, The French Revolution, 1787-1799, p. 180). Os partidários dos Amis dês
Noirs tendiam a opor-se às exigências de propriedade, mas havia exceçoes (por exemplo, o
abade Sièves, que inventou o conceito de "cidadania ativa"), assim como havia democratas
que não simpatizavam com os Amis (por exemplo, Loustalot).

A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

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33. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, pp. 67-86. 34. James, The Black
Jacobins, pp. 73^4-. Algumas das lojas maçónicas de São Domingos, assim como na Filadélfia
na década de 1780, tinham membros de várias raças; tanto brancos quanto gens de couleur
participaram da revolta de Ogd Ogé opôs-se à sugestão de outro conspirador, Chavannes,
de convidar escravos a ajudar. Ver Jean-Philippe GarrouCoulon, Rapporí sur lês troubles de
Saint Domingue, Paris, 1797, vol. II, pp. 44-73. 35. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et
Ia Révolution, pp. 210-34; Saintoyant, La Colonisation Française pendam Ia Révolution, II,
pp. 22-32. 36. Kennedy, TheJacobin Clubs in the French Révolution, p. 82. 37. Citado em
Garrett, The French Colonial Question, p. 82. 38. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia
Révolution, pp. 262-90; Garrett, The French Colonial Question, pp. 77-97. 39. James, The
Black Jacobins, p. 75. Kennedy observa: "A escravidão era um caso económico; o direito de
voto dos mulatos, basicamente um caso humanitário. Os jacobinos das províncias podiam
ceder a suas inclinações humanitárias e apoiar esta causa com pouco perigo aparente a seus
bolsos ou aos bolsos de seus compatrícios" (The Jacobin Clubs, p. 205). A contraposição aqui
de problemas económicos e humanitários é perfeita demais, já que, como aventado antes, a
afirmação da autoridade metropolitana nas colónias também tinha vantagens económicas
no tocante aos interesses marítimos. Não só o "humanitarismo" embelezava de forma útil a
defesa do exclusif; também prometia garantir-lhe bons aliados, isto é, os próprios mulatos.
40. James, The Black Jacobins, p. 80. 41. James, The Black Jacobins, p. 81. Como o próprio
James comenta: "A escravidão [...] corrompera então a burguesia francesa no primeiro surto
de sua herança política." Debien dá o seguinte título a esta seção de sua monografia: w Le
redressement — Avec Baraave vers lê Rói (16 mai — octobre 1791)" ["A reordenação —
com Barnave pelo Rei (16 de maio — outubro de 1791)"]. Ver também Vovelle, La Chute de
Ia Monarchie, pp. 163-7. O triunvirato, para aplacar sua consciência ou a de seus partidários,
apoiou um decreto que suprimia o resto de escravidão na França poucos dias depois de
voltar atrás no caso dos direitos dos mulatos. 42. O relato tradicional aparece cm Fouchard,
The Haitian Maroons, pp. 340-41,358. Geggus cita indícios de uma reunião para planejar o
levante e admite que uma cerimónia vodu é bem plausível. Especula que o levante pode ter-
se beneficiado de uma manobra monarquista que não deu certo, embora curiosamente
conclua que, se isto for verdade, "a autonomia da insurreição escrava fica
consideravelmente reduzida" (Slavery, Warand Revolution, p. 40). Fouchard também aceita
que as tramas monarquistas para estimular a inquietação escrava eram amplas nesta época
(p. 98), embora no final os escravos tenham agido por si mesmos. 43. A carta ao governador
datada de 4 de setembro é citada em Pierre Pluchon, Tòussaint Louverture, de resclavage
aupouvoir, ftris, 1979, p. 26. O relato da morte de Boukman

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ROBIN BLACKBURN

é longamente citado em Fouchard, The Haiíian Maroons, pp. 342-3. O relatório oficial
francês sobre a revolta estimava que no final de agosto havia 12.000-15.000 envolvidos,
Garran-Coulon, Rapportsurks Troubles de Samt-Domingue, H, p. 214. 44.

us,S£nr^tfeW/fctiflkfiw^

ajudara

a promover um "pacto" entre proprietários brancos e mulatos e depois viria a ter papel
importante no planejamento da invasão britânica. Nesta época suas opiniões não eram
compartilhadas pela maioria dos proprietários àtplantations. 45. James, The Black Jacobins,
p. 106. Biassou e Jean François, mas não Toussaint, envolveram-se mais tarde como
participantes em um tráfico de escravos bastante ativo, e assim mereceram
abundantemente o desprezo de James. Ver David Geggus, "From His Most Catholic Majesty
to the Godless Republique: The Volte Fact of Toussaint Louverture and the Ending of Slavery
in Saint-Domingue". Reviu Française d'Histoire a"0uíre Mer, n°. 241, 1978, pp. 481-99, 490.
46. Carolyn Fick, "Black Peasants and Soldiers in the Saint-Domingue Revolution", em
Fredrick Krantz, HisforyFrom Below, pp. 243-61, nas pp. 245-6. Esta autora conta que a área
mantida pelos rebeldes era conhecida pelos negros como Reino de Platons. 47. Kennedy,
The Jacobtn Clubs in the French fovolution, p, 208. 48. Sobre São Domingos neste período,
ver Robert Stein, Lêger Felicite Sonthonax: Tke Lost «/ ofthe Repuèlic, Madison, 1985, pp.
39-62; Di Telia, La Rebeliân de Esclavos de Haiti, p. 83; e Geggus, Slavery, War and
Revolution, pp. 46-67. 49. Citado em Lémery, La Revolution Française à Ia Martinique, pp.
186-7. 50. Pérotin-Dumon, Être Patriote sons lês Trafiques, pp. 161-76. 51. Lémery, La
Révolution Française à Ia Martinique, p. 225. À hiz da evidente simpatia do autor pelos
proprietários átplantations franceses que colaboraram com os britânicos para salvar a
escravidão, é interessante notar que ele se tornou o primciro-ministro das Colónias do
governo de Vichy. Sobre o acordo que foi fechado, ver Lémery La Revolution Française à Ia
Martinique, p. 226, and Geggus, Slavery, War and Revolution, pp. 395-99. 52. Geggus,
Slavery, War and Revolution, p. 100.

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