Você está na página 1de 2

Resposta aClóvis Moura, um Clro Flamarlon Cardoso

A melhor maneira de aquilatar aimnportûncia da rebeldia negra não consiste


em fornecer listas de quilombos, acompanhadas de comentários impressionists
As osiderações tecidas pelo sr meu texto foram explicitamente toma tal bibliografia é denunciada especifi eram afro-americanas ou se tornaram
Clóvis a respeito do meu peque dos da produção brasileira: é o caso do camente (ver, em especial, as pág. 7-8 tais (a costa do Peru, rnais tarde Cuba
no livro "Afro-Amrica: a Escravidão livro de Katia Mattoso nas partes so etc.) outras havia de característicay
no Novo Mundo'" (Brasiliense) em seu
bre economia e sociedade,
Cardoso das
acerca do'ldeias
e
queno livro
i recordar que meu pe
trata do sistemá escravista intermediárias, verdadeiros mosaicos
artigo publicado no Folhetim'" de de (a Nova Granada, por exemplo).
16.05.1982 deixaram-me a impressão C incompleta'" do escravo (p. 61) e das Américas em seu conjunto e nos O que realmente se queria salientar
ção seus diferentes ångulos econômico
de que ele não o leu inteiro, dos limites de elasticidade do sistema é que a urma mesma situaçáo juridica
contentando-se com a introdução, a sociais, além de abordar aquestão da
escravista (pp. 82-83), e da opinião de abolição: seria absurdo pretender luxo a de escravo negro Corresponde
conclusão e um ou outro elemento pin Otávio Ianni de que a análise da rela de detalhes acerca do que, no livro, é ram realidades muito diferentes onde
çado aqui e ali no corpo do texto. Ou
então, que a leitura foi tão apressada
ção capitalismo/abolição deve incluir um aspecto entre muitos outros, o da se desenvolveu a plantation ou a mina
Os elementos internos de capitalismo rebeldia negra. escravista, e onde tal náo se deu: e es
que não chegou a assimilar o lido. De presentes na própria Afro-América (p. Alonga exposição do autor referente últimafoi a situação mais típica da
outro modo seria difícil explicar a 90). àquestão da influência da revolução América Espanhola naquele periodo.
grande quantidade de afirmações ine haitiana sobre os escravos brasileiros 0 Peru era un caso particularmente
xatas ou simplesmente não verdadei da observação de ser complicado, já que continha, na costa,
ras que achamos no artigo em questão. vemreperc
preceu
Comecemos pelo fim. Pretende o sr. Contribuições de tal colocada sob rreserva
por mim. Isto não éverdade, embora
uma zona claramente afro-americana
em suas estruturas, enquanto as terras
Clóvis Moura gue, em meu livro, mani
festo um quase olímpico ne Marx e Weber de fato eu ache que a repercussão foi altas eram indo-americanas. Quanto
la producseo dos autores nacionais e aqui muito menor do que no Caribe e
nos Estados Unidos entre os escravos.
ao estudo de E. Harth-Terré(por sinal
umaprosternação quase que de coloni não tão recente: o artigo em que se re
zado diante de obras de autores estran Também segundo o sr. Clóvis Mou O contexto em que o tema surge no li fereescra
de à participação de indios no tráfico
VOe foi redigido
ra, afirmo categoricamente que Marx vro é oda discussão da tese de Genove ern 1960 e pu
geiros... muito pouco convincentes no e Weber se basearam em fontes insufi se acerca da influência ideológica blicado em 1966; o estudo de conjunto
seu trabalho teórico'". Prossegue di dos conteúdos ideológicos específicos mais completoe atualizado sobre a es
zendo o tratamento dado às obras cientes, e que houve contribuições fei dos projetos de líderes como Tous cravidão negra peruana é o de F. Bow
estrangeiras é privilegiado, enquanto tas no sentido de corrigir ou comple saint, essalines e Christophe para o ser, publicado em 1974), não se refere
em relação às brasileiras eu me esme mentar esses dois autores; logo de
raria "num rigorismo critico''. Deixe pois, acha surpreendente que tais con Haiti: isto é negado, mas a influência a uma situação típica da América Es
mos para depois a apreciação leviana tribuições não estejamexplicitadas no da própria revolução sobre os escravos panhola inteira, nem do Peru colonial
texto. Depende do que ele considere se de outras regiões é, pelo contrário, como um todo.
que faz o autor da bibliografia não bra afirmada (p. 91). A única menção ao Para concluir esta primeira parte de
exnliontuitodo meu
sileira. Note-se ja "explícitar" algo num livrinho da Brasil neste contexto foi no sentido de
exto, como
text na pág. 108, foi coleção "Tudo é História"! Pois nas achar inadequada a referência de Ge minha resposta ao sr. Clóvis Moura,
especialmente "chamar aten págs. 29-30 acham-se resumidos ele
novese às revoltas da Bahia como
quisera chamar a atenção para a pas
sagem do
ção...para a importate produção histo mentos dos trabalhos de R. Starobin seu artigo em que afirmou
riográfica acerca da escravidão no sobre a escravidão nas indústrias e es apoiando sua tese já mencionada (p. não querer, "em simples artigo de jor
tradas de ferro do Sul dos Estados Uni 92). nal, abordar certos aspectos teóricos'"
continente americano'', insuficiente
mente conhecida entre nós. Mesmo as dos, e nas págs. 40-41 os argumentos de do meu livro, preferindo continuar "na
sim, de 39 títulos citados ao longo do diversos estudiosos sobre a compatibi esteira do.. raciocínio'" que começara
texto, 12 são de autores brasileiros (en
tre os quais incluo, desde logo, Katia
de do escravismo com o progresso
lidade
técnico. E disto se trata. Situação na jáa desenvolver ou seja, limitando
se exclusivamente àquestäo das lutas
Mattoso).
Não me parece uma proporção des
Em nenhum momento se afirmou
coisa alguma em geral sobre "as fon América Espanhola dos escravos. Tal opção significou, de
fato, elaborar uma crítica que quase só
cabida, se atinarmos para o fato de tes em que se basearam Marx e We diz respeito a porção ínfimaa de um te
que o livro não versa sobre o escravis ber" em suas vastas obras, e sim espe Outra crítica levanta a questão da to bemnmais abrangente. Era seu di
mo brasileiro, e sim sobre o da cificamente sobre a documentação que posição relativa de negros e índios na reito; como éomeu indicar a distorção
América inteira Brasil, Antilhas e compulsaram para a análise da escra América Espanhola colonial. Tem ra que uma tal escolha não podia deixar
Guianas, Sul dos Estados Unidos, par vidão americana. No caso de Marx zão o autor ao se referir às observa de provocar.
tes da América Espanhola e consi apenas três ou quatro fontes citadas Ções desenvolvidas nas págs. 20-21 co
derando que certas áreas da mesma por ele, e delas só duas - Olmsted e mo sendo por demais generalizantes.
têm bibliografia muito rica, além de Cairnes - baseiam de fato os argu A intenção ali era de apontar o con
que as sínteses continentais atualiza
das foram escritas por autores como
mentos acerca das características es
truturais do escravismo americano.
traste - até meados do século 17 en
tre a Afro-América e a Indo-América,
Questão
Genovese e Rice, e não por brasileiros. Considerando-se a época em que escre ambas então em processo de forma de método
No entanto, revendo as críticas veu, e o peso das afirmações categóri ção. Na primeira, era
explícitas feitas ao longo do texto a au cas que fez neste ponto, éextrema escravidão negra em predominante a Creio que, no fundo, duas coisas irri
tores ou grupos de autores, não encon mente insuficiente. minas; na segunda, a exploração dos taram o sr. Clóvis Moura. Em primei
trei o que apontaosr. Moura:elas são Também me parece injusto dizer índios sob formas diversas, dentro e fo
dezoito, das quais três se referem a que minhas opiniões sobre a im ra das comunidades (razão pela qual, ro lugar, minha pergunta (pág. 9) so
portância histórica e o caráter das lu se excetuarmos o caso relativamente
bre se não estarão certos escritores in
conjuntos de autores brasileiros e de correndo em excessos interpretativos
outras nacionalidades (pp. 40-41, tas de escravos - as quais, aliás, o sr. tardio de Cuba, a América Espanhola
105-106 e 108-109),sete a autores brasi Moura não aborda na parte mais es recebeu somente 9,14% dos africanos ufanistas ao escrever acerca dos quI
leiros (pp. 9, 18, 39, 46, 56, 69 e 85) e oito pecífica (pp. 58-66) reflitam a 'in lombose das voltasS negras. Em se
desembarcados pelo tráfico durante guida, o fato de ,segundo tudo indi
a autores estrangeiros (pp. 39, 44, fluência da bibliografia tradicional so toda a sua duração, contra 39,22% che
ca, para ele meu livro representa um
76-79, 87-88, 88-89, 91-92 e 102). O leitor bre o assunto e que visa negar, basica gados ao Brasil e 46,95% ao Caribe).
notará, creio eu, o mesmo "rigorismo mente, a importância das lutas dos es Trata-se, evidentemente, de catego exemplo daquilo a que certa vez se re
erítico"' em todos os casos. Porrfim, al cravos.. no processo de transforma rias polares. Na imensa América Es Teriu em forma pejorativa como ""o en
guns dos arcabouços estruturais do ção do escravismo.'"" Pelo contrário, panhola, além de que certas regiões foque chamado erudito'" (C. Moura,
"Os Quilombros ea Rebelião Negra'", º

Domingo, 30 de maio de 1982 FOLHETÈM


sociologo apressado
Brasiliense, 1981, p. 7). Sua posição
acerca destes dois pontos ilustra algo
evidente: separam-nos profundas dife
eseravidão em Goiás, no Rio Grande
do Sul, no Rio de Janeiro, além de pes
quisas de docentes que também tra
renças de ordem metodológica. tam da escravidão e dos movimentos
Na minha opinião, a Históriaé uma negros.
disciplina que se está constituindo pro Acho, entretanto, que a melhor ma
gressivamente como ciência, sendo neira de aquilatar a importância efeti
obrigação dos profissionais da área va da rebeldia negra em relação aos
que realizam pesquisas o esforço para processos históricos em que se inseriu
que seja cada vez mais científica. Isto - importância extremamente va
implica várias coisas. Uma delas é a riável no tempo e no espaço- não con
comprovação
ses sistemáica das hipóte
de trabalho, derivadas de um mar siste em fornecer listas de quilombos
ou revoltas acompanhadas de co
co teórico determinado, diante da mentários impressionistas e mal docu
história real, dos dados coletados em mentados acerca de alguns deles, daí
função de tais hipóteses durante o pro partindo para generalizações apressa
esso de P e d Em tal processo, oS das. Isto conduz, justamente,,a uma
métodos da erudição histórica espécie de ufanismo um tanto infantil,
desempenham papel necessário (não como se se dissesse: Vejam,
suficiente, claro). O confronto com a pensava-se que os escravos raramente
documentação pode levar, eventual se rebelavam contra o sistema escra
mente, à modificação das hipóteses vista, e no entanto, quantos movimen
heurísticas formuládas a princípio. tos foram identificados no Brasil intei
Neste sentido deve ser entendido o re ro!" Certa vez, o historiador norte
paro de L. Manigat, que cito dando-lhe americano H. Aptheker, usando
o crédito (p. 9) e Moura menciona co critérios frouxos e pouco aceitáveis pa
mo se fosse da minha autoria: o de que ra a definição do que seriam revoltas e
quase todas as análises disponíveis so conspirações
uma quantidade deiimpressionante
escravos, mostrou
delas
bre a revolução do Haiti estão excessi
vamente marcadas por ideologias con ao longo da história do seu país entre
flitantes (""etno-nacionalismo", mar 1526 e 1860: com critérios mais do que
xismos de diversa coloração, negritu duvidosos como ponto de apoio, seu es
de, black power). forço chegou a resultados que não fo
È evidente que as ideologias influem ram levados a sério, e por excelentes
sobre os estudos científicos. Há inúme razões.
ros exemplos de férteis hipóteses
científicas derivadas de posições fi
losóficasetransformar
iste em
sist
até teológicas.
a hináeco Capitalismno
go que se valoriza por si mesmo, em lu
gar de vÇ-la como simples instrumento e aboliço
de pesquisa; pois em tal caso já se sa
be de antemão o que se vai demons
trar, e a História se transforma em Outro elemento essencial na trans
mera ilustração de teses tidas a priori formação da História em ciência, se
como verdadeiras e incontestáveis. gundo M. Bloch e muitos outros auto
res de peso, é o método comparativo
sistemática e adequadamen
acontrole de hipóteses explicativas
As interpretações e generalizações. Felizmente,
História comparada da escravidão
a
ufanistas tem avançado muito. É extremamente
pobre pretender opor uma historiogra
fia *brasileira" a uma estrangeira"
da escravidão, quando o mais interes
Quando falo de 'excessos interpre
sante e profícuo é identificar o que há Isto nos conduz à questão da tese de mo/abolição, mas a verdade é que, no
tativos ufanistas" sobre revoltase qui
lombos, não me refiro ao fato muito de comum e geral no sistema escravis Eric Williams, cuja crítica no meu li estado atual da questão, do que preci
positivo da valorização de tal ta americano; em bom método, esta é Vro é considerada 'exagerada e por samos é de pesquisas que aliem aima
temática na historiografia contem a ánica maneira de descobrir em se demais radical" pelo sr. Clóvis Moura. ginação teórica a sólidas e adequadas
porânea (brasileira e estrangeira). É guida o que, pelo contrário, cada caso Ist pretender tapar o
Sto e sinplesmenteCertos comprovações, depois de levarem
evidente que não ignoro as obras que especifico ten eventualmente de úni sol comn a aspectos im muito em conta os tropeços meto
co, de próprio. Mas a condição para tal portantes da tese de Williams dológicos de quem pretendeu compro
manifestam tal tendência Como var uma tese de âmbito extremamente
ignorá-las, se trabalho numn curso de é conhecer tudo o que, de importante, quais nada têm a ver com a existència
produz acerca do tema nas Améri- do comércio triangular, de que nin vasto com uma análise (aliás cheia de
Mestrado o da Universidade Fede se
ral Fluminense que atua ativamente cas em geral. Ainda mais quando tal guém duvida - já estão irremediavel inexatidões, como o demonstrou S.
produção, em diversos aspectos (um mente destruídos por argumentos ir Drescher) de algo tão parcial
Grä-Bretanboto
nesse campo? Nele se produziu a dis dos quais é o da demografia dos escra respondíveis. Nestas condições, é gra as relações da as
sertação já publicada de Lana Lage da
Gama Lima sobre a rebeldia negra na vos), estámuito mais avançada em ou ve, por simples ignorância de tal fato, suas Antilhas.
regiáo de Campos, dois textos sobre te tros países do que no Brasil. Com que continuar escrevendo como se nada
Moura. ocorrido -coisa que vêm fa
mente. tratar-se de produção taxativa
mas afins cuja publicação se prepara base declara o Clro Flamarlon Cardoso é professor de História
de auto- zendo alguns autores brasileiros. Acre na Universldade Federal Fluminense, autor de
(de Almir C. El-Kareh e Vilma P. de res "muito pouco convincentes no seu dito que ainda se voltarácom proveito "Afro-América: a Escravidão no Novo Mundo'
Almada ) foram redigidos, e estão em a explorar a vinculação capitalis (Brastllense).
elaboraçãooutros trabalhos acerca da trabalho teórico""?

FOLHET*M Dormingo, 30 de maio de is92 5

Você também pode gostar