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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DISCIPLINA: HISTÓRIA DA BAHIA


PROFESSOR: ROBERTO NUNES DANTAS

TEXTO DE APOIO À AULA (Atividade de Sala)

Além das diferenças segundo a cor da pele, a origem étnico-nacional e o estatuto


legal, os 65.500 habitantes de Salvador estavam divididos em grupos sócio-
ocupacionais. As poucas análises que existem das estratificações sociais baianas nesse
período, em geral, concordam em dividir a sociedade em três ou quatro camadas, cada
qual com subdivisões internas.

A historiadora Kátia Mattoso, que propôs talvez o modelo mais abrangente de


estrutura social para Salvador no século XIX, distingue quatro categorias básicas: no
topo, os senhores de engenho, grandes negociantes, altos funcionários do Estado e da
Igreja, e finalmente os oficiais militares acima da patente de sargento - mor. Esses
grupos teriam poder ou riqueza (ou ambos) e aspiravam, às vezes com sucesso, aos
títulos de nobreza distribuídos pelo governo imperial a partir de 1822. A segunda
categoria era formada pelos funcionários intermediários do Estado e da Igreja, os
profissionais liberais, oficiais militares, comerciantes, mestres-artesãos enriquecidos e
um contingente razoável de baianos que viviam de rendas geradas pelo aluguel de
casas e escravos, ou pela agiotagem. Um terceiro escalão representava funcionários
públicos menores, militares, profissionais liberais de reduzido prestígio social,
quitandeiros, taverneiros, artesãos, vendedores ambulantes e outros trabalhadores de
rua, entre os quais muitos libertos. Finalmente, na base da pirâmide social estavam os
escravos, mendigos e vagabundos – as “classes perigosas” baianas da época. (pré-
requisitos considerados para tal construção dessa estratificação: prestígio social;
níveis de renda e poder político).

Por exemplo, ela distingue o primeiro do segundo grupo principalmente em termos de


renda, e secundariamente pela função econômica e posição no aparelho do Estado. O
prestígio social representa para ela um elemento importante, uma vez que havia
senhores de engenho com níveis de renda bastante desiguais, o que não a impede de
colocá-los sem exceção num mesmo patamar da escala social. Já os grandes
comerciantes estariam aí localizados mais pelo seu poder econômico do que pelo
prestígio, pois, a acreditar na observação de Vilhena (Luiz dos Santos Vilhena –
Historiador) na virada do século XVIII para o XIX, tinha gente que negociava por meio
de terceiros porque “seria menos decente o saber que comerciam”. Mas Mattoso
chama a atenção para as diferenças, dentro de cada categoria, quanto ao poder
político, prestígio, renda e estatuto legal. Uma posição inferior num desses níveis podia
ser compensada por uma vantagem num outro nível. Assim, ela sugere que, ao menos
em termos de bem-estar material, os escravos – ou pelos menos os escravos urbanos –
não devem ser considerados o chão social baiano. Em termos materiais, os mendigos e
os “vagabundos” teriam sido ainda mais miseráveis do que os próprios escravos.
Restaria saber o que seria mais digno nessa sociedade: passar fome livre ou engordar
escravo!
Kátia Mattoso concorda que a Bahia - e Salvador em particular - não tinha uma
estrutura social completamente rígida. Em outras palavras, a mobilidade social dentro
dos grupos e entre esses grupos era possível, apesar da rigidez da economia
agroexportadora e da existência de barreiras legais, raciais e de origem étnico-
nacionais, que dificultavam a ascensão social. Boas conexões e apadrinhamento, um
diploma de Coimbra, acesso a financiamento, todas essa coisas podiam ajudar na
conquista de lugares mais altos na sociedade. Isso para os livres e, quase
exclusivamente, de pele branca. Podia-se encontrar advogados mulatos, mas não
negros. Em compensação, os escravos, sobretudo os da cidade, podiam com muito
esforço adquirir a liberdade e alguns até se tornavam prósperos homens e mulheres de
pequenos negócios, e senhores de escravos.

Mas essa relativa permeabilidade da estrutura social não nos deve fazer esquecer o
caráter escravista da sociedade baiana, com milhares de seus habitantes na condição
de propriedade legal de outros indivíduos, e em que racismo e intolerância étnico-
cultural desempenhavam um papel importante na definição de quem devia obedecer e
quem devia mandar. Os africanos, por exemplo, podiam muito bem desfrutar algum
sucesso no mundo material, mas em troca de alianças sociais que em geral
redundavam no sacrifício de boa parte de sua autonomia e não raro de sua dignidade.
Os brancos – e não importava a condição social que tivessem – exigiam dos libertos
africanos subserviência social e assimilação subordinada aos símbolos culturais da
terra, em geral aqueles mais marcadamente europeus, como se a cultura local já não
fosse em grande medida africanizada. Aos ex-senhores, agora tornados seus patronos,
os libertos deviam obediência e lealdade, às vezes sob pena de revogação das cartas de
alforria. Por fim, o sucesso econômico aconteceu para muito pouca gente.

Segundo Kátia Mattoso, 90% da população livre de Salvador no século XIX vivia “no
limiar da pobreza”. Não é exagero. Os arquivos policiais da época do levante dos malês
estão cheios de relatórios de juízes de paz e outras autoridades policiais queixando-se
diariamente do número crescente de mendigos e de desocupados que vagavam pelas
ruas de suas freguesias, pessoas que já haviam ultrapassado o limiar da pobreza para
se situarem na condição de absolutamente pobres. Dezenas dessas correspondências
relatam a apreensão de crianças abandonadas, muitas delas órfãs. Os juízes enviavam-
nas para mestres de ofício ou instituições como o Orfanato de São Joaquim. Aí
aprendiam a ser trabalhadores manuais sob rígida disciplina. Se não fugiam do
internato, ou de seus mestres de ofício, essas crianças se tornavam artesãos, sem
muita chance de prosperar na profissão numa sociedade em que predominava o
trabalho escravo e que atravessava um período de crise econômica aguda.

Havia muita pobreza, e a escassa riqueza que havia estava concentrada nas mãos de
poucos. O que se suspeita que fosse a distribuição de riqueza numa sociedade
escravista, agora pode ser aproximadamente avaliado em números. Os 10% mais ricos
controlavam 67% da riqueza. Se isolarmos apenas os 5% do topo, verificamos que
possuíam 53% da riqueza. E se destacarmos os dez indivíduos mais ricos da amostra,
eles despontam como proprietários de 37% dos bens inventariados. Aí se encontravam
os mais poderosos senhores de engenho e os grandes negociantes. Do outro lado do
muro, outro mundo, os últimos 60% que possuíam apenas 6,7% da riqueza. Eram, sem
dúvida, membros da plebe livre baiana, que também tinha suas desigualdades
internas.

TABELA DEMONSTRATIVA

GRUPOS DE % da riqueza
PESSOAS controlada
10% mais ricos 66,9
30% seguintes 26,4
30% seguintes 5,6
30% mais pobres 1,1

TOTAL 100

Apesar da enorme concentração de riquezas, os interesses escravistas na Bahia


estavam espalhados por várias categorias. Possuir escravos não era coisa apenas de
gente rica. Só os muitos pobres não tinham escravo algum.

Dizia José da Silva Lisboa, ainda em 1781:

“É prova de mendicidade extrema o não ter um escravo: ter-se-ão todos os incômodos


domésticos, mas um escravo a toda lei. É indispensável ter ao menos 2 negros para
carregarem uma cadeira ricamente ornada, um criado para acompanhar esse trem.
Quem saísse à rua sem essa corte de africanos estava seguro de passar por um homem
abjeto e de economia sórdida”.

A economia escravista também experimentou reveses de outra ordem. Como resultado


da proibição e da perseguição inglesa ao comércio atlântico de africanos, os engenhos
começaram a sofrer escassez de mão-de-obra e o conseqüente aumento de seu preço
no mercado negro. Logo os traficantes retornariam à ativa e intensificariam o
fornecimento de escravos, apesar de agirem na clandestinidade. Mas a oferta não
votaria a ser a mesma. A situação foi agravada pelo desenvolvimento da agricultura
cafeeira no Sul do Brasil, que transformou essa região num voraz mercado negro a
partir da década de 1830. Por volta dessa década, a Bahia e outras províncias do
Nordeste se tornariam exportadoras de escravos para o Sul.

(Fragmentos de textos da obra “Rebelião Escrava no Brasil”, de João José Reis).

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