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ARTIGO ARTICLE
Sexualidade e experiências trans: do hospital à alcova
Berenice Bento 1
Abstract In the aftermath of studies on mascu- Resumo Depois dos estudos das masculinidades,
linity, it is impossible to consider the production não é possível pensar a produção das identidades
of gender identities without linking them to the de gênero sem referenciá-las ao caráter relacio-
relationship aspect. This change was due to the nal. Esta mudança deveu-se à incorporação da
incorporation of the relationship perspective in perspectiva relacional nesse campo de estudos e à
this field of study and criticism of the concept of crítica ao conceito de gênero assentado em uma
gender founded upon an alleged concept of femi- suposta natureza feminina e masculina para cons-
ninity and masculinity to create interpretations truir as interpretações sobre o lugar dos corpos da
of the place of bodies in the gender order. The ordem de gênero. Os objetivos desse artigo são: 1)
objectives of this paper are: 1) to show how a apontar como um determinado conceito de gêne-
given concept of gender can render multiple ex- ro pode visibilizar múltiplas expressões de gênero,
pressions of gender visible, like the trans identi- a exemplo das identidades trans (transexuais, tra-
ties (transsexuals, transvestites, cross dressers, drag vestis, cross dress, drag queen, drag king, transgê-
queens, drag kings, transgenders) or sublimate neros) ou invisibilizá-las e contribuir para sua
them and contribute to their pathologization. The patologização. O segundo objetivo será apresen-
second objective will be to present narratives of tar narrativas de homens trans e de mulheres trans,
trans men and trans women, who will tell us about que nos contarão suas vivências sexuais. Os sabe-
their sexual experiences. Psycho-physicians con- res médicos-psi advogam a inexistência de sexua-
tend the non-existence of sexuality in their bod- lidade em seus corpos, sendo este um dos indica-
ies as being one of the indicators to lead to a diag- dores para produção do diagnóstico de transexua-
nosis of transsexualism. I will attempt to argue lidade. Tentarei argumentar que a base teórica
that the theoretical basis that supports the pathol- que sustenta a patologização das identidades trans
ogization of trans identities and the assertion that e a afirmação que as pessoas trans são assexuadas
trans people are asexual is based on a conception tem como fundamento uma concepção que atrela
that links and renders gender identities condi- e condiciona as identidades de gênero às estrutu-
1
tional upon biological structures. ras biológicas.
Departamento de Ciências
Sociais, Universidade Federal Key words Masculinity, Gender, Transsexuality, Palavras-chave Masculinidade, Gênero, Tran-
do Rio Grande do Norte. Av. Sexuality sexualidade, Sexualidade
Salgado Filho S/N, Campus
Universitário – CCHLA.
59.000-00 Natal RN.
berenice_bento@yahoo.com.br
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Bento B
ro. O principal desafio dessa nova fase foi rom- campo de estudo: o das masculinidades, que se
per com estudos puramente descritivos sobre as fundamentaram na desconstrução do homem
relações entre os sexos, que não questionam os universal, naturalmente viril, competitivo e vio-
conceitos que estruturam a própria percepção lento. Será na década de 1990 que este campo de
do que está sendo descrito. estudos irá aparecer na cena acadêmica. Muitas
Se no início a desnaturalização das identida- perguntas foram feitas: será que o homem negro
des de gênero esteve centrada em torno da com- vivencia a masculinidade da mesma forma que o
preensão dos processos históricos que legitima- homem branco? O ideal de masculinidade é al-
ram a subordinação das mulheres, tendo como cançado por algum sujeito empírico? Quais as
substrato teórico a compreensão moderna do interdições explícitas e implícitas que se articu-
sujeito universal, atualmente esta desnaturaliza- lam para formar a identidade masculina? Existe
ção também avança em direção à sexualidade, uma masculinidade hegemônica? Quais as mas-
ao corpo e às subjetividades. culinidades silenciadas?
Os estudos sobre os gêneros, inicialmente, Os estudos das masculinidades, guardadas
elaboraram construtos para explicar a subordina- as idiossincrasias teóricas, desenvolvem-se no
ção da mulher calcada na tradição do pensamen- espaço teórico aberto pela perspectiva relacional.
to moderno que, por sua vez, opera sua inter- Um dos fios condutores que orientará as diver-
pretação sobre as posições dos gêneros na socie- sas pesquisas e reflexões desse novo campo é a
dade a partir de uma perspectiva binária e de premissa de que o masculino e o feminino se cons-
caráter universal. troem relacionalmente e, simultaneamente, apon-
Dois corpos diferentes. Dois gêneros e subje- tam que este “relacional” não deveria ser inter-
tividades diferentes. Esta concepção binária dos pretado como “o homem se constrói numa rela-
gêneros reproduz o pensamento moderno para ção de oposição à mulher”, em uma alteridade
os sujeitos universais, atribuindo-lhes determi- radical, ou absoluta, conforme Simone Beauvoir5,
nado características que se supõe sejam compar- mas em um movimento complexificador do re-
tilhadas por todos os homens e por todas as lacional. Passou-se a trabalhar o gênero inter-
mulheres. O corpo aqui é pensado como natu- relacionalmente: o homem negro em relação ao
ralmente dimórfico, uma folha em branco, espe- homem branco, o homem de classe média em
rando o carimbo da cultura que, através de uma relação ao favelado e ao grande empresário, o
série de significados culturais, assume o gênero. homem nordestino e o do sul, o homem hete-
Um dos problemas desse tipo de construtivismo, rossexual e o homossexual e muitas outras pos-
que hegemonizou o feminismo por décadas, é sibilidades de composição que surgem nas nar-
haver feito do corpo-sexo uma matéria fixa, so- rativas dos sujeitos. No entanto, esta perspectiva
bre a qual o gênero viria a dar forma e significa- relacional ainda estava assentada em corpos de
do, dependendo da cultura ou do momento his- homens e mulheres, o que podemos classificar
tórico, gerando um movimento de essencializa- esta forma de analisar a categoria gênero como
ção das identidades. “relacional de dois”, conforme Bento1. O gênero
Ao longo da década de 1990, os estudos so- para ser compreendido precisa estar referencia-
bre as relações de gênero se consolidaram a par- do em corpos de homens e mulheres. No entan-
tir de uma reavaliação dos pressupostos teóricos to, as experiências trans apontam que os atribu-
que fundamentavam o campo de estudos sobre tos de masculinidades e feminilidades não são
as “mulheres”. A tarefa teórica era desconstruir propriedades de corpos específicos.
essa mulher universal, apontando outras variá- O pressuposto da diferença sexual como fun-
veis sociológicas que se articulassem para a cons- damento das identidades de gênero e das sexua-
trução das identidades dos gêneros. A categoria lidades continuava intacto. Ao estudar os gêne-
analítica “gênero” foi buscar nas classes sociais, ros a partir das diferenças sexuais, está-se suge-
nas nacionalidades, nas religiosidades, nas etnias rindo explicitamente que todo discurso necessita
e nas orientações sexuais os aportes necessários da diferença sexual, sendo que esse nível funcio-
para desnaturalizar e dessencializar a categoria naria como um estágio pré-discursivo. A cultura
mulher, que se multiplica, fragmenta-se em ne- entraria em cena para organizar esse nível pré-
gras analfabetas, brancas conservadoras, negras social, ou pré-discursivo, para distribuir as atri-
racistas, ciganas, camponesas, imigrantes. buições de gênero, tomando como referência as
Um dos principais desdobramentos do olhar diferenças inerentes aos corpos-sexuados.
relacional sobre os gêneros propiciados pelos Pode-se recuperar aqui a preocupação de
estudos feministas foi a organização de outro Butler2-4, segundo a qual a diferença sexual pode
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A história de João nos coloca diante de uma seu namorado. O sentimento de inferioridade em
tensão entre a identidade de gênero e a identida- um relacionamento amoroso, e sentir-se amea-
de sexual. Por um momento de sua vida foi reco- çada pelos fantasmas dos “corpos normais”, fa-
nhecido como um heterossexual, em seguida, zem com que ela aceite esta relação. A vagina e o
como lésbica e agora se defini como heterosse- pênis, nesse sentido, são moedas de negociações
xual. Conclui-se que sua identidade sexual é de- nas relações. Marcela, igual à Andreia, se sentiu
terminada por sua identidade de gênero. É o gê- ameaçado por sentir-se incompleta e acreditava
nero que marca socialmente a identidade sexual. na necessidade natural do homem penetrar uma
Além disso, estes fluxos de identidade nos leva a vagina, um sentimento partilhado por outros/as
perguntar qual é o sentido de falarmos de identi- entrevistados/as.
dade sexual e de gênero? Essas questões evocam De um modo geral, o grande fantasma entre
outras tensões que repercutem na natureza ficci- os homens trans heterossexuais é o medo de ser
onal das identidades sociais. A suposta tese de abandonado pela parceira pela ausência do pê-
que nossos gêneros e sexualidades são fixos care- nis. Carlos, por exemplo, disse que teve uma par-
cem de fundamentação. É esta armadilha da iden- ceira por vários anos e ela nunca descobriu que
tidade essencial que a história de João nos revela. ele era um homem trans. O sexo sempre foi rea-
Se a masturbação é possível ou se não há ne- lizado no escuro. Ele fez uma grande e grossa
nhum problema em tocar seus genitais, porque prótese de borracha e a guardava em um local
fazer a cirurgia transgenitalização? Alegar que al- secreto. Segundo ele, sua companheira tinha
guns se masturbam não revela os conflitos que muito prazer e nunca foi posta em dúvida sua
alguns vivem com suas sexualidades. masculinidade. Neste caso, a virilidade sexual
Para Marcela, sua vida sexual com seu par- constituinte do sexo masculino foi garantida.
ceiro é bem sucedida, “o chato é ter que esconder Entre mulheres trans lésbicas no momento
o pênis durante a relação sexual”. A cirurgia irá inicial da relação sexual, há uma tensão sobre o
livrá-la desse incomodo. As respostas e formas uso de vibradores e outros objetos fetiche. Car-
de se relacionar com os órgãos genitais e sexuali- men fez a cirurgia de transgenitalização. Ela ti-
dades são diversas. No entanto, quando pergun- nha relações sexuais com rapazes, mas em algum
tava por que queriam realizar as cirurgias as res- momento se apaixonou por uma mulher. Co-
postas se repetiam: “Eu quero ser livre.” Ninguém meçaram a namorar. Em certo momento sua
respondeu: “Eu quero a cirurgia e ser penetrado namorada pediu-lhe: penetra-me, e mostrou-lhe
ou de penetrar, para atingir o orgasmo.” Entre os um vibrador. Neste momento, Carmen pensou,
homens trans a mastectomia é a cirurgia que lhe caramba, o que está acontecendo aqui ... eu tinha
dará maior liberdade. É o desejo de ser social- um pênis, eu o tirei e agora eu tenho que usar um
mente reconhecido como um membro do gêne- pênis de plástico e grudado em um cinto? [Entre-
ro que os leva a demandá-la. vista realizada em março de 2002 em Barcelona.
Carmen faz parte do Coletivo de Mulheres trans
A genitalização das relações da Catalunha/Espanha]. Todo o processo de re-
construção de seu lugar de mulher lésbica foi tenso
A genitalização da sexualidade é um dos des- e sofrido. Para Carmen, o trabalho psíquico que
dobramentos do dispositivo da sexualidade que teve que fazer foi fundamentalmente libertar-se
faz coincidir sensações com determinadas zonas das etiquetas.
corporais, reduzindo o corpo a zonas erógenas, Para Manolo [Entrevista realizada em março
em função de uma distribuição assimétrica do de 2002 em Barcelona], um homem trans gay, a
poder entre os gêneros (feminino/masculino), grande dificuldade foi ser aceito entre os homens
conforme apontou Preciado20. A genitalização gays. É como se seu corpo, sem falo, não tivesse
não se limita à sexualidade: atravessa as relações. nenhuma função. A obsessão com o falo o tor-
O medo de perderem seus namorados e suas naria imediatamente para fora do registro do
namoradas por falta de uma vagina, (entre as desejo. Esta é a força da heteronormatividade:
mulheres trans) e pênis (entre os homens trans), organiza subjetividades no âmbito do genitaliza-
é constante em suas narrativas. Para Andreia, o ção do desejo, ao mesmo tempo, reforça o mo-
homem precisa de sexo “vaginal”. Ela se relacio- delo binário para ativa versus passiva em rela-
na com um homem que vive com uma mulher ções não heterossexuais. Mas, ele disse: eles têm
não transexual. A necessidade de ter uma vagina um pau, eu tenho muitos, de vários tamanhos e
para satisfazer suas necessidades sexuais é o sen- cores. Eu posso ser penetrado através do ânus e da
tido que Andreia atribui a esta “dupla vida” de vagina, e também posso penetrar.
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