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SOUZA, Laura M.

De – Desclassificados do ouro, a pobreza mineira no século XVIII

CAPITULO II: Da utilidade dos vadios

 P. 78: “ A Idade Média é um período especialmente elucidativo para quem estuda a


marginalidade, pois em seu seio se verificaram as grandes transformações que
marcaram a concepção moderna da pobreza. Durante séculos, o pobre havia sido o
pobre de Cristo, o coitadinho que merecia ajuda e com o qual a população das vilas
convivia sem escândalo. Para eles os mosteiros abriam suas portas e distribuíam seus
grãos. Nunca deixou de haver quem alertasse para a diferente entre pobres validos e
pobres inválidos – os vadios e os vagabundos sendo, via de regra, olhados com
desconfiança- , mas essa dicotomia só se tornou mais acentuada na Baixa Idade Média.
Inicialmente, os braços de Cristo se abriam para todos- não indistintamente, mas para
todos.”
 P. 78: “ Toda uma serie de mudanças estruturais começavam a solapar
irremediavelmente o sistema feudal, engendrando a pobreza e provocando uma
transformação radical na concepção que dela se tivera por todos aqueles séculos: ‘ A
miséria é filha da estrada e da cidade’. Ate então, não fora reconhecida como
problema social, pois a humanidade medieval não buscava a igualdade; a pobreza era
uma riqueza espiritual, e o pobre, um intermediário entre o rico e Deus; dai a enorme
preocupação com as esmolas, ‘economia da salvação.’”
 P. 79: “ Afinal, no século XIV, sua presença explodiu por toda a Europa – uma Europa
combalida pela Peste, pela Guerra e pela Fome. As leis inglesas e francesas de
repressão à vadiagem e de obrigatoriedade do trabalho foram a resposta mais
imediata a esse estado de coisas, a legislação e as instituiçoes de caridade se tornando,
mais do que nunca, instrumentos dos poderosos no seu confronto com a miséria. A
partir do século XIV, pois a pobreza já não pode ser considerada como um serie de
casos individuais, e os pobres se tornam numerosos demais para serem ajudados,
onerando Deus e o Estado. O trabalho e sua virtude redentora foram então
exaustivamente lembrados, citando-se, como glosa, a vida dos santos. ‘ O pobre, o
miserável, o humilhado se confrontam, implacavelmente, com essa dualidade do bem
e do mal: por um lado, representam o Cristo humilhado e, por outro, ameaçam a
ordem social.’ De enorme importância é o aparecimento, durante os séculos XIII e XIV,
de um novo tipo de pobre: aquele a quem Mollat chama ‘pobre laborioso’, o
camponês expropriado que, trabalhador, não conseguia sustentar a familia com o seu
trabalho.”
 P. 79, NOTA 6: “ ‘ Tradicionalmente, a pobreza resultava da impossibilidade de ganhar
seu pao devido à incapacidade (idade, doença), ao desemprego, ao fracasso de uma
atividade, à perda de capital. Ora, eis que surge um grupo numeroso de pessoas
excedendo uma atividade regular e no entanto insuficiente para fazê-los viver
decentemente’ – Mollat, op. Cit, p. 200. Na sociedade feudal, hierárquica ao extremo,
não havia terra sem dono, nem servo sem senhor. Christopher Hill era um dialogo de
uma peça de Middleton extremamente elucidativo a respeito das transformações
verificadas no fim da Idade Media ‘- Whose man art thou?’, pergunta uma
personagem, ao que a outra responde: ‘ I’m a servant, yet a masterless man, sir’ ‘-
How can that be?’ exclama, incrédulo, o interlocutor. Os ‘masterless men’ se
multiplicaram durante o fim da Idade Media, atingindo o numero de 13 mil no norte
da Inglaterra, em 1569.”
 P. 80: “ O home pobre expropriado não era invalido, e almejava ter acesso ao trabalho,
mas muitas vezes não o conseguia; mais do que nunca, eram claras as condições
estruturais que faziam dele um desocupado, um biscateiro intermitente e, no limite,
um mendigo, um vagabundo, um criminoso. Verificando-se no seio de uma formação
social produtora de valores de uso, a expansão do setor mercantil provocava a
dissolução gradativa dos laços servis e libertava um numero de pessoas superior à
capacidade de absorção do sistema. Tornaram-se fluidas as fronteiras entre o mundo
do crime e o mundo do trablho: trabalho obrigatório para todo o homem pobre valido,
integrante não mais da legião dos ‘coitadinhos de Cristo’, mas da ‘classe perigosa’ que
começava a assombrar as cidade e os burgos no outono da Idade Media.”
 P. 81: “ ‘ Tolerava-se o mendigo, mas odiava-se o vagabundo’, diz Mollat, referindo-se
a esse momento histórico em que começava a se esboçar um lei moral do trabalho.
Definida como ausência de domicilio ou como o morar em toda a parte, a
vagabundagem e a itinerância eram incomodas numa sociedade em que as relações
pessoais ainda tinham muito peso e para a qual o fato de o individuo não poder se
ligar a ninguém e por ninguém poder ser reconhecido eram sinais extremos de
isolamento. Elemento irregular e instável, carente de vínculos, o vagabundo ‘trabalha
às vezes, mendiga com frequenia, rouba se aparece a ocasião, e pode ser
incidentalmente arrastado para a criminalidade e deliquencia, mas ele não é nada
disso de uma maneira estável’.”
 P. 82: “ A utilização compulsória da força de trabalho (dos vadios- complementos
meus) aparece também em Castela, em 1395, quando os particulares são autorizados
a prender vagabundos e fazê-los trabalhar em suas terras por um mês, sem que por
isso recebam salario. Ao fazer com que os vagabundos e delinquentes embarcassem à
força nas galeras, Jacques Couer introduzia, em 1453, o que a partir de então seria o
castigo clássico desse indivíduos: as galés. Como no resto da Europa, foi no século XIV
que as preocupações das autoridades e dos governantes portugueses acerca da
obrigatoriedade do trabalho se cristalizaram em leis repressivas que, também como
nos outros lugares, visavam sobretudo aos mendigos e aos vagabundos.”
 P. 83: “ Já no inicio do século XIII, um diploma régio mandava perseguir os vadios,
proibindo os desprovidos de bens de raiz, de senhor ou de ocupação idônea de
habitarem o reino. Em 1349, quando governava Portugal o rei Afonso IV, foi expedido,
a 3 de julho, um documento que procurava limitar o numero de ociosos e impedir os
abandonos de trabalho, a viagem e a mendicância de que se queixavam as cidades;
estas deveriam expulsar os vadios, proibindo-lhes o acesso aos hospitais e punindo os
que os acolhessem. (...) Por fim, em 1375, vinha à luz a celebre Lei das Sesmarias,
coroamento do esforço então dispendido por D. Fernando para incrementar a
agricultura e aumentar o numero dos trabalhadores rurais em Portugal. Para esse fim,
compelia ao trabalho agrícola os ociosos, os vadios e os mendigos validos.”

CAPITULO 02: O IMPERIO COLONIAL, ERGASTULO DE DELINQUENTES

 P. 84: “ De fato, as conquistas marítimas tiveram um papel muito importante na


absorção dos mendigos e vagabundos da metrópole, muitas vezes recrutados à força
para fazerem serviço militar nas possessões de além-mar. A jurisprudência selvagem
de Portugal no Antigo Regime sentenciava multidões de pequenos larápios e outros
infratores com prisão e exilio: todo navio que partia para o Brasil, India ou Africa trazia,
sobretudo a partir do século XVII, a sua quota de degredados.”
 P. 85: “ Nas Cortes de Almerim de 1544 pediram os procurados de Lisboa que o
monarca mandasse fazer de seis em seis meses ‘correiçao de patifes e homens vadios,
sem oficio nem senhor com que viviam, e sejam presos e embarcados para o Brasil.’”
 P. 86: “ Se vadios, mendigos e toda espécie de pobres pulularam em Portugal no
período compreendido entre a consolidação da dinastia de Avis no poder e o florescer
do Imperio Colonial, as condições internas do pequeno reino não favoreceram a sua
diminuição. (...) Culpados de crimes como vagabundagem eram sentenciados ao
degredo para Mazagão, no Marrocos, enquanto os envolvidos com ofensas mais
graves seguiam deportados para o Maranhao, Brasil e Cachéu. A partir ddo momento
em que existiram colonias, o estado mercantilista europeu se encarregou de
propulsionar seu povoamento com uma grande parcela de elementos socialmente
desclassificados. Por toda a Europa presenciou-se o recrutamento forçado dessa
gente, emigração que, no dizer de Eric Williams, ‘condizia com as teorias mercantilistas
da época que preconizavam vigorosamente que se pusesse o pobre no trabalho
industrioso e útil e se favorecesse a emigração, voluntaria ou involuntária, a fim de
aliviar a proporção de pobres e achar ocupações mais proveitosas no estrangeiro para
os ociosos e vagabundos da metrópole.’”
 P. 87: “ Parte considerável da mão-de-obra recrutada para o povoamento das colonias
norte-americanas foi abarcada pelo sistema de servidão temporária: o individuo
assinava um contrato em que se comprometia a trabalhar por tempo determinado
(entre 5 e 10 anos), recebendo em troca, a passagem, a manutenção de sua
subsistencia e, no fim do contrato, um pedaço de terra ou uma indenização em
dinheiro. (...) Ainda para Eric Williams, a servidão branca teria sido o sistema sobre o
que se montou o trafico de escravos: ‘base histórica em que se ergueu a escravidão
negra’”

CAPITULO 3: Brasil – estrutura econômica e processo de desclassificação social

 P. 87: “ Mais ainda, os mecanismos de que lançava mao o Velho Continente para, uma
vez descoberto o Novo Mundo, minorar o onus representado pelos pobres
improdutivos e, simultaneamente, povoar as colonias que se iam formando.”
 Sistema Colonial da Época Mercantilista
o Enraizamento da escravidão
o Agro-industria com objetivo de exportação de gêneros comerciáveis no
mercado externo (plantação de cana de açúcar)
o O objetivo da colonia na época mercantilista era dar a maior quantidade de
lucros à Metropole, assim como propulsionar a acumulação de capital através
do monopólio comercial e da utilização do trafico negreiro.
 O trafico negreiro baseava seus lucros em dois conceitos. O primeiro
foi a superexploração da forma de trabalho compulsório-limite; o
segundo, pelas vantagens comerciais do trafico (abertura da colonia
para um novo setor de comercio externo de importação, sendo que o
lucro da escravizaçao de africanos fluía para a metrópole)
o Autonomia econômica metrópole sobre as colonias
o A exploração colonial se apoia sob a grande propriedade agrícola e sob o
escravismo.
 P. 90: “ (...) nas suas linhas gerias, tratava-se de uma colonia de exploração destinada a
produzir gêneros tropicais cuja comercialização favorecesse ao máximo a acumulação
de capital nos centros hegemônicos europeus. Uma economia de bases tao frágeis, tao
precárias, centrada na grande propriedade agrícola e na exploração em larga escala,
estava fadada a arrastar consigo um grande numero de indivíduos, constantemente
afetados pelas flutuações e incertezas do mercado internacional. Ao mesmo tempo,
impedia que os desprovidos de cabedal tivessem acesso às fontes gerados de riqueza.
Por sua vez, o escravismo desempenhava neste processo um papel igualmente
importante, bloqueando na maior parte das vezes as possibilidades de utilização da
mao-de-obra livre, limitada assim aos interstícios que, por um motivo ou por outro,
não podiam ser ocupados pelo trabalho escravo. Mais ainda: esteio da economia e
principio articulador da sociedade, o escravismo gerava uma desqualificação do
trabalho aos olhos do homem livre ,e provocava, no escravo recém-egresso do
cativeiro, uma situação bastante peculiar e que não raro assumia as características de
um verdadeiro deslocamento. Mesmo assim, o numero dos homens livres e libertos
aumentou muito no decorrer do período colonial.”
 P. 91: “ No decorrer do processo de colonização, os extremos da escala social
continuaram a ser claramente configurados, mas a estrutura da sociedade foi se
tornando mais complexa devido ao aumento da ‘camada intermedia’, cuja indefinição
inicial foi, aos poucos, assumindo o caráter de desclassificação. A camada dos
desclassificos ocupou todo o ‘vacuo imenso’ que se abriu entre os extremos da escala
social, categorias ‘nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonizaçao’. Ao
contrario dos senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social
configurada, caracterizando-se pela fluidez , pela instabilidade, pelo trabalho
esporádico, incerto e aleatório. Ocupou as funções que o escravo não podia
desempenhar, ou por ser antieconômico desviar mao-de-obra da produção, ou por
colocar em risco a condição servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e
policiamento (capitão-do-mato, milicias e ordenanças), e funções complementares à
produção (desmatamento ,preparo do solo para o plantio)”
 P. 92: “ Mas há diferenças básica entre a concepção de desclassificado na Europa pré-
capitalista e no Brasil colonial: lá, a inadaptação a formas sistemáticas de exploração
do trabalho pode ser explicada pelo nascimento da sociedade capitalista que
desestruturou o trabalho de caráter coletivo dos servos feudais; aqui, são o escravismo
e a necessidade da superexploração os principais responsáveis pelo aviltamento do
trabalho (...) Nas metrópoles e nas colonias, é o momento de gestação do
capitalismo.”
 P. 92: “ A noção de trabalho vigente na colonia é importante para a compreensão de
outra peculiaridade nossa: a extensão que entre nos assume a expressão vadiagem e a
categoria vadio. Mais do que na Europa pré-capitalista, o vadio é aqui o individuo que
não se insere nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato, a
designação podendo abarcar uma enorme gama de indivíduos e atividades
esporádicas, o que dificulta enormemente uma definição objetiva desta categoria
social. (...) O vadio é aqui o individuo não inserido na estrutura de produção colonial, e
que pode, de um momento para o outro, ser aproveitado por ela.”
 P. 93: “ E ainda em Antonil , a palvra adquire nova cor: ‘ Os vadios que vao às minas
para tirar ouro não dos ribeiros, mas dos canudos em que o ajuntaram e guardam os
que trabalham nas catas, usaram de traições lamentáveis e de mortes mais que cruéis,
ficando estes crimes sem castigo’. Este vadio é, portanto, criminosa e ladrão.”
 P. 93: “ Estes vadios são, portanto, indivíduos que, ao que parece, formulam com
clareza a sua resistência ante o Estado, insistindo na persistência do localismo.”
 P. 95: “ Trabalhador esporádico, homem desprovido de dinheiro, criminoso, ladrão,
sublevado, revoltoso e ate mesmo dissidente, eis algumas das conotações assumidas
pela personagem do vadio colonial. Apesar de imprecisão, pode-se, na maior parte das
vezes, identificar vadio e homem pobre expropriado, mesmo que para isto seja
necessário uma leitura cuidadosa das fontes. O que torna flagrante a partir dessa
leitura é, entretanto, o destaque especial dado ao termo designativo da infração e da
desclassificação, o que já fora apontado acima quando se constatou o uso que dessa
palavra se faz nas leis portuguesas.”
 Vadio = desclassificado social
 P. 95: “ Elemento vomitado por um sistema que simultaneamente o criava e o deixava
sem razão de ser, vadio poderia se tornar o pequeno proprietário que não conseguia
se manter à sombra do senhor de engenho; o artesão que não encontrava meio
propicio para o exercício de sua profissão; o mulato que não desejava mourejar ao
lado do negro – pois não queria ser confudido com ele – e que não tinha condições de
ingressar no mundo dos brancos; vadio continuava muitas vezes a ser o que já viera de
além-mar com esta pecha; o criminoso, o ladrão, o degredado em geral. À sua volta
formava-se um ciruclo vicioso: a estrutura econômica engendrava o desocupado,
impedindo-o de ter atividades constantes; o desocupado, desprovido de trabalho
tornava-se oneroso ao sistema. Aparentando-se com os componentes do exercito
industrial de reserva, o desclassificado se engastava, entretanto, num contexto
proprio: o do escravismo.”

CAPÍTULO 4: O processo de desclassificação nas Minas

 P. 96: “ Como já foi visto no capitulo anterior, a mineração se estabeleceu sob o signo
da pobreza e da conturbação social, marcando-a sobretudo o enorme afluxo de gente
que acudiu ao apelo do ouro e cuja composição social se apresentava bastante
heterógena. Mais do que em qualquer outro ponto da colonia, foi grande nas Minas a
instabilidade social, a itinerância, o imediatismo, o caráter provisório assumido pelos
empreendimentos.”
 P. 96: “ De fato, a empresa mineira era transitória e itinerante, caracterizando-se pelo
baixo teor de capital fixo e pela capacidade de deslocamento em tempo relativamente
curto. A exploração aurífera obedecia, no seu desenvolvimento, ao lucro mais
imediato: voltava-se inicialmente para o ouro depositado no fundo dos rios (aluvião),
depois para o ouro depositado nas encontas (grupiaras) e, finalmente, para os veios
subterrâneos (galerias). Nesse contexto, era a fase incial a que maiores lucros
apresentava.”
 P. 97: “ Os resultados imediatos desse procedimento eram, por um lado, o
desenraizamento constante da população e, por outro, a fome que, conforme se viu
no capitulo anterior, assombrava a empresa mineradora.”
 P. 99: “ Na mineração, como de resto em qualquer atividade primordial da colonia, a
força de trabalho era basicamente escrava, havendo entretanto os interstícios
ocupados pelo trabalho livre ou semilivre. Dificilmente o homem livre destituído de
recursos vultosos poderia se manter como proprietário, sobretudo em Minas, região
que, apesar de tida tradicionalmente como rica e democrática, apresentava
possibilidade favoráveis apenas a um pequeno numero de pessoas.”
 P. 101: “ A principal resposta do homem livre pobre ante a situação foi ,ao que tudo
indica, o garimpo e a faiscagem, que mal dava para subsistencia. Os ‘homens
faiscadores’ trabalhavam nos rios com uns poucos escravos, e muitos deixavam esse
tipo de atividade por não poderem se manter, nem a seus negros.”
 P. 103: “ Não se minerava sem escravos, e estes eram custosos, além de morrerem em
grande numero no serviço insalubre das lavras. Carentes de mao-de-obra, os mineiros
com frequencia faziam os trabalhos de maneira inadequada, entulhando canais que
ainda poderiam ser uteis: ‘ Deste modo as terras de mineração em poucos anos se
tornam inúteis; e os mineiros sucumbem aos miseraveis efeitos da indigencia’”

CAPITULO 05: AS VARIAS FORMAS DA UTILIDADE DOS DESCLASSIFICADOS

 Repressão dos vadios através da utilidade


 P. 111: “ É claro o motivo que norteia a adoção dos desclassificados como
componentes adequados para entradas e expedições sertanistas: o enveredar pelo
mato apresentava enorme tentação para os cativos, que, em situações semelhantes,
buscavam a fuga e a liberdade. Alem disso, era oneroso à economia colonial afastar
um negro minerador de sua faina diaria. Assim, dentro da colonia setecentista, as
Minas apresentaram feição peculiar: situadas na região central, foram, de certa forma,
o resultado das entradas e bandeiras, que levavam um grande numero de
desclassificados. A desclassificação seria, pois, particularmente intensa naquela região,
que se constituiu assim numa amostragem privilegiada do fenômeno ao mesmo tempo
em que aliviou as outras regiões dos seus elementos indesejados, funcionando como
uma ‘valvula interna’”
 P. 113: “ D. Rodrigo Jose de Menezes pensou em aproveitar economicamente o Cuieté
com atividades outras que a mineração: a extração de madeiras e o cultivo de
algodoeiros. Para tal, ordenou aos comandantes distritais que enviassem os vadios que
conseguissem apanhar para a cadeia de Vila Rica, onde, na formulação feliz de Diogo
de Vasconcelos, ‘ escolheriam ou a farda para o Rio Grande, ou a foice para o Cuieté’.
O historiador mineiro considerava ótimo o sistema de utilização deste tipo de mao-de-
obra: ‘ Porque, primeiro, separava da sociedade sã a parte corrompida que pervertia a
mocidade; segundo, utilizava os ociosos em matéria de serviço publico; terceiro,
aumentava as receitas da coroa, aliviando em geral as quotas da derrama.’”
 P. 114: “ Para o trabalho em obras publicas sempre foi comum o emprego dos
desclassificados.”
 P. 115: “ A utilidade da lavoura não vinha apenas do fato de ser a capitania das Minas
abastecida em sua maior parte por gêneros vindos de fora, mas está sobretudo ligada
ao fato de o trabalho da terra ser, a partir de uma determinada época, encarado como
trabalho por excelência, a base solida sobre que deveria se apoiar a economia. Sendo
assim, nada melhor do que ele para redimir o desocupado do vicio da ociosidade. Em
1734, o conde das Galvêas lançava uma ordem segundo a qual os vadios não seriam
consentidos, obrigando-se-lhes ‘a servir na cultura das terras’ mediante pena de
expulsão da capitania.”
 P. 116: “ Em 1818, já no fim do período colonial, Jose Inacio do Coito Moreno enviou
ao rei um plano para melhorar a agricultura da capitania e nela empregar os vadios. O
Conselho Geral da Provincia continuaria a perseguir a ideia do aproveitamento dos
vadios sentado a 15 de dezembro de 1831.”
 Os vadios também eram utilizados como guarda pessoal.
 P. 117: “ Inumeros vadios, que eram parasitas nas fazendas, tinham-se por guarda-
costas e espias dos proprietários. (...) A paranoia existia; não era criada de fora para
dentro, mas correspondia a algo profunda, inerente ao sistema.”
 P. 117-8: “ O aventurar-se num sertão inóspito, desconhecido e cheio dos nativos da
terra era uma empresa arriscada; muitos o faziam tendo em vistas a riqueza rápida
que dai poderia advir, recrutando vadios, criminosos e toda a sorte de infratores para
engrossarem a expedição. Por outro lado, dada a dificuldade de la chegar o braço da
Justiça, a paragem longínqua era atraente ao perseguido pela lei. Sob coação ou por
livre e espontânea vontade, os desclassificados – eles mesmos, fimbria da sociedade-
se localizaram com frequencia na fronteira geográfica, nas zonas remotas que, muitas
vezes, eram alvo da disputa de duas ou mais capitanias, que brigava pela sua
jurisdição.”
 P. 118-119: “ (...) caso, as autoridades vissem nesses elementos a possibilidade de
serem uteis, agrupavam-nos e os enviavam para o Sul, grande sorvedouro de
desclassificados por todo o século XVIII devido à questão fronteiriça da colonia do
Sacramento (...)”
 P. 119: “ As milicias coloniais lançaram mao com muita frequencia do recrutamento de
desclassificados. Segundo um historiador mineiro, ‘ o aproveitamento mais útil desses
viciosos foi na organização de verdadeiros corpos de tropa’”
 P. 122: “ A 18 de novembro de 1773, era expedida uma ordem aprovando a
organização de uma tropa de pedestres destinada a reprmir os ataques de botocudos
e prender escravos fugidos; compunham-na vadios e facinorosos.”
 O tropeiro como homem formado por esse esforço de habilitação de mao de obra
ociosa.
 P. 128-9: “ Os homens laboriosos – a quem se opõem os desclassificados ,- não podiam
suportar ‘ o peso enorme da parte dos vadios’ – ‘gente volante, ou, como lhe chamam,
de pé ligeiro’ -, que por incomodar a manutenção e romper o equilíbrio dos negócios,
devia ser posta para trabalhar. So assim se poderia evitar que o ócio sobrepasse o
trabalho, perturbando o funcionamento da economia, o rendimento dos quintos, o
sossego da sociedade. A gente forra e pobre, estigmatizada pela escravidão, poderia
ter ‘a louca opiniao’ de que não devia trabalhar, mas logo lhe caiam em cima os
agentes do recrutamento, os potentados em busca de asseclas, os proprietários de
fazendas em busca de jornaleiros, as autoridades administrativas que, para maximizar
os luvros metropolitanos, superexploravam tanto o trabalho escravo como o trabalho
livre. ‘ Ruina dos Estados’, ‘canalha indomita’, ‘gente ocioso que so servia para
consumir viveres’, a Coroa entretanto se lembrava deles nas horas de aperto, tivessem
sessenta o ate cem anos. E la iam eles, nus, doentes, mancos, sujos, alquebrados,
argamassa necessária à consolidação das fronteiras, à continuidade do mando, à
manutenção do sistema colonial.”
 P. 129: “ A estrutura da economia mineira, mais aberta e diversificada, propiciou
condições – mesmo que limitadas- para o aproveitamento desse homens, fazendo com
que o onus dos vadios se metamorfoseasse em utilidade. Essa metamorfose não era,
entretanto, irreversível: de um momento para outro, podia-se novamente sentir o
peso dos vadios aproveitados quase sempre em tarefas secundarias; a exploração
colonial seguia sem eles, mas eles faziam parte da exploração colonial, eram por ela
gerados e colaboravam para sua manutenção.”
 P. 129-130: “ Assim, não se pode dizer que fossem dispensáveis à persistência da
produção e da sociedade escravista: imbricados em seu seio, preenchendo os
interstícios deixados pelo trabalho escravo, contribuíram para a construção,
manutenção e derrocada do mundo colonial. Negaçao do trabalho, trabalharam.
Negaçao da revolta, revoltaram-se com frequencia e alimentaram quase todos os
movimentos regenciais. Negaçao da Ordem, embrenharam-se pelos matos no encalço
de quilombos e de índios bravos. Camada fluida, indefinida, fugidia, imprecisa,
espalhou contudo os seus borrões no seio de uma sociedade estamental, e espraindo-
lhe os contornos, so nela pode existir.”



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