QUE NEGOCIA. IN: ________________. NEGOCIAÇÃO E CONFLITO. SÃO PAULO: COMPANHIA DAS LETRAS, 1989. PÁG. 13-21 ■ Na Bahia, terra de densa e inquieta população escrava, a separação de Portugal dependeu de uma guerra que dividiu não apenas portugueses e brasileiros, mas diversos grupos entre estes últimos. Ao longo da luta, escravos, libertos e homens livres – na sua maioria crioulos e mulatos – tentaram romper o cerco racial e social do paradigma colonial e ganhar um lugar melhor no Brasil independente. Foram barrados pela elite, que conseguiu imprimir uma direção conservadora à "revolução" da Independência. Foram também desfavorecidos pela falta quase absoluta de unidade. Os agitadores branco-mestiços federalistas e republicanos não fizeram da abolição causa sua. Os escravos crioulos insinuaram desejos de se libertarem com o país, mas não incluíram africanos natos no projeto. Talvez uns poucos escravos africanos ladinos tenham também pensado e falado em liberdade tal como os crioulos, mas entre eles prevaleceriam as tentativas de rebeliões fortemente étnicas, localizadas, de pouca monta, uma delas terminada com um verdadeiro massacre dos insurretos. (Pág. 8) ■ Na Bahia, o período que se seguiu à Independência viu crescer a insubordinação dos escravos africanos e seus aliados libertos. Muitas revoltas aconteceram antes daquela mais espetacular, em 1835, tema do último capítulo. A chamada revolta dos malês foi capitaneada por escravos e libertos muçulmanos, principalmente nagôs e haussás, que organizaram uma sofisticada rede conspiratória. Dela também participaram escravos não islamizados, em geral mobilizados em função de pertencerem à etnia africana majoritária na Bahia da época, os nagôs. Embora a revolta não tenha sido obra exclusivamente de nagôs e muçulmanos escravos, pois dela também participaram libertos africanos, o movimento estava diretamente relacionado com as relações escravistas na cidade da Bahia. Ali, escravos e libertos, trabalhando juntos no sistema de ganho ou simplesmente vivenciando a maior flexibilidade (inclusive do anonimato) proporcionada pelo ambiente urbano, desenvolveram ou aprofundaram solidariedades étnicas e religiosas a partir das quais puderam organizar um discurso convincente de crítica à escravidão baiana. A rebelião teve uma multiplicidade de sentidos religiosos, étnicos e classistas, que se entrecruzaram num momento de crise da hegemonia senhorial numa Bahia politicamente dividida. I - ENTRE ZUMBI E PAI JOÃO, O ESCRAVO QUE NEGOCIA
■ A longa experiência colonial, no tocante às formas básicas de relacionamento, tem sido
sintetizada através de uma dicotomia que permanece extremamente forte em nossa mentalidade coletiva. De um lado, Zumbi de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; de outro, Pai João, a submissão conformada. Zumbi dos Palmares Pai João ■ O simples exame da participação dos cativos na população total do país, altíssima até os inícios do século passado, nos permite duvidar que uma sociedade com tal desproporção entre homens livres e escravos pudesse gozar de alguma estabilidade sem que, ao lado da violência, ou melhor, do "temor da violência", não passassem poderosas correntes de negociação e sabedoria política. Esta suposição reforça-se quando verificamos que nas revoltas, como as do ciclo de 1835, na Bahia, os libertos podiam formar lado a lado com os escravos. ■ Além das fugas e insurreições, a liberdade podia ser obtida, ainda, através da criatividade, da inteligência e do azar. Alguns procuram aproveitar conjunturas favoráveis, como Bento, escravo do tenente-coronel Fernando Martins França, que solicitou à Tesouraria Provincial do Paraná empréstimo da quantia necessária à sua alforria, comprometendo-se, em troca, a trabalhar como servente pelo tempo necessário. Outros, como Antonia, escrava de Fausto Bem Viana, esfalfavam-se em serviços extras e depositavam suas economias, de tostão em tostão, na caderneta da Caixa Econômica. Outros, como Domingos, mais confiantes na boa estrela do que em cadernetas, arriscam as economias em bilhetes de loteria e sonham com o prêmio da liberdade. Outros, como os escravos de Morretes, agem em conjunto e, com o apoio do vigário local, solicitam o seu quinhão na esmola que o imperador dera para a libertação de escravos. Outros ainda, recorrem a expedientes considerados ilícitos, como o roubo, ou espremem o cérebro em complicados planos. A africana Rita e sua filha Vicença, por exemplo, apropriaram- se dos documentos necessários e se fizeram passar por libertas homônimas já falecidas. ■ A iniciativa dos escravos revela-se, ainda, quando recorrem às autoridades--seja através das irmandades do Rosário, que se organizam desde a era colonial, seja, mais tarde, através dos clubes abolicionistas--contra o arbítrio ou desonestidade dos senhores. A luta, às vezes, podia fazer-se também à moda burguesa, através de pressões para o cumprimento das leis. Felizarda, por exemplo, recorreu ao Poder Judiciário contra Ana Maria da Conceição, sua proprietária, que pretendia abocanhar as economias que amealhara para comprar a própria liberdade. Já Carlota, que pertenceu a Lino Ferreira, obteve a liberdade em Juízo conseguindo provar que tinha sido importada depois da Lei de 1831 – uma lei apenas para "inglês ver", como se dizia – e lutava, ainda, pela libertação de seus três filhos. ■ Mesmo nas fazendas de café, uma atividade muito mais simples quando comparada à agroindústria açucareira, a quebra desse "acordo provocava grandes transtornos aos proprietários. Sebastiano, por exemplo, que sempre fora um bom pedreiro, "mestre de seu ofício", perdeu, em 1856, a – digamos – disposição de colaborar. O proprietário mandou espancá-lo durante um mês inteiro, fazendo de suas costas "uma chaga viva", mas Sebastiano não se emendava. Se continuassem os castigos, o senhor sofreria o prejuízo da morte de um escravo especializado e, por isso, resolveu vendê-lo o mais rápido possível. Temendo esse tipo de reação obstinada, o barão de Pati do Alferes, dois anos mais tarde, ao desativar uma velha fazenda improdutiva, não ousou – como seria de seu interesse – dividir seus 140 escravos por todas as suas propriedades, segundo as necessidades de cada uma. Preferiu, ao contrário, transferi-los para um único lugar, a fazenda da Conceição, porque "separar aqueles escravos uns dos outros e dividi-los pelas outras fazendas, estando acostumados a viverem juntos em família", explica ele ao comissário na Corte, "seria, além de impolítico, desgostá-los separando-os de uma tribo". ■ Seja como for, já não é possível pensar os escravos como meros instrumentos sobre os quais operam as assim chamadas forças transformadoras da história. Não podemos, tampouco, pensá-los como um bloco homogêneo apenas por serem escravos. As rivalidades africanas, as diferenças de origem, língua e religião – tudo o que os dividia não podia ser apagado pelo simples fato de viverem um calvário comum. ■ Os proprietários, e a sociedade como um todo, foram sempre obrigados a reconhecer um certo espaço de autonomia para os cativos. Nas terras dos beneditinos, à margem do rio Jaguaribe, em Pernambuco, os escravos assumiram inteiramente – e isso parece ter sido um ponto de honra para eles – a festa de Nossa Senhora do Rosário, sua padroeira. "As despesas que correm são satisfeitas pelos escravos", anotou um viajante, "(...) e a festa é inteiramente dirigida por eles, três frades oficiariam no altar, mas os foguetes, fogos-de-vista e todos os outros artigos são providenciados pela comunidade escrava." O mesmo poderíamos dizer sobre as festas de padroeiras organizadas, colônia afora, pelas irmandades de cor. A conservação de antigos costumes também faz parte desse quadro. Pensamos, aqui, nas coroações dos reis de congo, tão presentes em Pernambuco, Ceará e outras províncias do Norte; ou em outras coroações semelhantes, como aquela de 1748, no Rio de Janeiro, quando o escravo Antônio tornou-se rei da nação rebolo. Instituições como essas são, claramente, frutos de uma enorme negociação política por autonomia e reconhecimento social. E nessa micropolítica que o escravo tenta fazer a vida e, portanto, a história. Outras histórias de Pai João: conflitos raciais, protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular, 1880-1950 – Martha Abreu
■ Também criticando a visão que esquematicamente opunha submissão e rebeldia, Silvia
Lara observou que ela correspondeu a uma outra influente dicotomia criada pelas interpretações sobre a escravidão no Brasil: benevolente ou violenta? À escravidão benevolente, formulada explicitamente nas décadas de 1930 e 1940, associava-se um Brasil como país da democracia racial, onde a figura do bom escravo Pai João refletia a do bom senhor. ■ As visões e versões de Pai João, nas canções e nas poesias pesquisadas, decididamente não cabem nos estreitos limites de uma antítese de Zumbi. O “folclore de Pai João”, conforme expressão de Arthur Ramos, com ironias e sátiras sobre vários aspectos da vida, é muitas vezes desconcertante, podendo abrir caminho para uma nova reflexão sobre o seu significado para os escravos e seus descendentes. Os versos que tratam do personagem podem também ter significado uma espécie de simbólica “vingança do negro”, recuperando a frase perspicaz do folclorista. ■ Numa perspectiva mais ampla, Pai João também foi considerado por Arthur Ramos um símbolo, em que se condensavam várias personagens : “o griot das selvas africanas, guardador e transmissor da tradição, o velho escravo conhecedor das crônicas de família, o bardo, o músico cantador de melopéias nostálgicas, o mestre de cerimônias dos jogos e dos autos populares negros, o rei ou príncipe destronado de monarquias históricas ou lendárias (Príncipe Obá, Chico- Rei...).” Todo o “folclore negro” poderia ser reunido em torno da expressão “Folclore de Pai João”, fruto, entretanto, da “opressão branca” ■ Nos desafios citados por Arthur Ramos, Pai João torna-se um pouco Zumbi. Citando LeonardoMota, a partir do livro Violeiros do Norte, de 1925, Ramos reproduziu o seguinte diálogo cantado, depois de afirmar que “agora” o negro respondia ao branco que o interpelava. Pelo conteúdo da poesia, há evidentes traços de que o negro sabia cantar o seu valor no período imediatamente posterior à abolição: ■ Branco Você mostra que é ingrato, Detrata da monarquia: No dia 13 de maio D. Pedro ainda existia, Nabuco e Zé Mariano Foi quem te deu alforria ■ Negro Isso de cor é bobagem, A cor branca é vaidade: O homem só se conhece Pela pronunça correta E pela moralidade. ■ Branco O mel por ser bomdemais, As abelhas dão-lhe fim... Você não pode negar Que a sua raça é ruim, Pois amaldiçoada, Desde os tempos de Caim ■ Negro Você falou-me em Caim? Já me subiu um calor! Nessa nossa raça preta Nunca teve um traidor: Judas, sendo um homem branco, Foi quem traiu Nosso Senhor. ■ Sem dúvida, Arthur Ramos afirmou que o negro sabia responder à interpelação do branco. Chegou a reconhecer que o “folclore negro” podia trazer em si, através da sátira, da música e da dança, os germes da revolta. Pai João até se vingava, a seu modo, “enganando o senhor, explodindo a sua revolta nas cantigas.” Mas, resultado da dominação escravista, o “folclore negro” era uma “reação mansa e resignada.” Sentenciando que Pai João foi a “antítese do quilombola revoltado”, o autor acabou defendendo mais contundentemente a versão de que este personagem cantava o sofrimento e a submissão. Não teria levantado a bandeira da liberdade e da luta contra a sua triste condição, aculturando-se e adaptando-se à sociedade “branca.” Como vimos, foi essa imagem que se consolidou na historiografia, na militância política e no que Eduardo Silva nomeou de “nossa mentalidade coletiva.” Pai João
Quando iô tava na minha terá
Iô chamava capitão, Chega em tera dim baranco, Iô me chama – Pai João. Quando iô tava na minha terá Comia minha garinha, Chega na terá dim baranco, Cáne sêca co farinha Quando iô tava na minha terá Iô chamava generá, Chega na tera dim baranco Pega o cêto vai ganhá. Dizofôro dim baranco Nô si póri aturá, Tá comendo, tá... drumindo, Manda negro trabaiá. Baranco – dize quando môre Jezuchrisso que levou, E o pretinho quando môre Foi cachaça que matou... Baranco dize – preto fruta, Preto fruta co rezão; Sinhô baranco também fruta Quando panha casião. Nosso preto fruta garinha Fruta sacco de fuijão; Sinhô baranco quando fruta Fruta prata e patacão. Nosso preto quando fruta Vai pará na correção, Sinhô baranco quando fruta, Logo sai sinhô barão
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