Você está na página 1de 9

Nossa América entre as décadas de 1960 e 1970.

O contexto sócio-histórico da Reconceituação1.

Por: Juan Pablo S. Tapiro2.

O Movimento da Reconceituação é sem dúvida um divisor de águas no processo


de desenvolvimento do Serviço Social na Nossa América3, a partir de aí se inicia o
que Netto (2008) denomina a intenção de ruptura. Além disso, todas as expressões
do debate profissional que se assumem como críticas (muito diversas, algumas
inclusive sendo expressão contemporânea de uma nova modernização
conservadora, endogenista-epistemologista4), de uma ou outra forma incorporam
nas suas reflexões balanços sobre esse Movimento.

A cada dez anos é comum que se realizem diversos trabalhos e artigos sobre o
Movimento da Reconceituação e o seu legado. Ainda até hoje, são vários os
debates em aberto, com desenvolvimentos muito diferentes em cada país da região.
Mesmo assim, é difícil encontrar uma análise do contexto que vá além da
enunciação de alguns elementos comuns, pelo menos em muitos desses trabalhos
e artigos. Isto pode acontecer em decorrência das limitações de espaço para a
exposição. O que certamente é diferente já no caso de dissertações de mestrado e
teses de doutorado.

1
Este texto é um rascunho inicial de uma produção necessária para a disciplina Fundamentos do Serviço Social
II, mas que certamente precisa ser ampliado e aprofundado pensando em uma publicação que contribua na
análise e exposição do contexto no qual surge, se desenvolve e entra em crise o Movimento da
Reconceituação no Serviço Social na Nossa América. Este rascunho é produto de reflexões em diversas
disciplinas, como professor, na Universidade Federal da Integração Latino-americana (2016-2017), da
Universidad Santiago de Cali (2017-2020) e como convidado do Mestrado em Trabalho Social da Universidad
del Centro de la Provincia de Buenos Aires (2021).
2
Professor adjunto da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3
Recuperamos aqui a célebre expressão do cubano José Martí, para fazer referência a unidade da história dos
nossos povos e a necessária unidade das nossas lutas, desde o Rio Bravo até Magalhães.
4
Para uma aproximação sobre as tendências do debate profissional que se assumem como “críticas” ver
Sierra-Tapiro (2021).

1
O que se pretende com este texto é precisamente contribuir em uma síntese do
contexto da Reconceituação, não com a pretensão de trazer novos elementos, mas
de facilitar aos estudantes uma aproximação geral que, pelo menos na revisão que
fizermos até agora, não encontramos5, sobre o contexto da região entre as décadas
de 1960 e 1970.

A continuação, o texto se divide, na sua exposição, em duas partes: 1) o surgimento


da estratégia contra-insurgente no desenvolvimento capitalista-imperialista na
Nossa América; 2) sobre a mal chamada “guerra fria” enquanto o mundo fervia.

1) O surgimento da estratégia contra-insurgente no desenvolvimento


capitalista-imperialista na Nossa América.

A década de 1960 e 1970 está atravessada por um conjunto de processos de


agudização da luta de classes, de levantamentos populares, luta armada, de
terrorismo de Estado e ditaduras cívico-militares. Mas para entender esse momento
histórico é preciso ir um pouco mais atrás, ao surgimento da estratégia contra-
insurgente.

Após a II Grande Guerra inter-imperialista, a denominada II Guerra Mundial (1939-


1945), os Estados Unidos da América do Norte (EUA) ficaram no comando do
mundo capitalista e se deu uma reorganização da dominação imperialista.

Essa reorganização se apresenta tanto no âmbito da coerção, como do consenso


(político-cultural e econômico). E para isso era necessária, por sua vez, uma nova
institucionalidade, tanto nas Américas como no mundo todo, o que poderíamos
sintetizar assim:

5
A disciplina de Fundamentos do Serviço Social II, neste período (2021-1), está sendo trabalhada em conjunto
com a professora Mary Jane de Oliveira Teixeira.

2
Na reorganização da coerção, sob a roupagem de “defesa”, se gera uma
coordenação das forças armadas, comandada pelas forças militares
estadunidenses.
- Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). Assinado em 1947 no
Rio de Janeiro – Brasil.
- Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Assinado em 1949 em
Washington – EUA.

Na reorganização do consenso político

- Organização das Nações Unidas (ONU), 1945. Embora seja um acordo entre os
países vencedores na denominada II Guerra Mundial, para supostamente manter a
paz mundial, é evidente a hegemonia histórica dos EUA que, inclusive quando não
concordam com a vontade da maioria, simplesmente fazem a sua vontade
particular.
- Organização dos Estados Americanos (OEA). Formada em 1948 em Bogotá –
Colômbia. Aqui sim é completamente evidente a dominação estadunidense, na sua
pretensão de expansão na região, sob a “doutrina Monroe” da América para os
Americanos6.

Na reorganização do consenso econômico e para a dominação financeira;/


- Banco Mundial (BM). Criado em 1944.
- Fundo Monetário Internacional (FMI). Criado em 1945.
- Banco Interamericano de Desenvolvimento. Criado em 1959.

Além disso, a Europa ocidental iniciava um processo de reconstrução, tendo como


suporte o Plano Marshall, financiado pelos EUA. E na América Latina se cria em
1948 a Comissão Econômica para América Latina CEPAL (vinculada à ONU), para

6
A doutrina Monroe surge já no século XIX em confronto com o projeto de unidade bolivariana e da tentativa
da soberania dos nossos povos, iniciada nas lutas pela independência em vários países da região, nessa
doutrina se expressa o suposto Destino Manifesto dos EUA, o que implicaria a sua superioridade e por tanto
a necessidade de dominar as Américas todas.

3
incentivar a cooperação econômica. Durante as décadas de 1950 e 1960 haverá
uma forte ênfase em políticas desenvolvimentistas para a região a partir da CEPAL
e da OEA.

É nesse processo de reorganização da dominação imperialista, que surge a


estratégia contra-insurgente. A partir da qual se estabelecem as práticas de
enfrentamento às classes trabalhadoras e aos setores subalternos, segundo as
particularidades de cada formação social e das lutas de classes; mas tendo em
comum uma mesma base: a Doutrina de Segurança Nacional e do Inimigo Interno.

É nesse espírito que se cria a Escola das Américas em 1946, para a formação de
militares de toda a região no suposto combate ao comunismo, o que na verdade
não é mais do que práticas de terrorismo de Estado no enfrentamento da questão
social, das lutas de classes, dos trabalhadores mais pauperizados e de todos
aqueles setores da sociedade que decidiram reivindicar direitos sociais e melhores
condições de vida.

Assim, a estratégia contra-insurgente foi – e ainda é – fundamental para o


desenvolvimento capitalista-imperialista na região, tanto na sua estratégia
desenvolvimentista, nas décadas de 1950 e 1960, como na estratégia neoliberal,
como resposta à crise estrutural do capital, iniciada na década de 1970.

2) Sobre a mal chamada “guerra fria”, enquanto o mundo fervia.

Após a Grande Guerra inter-imperialista (II Guerra Mundial), na qual os EUA e a


União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foram aliadas, junto com a
Inglaterra e a França (para derrotar o nazismo alemão, o fascismo italiano e o
Japão) e com a conformação da ONU (na expectativa de garantir supostamente a
paz mundial, entendido isso como um não enfrentamento bélico entre as grandes
potências – os EUA do denominado primeiro mundo capitalista e a URSS do
denominado segundo mundo, socialista) se inicia a mal chamada “guerra fria”, um

4
processo de disputa pelo mundo que seria mais no âmbito ideológico e cultural, já
que um enfrentamento bélico poderia implicar em uma guerra atómica-nuclear como
ameaça para toda a humanidade. A “guerra fria” teria finalizado, supostamente, com
o fim da URSS em 1991.

Mas, na verdade, durante todo esse período, o mundo fervia com processos de luta
pela libertação nacional, luta pelo socialismo, processos emancipatórios diversos
ao longo dos cinco continentes; e a resposta por parte dos Estados capitalistas e do
imperialismo foi o reforço e a intensificação da estratégia contra-insurgente.

Alguns dos processos que evidenciam que o mundo fervia são:

1949 – Revolução chinesa. De caráter socialista (aliada da URSS), num país


continental, o que implicou num alerta para os EUA e a sua intervenção em outras
guerras de libertação na Ásia.

1950 a 1953 – Guerra de Libertação da Coréia, conhecida por nós como a “Guerra
da Coréia”. Que terminou com a cisão permanente entre a República Democrática
da Coréia (Coréia do Norte, de carácter socialista, aliada da URSS e da China) e a
Coréia do Sul (aliada dos EUA).

1955 a 1975 – A guerra imperialista da Indochina (conhecida por nós como a Guerra
do Vietnã). Após a libertação do povo do Vietnã como colônia francesa, e dado o
seu caráter socialista autodeterminado, os EUA intervêm pretendendo uma cisão
como ocorreu na Coréia. Após 20 anos de guerra e brava resistência do povo (com
o apoio da URSS e da China), os EUA tiveram que sair e parar a intervenção, já
quando se detonava a crise estrutural do capital e havia uma forte recusa, por parte
do próprio povo dos EUA, à essa intervenção.

1959 – Revolução cubana. Como primeira revolução triunfante na Nossa América,


pela via armada, contra o imperialismo, o que inspirou diversos levantamentos

5
populares e de luta armada na região; mas que, por sua vez, pôs os EUA em alerta.
Não por acaso nesse ano se cria o BID e em 1961 se cria a estratégia de Aliança
para o Progresso, com a promessa de desenvolvimento capitalista, implicando na
expulsão de Cuba da OEA em 1962.

Além de várias outras lutas e guerras de libertação nacional na Nossa América e na


África, também havia expressões de luta social na Europa ocidental, cujo momento
mais destacado ficou conhecido como o Maio de 68 ou o Maio Francês, com um
protagonismo da juventude, estudantil e trabalhadora, mas que na verdade não foi
só na França, nem só em 68, tendo repercussões, inclusive, na Nossa América.
Nesse movimento se colocaram em xeque os valores da sociabilidade burguesa no
seu conjunto, sendo a primeira expressão cultural e política da crise estrutural do
capital. Já nos EUA surgia e se desenvolvia, entre as décadas de 1950 e 1960, um
movimento, muito diverso no seu interior (incluindo táticas civilistas e armadas), na
luta pelos direitos civis do povo negro, o que terá repercussões na luta anti-racista
em todo o ocidente.

Estas expressões de lutas não foram somente parte de uma disputa cultural,
insistimos na resposta brutal dos Estados capitalistas e do imperialismo, com
práticas de repressão generalizada, prisões arbitrárias, assassinatos, entre outras.

Outra expressão das lutas emancipatórias foi o processo de renovação no interior


da Igreja Católica, iniciado com o Concilio Vaticano II, com Juan XXIII e que vai
chegar na Teologia da Libertação com a Conferência Episcopal de Medellín
(Colômbia), em 1968. A partir daí o amor eficaz, promovido pelo Cura Camilo Torres
Restrepo (assassinado em 1966), implicará num compromisso com as lutas dos
povos, dos pobres, que se traduz não em poucos casos, mas, inclusive, na
participação direta nas organizações de luta em toda a Nossa América.

6
Já na década de 1970, se realizará a primeira experiência de tentativa de uma
transição ao socialismo pela via das instituições democráticas burguesas, com o
Governo da Unidad Popular, no Chile. O Programa desse governo, sob a
Presidência de Salvador Allende, implicava em reformas democráticas econômicas,
políticas, sociais, em uma clara perspectiva anti-imperialista e internacionalista.
Desde o momento em que o Allende foi eleito começou o processo de boicote e
inclusive de atentados, até que em 11 de setembro de 1973 foi dado o golpe civil-
militar, onde se inicia a primeira experiência de neoliberalismo no mundo.

Nessa década as ditaduras se expandem por toda a região, mas especialmente no


cone sul, implementando-se o chamado Plano Condor, como uma articulação das
forças militares no processo de perseguição a qualquer expressão de crítica ou
resistência. Aqui se materializa plenamente o TIAR e os ensinamentos da Escola
das Américas, como parte do momento mais brutal da estratégia contra-insurgente.

Na segunda metade da década de 1970, todos os países do cone sul estavam já


em ditadura: Paraguai (1954-1989, com a particularidade de ser uma ditadura mais
parecida com as do Caribe, um processo autocrático ainda com traços coloniais),
Brasil (1964-1985, com a particularidade de que foi um golpe “preventivo’, pelas
reformas democráticas impulsionadas pelo Governo João Goulart – Jango -; essa
ditadura iniciou ainda em um momento de plena expansão desenvolvimentista),
Uruguai (1973-1985), Chile (1973-1990) e Argentina (1976-1983).

Já no final da década de 1970, os povos trabalhadores de toda a Nossa América


retomavam as ruas, as mobilizações sociais iam em ascenso, se apresentava uma
crise de direitos humanos visível ao mundo, e, por sua vez, teve expressão a crise
estrutural do capital, que havia detonado no início da década no centro do capital,
com uma nova crise econômica nos países da região.

7
Assim, a região seguia fervendo. Inclusive em 1979, na Nicarágua, triunfa uma
segunda revolução por meio da luta armada, o que novamente inspira diversas
expressões de resistências e lutas.

Nesse novo cenário de crise econômica e política, e de desgaste das ditaduras,


inicia um processo de institucionalização da contra-insurgência (ver Murga e
Hernández, 1980), já estipulado pelos EUA desde finais da década de 1970, mas
que se concretiza a partir de década de 1980 (com processos de democratização
restringida onde havia ditaduras, e processos de paz onde havia luta guerrilheira),
com particularidades segundo a própria luta de classes em cada país.

Esse processo de institucionalização da contra-insurgência chega até nossos


tempos, com o Acordo de Paz entre o Estado da Colômbia e as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), os estatutos anti-
terroristas na maioria de países da região, e, inclusive, as novas modalidades de
golpe “legal”, entre outros.

É nesse contexto convulsionado de auge das lutas sociais e de classes que se


desenvolve o Movimento da Reconceituação do Serviço Social na Nossa
América. É preciso seguir aprofundando sobre esse momento histórico e pensar as
mediações com o movimento da profissão, que certamente não pode ser explicado
a partir de si mesmo.

Bibliografia.

MURGA, A. - HERNÁNDEZ L.. Contrarrevolución, lucha de clases y democracia en


América Latina. En: Cuadernos políticos. No. 25. Ediciones Era. México.
1980. http://www.cuadernospoliticos.unam.mx/cuadernos/contenido/CP.25/CP.25.
7.Murga_Hernandez.pdf
NETTO, José Paulo (2005). Ditadura e Serviço Social. Uma análise do Serviço
Social no Brasil pós-64. Cortez Editora. 8a edição. São Paulo.

8
Sierra-Tapiro, J. P. (2021). ¿Qué Trabajo Social crítico? Una aproximación a
debates contemporáneos sobre las perspectivas históricas para pensar la profesión
en NuestrAmérica. Revista Eleuthera, 23 (1), 157-179. DOI:
http://doi.org/10.17151/eleu.2021.23.1.9. Disponible en:
http://190.15.17.25/eleuthera/downloads/Eleuthera23(1)_9.pdf

Você também pode gostar