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NAVALHA NA BOCA: VIOLÊNCIAS E RESISTÊNCIAS DAS TRAVESTIS

BRASILEIRAS EM TEMPOS DITATORIAIS NAS LINHAS DO LAMPIÃO DA


ESQUINA

RHANIELLY PEREIRA DO NASCIMENTO PINTO*

Introdução

A noite instaurada em abril de 1964 pareceu ganhar alguns suspiros e iluminação em


1978. Com a estrutura em decadência, com as formas de contenção em defasagem e com o
desenvolvimento de novas estruturas de sentimento a sociedade brasileira foi fazendo-se ouvir
entre as dinâmicas de repressão do Estado autoritário. Estes gritos energizados pela redução
dos órgãos de vigilância e punição colocaram sob o foco a diminuição sensível da repressão.

O fim da década de 1970 é para o Brasil certamente um reacender da discussão


democrática, do fortalecimento dos antigos movimentos sociais, além da emergência e
afirmação dos movimentos feministas, negro e homossexual. No entanto, dizer sobre o
abrandamento da mão do Estado na vida das pessoas durante os anos ditatoriais não pode ser
lido, sentido e observado da mesma forma para todos os sujeitos, do centro do sistema até a sua
margem. Neste sentido, Netto reforça mesmo compreendendo os tempos de mudança o status
de permanência do regime ditatorial brasileiro.

O regime se configurou como ditadura dos seus momentos iniciais ao seu declínio e
à sua derrota: impôs abertamente pela força das armas, valeu-se da coerção e da
violência, restringiu ao limite os direitos políticos mais elementares, impediu a
alternância no poder e no governo, criminalizou a atividade oposicionista, tornou o
terror uma política de Estado, feriu os direitos humanos fundamentais e renegou tanto
as instituições jurídicas reconhecidas como democráticas e legítimas quanto a sua
própria retórica (suas promessas e seus compromissos públicos). (NETTO, 2014, 11)

São a partir destas permanências e perseguições que no período de reabertura emergem


aquelas vozes silenciadas por tanto tempo e contidas em gritos mudos pelo silêncio, horror e

*
Graduando em História pela Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão. Pesquisador Júnior do Grupo
DIALOGUS.
pela cotidiana coerção. É neste ano de 1978 que surge o movimento homossexual brasileiro.
Contra o silêncio e a pseudo boa moral surge o Lampião da Esquina 1978-1981.

Após algumas reuniões e acertos, o jornal confeccionado no Rio de Janeiro escorreu por
várias bancas de todo o Brasil, seja pela rede constituída através de seus jornalistas, seja pelo
seu jogo político através do método de mala direta. Em seu primeiro número, o jornal propunha
aquilo que seria o seu Norte: “criar uma consciência homossexual, assumir-se e ser aceito”
(RODRIGUES,2014, 93).

Nestas 37 edições o jornal esforçou-se em trazer em cena este debate de distensão


política através da relação dos movimentos entre si (homossexual, negro, feminista) e
levantando as pautas do famoso maio de 1968 discutindo a questão ecologista e tecendo uma
dura crítica aos movimentos de orientação marxista do período. Entre páginas e mais páginas,
seria difícil remontar a importância do jornal ao capitar as mudanças em curso e o cotidiano
paradoxal de diminuição das estruturas de poder do Estado como parte da literatura ressalta.

Ao trazermos a pauta sobre as violências e resistências das travestis nas linhas do jornal,
objetivamos neste texto afunilar um pouco mais a lente sobre as relações dialógicas da
comunidade LGBT e o Estado num processo de pesquisa iniciado em 2016 sob orientação da
professora Lilian Marta Grisólio. Reduzindo a nossa malha de possibilidades, focalizamos na
questão destes sujeitos históricos porque se há ainda uma reduzida produção sobre a história da
homossexualidade masculina no país, é visível que no caso das transexualidades está escrita da
história seja ainda menor.

Para romper com este silêncio e possibilitar que todos os sujeitos da sopa de letrinhas
tomem conhecimento de seu passado histórico, para além da memória coletiva, esperamos aqui
debater três casos específicos de experiências trans no jornal Lampião da Esquina até em seu
30º número, quando o periódico toma um outro norte que não nos cabe refletir aqui. Neste
sentido, esperamos discutir a entrevista Dois travestis, uma advogada: três depoimentos vivo
do sufoco de dezembro de 1979 no n.19; Transexualismo: um julgamento moral do n.5 e o caso
de Verushka no número 10.

2. As violências e o seu cotidiano


A operação historiográfica tem o efeito de estabelecer a pesquisa e a orientação da
resolução de problemas que carecem de um sentido no presente e que podem de alguma forma
ser desmantelados, quebrados e reconstituídos na premissa de compreender a relação entre
presente e passado, ou ainda, a relação entre permanências e transformações.

Peter Drucker (2017) vem nos alertando das investidas destemidas da criação,
emergência e afirmação de um comportamento homossexual que estabelece relações de
inclusão ao sistema heteronormativo e também relações de exclusão à pluralidade das vidas
LGBTs. Neste meio tempo, uma questão tem permanecido em aberto mesmo com os ganhos
reais e certas vitórias empreendidas pelo antigo movimento homossexual e agora LGBT. Sob
estas condições sócio históricas e a permanência da discriminação contra travestis e transexuais
é que nos propomos rever brevemente alguns sintomas de permanência e de transformações a
partir de um recuo histórico que nos remete aos últimos anos do regime ditatorial.

Iluminando as esquinas, o Lampião da Esquina (1978-1981) tratou sobre questões


polêmicas e caras ao regime autoritário que se fazia entender salvador e difusor da moral e dos
bons costumes. Em suas páginas a discussão da transexualidade e da condição das travestis
começavam a surgir com o tom politizado em acordo a proposta de a proposta editorial do
periódico que se preocupava em falar sobre “discriminação, do medo, dos interditos ou do
silêncio, vamos soltar a fala da sexualidade no que ela tem de positivo e criador, tentar aponta-
la para questões que desembocam todas nesta realidade muito concreta” (SAINDO, n.0, 1978,
p.2).

Deste modo, é necessário compreender que a discussão sobre a sexualidade e em


específico da homossexualidade masculina se encontrou e entrecruzou por vezes com a
discussão da transexualidade. No entanto, não podemos deixar implícito que este debate foi
ameno porque ao longo de suas 37 edições as disputas das identidades circunscritas neste
período se fizeram presentes. E neste ponto é preciso trazer em cena uma certa confusão sobre
as performances e identidades do período.

A transexualidade em si no jornal parece vinculada as identidades homossexuais em


disputa naquele período. Apesar, de haver uma compreensão sobre a autonomia e da
autodenominação de si enquanto mulher, nem sempre estiveram claras as compreensões sobre
o homossexual afeminado e as mulheres trans e travestis. Este debate, em evidência na
atualidade começava a se construir ali e é neste sentido que compreendemos a discussão em o
Lampião da Esquina.

Entre bofes, bichas, entendidos e bonecas circulavam também as identidades trans não
muito claras e frequentemente assimiladas como uma parte das identidades das bonecas. Como
nos lembra Green (2000), as identidades homossexuais pautadas na posição sexual, ativo e
passivo comportavam formas de apresentação dentro da díade masculino e feminino em que as
bonecas e bichas frequentemente estavam associadas. A nova identidade homossexual colocada
já nos fins da década de 1950 o entendido, começava a se desenhar dentro da comunidade gay
conforme MacRae em sua etnografia sobre o SOMOS† e posteriormente em seu livro publicado
em conjunto com Peter Fry (1985) discutindo O que é a homossexualidade?

A partir da compreensão destas disputas identitárias podemos estabelecer as relações de


violências e resistências das travestis e transexuais. A marginalização frequente desta parte mais
vulnerável do grupo LGBT vem à tona no Lampião da Esquina quando o caso Verushka aparece
no mesmo número onde há a primeira atividade do movimento homossexual brasileiro. A capa
da décima edição do jornal vinha seguida de imagens sobre um evento realizado na USP e em
sequência as letras garrafais “ Minorias exigem em São Paulo: FELICIDADE DEVE SER
AMPLA E RESTRITA! VERUSHKA vai à luta pelo direito de ir e vir” (LAMPIÃO DA
ESQUINA, 1979, n.10, p.1).

Páginas depois a coluna Esquina traz a história de discriminação de Verushka. Em


“Síndico quer Verushka usando gravata e paletó”, Aguinaldo Silva conta a história da travesti
radicada na cidade do Rio de Janeiro e a ameaça do novo síndico do Edifício Cannidé em proibi-
la de utilizar o elevador social do edifício no qual é moradora.

Gérson Correia, sargento da Marinha, solteiro e adepto fiel da teoria de que


homem, para ser homem tem que falar muito alto e fazer gestos largos, tomou
posse no cargo e imediatamente baixou uma série de éditos, alguns arbitrários
e ilegais, como este, que consta de um papel afixado na portaria: Qualquer
morador que quiser dar uma festa em sua residência terá que pedir autorização
ao Senhor Síndico com 36 horas de antecedência. E não ficou nisso o furor
legislativo do Senhor Síndico: a alguns moradores dedicou editos especiais,
que nem sequer foram redigidos, mas sim pronunciados em tom enfático com

¹† Primeiro grupo politizado a iniciar a discussão sobre a homossexualidade no país. Fundado em 1978, o grupo
homenageou a Frente da Liberação Homossexual Argentina adotando o nome da revista publicada entre 1973-
1976. O pioneirismo do SOMOS tem sido estudando amplamente pelas ciências humanas e em específico
dentro da historiografia que assume a discussão de uma história da homossexualidade masculina no país.
aquele que destinou a Vicente Fiuri, o travesti Verushka, morador do prédio a
quatro anos: a partir de sua posse como síndico ele só poderia continuar
usando o elevador social do prédio se trocasse suas vestimentas por roupas
“estritamente masculinas”. (SILVA, 1979, n.10, p.3)
Compreendemos aqui que a violência sofrida por Verushka se enuncia na forma civil de
organização de valores que não só nortearam o regime como também orientavam a parcela não
militar apoiadora de golpe de 1964. Como nos lembra a chamada do número 10, o direito de ir
e vir da travesti lhe foi retirado mesmo apresentando a sua carteira de identificação como artista
de número 0005º adquirido pela própria Censura Federal. Mesmo apoiada pelo aparato legal do
regime, o preconceito secular que formavam os valores desta sociedade reiterava a
discriminação.

Neste ponto o sentido do regime, do apoio a família e da assimilação do diferente como


fora de ordem ou prática comunista reverberou nas falas do síndico: “ele não quis ouvir
explicações: “Quem manda no prédio sou eu, e eu quero moralizar isso aqui” (SILVA,1979,
n.10, p.3). É preciso compreender, que está tentativa moralizadora acompanhava os papeis de
representação da homossexualidade e da transexualidade no período uma vez que como aponta
Mariusso (2015), eram sujeitos frequentemente vistos como nocivos à masculinidade e a
feminilidade, aos padrões estabelecidos sobre o status fixo do binômio homem e mulher e
também a associação à obscuridade e a figura de bandido.

Como anteriormente já havia destacado neste texto, a nossa preocupação é articular a


relação entre as experiências de violência e a produção de resistência. O caso Verushka nos
aponta uma tentativa que começava a ganhar historicidade naquele período. A figura do poder
judiciário conforme aponta Quinalha (2017) em sua tese de doutorado surgiu como ambígua e
compreendemos desta mesma forma ao ler estas instituições como fruto de relações de poder
que surgem nas respectivas subjetividades.

Verushka, conforme Aguinaldo Silva aponta em seu texto nos traz a tentativa de recorrer
juridicamente quanto a isso. A travesti contrata uma advogada e tenta trilhar alguma saída para
as arbitrariedades do síndico: “a advogada para defender os interesses de Vicente foi impetrar
uma ação judicial, pedindo uma medida cautelar contra atitude proibitória do síndico: caberá
ao juiz da 14ª Vara Cível precisar o caso e conceder uma liminar” (SILVA,1979, n.10, p.3).
Mesmo não sabendo o desfecho desta história, conseguimos delimitar uma das
alternativas frente ao preconceito. Estas formas de luta jurídica, se apresentaram no jornal a
partir da trajetória do próprio inquérito sofrido pelo Lampião entre 1978-1979 que teve seu
desfecho com o arquivamento do caso e pela absolvição do caso contra o jornalista Celso Curi,
denunciado por fazer um correio elegante em 1976 trazendo homossexuais para as páginas do
jornal Última Hora.

Estes dois inquéritos seguiram o caminho comum da tentativa de aplicação da censura


via Lei de Imprensa. No caso Curi, embora o fim fosse vitorioso para a homossexualidade, o
modus operandi da censura conseguiu se efetivar com a demissão do jornalista e a saída de
circulação da coluna. E em última instância o caso do Lampião apesar de arquivado culminou
num grave desgaste dos Senhores Conselheiros, editores, se tornando um dos motivos para o
fim do jornal em 1979.

Como dissemos anteriormente, as formas de representação de travestis e transexuais


eram extremamente negativas. A violência civil, materializou-se no combate contra a existência
destes sujeitos e entrou em intercâmbio direto com o Estado. Este intercâmbio pode ser visto
por nas duas reportagens que envolvem a temática sobre a redesignação de Valdirene. No
número 5, publicado em outubro de 1978 duas reportagens nos chamam a atenção ao tocar no
tema da transexualidade e que estabelecem essa relação entre violência civil e de Estado num
mesmo contexto.

Em Transexualismo um julgamento moral, Aguinaldo Silva traz a notícia sobre o


julgamento do cirurgião plástico Roberto Farina, o médico havia sido condenado há dois anos
de prisão por efetuar uma cirurgia de redesignação sexual de Valdirene. Em sua condenação a
suposta denúncia se confirmou como um crime sob o pretexto de causar lesões corporais a
paciente. O jornalista destaca:

A operação foi realizada em 1971, no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo,


e só alguns anos depois é que o promotor Messias Piva decidiu denunciar o
médico, sob a alegação de que este ofendeu a integridade física do paciente,
“uma vez que daquele ato cirúrgico resultou para a ofendida perda irreparável
dos órgãos sexuais e inutilização de suas respectivas funções”. Pois
acrescentou, “Valdir era induvidosamente do sexo masculino, portador de
órgãos genitais masculinos, sem traços do pretendido hermafroditismo, ou
pseudo-hermafroditismo, circunstância conhecida pelo acusado, que por isso
não poderia jamais transformá-lo em pessoa do sexo feminino porque não
conseguiria implantar, como não implantou, os órgãos genitais femininos
internos” (SILVA,1978, n.5, p.5)
Para o jornalista, o caso denunciado se apresentava como um julgamento moral na
medida em que se relacionava com o medo do procedimento afetar as relações sociais da
instituição família, uma vez que a paciente não é a protagonista da denúncia e sim o próprio
Estado. A relação ambígua com o poder jurídico se apresenta neste sentido. Por um lado, como
já citamos anteriormente a movimentação homossexual e a temática da homossexualidade
começa a garimpar pequenos ganhos, mas ao mesmo tempo desenvolvem-se formas de
efetivação de punição e controle no próprio movimento de uso do poder jurídico tais como os
inquéritos do Lampião e a condenação de Farina.

A denúncia e o poder do Estado surgem com duas formas específicas de controle das
questões ligadas as sexualidades e identidades disparatadas. Em primeiro lugar a tentativa de
controle para dar manutenção a boa moral e em segundo lugar trazer um processo de
invisibilização com as investidas dos controles dos locais de socialização relacionados ao
conhecido gueto homossexual e na política de higiene pública que veremos mais adiante.

Entretanto vale destacar, que ao compreendermos o processo de ligação entre Estado e


a parcela civil no processo de violência contra as travestis é que trazemos seguido ao processo
que tem como Valdirene uma “vítima” na rede televisiva. Logo em seguida ao texto que
remonta a denúncia de Farina e suas ramificações na TV-Tupi. Em uma nota sem autor
identificado o Lampião destaca, Na tevê, minutos de emoção:

Durante uma semana a TV-Tupi repetiu chamadas para o programa Flávio


Cavalcanti nas quais o assunto principal era o caso Valdir/Valdirene e a
condenação do Dr. Farina. Isso, provavelmente garantiu ao animado uma
audiência especial: a dos homossexuais que viam, ainda que de forma velada,
uma ameaça à classe neste processo que juiz paulista acabara de julgar. Para
muitos, a promessa de Flávio que abordaria o assunto, era motivo de
preocupações; afinal de contas, são conhecidos os ataques de moralismo do
animador e a visível preferência da nossa tevê, nestes casos, pelos que usam a
justiça como se esta fosse o fundo dos seus quintais. (LAMPIÃO DA
ESQUINA, 1978, n.5, p.5)
A imagem de travestis, transexuais dentro da tevê era geralmente ligada a chacota ou
então sob aqueles mesmos traços que já identificamos sobre a homossexualidade, isto é, a
obscuridade e um sujeito da noite. Não se podia esperar um debate que não fosse sensacionalista
sobre o tema. No programa de Flávio Cavalcanti, o tema fora tratado com uma seriedade
duvidosa, uma vez que ao apresentar a primeira parte do programa, o apresentador traz ao palco
a figura de José Edmilson da Silva uma transexual que fora convidado por Cavalcanti na
eminência de tentar garantir a cirurgia que fora anos antes efetuada em Valdirene.

O sensacionalismo era vez ou outro interrompido pelas falas de alguns médicos fazendo
a distinção sobre homossexualidade e as transexualidades, cometendo os frequentes erros sobre
a discussão de identidade e de orientação sexual e por último ao convidado especial do Lampião
da Esquina, o editor, crítico e repórter Darcy Penteado. E o auge fatídico do programa se deu
quando o apresentador retoma a fala e conduz para o fim o quadro:

[...] só então retomou a palavra, para, num tom melodramático, dizer que ele
era a grande vítima de tudo isso: pois prometera a José Edimilson, o rapaz
cearense, que o ajudaria que o encaminharia aos médicos para que estes
mudassem o seu sexo, mas que agora, coma condenação do Dr. Farina,
nenhum médico ousaria repetir a operação no Brasil, pelo o que seu caso ia
permanecer sem solução. O programa terminou com um close do José
Edmilson, perplexo e à beira do choro, provavelmente, entendendo que viera
até ali, que se desnudara diante milhões de pessoas, para nada. As chacotas,
as humilhações sobre as quais ele falara, os problemas com a família, nada
disso terminaria, sendo possível até que a súbita notoriedade que sua aparição
na tevê provocaria e as multiplicasse. (LAMPIÃO DA ESQUINA, 1978, n.5,
p.5)

A soma destas práticas e do uso indiscriminado da violência contra transexuais e sujeitos


da comunidade LGBT, se reconfiguram para pensar a elaboração e estruturação de práticas
sociais do Estado e de uma parcela da população contra estes sujeitos. A comum associação
deste grupo a categoria do corpo abjeto, não desejável ou não reconhecido tornou-os
historicamente menos humanos que estes outros sujeitos da vida pública que exercem numa
relação de poder a prática da coerção e discriminação para manutenção das estruturas
norteadoras da exclusão.

Quando conectamos lá no início a materialização do preconceito com a proibição do


uso do elevador social para Verushka, a condenação via discussão médica e de legalização
pautada na idealização dos valores do regime nos falta ainda dizer de algumas práticas do
Estado que ainda permanecem usuais anos depois do fim da ditadura e que são evidenciáveis
num projeto de higienização urbana através da operação de Richetti em São Paulo “sob o
pretexto de limpar a cidade de vagabundos, anormais (também conhecidos por homossexuais),
decaídas mundanas, marginais e desocupados em geral”(TREVISAN,2007,P.503).
Em uma entrevista longa, publicada em dezembro de 1979 no número 19, a equipe do
Lampião trazia uma conversa entre duas travestis, uma advogada parte dos Senhores
Conselheiros para discutir sobre o cotidiano das ruas. Naquele período, era comum o uso da lei
de contra a vadiagem.

Desde 1924, a Delegacia de Costumes utilizava a Lei de Vadiagem para


prender quem realizasse práticas sexuais que não agradassem a prática
policial. A Lei da Vadiagem pressupõe que todos os trabalhadores possuam
recursos financeiros que comprovem sua subsistência, mas não deixa claro
como se dará a verificação e exigência de documentação, ficando a cargo de
cada delegacia estabelecer comprovação de trabalho. Mais do que isso a lei
deu autoridade à política para regular os vadios no espaço público da rua. No
caso dos vadios incomodarem os ditos cidadãos de bem, isso representaria
uma perda da autoridade da polícia sobre o espaço público (OCANHA,2014,
p.156)
Esta prática policial durante a ditadura se deu em larga escala e frequentemente, as
prisões arbitrárias surgiam como tática de limpeza, mas também como forma de arrecadação e
corrupção. O jornalista Trevisan ao entrevistar as travestis Flávia e Tatiana pergunta como
acontecem estas prisões, quanto tempo elas ficam na cadeia e como fazem para sair de lá. As
duas, rememoram os flagrantes dos policiais Casa de Detenção:
Tatiana – Eu posso contar o caso de um flagrante que aconteceu comigo, por
suborno uma coisa que eu nem sabia da existência. Eu só sei que cheguei na
delegacia e assinei papel, papel, papel...
Flávia – É que naquele tempo eles pegavam a gente na avenida e a gente dava
50 cruzeiros, 100 cruzeiros e ia embora pra casa né?
Tatiana – Estava eu e uma amiga, demos 50 cada uma, e sabe onde a gente foi
parar? Na Casa de Detenção. Fiquei passada! Só aí eu fiquei sabendo que
existia uma coisa chamada “suborno à autoridade”: porque normalmente a
gente dá dinheiro, mas eles acham pouco, então vira flagrante.
Flávia – Uma vez me pegaram na Avenida República do Líbano, tiraram 50
cruzeiros e me soltaram lá em Moeda. A Garra faz isso. Além de tirar o
dinheiro, leva a gente e solta. (DOIS, 1979, n.19, p.6).

Estas prisões, quando devidamente efetuadas não tinham um prazo final. A corrupção
policial a partir do pagamento de alguns bons cruzeiros nem sempre funcionava e quando estas
estavam presas poderiam passar de 3 dias há um mês. Em um relato sobre os dias na prisão
Flávia conta a história de uma passagem traumática.
Flávia – Eu estava lá. As do babado elas ficaram revoltadas. As do babado são
as que se cortam, dão escândalo, apanham, chegam na polícia e já viram a
máquina do delegado. É, tem travesti que é assim; quando são presos eles se
revoltam e pegam o delegado, batem nele. Daí o delegado leva eles pro xadrez.
Naquele dia, eles tiraram toda a roupa e tacaram fogo. Foi aquele fumacê na
cela, todo mundo gritando. E aí falaram: vamos cortar todos juntos. Uma dava
a gilete para a outra... já fazia quatro dias que estavam lá; então, se cortavam
para ver se levavam eles pro hospital porque lá o pessoal tem medo do
escândalo e solta elas. (DOIS, 1979, n.19, p.6)

Frente à violência da coerção, surgem resistências possíveis. Compreender estas


relações de poder e os seus usos nos fazem perceber que esta violência nunca é silenciosa nem
tão pouco passiva como frequentemente alguns debates sugerem. As permanências destas
práticas revelam a disposição de mudança sejam das formas de ver e sentir o mundo. As
representações sobre estes sujeitos se situam em constante mudança porque estão em contato
com cotidianos atípicos que mesmo sob condições únicas perspectivam e conseguem
reorganizar as formas de sua sobrevivência

Considerações Finais

Os sujeitos que compõem a sopa de letrinhas LGBT, constituem uma camada social
ainda vulnerável mesmo depois de 40 anos de politização a partir da luta de emancipação destes
sujeitos e da reestruturação de suas representações. Ainda hoje, permanecem as marcas da
violência contra esta parte da população. O Estado, diferentemente do período militar tem aos
poucos rearticulado suas formas de lidar com a questão das identidades e sexualidades
disparatadas.
A urgência em compreender o período entre 1964-1985 surge como uma maneira
analisar historicamente as relações umbilicais e dialógicas entre as violências e resistências, na
parte mais vulnerável do grupo LGBT. Travestis e transexuais tem sofrido ainda hoje esta
relação de marginalização e de coerção por poderes que se instituíram e desenvolveram já na
noite de abril. Reconhecer estas relações e as possibilidades de produção de resistência podem
criar perspectivas de reestruturação das pautas do próprio movimento LGBT hoje.
Entre chacotas televisivas, negação do espaço público, vítimas de um discurso da moral
e dos bons costumes ilustrados no processo de prisão de Flávia e suas amigas é possível concluir
que na historiografia, como historiadoras e historiadores é preciso inscrever estes sujeitos e
permitir a eles ter o acesso ao seu passado. Ao passado de luta, resistência e dor. Apenas ao
reconhecermos todas estas relações iniciaremos o pagamento de uma dívida histórica
imensurável para esta parte da população brasileira.
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