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Origens negras de Valença: da África

A história brasileira é marcada por uma forte instabilidade institucional. Mas uma
instituição em particular no Brasil, por mais de 350 anos, sobreviveu forte e poderosa: a
escravidão.
Estamos falando em termos do número de escravizados que vieram da África para o
Brasil. Do quadro mais geral do tráfico de escravos. Claro que outras regiões da América também
receberam escravizados africanos, mas foi para o Brasil, desde os tempos em que ainda era a
América Portuguesa, que mais se importou a gente negra; algo como mais de 40% dos africanos e
africanas escravizados vieram para a América Portuguesa.
O primeiro século da conquista portuguesa do Brasil foi feito sobre mão de obra escrava
de nossos povos indígenas ancestrais. A primeira lei que estabelece a legitimidade do escravizado
indígena é uma lei de 1570, dos tempos do rei Dom Sebastião (Sebastião I de Portugal de 1557
até 1578). É uma lei que, à época e mesmo depois, a historiografia acabou considerando como
uma lei de liberdade do gentio. Com o entendimento que, por meio desta, se estabelecia as
condições para a liberdade dos indígenas. Mas, na verdade, ela tem que ser lida a contrapelo, pois
diz que os indígenas serão livres, salvo: “aqueles que forem tomados em guerra justa que os
portugueses fizerem aos ditos gentios, com autoridade e licença minha, ou do meu Governador
das ditas partes; ou aqueles que costumam saltear os portugueses, ou a outros gentios para os
comerem; assim como são os que se chamam Aimorés, e outros semelhantes” 1. E, também, no
caso do resgate; os índios que forem “recuperados” na condição das guerras intestinas entre as
tribos indígenas. Ou seja, é uma legislação que define os critérios para a legitima escravização
desses povos
Na América Portuguesa, muitos foram os que fizeram fortuna entrando nos sertões para
caçar índios, assim como o fizeram os bandeirantes paulistas. As próprias fronteiras do Brasil
são, em grande parte, uma herança das bandeiras de preação de índios do século XVII. Toda vez
que esboçamos um mapa de nosso país, estamos desenhando também as linhas que levaram à
escravização e ao extermínio de populações inteiras. Se essa estratégia ajudou a expandir o nosso
território, ela também tinha custos que preocupavam os senhores de escravos. Não que a

1
Lei sobre a liberdade dos gentios, Évora, 20.03.1570. Transcrita por VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História
Geral do Brasil. Tomo I. São Paulo: Melhoramentos, 1975 p. 345.
consciência moral fosse um grande problema para esses colonos, mas se tornava cada vez mais
difícil fechar um bom negócio. O que acontecia é que, por conhecerem o território e por poderem
criar alianças entre si, esses indígenas eram difíceis de serem mantidos no domínio de quem os
comprava. Eles fugiam. Tinham muitas possibilidades de reconhecer o território, a ecologia, o
ambiente. Diferentemente dos negros que foram trazidos da África para cá e que tinham pouca
intimidade com o território onde estavam sendo jogados; uma terra estranha.
Na cabeça dos senhores de escravos, outra grande preocupação eram os efeitos
devastadores das epidemias sobre a população indígena. Os números até hoje assustam 2. Em
1680, o capitão paulista Pedro Vaz de Barros chegou a ostentar 500 escravizados indígenas em
suas propriedades. Vinte anos mais tarde, depois de uma epidemia de sarampo, apenas 47
permaneciam vivos 3. Enquanto isso, os engenhos de açúcar do Nordeste ofereciam uma nova
alternativa; um modelo que logo conquistaria todo o país.
Até por volta de 1590/1600, num engenho na Bahia com 60 trabalhadores, por exemplo,
de dez a quinze eram africanos escravizados. E já na metade do século XVII, 100% desses
trabalhadores eram escravizados africanos. Essa “substituição” da mão de obra escrava indígena
pela mão de obra escrava africana está ligada a uma forte conotação de mercado. De um lado, o
massacre e o genocídio das nossas populações tradicionais impunham um aumento sistemático do
preço de aprisionamento. Por outro lado, o envolvimento das elites coloniais e das elites
portuguesas nos negócios de tráfico induziam ao fortalecimento do comércio atlântico. Além
disso, a captura e a escravização de indígenas era um negócio “interno” da colônia. Já a utilização
maciça da mão de obra africana escravizada aumentava os lucros dos traficantes, que traziam
escravizados dos territórios dominados por Portugal na África. Isso não impediu a escravização
de indígenas sempre que os fluxos de africanos diminuíam por razões diversas.
Dos séculos XVII e XVIII é muito comum encontrar na documentação referências a
escravos como “negros da terra”. Esses negros da terra eram indígenas. O indígena, uma vez
escravizado, é um negro, assim como eram escravizados os negros da mina, os negros da Guiné,
os negros de Luanda, etc.

2
No Brasil, “de uma estimativa de mais de 2.000.000 de índios para o século XVI, chegou-se em 1998 a um total de
302.888 índios, considerando as pessoas que vivem nas Terras Indígenas”. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário Estatístico do Brasil 1998. Rio de Janeiro, 1999. v.58, p.1-143-1-152.
3
Sobre o bandeirante Pedro Vaz de Barros e sua avidez em escravizar índios, ver: MONTEIRO, John Manuel.
Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
A força da escravidão dos negros da terra e negros da Guiné 4 foi quem tocou a diante a -
grande - maioria das realizações no Brasil, cujo recurso braçal foi o fundamental. No Império do
Brasil, como antes na Colônia, a economia “baseava-se na exploração do trabalho escravo [...]
Tudo girava em torno do braço escravo, do sustento barato, não exigindo outra conservação além
de alguns côvados da fazenda ordinária e parcas rações de carne seca e farinha de mandioca” 5.
Por mais estranho que pareça, a tentativa de reduzir alguém à condição de escravo, não
passava somente por uma relação de forças. O direito (de origem romana) e a Bíblia foram
largamente utilizados por aqueles/as interessados/as em justificar e legitimar a escravidão de
índios e, sobretudo, de africanos e crioulos 6 - as gentes de cor: pretos e pardos 7.
No campo da fé, os versículos de 5 a 9, no capítulo 6, da carta de São Paulo aos Efésios,
orienta para que os escravos sejam obedientes aos seus donos. Em Gênesis 9,18, Noé estava
embriagado e nu. Seu filho Cam, vendo-o em tal condição foi contar aos seus dois irmãos: Sem e
Jafé. Os dois olharam para o lado, ao contrário de Cam, que viu a nudez e zombou da condição
do pai. Quando Noé acordou, ficou furioso e amaldiçoou os descendentes de Cam - os negros que
viviam na África -, condenando-os a pagar com a escravidão pelo pecado cometido por seu
ancestral. Assim como Caim, que assassinou seu irmão Abel, no texto de Gênesis 4.1-7, sendo
condenado por Deus a vagar pela terra e, seus descendentes, maculados com a cor negra.
Esses são exemplos de alguns dos textos bíblicos distorcidos e utilizados de forma incauta
por parte dos cleros da Igreja Católica e dos protestantes reformados. Nas palavras de Ynaê
Lopes dos Santos, “boa parte da justificativa para a escravização dos povos africanos estava na
interpretação feita de histórias bíblicas que apresentavam os africanos como seres inferiores
graças a um castigo divino [tal qual a] sustentação teórica e moral para o tráfico transatlântico de
escravos” 8.

4
“Negros da terra” era como os portugueses alcunhavam os escravos indígenas na América Portuguesa e “Negros da
Guiné” (guinéus), a forma genérica pela qual os africanos eram chamados.
5
LUNA, Luiz. O negro na luta contra a escravidão. Brasília: Cátedra, 1976, p. 89,
6
Crioulo é um termo de época utilizado no Brasil, enquanto esteve vigente o sistema escravista, para se referir aos
escravos nascidos no Brasil. Estando assim, o termo ligado à origem do cativo.
7
Em relação ao colorismo da gente escravizada no Brasil, as cores Preto e Pardo são as que predominam, sobretudo
a partir da segunda metade do século XIX. Nas fontes, por vezes surgem, também, variações para o mestiço. Tais
quais: mulato; e cabra. A cor “branco”, nunca está ligado a alguém escravo: sempre ao livre. Por isso, a “gente de
cor” no Brasil escravista são todos menos os brancos, imaculados da marca de cor.
8
SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil afrodescendente. Rio de Janeiro: FAPERJ; Pallas, 2020,
p. 169.
Com base nas leis e para o controle dos escravos foram empregados arcabouços jurídicos.
No Brasil, desde os tempos em que ainda era Colônia de Portugal, de modo a regulamentar as
relações humanas, decorrentes da exploração de mão de obra escrava, o Direito Positivo 9
“legitimava e também buscava assegurar que o sistema escravista continuasse a ser a relação
jurídica base do sistema produtivo” 10. Mesmo não tendo se criado aqui um código específico para
regulamentar tal relação herdou o Império do Brasil diversas normas metropolitanas baseadas no
Direito Romano de propriedade. Como as Ordenações Filipinas de 1603 que, em seu Título XVII,
Livro IV,

concedia ao escravo africano a natureza de coisa comercializável, reduzindo-o a um mero bem, que
poderia ser transferido de um proprietário para outro, mediante o negócio jurídico da compra e
venda. A desumanização do escravo era tamanha que, nos parágrafos desse título, havia a
regulamentação de eventuais vícios redibitórios no contrato de compra e venda do escravo, além de
outros que pudessem vir a contaminar o referido negócio jurídico 11.

Para além do tráfico transatlântico de escravos, a reprodução da escravidão era garantida


pelo princípio jurídico romano do Partus sequitur ventrem, onde a maternidade possibilita que os
filhos das escravizadas - e os filhos de suas filhas, infinitamente - também estejam, juridicamente,
na condição de escravos 12. Isto porque, “desde o processo de colonização, o ventre escravo
ocupou um local fundamental, no qual a condição escrava de uma pessoa era determinada pelo
status de sua mãe. Pelo princípio do partus sequitur ventrem, a matrilinearidade da escravidão foi
cimentada” 13.
A base para a escravidão no Brasil estava pavimentada: justificada por razões teológicas;
amparada a propriedade no campo legal, da mesma forma sua reprodução; e, a partir do século
XIX, hierarquizada e racializada. Bastava transformar os seres humanos em coisas, com o

9
O Direito Positivo é o conjunto de regras elaborados e vigentes num determinado país em determinada época, são
as normas, as leis, todo o sistema normativo posto. Ou seja, vigente no país. Possui como características: o caráter
temporal, territorial, formal (tem origem nas fontes formais), revogável, variável e mutável.
10
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da escravidão. Op. Cit. p. 17.
11
Ibidem, p. 32-33.
12
Partus sequitur ventrem: se uma criança nasce de pais escravos, ela é escrava; se nasce de pai escravo e mãe livre,
ela é livre; se nasce de pai livre e mãe escrava, uma criança escrava. Ou seja, a condição jurídica da criança (se livre
ou escrava) segue a condição jurídica de sua mãe.
13
SOUSA, Caroline Passarini. Partus sequitur ventrem: reprodução e maternidade no estabelecimento da
escravidão e abolição nas Américas até a primeira metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2021, p. “Resumo”.
objetivo final de despossuí-los de sua essência existencial, seus sentimentos, desejos, laços,
afetos, nomes, família e ligação com sua terra natal.
São várias as estimativas sobre o total de escravos transportados da África para toda a
América. Podemos citar cálculos que variam de 9 a 12 milhões pessoas 14. Para o Brasil,
conforme nos auxilia Richard Graham, importou-se “mais escravos da África que qualquer outro
país, e a escravidão persistiu ali até 1888, isto é, muito tempo depois de ter sido abolida no resto
da América” 15.
Ao longo dos séculos XVI e XIX, cerca de 5 milhões de homens, mulheres e crianças
foram arrancadas de suas vidas no continente africano e transportadas, via Atlântico, para o
Brasil. Esse atroz monte de africanos e africanas escravizadas e, forçadamente, transportados para
o Brasil representa 46% de todo o volume dos remetidos da África para as Américas. Destarte,
para Luiz Felipe de Alencastro;

o país foi o maior importador de escravos africanos das Américas. Foi ainda a única nação
independente que praticou maciçamente o tráfico negreiro, transformando o território nacional no
maior agregado político escravista americano. Consubstancial à organização do Império do Brasil,
a intensificação da importação de escravos africanos após 1822 explica a longevidade do
escravismo até sua abolição, em 1888 16.

Fazendo desse comércio de gente um dos mais lucrativos ao longo da chamada Idade
Moderna e, também, de grande rentabilidade no alvorecer da Idade Contemporânea, a escravidão
mercantil africana no período moderno foi um “sistema que se enraizou cruelmente na história
brasileira, e que guarda marcas profundas no nosso cotidiano. O país não só foi o último a abolir
essa forma perversa de mão de obra nas Américas, como aquele que mais recebeu africanos
saídos de seu continente de maneira compulsória, além de ter contado com escravos em todo o
território” 17.

14
Os números exatos, provavelmente, jamais serão conhecidos. Todavia, para uma estimativa ver, entre outros:
ELTIS, David & DAVID, Richardson. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven: Yale University Press,
2010; KLEIN, Herbert S.. Estatísticas históricas do Brasil. Rio de janeiro. IBGE, 1987; CURTIN, Philip D. The
Atlantic slave trade: a census. Madison: University of Wisconsin Press, 1969.
15
GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”. Afro-Ásia,
n. 27, CEO/UFBA, 2002, p. 121 e 124.
16
SCHWARCZ, Lilia M. & GOMES, Flávio (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. 50 textos críticos. São
Paulo: Companhia da Letras, 2018, p. 57.
17
Ibidem, p. 21.
Os africanos traficados para o Brasil vieram de praticamente todo a África. Mas,
sobretudo, de áreas de grande captação e de escoamento portuário de cargas. Como foram na área
atlântica do continente africano: a alta Guiné, em torno do porto de Cachéu e do porto de Bissau;
da região chamada de “Costa dos escravos”, com os principais portos em Ajudá, Lagos, Badagri
e em Popó Grande e Popó Pequeno; da região chamada de Congo e Cabinda, tendo como porto
principal o de Cabinda; da região da grande Angola, com os navios negreiros zarpando de
Luanda e, principalmente, de Benguela. Os retirados da África pelo lado do Oceano Índico
chegaram ao Brasil saídos, em sua grande maioria, pelos portos de Moçambique 18.

Basicamente, os africanos chegados ao Brasil vieram de duas áreas principais. A primeira, formada
pela baía de Benim e pelo golfo do Biafra, origem de 999.600 indivíduos desembarcados, e a
segunda, situada no Centro-Oeste africano, e, sobretudo em Angola, de onde saíram 3,656 milhões
de indivíduos (75% do total dos desembarques) [...]. Deve ser ainda destacada a entrada de 188.400
escravos da Senegâmbia e de áreas do golfo de Guiné”. 19

Entre os séculos XVI e XIX existiram quatro grandes rotas de comércio de escravos da
África para a América. No Brasil, essas diferentes rotas acabaram por criar um verdadeiro
mosaico de pessoas com as mais diferentes fisionomias, línguas e costumes 20.
Ao longo de todo o século XVI povos hauçá, acan e ioruba foram retirados da
Senegâmbia 21 e despachados para o norte e o nordeste da América Portuguesa, sobretudo para as
regiões de Belém e Maranhão.

18
Em cada momento da história do Brasil há uma preponderância de grupos de africanos diferentes introduzidos no
território nacional. Isto porque os escravizados desembarcados por aqui estavam diretamente atrelados ao momento
política de sua sociedade em África, que permanentemente estava se alterando. É como se a política das sociedades
africanas determinasse quem vinha para o Brasil. Como, por exemplo, no final do século XVIII e primeira metade do
XIX, a Guerra Civil Iorubana. Com o desmonte do Reino de Oyó e a guerra civil entre as várias cidades-estados
iorubás, implica num grande número de iorubás vindo para o Brasil, principalmente para a Bahia. Ver, entre outros:
SILVA, Alberto da Costa e. Um Rio chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2003.
19
SCHWARCZ, Lilia Moritz & GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da Escravidão e Liberdade, Op.
Cit., p. 60.
20
Estima-se que no continente africano sejam falados cerca de 2 mil idiomas. Para se ter uma ideia da riqueza
linguística da África, calcula-se que na Europa toda haja aproximadamente 300 línguas. Ao longo da história
africana, em regiões de comércio, os africanos falavam mais de uma língua, possibilitando a troca de mercadorias e o
compartilhamento de experiências e vivências culturais.
21
Hoje essa região corresponde aos países: Senegal, Gâmbia, Guiné Bissau e Guiné.
Mapa 1: Rotas do tráfico de escravos para o Brasil - Legenda: A) Rota da Senegâmbia; B) Rota da Costa da
Mina; C) Rota da África Centro-Ocidental; D) Rota de Moçambique

Fonte: SANTOS, Ynaê Lopes dos, 2020, p. 170

Axântis, hauçás, ibos, fulanis e iorubas, são alguns dos povos africanos retirados da
região da Costa da Mina 22 e transportados por portugueses e brasileiros num longevo e lucrativo
comércio que se estendeu desde o final do século XVII até 1850, quando o tráfico de escravos
para o Brasil foi interrompido 23. Foram enviados para três destinos: para o estado do Grão-Pará;
para a região sul, atuais regiões sul e sudeste do Brasil, sendo desembarcados sobretudo nos
portos do Rio de Janeiro; e para a região nordeste da América Portuguesa, principalmente, os
portos da Bahia e Pernambuco.
Iniciada por volta de 1590 e também só cessada com a interrupção do comércio
transatlântico de escravos, outra rota de tráfico foi responsável por retirar africanos de diversas

22
A chamada Costa da Mina era uma região africana que hoje engloba os países: Gana, Togo, Benin e Nigéria.
23
Por força da Lei de 7 de novembro de 1831 se “declara livres todos os escravos vindos de fôra do Imperio, e impõe
penas aos importadores dos mesmos escravos”. Seria o fim do tráfico de escravos africanos para o Brasil. Contudo, o
mesmo mante-se ativo, na ilegalidade, mesmo após a promulgação de um segundo ordenamento jurídico; a Lei
Eusébio de Queirós, aprovada em 1850, que determinou a proibição definitiva do tráfico negreiro no Brasil.
Africanos foram ilegalmente traficados para o Brasil até por volta de 1862.
sociedades da região da África Centro-Ocidental 24 cujos destinos estavam ligados,
principalmente, aos portos do Rio de Janeiro e São Paulo. “Muitos brasileiros, principalmente os
fluminenses, participaram dessa rota comercial, sobretudo das vias de navegação que saíam da
cidade de Luanda em Angola. Dessa região saíram africanos angolas, congos e benguelas” 25.
E, por fim, a última rota de tráfico de africanos; realizada entre a região do atual país de
Moçambique, na costa índica da África, e as atuais regiões sul e sudeste do Brasil. “Esse
comércio, basicamente controlado por brasileiros, foi iniciado ao final do século XVIII e
perdurou até que o tráfico fosse abolido no Brasil. Dessa região foram enviados para cá africanos
monjolos e moçambiques” 26.
Nos navios negreiros, as condições de vida a que os escravos estavam submetidos eram
péssimas. Mais desumanas e degradantes, impossível. Centenas de escravizados viajavam
amontoados de 20 a 45 dias - se trazidos para o Brasil de um porto africano localizado na costa
atlântica - a dois ou três meses - se zarpados da costa índica. Eram submetidos ao calor, à fome, à
sede. Em meio a sujeira, enfrentavam ataques de ratos, piolhos e eram acometidos pelo sarampo
ou pelo escorbuto. Muitos não resistiam às viagens. Vitimados por doenças, desnutrição aguda e
todo tipo de violência estima-se que 2,5 milhões de africanos e africanas tenham morrido durante
a travessia do Atlântico, entre os séculos XVI e XIX.
A família e a vida, constituídas na África, haviam ficado para trás. Muitas vezes,
genericamente, chamados e anotados nas fontes como “negros da guiné”, “africanos”, ou “de
nação”, se viram obrigados a recriar laços identitários. Em meio a uma heterogeneidade de
línguas faladas, crenças e visões de mundo diferentes, não foi tarefa das mais fáceis. Porém,

apesar de todo o horror, muitos africanos conseguiram construir laços de solidariedade durante a
viagem. A amizade construída entre esses africanos chegava a ser tão forte que existia uma palavra
para defini-la: malungu. Essa palavra tinha origens em diferentes línguas africanas, mas a
experiência da travessia do Atlântico fez com que ela ganhasse um significado especial:
companheiro de travessia. A força dessa amizade era tanta, que alguns africanos conseguiram
mantê-la depois da chegada ao Brasil, ou em outras localidades da América 27.

24
Essa região hoje corresponde aos hoje países: Gabão, Congo e Angola.
25
SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil afrodescendente. Op. Cit., p. 171-172.
26
Ibidem, p. 172.
27
Ibidem, p. 143-144.
A desumana prática do tráfico negreiro de escravos trouxe enormes prejuízos para as
populações africanas: muitas comunidades se desorganizaram, com a perda de homens, mulheres
e crianças capturadas; a quantidade de guerras internas no continente africano aumentou
consideravelmente; milhões de habitantes, separados de suas comunidades foram vendidos como
mercadoria. Diante disso e, por conseguinte, “ainda que muitos desses africanos escravizados
tenham conseguido refazer suas vidas na América, os milhões de seres humanos que foram
violentamente retirados de suas sociedades de origem não deixam dúvidas de que o tráfico
transatlântico de africanos escravizados foi um dos maiores crimes cometidos contra a
humanidade” 28.
À medida que a demanda por mão de obra escrava se intensificava na América
Portuguesa, e de que o escravizado se tornava cada vez mais uma valiosa “mercadoria”, para a
qual se organizavam “empresas” especializadas em sua obtenção para posterior tráfico, a
presença de cativos africanos e crioulos se propagou por todo o território do Brasil. Atingindo o
ápice nas primeiras décadas século XIX.
Em 1807, depois de lucrar durante séculos com o tráfico de negros africanos, a Inglaterra
determinou o fim do comércio transatlântico de escravizados. Quando o Brasil se tornou
independente, 15 anos mais tarde, uma das condições impostas pelos ingleses para reconhecer
essa independência foi a adoção da mesma regra. O parlamento brasileiro ainda conseguiu
protelar a decisão por quase dez anos. Mas no dia 7 de novembro de 1831, ficou decidido que o
tráfico internacional de escravos estava proibido, também no Brasil.
Nos primeiros anos da década de 1830, o tráfico diminuiu muito o seu volume. Aí vieram
o decorrer dos anos 30 e o boom, do café no Vale do Paraíba fluminense. A partir daí o tráfico
explode de novo. Só que agora além de imoral; de forma ilegal. Proibido pelas leis do país.
Durante a década de 30 até por volta de 1860 entraram em todo o país cerca de 750.000 pessoas
ilegalmente escravizadas. Por estar se contrabandeando gente, tratou-se da maior operação de
corrupção da história do Brasil. Feita para alimentar a cafeicultura com um número de
escravizados que, em pouco tempo, atingiu uma escala incomparável com a de outros períodos
históricos.
“A economia escravista cafeeira no Brasil iniciou-se com o cultivo da rubiácea nas
imediações da cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII. Daí, expandiu-se

28
SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil afrodescendente. Op. Cit., p. 144.
pela província do Rio, notadamente pelo Vale do Paraíba” 29. No que tange ao Vale do Paraíba
fluminense, os principais municípios produtores de café foram Valença, Vassouras, Resende, São
João do Príncipe, Piraí, Barra Mansa, e Paraíba do Sul, Resende e Paty do Alferes. Nessas
localidades, em que a cultura extensiva do café esgotara o solo desde fins da década de 1860, os
plantéis de escravos foram tão pujantes quanto ao volume da produção.

O café foi o carro-chefe das exportações e da economia brasileira ao longo do século XIX. Na
década de 1820, ele representava 18,6% das exportações do país, ficando atrás do açúcar e do
algodão. Na década seguinte, atingia o primeiro lugar, com 43,8%, e, nos anos 1880, sua
participação nas exportações nacionais chegou à casa de 61,7%. A principal zona produtora neste
período era a economia escravista do Vale do Paraíba fluminense e paulista e suas áreas adjacentes
do chamado Oeste Velho paulista, em tomo de Campinas, da Zona da Mata mineira, do norte da
província do Rio de Janeiro e do sul do Espírito Santo 30.

Desde 1801, quando se iniciara o trabalho da cultura das terras vale-paraibanas, junto ao
processo de abertura de caminhos complementares para a ligação da cidade do Rio de Janeiro (a
Corte) com a província de Minas Gerais, junto aos homens livres que subiram a Serra, ou
atravessaram o rio Preto, encarregados por desbravar os sertões, foram trazidos africanos e
crioulos escravizados. Aos milhares! Homens, mulheres e crianças que, certamente, ficaram
obrigados pela preparação da mata fechada; a construção de abrigos e locais de socialização; o
plantio e a colheita de gêneros alimentícios, como milharais, e cafezais em formação por morros
afora ou arrozais e canaviais a se estenderem por todos os baixos; a criação de animais; os
demorados trabalhos de drenagem do solo; a condução, sobre a cabeça ou nos ombros, de coisas
e gentes...

O Brasil tinha uma longa tradição na utilização da mão de obra escrava de origem africana, cujo
emprego era generalizado, ainda que em escala diferenciada por todo o território. Com a
exploração do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais no século XVIII, o Rio de Janeiro se tornou
um grande porto importador e centro do comércio de escravos africanos. O volume do tráfico para
o Sudeste brasileiro, área que orbitava economicamente em torno das minas, não cessou de subir,
nem sequer nas décadas finais do século, quando a mineração entrou em declínio. Entre 1751 e

29
Ibidem, p. 124.
30
SCHWARCZ, Lilia Moritz & GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da Escravidão e Liberdade, Op.
Cit., p. 123.
1760, foram desembarcados 81.391 escravos africanos no Sudeste. Esse número saltou para
115.872 no quinquênio de 1816 a 1820, quando a economia escravista do café já despontava. Nos
trinta anos seguintes, 911.911 africanos escravizados desembarcaram no Sudeste, em sua maioria
destinados às plantações de café do Vale do Paraíba e zonas limítrofes 31.

A partir daqui faz-se indispensável pontuar que: a presença negra nas terras que hoje
compõe o município de Valença é anterior à expansão cafeeira. Uma vez que, a ocupação
espacial do Vale do Paraíba fluminense, foi feita, através da exploração da mão de obra escrava.
Por conseguinte, ao pôr em prática um regime de apropriação fundiária aliado à intensa utilização
de mão de obra escravizada, as futuras elites de Valença alteraram a paisagem e a demografia
local.

Gráfico 1 - batizados de crianças em Valença por categoria - 1809-1814

Valença - batizados de crianças por categoria - 1809-1814


30
25
nº de batismos

20
15
10
5
0
1809 1810 1811 1812 1813 1814
Batizados - índios 8 6 14 8 10 24
Batizados - livres não índios 8 4 14 10 10 21
Batizados - escravos 7 0 5 8 8 7

Batizados - índios Batizados - livres não índios Batizados - escravos

Fonte: Primeiro Livro de batismos da Igreja de N. S. da glória de Valença (1809-1814). In: LEMOS, Marcelo
Sant'Ana. O índio virou pó de café? (A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira no
Vale do Paraíba. 1788-1836). Jundiaí: Paco Editorial, 2016, p. 158.

Ao alisarmos o Gráfico 1 é interessante percebermos como o índice de batismos de


crianças escravas, à exceção do ano de 1810 e uma pequena refração em 1811, mantem-se estável
até 1814. Podendo indicar que, neste momento, ou população cativa em Valença ainda não se
encontrava em fase reprodutiva - sendo os escravizados em sua maioria, jovens; ou que a razão
de sexo entre escravos e escravas era muito desigual - com mais homens do que mulheres -,
dificultando a formação de famílias escravas; ou de que os escravos na localidade já haviam

31
Ibidem, p. 126.
passado de sua fase reprodutiva, podendo indicar que já estavam a tempos sobre a posse de seus
senhores.

Gráfico 2 - batizados de crianças em Valença por categoria - 1815-1830

Valença - Batismos de crianças por categoria - anos escolhidos


30
25
20
15
10
5
0
1815 1822 1830

Índios - criança Livres não-índios - criança Escravo - criança

Fonte: Primeiro Livro de batismos da Igreja de N. S. da glória de Valença (1809-1814). In: LEMOS, Marcelo
Sant'Ana. O índio virou pó de café? Op. Cit., p. 182.

Gráfico 3 - óbitos em Valença por categoria 1807-1830

Valença - Óbitos por categoria 1807-1830 - anos escolhidos


35
30
25
n. de óbitos

20
15
10
5
0
1807 1808 1809 1810 1811 1812 1813 1814 1815 1816 1817 1820 1830

Total de índios Total livres de não-índios Total de escravos

Fonte: Primeiro Livro de batismos da Igreja de N. S. da glória de Valença (1809-1814). In: LEMOS, Marcelo
Sant'Ana. O índio virou pó de café? Op. Cit., p. 186.

Os dados dos gráficos 2, deixam claro que entre 1815 e 1822, a população escrava em
Valença ainda se reproduzia de forma gradual. Contudo, a partir de 1822, podemos verificar um
aumento exponencial dos registros de batismos de crianças escravas. Fato que indica que a
população escravizada em Valença também aumentou de tamanho e que, de uma forma cada vez
mais constante, africanos e crioulos estão sendo inseridos na localidade. Assim como um maior
equilíbrio na razão de sexo entre escravos e escravas (do número de homens e mulheres
escravos), contribuindo para a formação de famílias e uma população escrava em idade madura,
em idade reprodutiva, entre os 16 e 25 anos de idade. Fatos que podem ser corroborados pelos
dados trazidos no Gráfico 3, onde verifica-se o aumento dos óbitos de escravos a partir da década
de 1820. Suplantando ao de todo o restante da população, justamente, no momento em que a
lavoura cafeeira começa a ser expandida em Valença, exigindo cada vez mais a/da mão de obra
escravizada.
Na Quaresma de 1814, em momento posterior à expansão cafeeira, a Freguesia de Nossa
Senhora da Glória de Valença contava com 119 fogos (locais de habitação) abrigando cerca de
900 indivíduos adultos, sem contar os índios aldeados 32. Indubitável que, boa parte desses,
fossem homens e mulheres cativas. No ano de 1832, a população absoluta de Valença era 8.200
pessoas (sem contar os autóctones) - 5.145 escravos e 3.055 livres. Em 1840, com a lavoura
cafeeira já em expansão, os cativos serão 70,3% da população local, totalizando 12,835 mil
escravos. Dezesseis anos depois, e apenas um ano antes de ser elevada à categoria de cidade (por
meio do Decreto Nº 961 de 29 de setembro de 1857, da Assembleia Legislativa Provincial do Rio
de Janeiro) a população escrava em Valença já estava duplicada; mais de 24 mil homens,
mulheres e crianças eram cativos.
O recenseamento de 1872, foi o único censo realizado durante o período da escravidão 33.
No esteio do pensamento racial e hierarquizado dominante no século XIX ele revelou, por
exemplo, que as raças no Brasil estariam divididas em quatro: branco; caboclo; preto; pardo.
Mostrou, também, que pretos e pardos seriam as únicas raças possíveis de serem escravizadas,
uma vez que, todos os escravos apareceram recenseados como sendo da cor “preto” ou “pardo”, e
nunca das cores “branco” e “caboclo”. Assim como, que os definidos genericamente como
“africanos” eram os únicos de “nacionalidade estrangeira” escravizados no Brasil.
Em 1872, com o Brasil já independente de Portugal há 50 anos e a apenas dezesseis anos
de ser proclamada a Abolição da Escravidão, 1.510.806 (um milhão quinhentos e dez mil

32
LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a Serra. Rio de Janeiro: IBGE-Conselho Nacional de Geografia, 1963, p.
169.
33
Em 1º de agosto de 1872, as paróquias de todos os cantos do Império mandaram às casas das redondezas
formulários de papel que deveriam ser preenchidos pelos chefes de família e depois devolvidos, para a tabulação das
informações. Seria realizado, então, o primeiro Censo Geral do Brasil que, muito embora carregue críticas corretivas
quanto aos dados levantados, traz informações que, se cruzadas com outras fontes, podem nos ajudar a ilustrar nossa
História Social. Esse levantamento demográfico foi chamado de “Recenseamento do Brazil em 1872”.
oitocentos e seis) pessoas ainda estavam escravizadas no país. Desses, 805.170 eram homens e
705.636 mulheres. Em conjunto, representavam no recenseamento 15,21% dos habitantes do
Brasil 34. Na Província do Rio de Janeiro 35 a população escrava era composta por 292.637 cativos,
33,38% da população absoluta da Província e 19,36% do contingente escravo em todo o território
nacional.
Em Valença, foram recenseados 23.496 escravos (12.937 homens e 10.559 mulheres),
correspondendo à 56,77% de sua população 36. Também com base nos dados demográficos deste
Censo, podemos ver que 1,55% dos escravos no Brasil estavam cativos em Valença; que possuía
a terceira maior população escrava dentro do território que hoje compõem o estado do Rio de
Janeiro (Província do Rio de Janeiro mais o Município Neutro) 37; e a maior população escrava de
todo o Vale do Paraíba fluminense.

Tabela 1 – Dados do “Recenseamento do Brazil em 1872” sobre a população escrava no Brasil


% de
escravos
Total Livres Escravos na pop.

População do Brasil 9.930.478 8.419.672 1.510.806 15,21%


População da Província do Rio
de Janeiro 418.200 255.806 162.394 38,83%
População do Município
Neutro (Corte) 275.872 226.933 48.939 17,73%

População de Valença 42.131 18.635 23.496 55,76%


Fonte: Recenseamento do Brazil em 1872, dados: Imperio do Brazil; Província do Rio de Janeiro; Município Neutro;
Valença (Parochia de N. S. da Gloria; Parochia de Santa Thereza; Parochia de Santo Antonio do Rio Bonito;
Parochia de N. S. da Piedade das Ipiabas)

34
O Recenseamento de 1872 calculou para o Brasil um total de 9.930.478 habitantes. Dos quais: 8.419.672 eram
livres; e 1.510.806 eram escravos.
35
Em 1872 a Província do Rio de Janeiro englobava 23 municípios. A cidade do Rio de Janeiro, a Corte, era
chamada de “Município Neutro” e não integrava a Província.
36
Quando o Recenseamento de 1872 foi divulgado, o município de Valença acolhia em seu território cinco
Freguesias: Nossa Senhora da Glória; Santa Thereza (atual município de Rio das Flores); Santo Antônio do Rio
Bonito; Nossa Senhora da Piedade das Ipiabas (atual distrito do município de Barra do Piraí); Santa Izabel do Rio
Preto. Porém, a Freguesia de Santa Izabel do Rio Preto não teve seus dados divulgados e, portanto, o somatório das
informações trazidas para Valença diz respeito a uma parte de sua realidade demográfica da época. Sobre o Censo
Demográfico de 1872, e toda a problemática e lacunas em torno de seus dados; ver, entre outros: PAIVA, Clotilde
A.; GODOY, Marcelo Magalhães; RODARTE, Mario Marcos Sampaio; SANTOS, Douglas (Et al.). Publicação
crítica do Recenseamento Geral do Império do Brasil de 1872 (Relatório Provisório). Belo Horizonte: Núcleo de
Pesquisa em História Econômica e Demográfica - NPHED, 2012.
37
Na Corte (Município Neutro) havia 48.939 escravos e em Campos (na região norte da Província do Rio de Janeiro)
outros 32.620.
No Censo de 1872, os escravizados nascidos na África foram enquadrados na categoria
dos estrangeiros, mas não houve das autoridades do Brasil o interesse em saber com maior
exatidão de onde vieram. Eles foram genericamente descritos como “africanos” - como se a
África fosse uma nação, não um continente com múltiplos povos e etnias, com suas culturas e
saberes próprios.
Situação parecida acontece com os registros paroquias de batismos, casamentos e óbitos
produzidos pelos Reverendos Católicos, tais quais os da Igreja de Nossa Senhora da Glória, em
Valença, entre as décadas de 1850 e 1888, a que tivemos acesso 38. Todavia, acreditamos que
essas anotações unitárias possam ter seu entendimento facilitado, ou melhor percebido, se as
considerarmos como parte de um todo.
Até que fosse instalada a República, em 1889, no país vivia-se sobre o regime do
padroado Católico. Independente de Portugal em 1822, o Brasil teve sua primeira Constituição
promulgada em 1824. Nessa carta magna constava que a religião Católica era a oficial do Estado,
do “Império do Brazil”, e que a Igreja estaria submetida à autoridade do imperador, responsável,
entre outras coisas, por nomear e demitir livremente autoridades eclesiásticas (padroado). Neste
contexto, e já desde os tempos de Colônia, os registros paroquias de batismos; casamentos;
óbitos, possuíam força de Lei no Brasil.

1870 Novembro – primeiro. Ao primeiro dia do mez de Novembro do corrente, depois de


observado tudo quanto prescreve o Sagrado Concilio de Trento, Lei Civil, Constituições do
Bispado recebi em matrimonio no Oratorio da Fazenda de Todos os Santos aos contratantes, João
de Nação Cabinda e Bernarda Crioula, ambos escravos do Doutor Manoel Vieira dos Santos
Machado. Foram testemunhas presentes, e assistentes no acto, Damião de Nação, escravo do
Commendador João Baptista de Araujo Leite, e Pedro Crioulo, escravo de D. Guilhermina Roza
d’Azevedo. E para constar, lavrei o presente termo, que assigno. Era ut supra. O Coadjutor José
Augusto Correia da Silva. 39
[...]
(1872) Maio – vinte e seis. Aos vinte seis de Maio de mil oitocentos e setenta e dois, baptisei
solenemente e administrei os Santos Oleos ao inocente – Ernesto – filho ligitimo de João Pagém,
de nação, e Bernarda, crioula, escravos do Doutor Manuel Vieira dos Santos Machado. Nascido
no dia vinte e oito de Fevereiro do corrente ano. Forão Padrinhos Custodio e Theodóra, ambos de

38
Nossa pesquisa aqui desenvolvida trabalhou com registros paroquias de batismos, casamentos e óbitos da
Freguesia de Nossa Senhora da Glória produzidos entre os anos de 1857 e 1888.
39
Livro Casamentos 1845-1872, 112F.
nação e escravos do mesmo Doutor Vieira. Valença - era ut supra. Vigario Luiz Alves dos
Santos. 40

(1868) Abril vinte e seis – Elizia (C) filha legtima de Salustianno, Moange e de Brandina, Conga,
nascida dia quatorze de Abril do corrente anno. Forão Padrinhos Eduardo e Brigida, crioulos,
todos escravos do Commendador Manuel Pereira de Souza Barros. Vigario Luiz Alves dos
Santos. 41
[...]
(1875) Setembro onze – Aos onze de Setembro de mil oitocentos e setenta e cinco, o Reverendo
Joaquim d’Almeida Canto, com licença minha, baptisou solenemente e administrou os Santos
Oleos aos seguintes innocentes: Ernesto – filho natural de Leonor, crioula. Nascido no dia
dezenove de Agosto de mil oitocentos e setenta e cinco – Forão Padrinhos Salustianno e
Brandina, ambos de nação e todos escravos de Manuel Pereira de Souza Barros. Valença era ut
supra. Vigario Luiz Alves dos Santos. 42

Jacyntho – A trinta e um de julho de mil oitocentos e cinquenta e nove nesta Freguesia de Valença,
o padre Manuel Dias do Couto Guimarães solenemente baptisou Jacyntho, nascido em data
anterior, filho natural de Michaella, Monjollo. Foram padrinhos Manuel e Jacyntha, todos
escravos da Fazenda do Pao d'Alho. 43
[...]
(1869) Agosto trinta e um - † Michaella (E) de nação, de idade de trinta e seis anos, solteira,
pertencente aos herdeiros da Fazenda do Pao d'Alho. O Vigario E. Luiz Alves dos Santos. 44

O leitor atento das transcrições dos documentos acima, perceberá que João Pagém 45, de
Nação (João Pagém, africano) 46 e João de Nação Cabinda é a mesma pessoa. Assim como,
poderá compreender que os pais de Elizia; Salustianno, Moange e Brandina, Conga são os
padrinhos de batismo de Ernesto. E, se fizer um esforço ainda maior aperceber que Michaella,

40
Livro de Batismo de escravos (1870-1888) - Livro n. 17 (4), 17F.
41
Livro de Batismo 1867-1871 - Livro n. 13 ou 11 – 20F.
42
Livro de Batismo de escravos (1870-1888) - Livro n. 17 (4) - 103F.
43
Livro de Batismo 1859-1886 - Livro n. 3 (escravos), 9V.
44
Livro de Óbito 1862-1875, 49F.
45
Pagém (pajem) é uma referência de cargo ou profissão a alguém encarregado por pessoa nobre, para lhes prestar
serviços pessoais.
46
“De Nação” e “africano” são sinônimos. Ambos os termos aparecem nas fontes para referir-se, genericamente, a
algum estrangeiro vindo da África. Logo, este e aquele quando utilizados não fazem menção a nenhum local
específico do continente africano.
Monjolo, aos 26 anos de idade conduziu a batismal seu filho natural, Jacyntho. Falecendo dez
anos depois, ainda solteira, e sepultada como Michaella, de nação.
Os exemplos servem para demonstrar como os termos “africano” e “de nação”,
frequentemente utilizados para se referirem aos estrangeiros oriundos do continente africano,
carregam dentro de si uma gama de omissões. Isso porque, ambos os termos se referem à um
local que engloba vários outros locais dentro de si. Haja vista que, os africanos que vieram
escravizados para o Brasil - assim como os trazidos para a formatação do Vale do Paraíba
fluminense e instalados em Valença – possuem origens diversas: dentro do termo africano/de
nação estão África Ocidental; África Centro-Ocidental; África Oriental e destes: Cabinda,
Moange, Monjollo, Conga, Angola etc. E que, juntos ou separados, podem formar uma localidade
ou diversas localidades de origens do volumoso tráfico de escravos para o Brasil.

Gráfico 4 – quantitativo e percentual da população escrava em Valença entre 1840 e 1884

Evolução da população escrava em Valença (1840-1872)

1884 * 24272
1872 55,77% 23496
1856 65,38% 23468
1850 70,10% 20119
1840 70,63% 12835

0 5000 10000 15000 20000 25000 30000

1840 1850 1856 1872 1884


n. escravos 12835 20119 23468 23496 24272
% na população absoluta 70,63 70,1 65,38 55,77 0

n. escravos % na população absoluta

Fonte: dados retirados do quadro sistematizado por Ricardo Salles. In: SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o
escravo: Vassouras, século XIX - senhores e escravos no Coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008, p. 258-259. (* Infelizmente, não dispomos de dados sobre a população livre da província do Rio de janeiro
para o ano de 1884, ficando, assim, impossibilitados calcular o percentual representado pelos escravos para esse ano.
In: Ibidem, p. 261.)

Até a década de 1860, o fator mais importante consistia na presença majoritária de africanos,
muitas vezes ultrapassando a casa de 70%. A maioria deles, jovens e adultos do sexo masculino,
boa parte dos quais recém-chegados aos plantéis. Em concomitância com esse fato, e em ritmo
mais vagaroso, até 1850, quando se deu a extinção do tráfico internacional de cativos, houve o
crescimento de uma população crioula, isto é, nascida no Brasil. Entre eles, o número de crianças
era maior, formando-se, aos poucos, uma população jovem, em que a proporção entre homens e
mulheres era mais equilibrada. Assim, até meados da década de 1860, havia dois processos
distintos, mas interligados, na dinâmica demográfica escrava: um africano e outro crioulo. O
primeiro, prevalecente e determinante, o segundo subordinado. A dinâmica africana era
predominantemente masculina, adulta e dependente da alimentação do tráfico para sua reprodução.
A crioula mostrava-se mais equilibrada do ponto de vista sexual e etário, e, a longo prazo,
apresentava condições potenciais de reprodução natural positiva. Não fosse a Lei do Ventre Livre,
que interrompeu seu crescimento vegetativo, este poderia vir a se tornar um fato relevante, a
exemplo do que ocorrera nas regiões escravistas dos Estados Unidos logo após a extinção do
tráfico naquele país 47.

As informações a seguir são relativas aos escravos/as estrangeiros que tiveram sua
participação no batismo, como mãe, pai, madrinha ou padrinho; no casamento como cônjuge ou
testemunha do matrimônio; no óbito, enquanto o/a falecido/a, ou cônjuge, pai ou mãe do/a
mesmo/a, registrado nos livros da Paróquia de Nossa Senhora da Glória de Valença, entre os anos
de 1867-1888.
Escravizados na África, traficados para Brasil e encaminhados para Valença, onde foram
ocupados em todos os tipos de serviço braçal, em toda a sorte de ocupação, da casa e da roça, 503
homens e mulheres foram descritos com procedência africana, desses 69,43% foram descritos
genericamente como “de nação” ou “africano”.
Dos que tiveram sua origem melhor definida, 23,41% foram descritos como Mina. Que
quer dizer; um ser humano, escravizado provavelmente na vasta região da alta Guiné, região da
África Ocidental; traficado e envido para o Brasil até por volta de 1850, de algum porto na Costa
Mina, como os de Cachéu, Bissau, Ajudá, Lagos, Badagri, Popó Grande e Popó Pequeno;
podendo ser uma criança, um homem ou uma mulher adulta; pertencente ao povo axânti, hauçá,
ibo, fulani ou ioruba (nagô).
Nessa perspectiva, uma criança, um homem ou uma mulher adulta, preto/a e pardo/a,
nascidos na Valença de hoje, alguém da atual população negra valenciana, poderá ser
descendente de um desses Mina - descritos nos assentos paroquias, ainda guardados na Paróquia
de Nossa Senhora da Glória -, cuja estirpe levará aos hoje países: Gana; Togo; Benin; Nigéria.

47
SCHWARCZ, Lilia Moritz & GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da Escravidão e Liberdade, Op.
Cit., p. 127-128.
Todavia, saiba esse valenciano afro descendente que, é maior a probabilidade que sua genealogia
esteja ligada aos povos Angolas, Congos e Benguelas. Isto porque, os escravizados traficados da
região da África Centro-Ocidental - região que hoje engloba os países: Gabão; Angola; Congo;
República Democrática do Congo; República do Congo -, compuseram 57,79% da população
africana escravizada em Valença entre 1867-1888. E com uma probabilidade menor (de 16,86%),
seus antepassados podem ter vindo de ainda mais longe: do lado índico da África. Podem ser um
ou mais dos Inhambana, Monjollo e Moçambique, também cativos e registrados em Valença.

Tabela 2 – origem dos estrangeiros escravos em Valença (1867-1888)

Fonte: Registros paroquiais de batismos (1867-1880), casamentos (1865-1872) e óbitos (1862-1888) de escravos da
Freguesia de Nossa Senhora da Glória em Valença-RJ.

Ao final deste texto, esperamos que o leitar perceba que a história de Valença está
diretamente ligada ao sistema escravista brasileiro. Pois, condenados a trabalhar como escravos
até que a morte para eles chegasse, ou tivessem a oportunidade de se libertar do cativeiro,
milhares e milhares de homens, mulheres e crianças foram arrancadas de seu continente e jogadas
em uma terra estranha e sabe Deus com que canseiras, entregaram ao futuro fazendeiro da
faustosa era do café, o terreno de suas riquezas. Se muito se fala sobre a presença estrangeira
local, não diferente poderia ser sobre os africanos que habitaram Valença ao longo do século
XIX. Porque por trás do mito romântico da convivência entre as raças, negra, branca e indígena,
o que vemos em nome da religião, em nome dos interesses políticos, econômicos e inclusive das
ditas liberdades individuais sobre a propriedade, foi o massacre de duas delas pela terceira. O
escravismo, como se define, como se constituiu, no Brasil, tem uma escala que não se conhece
em outra região do mundo.

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