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Introdução
O regime se configurou como ditadura dos seus momentos iniciais ao seu declínio e
à sua derrota: impôs abertamente pela força das armas, valeu-se da coerção e da
violência, restringiu ao limite os direitos políticos mais elementares, impediu a
alternância no poder e no governo, criminalizou a atividade oposicionista, tornou o
terror uma política de Estado, feriu os direitos humanos fundamentais e renegou tanto
as instituições jurídicas reconhecidas como democráticas e legítimas quanto a sua
própria retórica (suas promessas e seus compromissos públicos). (NETTO, 2014, 11)
*
Graduando em História pela Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão. Pesquisador Júnior do Grupo
DIALOGUS.
pela cotidiana coerção. É neste ano de 1978 que surge o movimento homossexual brasileiro.
Contra o silêncio e a pseudo boa moral surge o Lampião da Esquina 1978-1981.
Após algumas reuniões e acertos, o jornal confeccionado no Rio de Janeiro escorreu por
várias bancas de todo o Brasil, seja pela rede constituída através de seus jornalistas, seja pelo
seu jogo político através do método de mala direta. Em seu primeiro número, o jornal propunha
aquilo que seria o seu Norte: “criar uma consciência homossexual, assumir-se e ser aceito”
(RODRIGUES,2014, 93).
Ao trazermos a pauta sobre as violências e resistências das travestis nas linhas do jornal,
objetivamos neste texto afunilar um pouco mais a lente sobre as relações dialógicas da
comunidade LGBT e o Estado num processo de pesquisa iniciado em 2016 sob orientação da
professora Lilian Marta Grisólio. Reduzindo a nossa malha de possibilidades, focalizamos na
questão destes sujeitos históricos porque se há ainda uma reduzida produção sobre a história da
homossexualidade masculina no país, é visível que no caso das transexualidades está escrita da
história seja ainda menor.
Para romper com este silêncio e possibilitar que todos os sujeitos da sopa de letrinhas
tomem conhecimento de seu passado histórico, para além da memória coletiva, esperamos aqui
debater três casos específicos de experiências trans no jornal Lampião da Esquina até em seu
30º número, quando o periódico toma um outro norte que não nos cabe refletir aqui. Neste
sentido, esperamos discutir a entrevista Dois travestis, uma advogada: três depoimentos vivo
do sufoco de dezembro de 1979 no n.19; Transexualismo: um julgamento moral do n.5 e o caso
de Verushka no número 10.
Peter Drucker (2017) vem nos alertando das investidas destemidas da criação,
emergência e afirmação de um comportamento homossexual que estabelece relações de
inclusão ao sistema heteronormativo e também relações de exclusão à pluralidade das vidas
LGBTs. Neste meio tempo, uma questão tem permanecido em aberto mesmo com os ganhos
reais e certas vitórias empreendidas pelo antigo movimento homossexual e agora LGBT. Sob
estas condições sócio históricas e a permanência da discriminação contra travestis e transexuais
é que nos propomos rever brevemente alguns sintomas de permanência e de transformações a
partir de um recuo histórico que nos remete aos últimos anos do regime ditatorial.
Entre bofes, bichas, entendidos e bonecas circulavam também as identidades trans não
muito claras e frequentemente assimiladas como uma parte das identidades das bonecas. Como
nos lembra Green (2000), as identidades homossexuais pautadas na posição sexual, ativo e
passivo comportavam formas de apresentação dentro da díade masculino e feminino em que as
bonecas e bichas frequentemente estavam associadas. A nova identidade homossexual colocada
já nos fins da década de 1950 o entendido, começava a se desenhar dentro da comunidade gay
conforme MacRae em sua etnografia sobre o SOMOS† e posteriormente em seu livro publicado
em conjunto com Peter Fry (1985) discutindo O que é a homossexualidade?
¹† Primeiro grupo politizado a iniciar a discussão sobre a homossexualidade no país. Fundado em 1978, o grupo
homenageou a Frente da Liberação Homossexual Argentina adotando o nome da revista publicada entre 1973-
1976. O pioneirismo do SOMOS tem sido estudando amplamente pelas ciências humanas e em específico
dentro da historiografia que assume a discussão de uma história da homossexualidade masculina no país.
aquele que destinou a Vicente Fiuri, o travesti Verushka, morador do prédio a
quatro anos: a partir de sua posse como síndico ele só poderia continuar
usando o elevador social do prédio se trocasse suas vestimentas por roupas
“estritamente masculinas”. (SILVA, 1979, n.10, p.3)
Compreendemos aqui que a violência sofrida por Verushka se enuncia na forma civil de
organização de valores que não só nortearam o regime como também orientavam a parcela não
militar apoiadora de golpe de 1964. Como nos lembra a chamada do número 10, o direito de ir
e vir da travesti lhe foi retirado mesmo apresentando a sua carteira de identificação como artista
de número 0005º adquirido pela própria Censura Federal. Mesmo apoiada pelo aparato legal do
regime, o preconceito secular que formavam os valores desta sociedade reiterava a
discriminação.
Verushka, conforme Aguinaldo Silva aponta em seu texto nos traz a tentativa de recorrer
juridicamente quanto a isso. A travesti contrata uma advogada e tenta trilhar alguma saída para
as arbitrariedades do síndico: “a advogada para defender os interesses de Vicente foi impetrar
uma ação judicial, pedindo uma medida cautelar contra atitude proibitória do síndico: caberá
ao juiz da 14ª Vara Cível precisar o caso e conceder uma liminar” (SILVA,1979, n.10, p.3).
Mesmo não sabendo o desfecho desta história, conseguimos delimitar uma das
alternativas frente ao preconceito. Estas formas de luta jurídica, se apresentaram no jornal a
partir da trajetória do próprio inquérito sofrido pelo Lampião entre 1978-1979 que teve seu
desfecho com o arquivamento do caso e pela absolvição do caso contra o jornalista Celso Curi,
denunciado por fazer um correio elegante em 1976 trazendo homossexuais para as páginas do
jornal Última Hora.
A denúncia e o poder do Estado surgem com duas formas específicas de controle das
questões ligadas as sexualidades e identidades disparatadas. Em primeiro lugar a tentativa de
controle para dar manutenção a boa moral e em segundo lugar trazer um processo de
invisibilização com as investidas dos controles dos locais de socialização relacionados ao
conhecido gueto homossexual e na política de higiene pública que veremos mais adiante.
O sensacionalismo era vez ou outro interrompido pelas falas de alguns médicos fazendo
a distinção sobre homossexualidade e as transexualidades, cometendo os frequentes erros sobre
a discussão de identidade e de orientação sexual e por último ao convidado especial do Lampião
da Esquina, o editor, crítico e repórter Darcy Penteado. E o auge fatídico do programa se deu
quando o apresentador retoma a fala e conduz para o fim o quadro:
[...] só então retomou a palavra, para, num tom melodramático, dizer que ele
era a grande vítima de tudo isso: pois prometera a José Edimilson, o rapaz
cearense, que o ajudaria que o encaminharia aos médicos para que estes
mudassem o seu sexo, mas que agora, coma condenação do Dr. Farina,
nenhum médico ousaria repetir a operação no Brasil, pelo o que seu caso ia
permanecer sem solução. O programa terminou com um close do José
Edmilson, perplexo e à beira do choro, provavelmente, entendendo que viera
até ali, que se desnudara diante milhões de pessoas, para nada. As chacotas,
as humilhações sobre as quais ele falara, os problemas com a família, nada
disso terminaria, sendo possível até que a súbita notoriedade que sua aparição
na tevê provocaria e as multiplicasse. (LAMPIÃO DA ESQUINA, 1978, n.5,
p.5)
Estas prisões, quando devidamente efetuadas não tinham um prazo final. A corrupção
policial a partir do pagamento de alguns bons cruzeiros nem sempre funcionava e quando estas
estavam presas poderiam passar de 3 dias há um mês. Em um relato sobre os dias na prisão
Flávia conta a história de uma passagem traumática.
Flávia – Eu estava lá. As do babado elas ficaram revoltadas. As do babado são
as que se cortam, dão escândalo, apanham, chegam na polícia e já viram a
máquina do delegado. É, tem travesti que é assim; quando são presos eles se
revoltam e pegam o delegado, batem nele. Daí o delegado leva eles pro xadrez.
Naquele dia, eles tiraram toda a roupa e tacaram fogo. Foi aquele fumacê na
cela, todo mundo gritando. E aí falaram: vamos cortar todos juntos. Uma dava
a gilete para a outra... já fazia quatro dias que estavam lá; então, se cortavam
para ver se levavam eles pro hospital porque lá o pessoal tem medo do
escândalo e solta elas. (DOIS, 1979, n.19, p.6)
Considerações Finais
Os sujeitos que compõem a sopa de letrinhas LGBT, constituem uma camada social
ainda vulnerável mesmo depois de 40 anos de politização a partir da luta de emancipação destes
sujeitos e da reestruturação de suas representações. Ainda hoje, permanecem as marcas da
violência contra esta parte da população. O Estado, diferentemente do período militar tem aos
poucos rearticulado suas formas de lidar com a questão das identidades e sexualidades
disparatadas.
A urgência em compreender o período entre 1964-1985 surge como uma maneira
analisar historicamente as relações umbilicais e dialógicas entre as violências e resistências, na
parte mais vulnerável do grupo LGBT. Travestis e transexuais tem sofrido ainda hoje esta
relação de marginalização e de coerção por poderes que se instituíram e desenvolveram já na
noite de abril. Reconhecer estas relações e as possibilidades de produção de resistência podem
criar perspectivas de reestruturação das pautas do próprio movimento LGBT hoje.
Entre chacotas televisivas, negação do espaço público, vítimas de um discurso da moral
e dos bons costumes ilustrados no processo de prisão de Flávia e suas amigas é possível concluir
que na historiografia, como historiadoras e historiadores é preciso inscrever estes sujeitos e
permitir a eles ter o acesso ao seu passado. Ao passado de luta, resistência e dor. Apenas ao
reconhecermos todas estas relações iniciaremos o pagamento de uma dívida histórica
imensurável para esta parte da população brasileira.
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