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Resenha: Eros e Civilização – Uma


Interpretação Filosófica do
Pensamento de Freud | Passa
Palavra
12-17 minutes

[…] Eros e a Civilização é um livro de filosofia que tem o


objetivo de revisitar as ideias da psicanálise lançadas
inicialmente por Freud, criticá-las, relacioná-las ao âmbito da
sociedade de classes e destacar os aspectos ainda atuais das
teses de Freud, confrontando-os com o revisionismo dos
“neofreudianos”. Por Paulo Marçaioli

Considerações Preliminares

Hebert Marcuse (1898-1979)

Eros e Civilização foi escrito em 1955, correspondendo ao 4º


dos 10 grandes livros publicados em vida por Hebert

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Marcuse. O filósofo alemão está relacionado à Escola de


Frankfurt e, no imaginário comum, remete ao conjunto de
pensadores que influenciou as lutas do Maio de 1968 na
França.

De fato, Marcuse influenciou aqueles jovens ativistas. E muito


do que aparece em Eros e Civilização remete às inquietações
daquele movimento. A discussão sobre o problema da
sexualidade e sua vinculação às relações de poder e/ou
arranjos sociais e históricos de dominação e controle; a crítica
radical do trabalho alienado, explorando analiticamente os
significados simbólicos e psicológicos da exploração e da
condição humana em sociedades capitalistas; a sinalização
de novas formas de resistência, envolvendo particularmente a
crítica igualmente radical dos valores burgueses; enfim, tudo
isso sinaliza preocupações semelhantes entre o movimento
do Maio de 1968 e o filósofo.

No posfácio político da obra, escrito em 1966, Marcuse já


saúda os protestos estudantis norte-americanos contra as
guerras imperialistas como uma nova etapa da luta. Citando-
o:

Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na


sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra
e a carnificina neocoloniais, a queima de cartão de
recrutamento, a luta pelos direitos civis, mas também a
recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas
limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se à

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educação para a afluência. A nova boemia, os beatniks e


hipsters, os andarilhos da paz – todos esses “decadentes”
passaram agora a ser aquilo que a decadência,
provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade
difamada.

O livro, segundo nossa interpretação do posfácio político,


associa-se ao movimento de luta política, de “luta pela vida”.
Eros, a propósito, designa um deus relacionado à beleza e ao
amor sexual – ao longo do ensaio é tratado como sinônimo do
“instinto de vida”. A luta pela vida, por sua vez, assume um
significado de luta antissistêmica – luta contra o que Marcuse
chama de “princípio da realidade” das sociedades
repressivas. O instinto pela vida, hoje, passa a ser parte de
uma estratégia geral de luta contra o capitalismo – a
civilização em sua fase desenvolvida do ponto de vista da luta
contra a escassez cria condições objetivas para a construção
de uma sociedade igualitária baseada na socialização do
trabalho e da política.

Finalmente, Eros e a Civilização é um livro de filosofia que


tem o objetivo de revisitar as ideias da psicanálise lançadas
inicialmente por Freud, criticá-las, relacioná-las ao âmbito da
sociedade de classes e destacar os aspectos ainda atuais das
teses de Freud, confrontando-os com o revisionismo dos
“neofreudianos”.

Marcuse parte de algumas categorias que são estranhas a


um leitor que não conhece Freud. Logo no capítulo 2,

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Marcuse, provavelmente atento a tal fato, resgata e descreve


didática e rapidamente conceitos da psicanálise – id, ego,
superego, repressão, princípio de realidade. A esses termos,
acresce outros, destinados a contemplar uma perspectiva
mais ampla (que leva em consideração a história e os
conflitos de classe), propondo alguns termos novos. “Mais
Repressão”, a “restrição requerida pela dominação social” e
“princípio de desempenho”, a “forma histórica do princípio de
realidade”.

Seja como for, vale ponderar que a leitura deste ensaio de


Marcuse nos pareceu bastante difícil. Com certeza, algumas
discussões da obra escaparam-nos. Ainda assim, Eros e
Civilização é um livro que vale ser lido: desafiar-se enfrentar o
complexo tema da subjetividade humana, dos desejos
libidinais e do impulso pela morte, da repressão moral e do
problema da sexualidade no capitalismo, cria melhores
condições para, hoje, avaliarmos novas formas de lutar frente
a uma compreensão mais elaborada da realidade e de suas
contradições.

Marcuse interpreta Freud

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O objetivo do ensaio é resgatar as ideias de Freud acerca do


problema dos instintos humanos na civilização. O “mal estar
da civilização” de Freud diz respeito às contradições
supostamente insolúveis entre as exigências do instinto em
oposição às exigências da vida em sociedade. Marcuse
propõe-se, como indica o título, fazer uma interpretação
filosófica de Freud. Isto significa que sua interpretação de
Freud não remete a certa abordagem “terapêutica”, que irá
circunscrever as possibilidades de reflexão lançadas pelo pai
da psicanálise a um conjunto meramente instrumental de
práticas cujo objeto exclusivo é atenuar o sofrimento e a dor
do indivíduo egoísta, solitário e alienado. Esta interpretação
filosófica cumpre, igualmente, a função de demarcar os limites
e as possibilidades das ideias de Freud para a luta
antissistêmica.

Os limites dizem respeito ao já conhecido ceticismo do pai da


psicanálise com relação ao socialismo, ou, no que se refere à
crítica marcusiana, à suposta inevitabilidade do “mal estar da
civilização”. A naturalização do “mal estar da civilização” é
oposta à adequação dos conflitos entre desejos individuais e
exigências da civilização, à história e aos conflitos de classe.

Vamos citar, nesse sentido, a crítica da teoria dos instintos.

Contudo, na teoria de instintos, Freud não extrai quaisquer

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conclusões fundamentais, a partir da distinção histórica,


atribuindo a ambos os níveis uma validade geral e igual. Para
a sua metapsicologia não constitui fatos decisivo se as
inibições são impostas pela escassez ou pela distribuição
hierárquica da escassez, pela luta pela existência ou pelo
interesse na dominação. E, com efeito, os dois fatores – o
filogenético-biológico e o sociológico – cresceram juntos na
história documentada da civilização.

Mas a sua união desde há muito se tornou “inatural” – e o


mesmo aconteceu à “modificação” opressiva do princípio do
prazer pelo princípio da realidade. A sistemática negação, por
Freud, da possibilidade de uma libertação essencial do
primeiro implica o pressuposto de que a escassez é tão
permanente quanto a dominação – uma hipótese que nos
parece discutível.

A noção de civilização em Freud passa a ser extrapolada por


Marcuse. O viés marxista de sua reflexão filosófica sobre a
psicanálise diz respeito, portanto, ao debate sobre as formas
como se dão a repressão instintiva partindo do pressuposto
de que a realidade pode/deve ser superada e em como uma
sociedade pós-repressiva deveria se diferenciar da sociedade
do capital.

As críticas ao revisionismo neofreudiano são, finalmente,


objeto de um capítulo exclusivo do ensaio. E neste ponto,
Marcuse busca retirar as possibilidades do pensamento de
Freud, confrontando-o com a orientação de neofreudianos. De

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maneira geral, a psicanálise criticada por Marcuse


corresponde àquela que tem compromissos exclusivos com a
“cura” de pacientes. A abordagem terapêutica dos
neofreudianos deve operar de forma a desconsiderar o
problema dos controles repressivos forjados pelo Estado,
família, trabalho alienado, etc. “O analista e seu paciente
compartilham dessa alienação, e como esta não se manifesta,
usualmente, em qualquer sintoma neurótico, mas, pelo
contrário, como timbre de ‘saúde mental’, não aparece na
consciência revisionista [das ideias de Freud]”. É interessante
notar como, diante dos distintos pressupostos, a psicanálise
freudiana pode tanto atuar num sentido emancipatório quanto
num viés bastante reacionário. Exemplificando este último
viés, Marcuse cita Sullivan que, em estudo sobre neuroses,
identifica a conduta de um indivíduo “depreendido
voluntariamente” das amarras do senso comum e que, por
livre escolha, adota uma ideologia (ou consciência) radical
como sinal de “grande insegurança” ou loucura. Marcuse, por
suposto, ridiculariza Sullivan. Levada ao pé da letra, a tese de
Sullivan faria de Jesus a Lênin, Sócrates a Giodarno Bruno,
perigosos psicopatas.

Finalmente, Eros e a Civilização municia especialistas em


psicologia e psicanálise preocupados em entender os
fenômenos da neurose individual, da depressão ou do “mal
estar da civilização” como sintomas de um mundo igualmente
doente e que deve ser revolucionado.

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O papel da libido na luta antissistêmica

Na nossa opinião, o capítulo mais interessante de Eros e a


Civilização é o décimo, “A transformação da Sexualidade em
Eros”. Desde que Marcuse não compartilha da tese de Freud
e dos neofreudianos da “naturalização” da sociedade
repressiva, o filósofo alemão se aventura corajosamente a
pincelar o que seria e quais seriam os requisitos de uma
sociedade não repressiva. (Interpretamos ser a sociedade
não repressiva a sociedade comunista).

A nova cultura não repressiva tem como eixo central nova


relação entre a razão e os instintos. O trabalho não-
gratificante passa a ser objeto de prazer, inclusive libidinal.
Todo o padrão de prazer libidinal deverá sofrer alterações tão
radicais que subverterão e desintegrarão instituições
organizadas a partir de relações privadas interpessoais. A
família monogâmica e patriarcal, por suposto, desaparece e a
transformação da libido (de uma sexualidade refreada a uma
espécie de “prazer total”) exigirá mudanças profundas nos
marcos políticos e societários. Por isso, a luta de Eros, deus
da beleza física e do amor sexual, é uma luta política.

Como conclusão, vamos transcrever dois parágrafos do


capítulo 10. Optamos por finalizar esta resenha com esta
passagem, já que aqui surgem boas provocações para
reflexão e para a atuação.

A complexidade e densidade discursiva do ensaio de Marcuse


devem permanecer inquietando os espíritos críticos e

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servindo como fonte teórica para a luta contra o capital.

Freud realçou repetidamente que


as duradouras relações interpessoais de que a civilização
depende pressupõem que o instinto sexual é inibido em seus
fins. O amor, e as relações duradouras e responsáveis que
ele exige, baseiam-se numa união de sexualidade com o
“afeto”, e essa união é o resultado histórico de um longo e
cruel processo de domesticação, em que a manifestação
legítima do instinto se torna suprema e suas partes
componentes são sustadas em seu desenvolvimento. Esse
refinamento cultural da sexualidade, essa sublimação do
amor, tem lugar numa civilização que estabeleceu relações
possessivas particulares separadas e, num aspecto decisivo,
conflitantes com as relações sociais de posse. Enquanto, fora
do privatismo da família, a existência do homem foi
principalmente determinada pelo valor de troca dos seus
produtos e desempenhos, sua vida no lar e na cama foi
impregnado do espírito da lei divina e moral. Supôs-se que a

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humanidade era um fim em si e nunca um simples meio; mas


essa ideologia era efetiva mais nas funções privadas do que
nas sociais dos indivíduos; mais na esfera da satisfação
libidinal do que na do trabalho. A força plena da moralidade
civilizada foi mobilizada contra o uso do corpo como mero
objeto, meio, instrumento de prazer; tal coisificação era tabu e
manteve-se como infeliz privilégio de prostitutas, degenerados
e pervertidos. Precisamente em sua gratificação e, em
especial, em sua gratificação sexual, o homem tinha de
comportar-se como um ser superior, vinculado a valores
superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor.
Com o aparecimento de um princípio de realidade não-
repressivo, com a abolição da repressão requerida pelo
princípio do desempenho, esse processo seria invertido. Nas
relações sociais, a coisificação reduzir-se-ia à medida que a
divisão do trabalho se reorientasse para a gratificação de
necessidades individuais desenvolvendo-se livremente; ao
passo que, na esfera das relações libidinais, o tabu sobre
coisificação do corpo seria atenuado. Tendo deixado de ser
usado como instrumento de trabalho em tempo integral, o
corpo seria ressexualizado. Essa mudança no valor e
extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração
das instituições em que foram organizadas as relações
privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica
e patriarcal.

Com exceção da foto inicial, as esculturas são de Ron Mueck.

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