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ARTIGO ARTICLE
Sexualidade e experiências trans: do hospital à alcova

Sexuality and trans experiences: from the hospital to the bedroom

Berenice Bento 1

Abstract In the aftermath of studies on mascu- Resumo Depois dos estudos das masculinidades,
linity, it is impossible to consider the production não é possível pensar a produção das identidades
of gender identities without linking them to the de gênero sem referenciá-las ao caráter relacio-
relationship aspect. This change was due to the nal. Esta mudança deveu-se à incorporação da
incorporation of the relationship perspective in perspectiva relacional nesse campo de estudos e à
this field of study and criticism of the concept of crítica ao conceito de gênero assentado em uma
gender founded upon an alleged concept of femi- suposta natureza feminina e masculina para cons-
ninity and masculinity to create interpretations truir as interpretações sobre o lugar dos corpos da
of the place of bodies in the gender order. The ordem de gênero. Os objetivos desse artigo são: 1)
objectives of this paper are: 1) to show how a apontar como um determinado conceito de gêne-
given concept of gender can render multiple ex- ro pode visibilizar múltiplas expressões de gênero,
pressions of gender visible, like the trans identi- a exemplo das identidades trans (transexuais, tra-
ties (transsexuals, transvestites, cross dressers, drag vestis, cross dress, drag queen, drag king, transgê-
queens, drag kings, transgenders) or sublimate neros) ou invisibilizá-las e contribuir para sua
them and contribute to their pathologization. The patologização. O segundo objetivo será apresen-
second objective will be to present narratives of tar narrativas de homens trans e de mulheres trans,
trans men and trans women, who will tell us about que nos contarão suas vivências sexuais. Os sabe-
their sexual experiences. Psycho-physicians con- res médicos-psi advogam a inexistência de sexua-
tend the non-existence of sexuality in their bod- lidade em seus corpos, sendo este um dos indica-
ies as being one of the indicators to lead to a diag- dores para produção do diagnóstico de transexua-
nosis of transsexualism. I will attempt to argue lidade. Tentarei argumentar que a base teórica
that the theoretical basis that supports the pathol- que sustenta a patologização das identidades trans
ogization of trans identities and the assertion that e a afirmação que as pessoas trans são assexuadas
trans people are asexual is based on a conception tem como fundamento uma concepção que atrela
that links and renders gender identities condi- e condiciona as identidades de gênero às estrutu-
1
tional upon biological structures. ras biológicas.
Departamento de Ciências
Sociais, Universidade Federal Key words Masculinity, Gender, Transsexuality, Palavras-chave Masculinidade, Gênero, Tran-
do Rio Grande do Norte. Av. Sexuality sexualidade, Sexualidade
Salgado Filho S/N, Campus
Universitário – CCHLA.
59.000-00 Natal RN.
berenice_bento@yahoo.com.br
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Introdução categoria medicalizável, o passo seguinte será es-


tabelecer os mecanismos para curá-lo.
Nos últimos anos os estudos das masculinida- O segundo objetivo será apresentar narrati-
des se consolidaram no Brasil, seguindo uma ten- vas de homens trans e de mulheres trans, que
dência internacional. A problematização de uma nos contarão suas vivências sexuais. Os saberes
natureza masculina foi posta em xeque, seguin- médicos-psi advogam a inexistência de sexuali-
do os percursos teóricos trilhados pelos estudos dade em seus corpos, sendo este um dos indica-
feministas na formulação de explicações históri- dores para a produção do diagnóstico de transe-
cas para a produção hierárquica e assimétrica xualidade. Tentarei argumentar que a base teóri-
das identidades de gênero. Depois dos estudos ca que sustenta a patologização das identidades
das masculinidades não é possível pensar a pro- trans e a afirmação que as pessoas trans são as-
dução dessas identidades sem referenciá-las ao sexuadas tem como fundamento uma concep-
caráter relacional. Este giro deveu-se principal- ção que atrela e condiciona as identidades de gê-
mente à crítica ao conceito de gênero que não nero às estruturas biológicas. Em seus depoimen-
abria mão dos pressupostos de uma natureza tos me deparei com uma pluralidade de signifi-
feminina e masculina para construir suas inter- cados que escapam a uma tentativa de aprisio-
pretações sobre o lugar dos corpos da ordem de ná-la a ideia de “identidade sexual dos homens e
gênero. O primeiro objetivo deste artigo será das mulheres trans”.
apontar como um determinado conceito de gê- Todas as entrevistas foram realizadas para
nero pode visibilizar múltiplas expressões de gê- minha tese de doutorado e revisitadas para a
nero, a exemplo das identidades trans (transe- produção do presente artigo. O trabalho de cam-
xuais, travestis, cross dress, drag queen, drag king, po foi feito na cidade de Goiânia e em Valência/
transgêneros) ou invisibilizá-las e contribuir para Espanha, entre os anos de 2001-2003. Como téc-
sua patologização. nica de pesquisa articulei a etnografia com entre-
A discussão sobre o que é gênero é funda- vistas abertas em profundidade. Metodologica-
mental para que possamos problematizar a con- mente utilizei a análise de discurso foucaultiana e
cepção hegemônica sobre as identidades de gêne- seguiu todos os princípios éticos orientadores de
ro e as sexualidades trans. A categoria gênero e as pesquisa. Considero homens trans as pessoas
relações entre as masculinidades e feminidades que nascem mulheres e que demandam o reco-
não são autoevidentes. Há uma disputa sobre nhecimento social ao gênero masculino e como
quem pode ser reconhecido como homem e mulheres trans as pessoas que nascem homens e
mulher de verdade. O caráter polissêmico dessa que reivindicam o reconhecimento social ao gê-
categoria, portanto, reverbera em disputas teóri- nero feminino. A cirurgia de transgenitalização,
cas e se materializa em políticas públicas que po- portanto, não se configura como um marcador
dem encarnar uma concepção mais ou menos nesta definição.
biologizante das identidades. Não há consenso
no mundo acadêmico e nos ativismos políticos Gênero: uma categoria em disputa
sobre o que é gênero.
Neste artigo, vou priorizar o debate entre a O que é o gênero? Existe um nível pré-discur-
concepção hegemônica e oficial das masculini- sivo, compreendido como pré-social, fora das
dades e feminilidades presente no dispositivo da relações de poder-saber? O gênero seria os dis-
transexualidade1 e outra respaldada nos estudos cursos formulados a partir de uma realidade
e no ativismo queer. A posição oficial refere-se a corpórea, marcada pela diferença? O gênero se-
que o Estado adota na formulação e na imple- ria a formulação cultural dessas diferenças? Existe
mentação das políticas públicas para a popula- sexo sem gênero? Como separar o corpo/estru-
ção trans, principalmente no âmbito dos hospi- tura do corpo/resultado? Como separar a parte
tais e clínicas que a atendem. É neste espaço que do corpo que não foi construída desde sempre
se pode observar o conceito de gênero binário por expectativas e suposições do corpo original
operando os olhares dos membros das equipes que não está maculado pela cultura? Estas ques-
multidisciplinares, responsáveis pela produção tões marcam o que pode ser considerado como
de um diagnóstico sobre os corpos de sujeitos uma disputa em torno dos significados para a
que demandam intervenções que lhes permitirão categoria gênero.
o reconhecimento do gênero identificado. Aqui, Pensar as relações entre gênero e corpo, apon-
o gênero é fundamentalmente uma categoria tando os processos que se articulam para dar
nosológica. Uma vez definido que o gênero é uma uma aparência a-histórica e destituída de seu
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conteúdo político, parece-me ser uma das preo- margens, local habitado pelos seres abjetos, que
cupações centrais da obra de Judith Butler e de ali devem permanecer.
outras/os teóricas/os feministas queer. Para Bu- Os gêneros inteligíveis obedecem a seguinte
tler, o gênero não está passivamente inscrito so- lógica: vagina-mulher-feminino versus pênis-
bre o corpo como um recipiente sem vida. O que homem-masculinidade. A heterossexualidade
se supõe como uma característica natural dos daria unidade às diferenças binárias entre os gê-
corpos é algo que se antecipa e que se produz neros. A complementaridade natural seria a pro-
mediante certos gestos corporais naturalizados. va inquestionável de que a humanidade é neces-
Para Butler2-4, o gênero é um ato que já foi ensaia- sariamente heterossexual e que os gêneros só têm
do, muito parecido a um libreto que sobrevive sentido quando relacionados às capacidades ine-
aos atores particulares, mas que requer atores rentes de cada corpo. A transexualidade quebra
individuais para ser atualizado e reproduzido sis- esta coerência. Mediante as performances de gê-
tematicamente como realidade. nero a sociedade controla as possíveis sexualida-
A visão que define gênero como algo que as des desviantes e a heterossexualidade justificará
sociedades inventam para significar as diferen- a necessidade de alimentar/produzir cotidiana-
ças dos corpos sexualizados assenta-se em uma mente os gêneros binários.
dicotomia entre sexo (natureza) versus gênero Há uma amarração, uma costura, no senti-
(cultura). Segundo essa visão, a cultura impri- do de que o corpo reflete o sexo, e o gênero só
miria no corpo inerte e diferenciado sexualmente pode ser entendido, só adquire vida, quando re-
pela natureza as marcas culturais. Ao contrário, ferido a essa relação. As performatividades de
podemos analisar gênero como uma sofisticada gênero que se articulam fora dessa amarração
tecnologia social heteronormativa, operaciona- são postas às margens, analisadas como identi-
lizada pelas instituições médicas, linguísticas, dades transtornadas, anormais, psicóticas, aber-
domésticas, escolares e que produzem constan- rações da natureza, coisas esquisitas.
temente corpos-homens e corpos-mulheres. Uma das formas para se reproduzir a heteros-
Não há corpos livres, anteriores aos investi- sexualidade consiste em cultivar os corpos em se-
mentos discursivos. A materialidade do corpo xos diferentes, com aparências “naturais” e dispo-
deve ser analisada como efeito de um poder e o sições heterossexuais naturais. Essa matriz não
sexo não é aquilo que alguém tem ou uma des- opera exclusivamente nos marcos de relações hete-
crição estática. O sexo é uma das normas pelas rossexuais, mas dissemina-se. Seu alcance e eficácia
quais o “alguém” se torna viável, que qualifica estão em pautar e orientar relações não heterosse-
um corpo para a vida no interior do domínio da xuais. A binariedade ativo/passivo seria uma das
inteligibilidade. Há uma amarração, uma costu- formas dessa matriz se atualizar e manter-se.
ra, ditada pelas normas, no sentido de que o cor- A intenção de (re) produzir o modelo hege-
po reflete o sexo, e o gênero só pode ser entendi- mônico da mulher (bondosa, compreensiva,
do, só adquire vida, quando referido a essa rela- passiva, sensível, vaidosa e, principalmente, que
ção. As performatividades de gênero que se arti- tenha o matrimônio como destino) e do homem
culam fora dessa amarração são postas às mar- (que não chora, viril, sexual e profissionalmente
gens, pois são analisadas como identidades ativo, competitivo) potencialmente provoca sen-
“transtornadas” pelo saber médico. timentos de frustração e de dor. A busca por
Quando se age e se deseja reproduzir a/o implementar um modelo inatingível tem alguns
mulher/homem “de verdade”, desejando que cada desdobramentos: pode gerar sentimentos de cul-
ato seja reconhecido como aquele que nos posi- pa e frustração, mas também revela as possibili-
ciona legitimamente na ordem de gênero, nem dades potenciais para as transformações, reve-
sempre o resultado corresponde àquilo definido lando, assim, a própria fragilidade das normas
e aceito socialmente como atos próprios a um/a de gênero, uma vez que está assentada em algo
homem/mulher. Se as ações não conseguem cor- fundamentalmente plástico, maleável e manipu-
responder às expectativas estruturadas a partir lável: o corpo.
de suposições, abre-se uma possibilidade para se
desestabilizar as normas de gênero, que geral- Os gêneros para além da diferença sexual
mente utilizam da violência física ou/e simbólica
para manter essas práticas às margens do consi- O que ficou conhecido ao longo da década de
derado humanamente normal. O processo de 70 e consolidado na década de 80, como estudos
naturalização das identidades e a patologização sobre a “mulher”, passou a ter uma nova nome-
fazem parte desse processo de produção das ação no final dos anos oitenta: estudos de gêne-
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ro. O principal desafio dessa nova fase foi rom- campo de estudo: o das masculinidades, que se
per com estudos puramente descritivos sobre as fundamentaram na desconstrução do homem
relações entre os sexos, que não questionam os universal, naturalmente viril, competitivo e vio-
conceitos que estruturam a própria percepção lento. Será na década de 1990 que este campo de
do que está sendo descrito. estudos irá aparecer na cena acadêmica. Muitas
Se no início a desnaturalização das identida- perguntas foram feitas: será que o homem negro
des de gênero esteve centrada em torno da com- vivencia a masculinidade da mesma forma que o
preensão dos processos históricos que legitima- homem branco? O ideal de masculinidade é al-
ram a subordinação das mulheres, tendo como cançado por algum sujeito empírico? Quais as
substrato teórico a compreensão moderna do interdições explícitas e implícitas que se articu-
sujeito universal, atualmente esta desnaturaliza- lam para formar a identidade masculina? Existe
ção também avança em direção à sexualidade, uma masculinidade hegemônica? Quais as mas-
ao corpo e às subjetividades. culinidades silenciadas?
Os estudos sobre os gêneros, inicialmente, Os estudos das masculinidades, guardadas
elaboraram construtos para explicar a subordina- as idiossincrasias teóricas, desenvolvem-se no
ção da mulher calcada na tradição do pensamen- espaço teórico aberto pela perspectiva relacional.
to moderno que, por sua vez, opera sua inter- Um dos fios condutores que orientará as diver-
pretação sobre as posições dos gêneros na socie- sas pesquisas e reflexões desse novo campo é a
dade a partir de uma perspectiva binária e de premissa de que o masculino e o feminino se cons-
caráter universal. troem relacionalmente e, simultaneamente, apon-
Dois corpos diferentes. Dois gêneros e subje- tam que este “relacional” não deveria ser inter-
tividades diferentes. Esta concepção binária dos pretado como “o homem se constrói numa rela-
gêneros reproduz o pensamento moderno para ção de oposição à mulher”, em uma alteridade
os sujeitos universais, atribuindo-lhes determi- radical, ou absoluta, conforme Simone Beauvoir5,
nado características que se supõe sejam compar- mas em um movimento complexificador do re-
tilhadas por todos os homens e por todas as lacional. Passou-se a trabalhar o gênero inter-
mulheres. O corpo aqui é pensado como natu- relacionalmente: o homem negro em relação ao
ralmente dimórfico, uma folha em branco, espe- homem branco, o homem de classe média em
rando o carimbo da cultura que, através de uma relação ao favelado e ao grande empresário, o
série de significados culturais, assume o gênero. homem nordestino e o do sul, o homem hete-
Um dos problemas desse tipo de construtivismo, rossexual e o homossexual e muitas outras pos-
que hegemonizou o feminismo por décadas, é sibilidades de composição que surgem nas nar-
haver feito do corpo-sexo uma matéria fixa, so- rativas dos sujeitos. No entanto, esta perspectiva
bre a qual o gênero viria a dar forma e significa- relacional ainda estava assentada em corpos de
do, dependendo da cultura ou do momento his- homens e mulheres, o que podemos classificar
tórico, gerando um movimento de essencializa- esta forma de analisar a categoria gênero como
ção das identidades. “relacional de dois”, conforme Bento1. O gênero
Ao longo da década de 1990, os estudos so- para ser compreendido precisa estar referencia-
bre as relações de gênero se consolidaram a par- do em corpos de homens e mulheres. No entan-
tir de uma reavaliação dos pressupostos teóricos to, as experiências trans apontam que os atribu-
que fundamentavam o campo de estudos sobre tos de masculinidades e feminilidades não são
as “mulheres”. A tarefa teórica era desconstruir propriedades de corpos específicos.
essa mulher universal, apontando outras variá- O pressuposto da diferença sexual como fun-
veis sociológicas que se articulassem para a cons- damento das identidades de gênero e das sexua-
trução das identidades dos gêneros. A categoria lidades continuava intacto. Ao estudar os gêne-
analítica “gênero” foi buscar nas classes sociais, ros a partir das diferenças sexuais, está-se suge-
nas nacionalidades, nas religiosidades, nas etnias rindo explicitamente que todo discurso necessita
e nas orientações sexuais os aportes necessários da diferença sexual, sendo que esse nível funcio-
para desnaturalizar e dessencializar a categoria naria como um estágio pré-discursivo. A cultura
mulher, que se multiplica, fragmenta-se em ne- entraria em cena para organizar esse nível pré-
gras analfabetas, brancas conservadoras, negras social, ou pré-discursivo, para distribuir as atri-
racistas, ciganas, camponesas, imigrantes. buições de gênero, tomando como referência as
Um dos principais desdobramentos do olhar diferenças inerentes aos corpos-sexuados.
relacional sobre os gêneros propiciados pelos Pode-se recuperar aqui a preocupação de
estudos feministas foi a organização de outro Butler2-4, segundo a qual a diferença sexual pode
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levar a uma coisificação do gênero e a um marco públicas para os gêneros sem problematizar a
implicitamente heterossexual para a descrição dos relação entre identidade, corpo e gênero, termina
gêneros, da identidade de gênero e da sexualida- por reforçar as biopolíticas, ou seja, os mecanis-
de. Então, qual a autonomia que uma aborda- mos de (re) produção dos gêneros normais e os
gem como essa reserva à sexualidade? Como en- anormais. Um homem trans, embora deva fazer
tender as práticas de sujeitos que se constroem parte da política para os homens, também preci-
fora dessa binariedade, a exemplo dos/as transe- sará visitar ginecologistas, endocrinologistas e
xuais, travestis, gays e lésbicas? outras especialidades médicas tidas como “apro-
Os estudos das masculinidades não avança- priadas” para as mulheres. Portanto, se a con-
ram na problematização da concepção binária cepção de gênero que orienta as políticas públi-
dos gêneros e as políticas públicas para os ho- cas não se liberar dos pressupostos biologizan-
mens estão amarradas a este fundamento, se- tes, não terá como ampliar e incluir sujeitos que
guindo, ainda hoje, em grande parte os pressu- hoje estão fora dos seus marcos. Nesse sentido, é
postos teóricos dos escritos pioneiros desses es- importante discutirmos o que é gênero e porque
tudos (Kaufman6, Kimmel7, Connell8. A minha parte dos estudos feministas e das masculinida-
dissertação de mestrado, Um certo mal-estar: des não avança no processo de desconstrução e
queixas e perplexidades masculinas9, se insere nes- desnaturalização radical dos gêneros e das nor-
te contexto de “relacional de dois” e nesse campo mas que os (re) reproduzem.
de estudos. Em nenhum momento do texto eu Atualmente, a única política pública que exis-
problematizo a diferença sexual, tampouco os te para a população trans está voltada ao com-
mecanismos produtores da naturalização da he- bate e controle do HIV/AIDS. Neste caso, as
terossexualidade. É como se os corpos fossem mulheres trans fazem parte da política de com-
naturalmente heterossexuais. Entrevistei homens bate à feminilização da epidemia. No mais, toda
heterossexuais, na faixa etária dos 40 aos 50 anos a concepção que pauta as parcas iniciativas no
e pertencentes à classe média de Brasília. âmbito do Executivo para a população trans, é
No âmbito das políticas públicas os homens orientada por uma concepção patologizante do
trans não existem. Aliás, as masculinidades trans gênero, porque para ser legitimamente reconhe-
não estão em nenhum lugar, embora estejam nas cido como homem e mulher é necessário ter um
filas dos hospitais esperando anos para realiza- corpo-sexual que sustente este reconhecimento
rem as cirurgias de mastectomia e histerectomia e (homem = pênis, mulher = vagina).
mesmo assim não podem realizá-las porque fo- Para ter direito a realizar o processo transe-
ram excluídos das Portarias nº. 1.707/GM10 e Por- xualizador, inclusive as cirurgias de transgenita-
taria nº. 457/SAS11 que normatizaram as cirurgi- lização, é necessário submeter-se a um rigoroso
as de transgenitalização pelo SUS. Segundo orien- protocolo que inclui terapia psicológica obriga-
tação do Conselho Federal de Medicina12, as ci- tória, realização de ultrapassados testes psicoló-
rurgias demandadas por eles (a neofaloplastia, a gicos, usar obrigatoriamente roupas do gênero
histerectomia e a mastectomia) ainda são consi- identificado, conforme Bento15.
deradas experimentais13. As duas últimas são re- Se partirmos do pressuposto de que há múl-
alizadas há décadas pelas mulheres biológicas. Até tiplas possibilidades de experiências e práticas de
momento, não há uma única justificativa para gênero e que as pessoas que solicitam alterações
esta exclusão14. É como se assimetrias internas corporais ou desejam migrar legalmente de um
aos gêneros inteligíveis fossem deslocadas para gênero imposto para outro com o qual se identi-
os corpos dos homens trans, que passam a carre- fica, são sujeitos capazes de conferir sentido para
gar a herança de terem um dia sido mulheres. estas transformações, não há justificativa para
A política pública pensada para os homens definir um protocolo fundamentado no trans-
tem como fundamento teórico uma concepção torno mental. Questionar o protocolo, nos ter-
de gênero binária, onde apenas corpos de ho- mos em que vem sendo implementado, é encarar
mens cromossmaticamente XY são os legítimos a questão da patologização do gênero, portanto,
porta vozes da masculinidade. Dentro de uma não é uma questão circunscrita ao ativismo trans.
perspectiva da biopolítica que orienta a constru- Atualmente, há uma grande mobilização inter-
ção dessas políticas, assentadas em identidades nacional pela despatologização das identidades
biologizadas, onde estariam os homens trans que trans (Stop Trans Pathologizantion 2012)16 e pela
embaralham e borram a todo o momento as retirada da transexualidade do Código Interna-
fronteiras identitárias? De certa forma, os movi- cional de Doenças (CID-10) e do Manual Esta-
mentos sociais que exigem do Estado políticas tístico de Transtornos Mentais (DSM-IV)17 que
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publicarão suas novas versões em 201318,19. O Corpos sem desejo?


CID-10 e o DSM-IV são os principais documen-
tos que orientam as atuais políticas públicas para Existe uma vasta literatura sobre a sexuali-
o processo transexualizador realizado nos Cen- dade de mulheres trans (trabalhadores sexuais)
tros de Referência. produzidos principalmente com o foco em HIV/
Não se pode negar a importância de pesqui- AIDS. O artigo VIH et IST dans la population «
sas desnaturalizantes das masculinidades e suas trans »: une revue critique de la littérature inter-
conexões com a esfera pública. Mas o alcance da national, de Giami e Le Bail25 faz um levanta-
noção de gênero que orienta hegemonicamente mento de artigos publicados sobre os impactos
estes estudos e as políticas públicas pressupõe das doenças sexualmente transmissíveis e do
que os corpos que atualizam legitimamente o HVI/aids na população trans em diversos paí-
masculino são os dos homens. Os estudos sobre ses. Em nenhum dos 58 artigos citados há refe-
as masculinidades hegemônicas e as subalternas rência ao campo do desejo e das práticas sexuais.
nem tangenciam o debate sobre as normas de Não é, portanto, exatamente uma bibliografia
gênero e a força do discurso da diferença em equa- sobre a sexualidade, mas estudos epidemiológi-
lizar a produção dos gêneros nos parâmetros cos, ou sobre as melhores técnicas de previsão e
binários, retomando, pelo silêncio, a naturaliza- adesão ao tratamento farmacológico para o con-
ção das identidades de gêneros. Onde estão os trole do vírus HIV/AIDS. Essa “população” só se
homens trans nos estudos das masculinidades? torna, de fato, importante para a política pública
Parece-me que o oxigênio para os estudos das por representar um risco à sexualidade dos ca-
masculinidades vem de fora desses estudos: são sais heterossexuais.
as formulações de ativistas/teóricos queer, tam- Como é possível pensar as relações sexuais
bém conhecidos como drag king, ou homens entre pessoas que têm, em graus variados, con-
trans, a exemplo de Beatriz Preciado20, Judith flitos com seus órgãos genitais? Os estudos epi-
Hasberstam21 e Judith Hasberstam e De LaGrace demiológicos envolvendo mulheres trans deixam
Volcano22, Mauro Cabral23. algumas pistas sobre suas práticas, particular-
Os limites do “relacional de dois”, calcado no mente em relação às negociações sobre o uso do
referente dos sexos, foi questionado pelos estu- preservativo. Não tenho nenhuma hesitação em
dos queer. O estudo da sexualidade hegemônica, afirmar que as práticas sexuais de homens trans
ou da norma heterossexual, e das sexualidades são as que estão encobertos com o manto mais
divergentes exige o desenvolvimento de análises espesso da invisibilidade. Em minhas pesquisas
que, embora vinculadas ao gênero, apresentem bibliográficas não encontrei um único trabalho
autonomia em relação a ele, o que significa pro- científico que eleja esta discussão como central.
blematizar e enfrentar a heterossexualidade como Neste artigo priorizarei o diálogo com os saberes
a matriz que seguia orientando o olhar das/os psi-médicos hegemônicos acerca dos corpos e
feministas e os estudos das masculinidades que desejos trans.
não realizam parecem tomar como um dado a Em outro trabalho afirmei que os múltiplos
diferença sexual dos corpos. conhecimentos articulados para patologizar as
São os estudos queer que irão radicalizar o experiências trans podem ser considerados como
projeto feminista e dos estudos das masculini- um dispositivo1. Dentro deste, há diferentes ex-
dades, em um debate interno ao campo, mas que plicações para a origem do que é considerada
o extrapola. A expressão queer significa esquisi- uma “doença”. Para a endocrinologia embora não
to, ridículo, estranho, adoentado, veado, bicha haja nenhuma evidência científica para a origem
louca, homossexual. Os estudos queer invertem biológica/hormonal dessa “desordem”, acredita-
seu uso e passa a utilizá-la como marca diferen- se que a ciência vai descobri-la com o investi-
ciadora e denunciadora da heteronormatividade mento em pesquisas. Para ciência psi hegemôni-
englobando gays, lésbicas, transexuais, travestis ca (psicologia, psicanálise, psiquiatria), a “desor-
e transgêneros24. Os estudos queer habilitam as dem” ocorre devido à socialização malsucedida.
travestis, as drag queen, os drag king, os/as tran- Vale ressaltar que estou referindo-me à concep-
sexuais, as lésbicas, os gays, os bissexuais, enfim, ção hegemônica desses saberes. E são estes os
os designados pela literatura médica como sujei- responsáveis pelas equipes multidisciplinares em
tos transtornados, enfermos, psicóticos, desvia- autorizar a realização de cirurgia transgenitaliza-
dos, perversos, como sujeitos que constituem ção. Mas, para além desta e de outras diferenças,
suas identidades mediante os mesmos processos existem dois pontos de unidade interna ao dis-
que os considerados “normais”. positivo. Primeiro, os corpos trans são despos-
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suídos de sexualidade. Para G. Ramsey26, Robert como alguém totalmente alheio aos seus órgãos
Stoller27, Harry Benjamin28, o ódio que as pesso- genitais e assexuados. Se a “identidade transexual”
as trans têm das genitálias é tão grande que a é caracterizada pelo horror às genitálias seria im-
menor ideia de obtenção de prazer tocando-lhes pensável, neste ponto de vista, reconhecer que se
ou permitindo que alguém lhes toque é suficiente pode obter algum tipo de prazer com eles.
para lhes provocar repulsa. São corpos que estão As pessoas trans estão cientes das expectati-
fora do registro do desejo. As cirurgias serão a vas geradas para seu comportamento, especial-
porta de entrada para o mundo da sexualidade. mente nos hospitais. O dispositivo funciona
Mas que sexualidade? Este é outro ponto de uni- como um mecanismo de controle das perfor-
dade que operacionaliza o dispositivo. Argumen- mances das pessoas trans no ambiente hospita-
ta-se que a demanda das pessoas trans é pela lar, mas também podem penetrar em suas subje-
heterossexualidade e serão as práticas heterosse- tividades. Portanto, se o “verdadeiro transexual”
xuais o indicador de sucesso do processo transe- não se masturba “Quem sou eu? Como posso
xualizador. me masturbar?” Essas questões são efeitos do
Para Ramsey26, o transexual padrão tem bai- dispositivo da transexualidade internalizado.
xo ou nenhum desejo e corre pouco risco em Vitória: Têm algumas meninas lá no Projeto
relação a este ponto. Segundo ele, o pequeno gru- [refere-se ao Projeto Transexualismo do Hospi-
po que gosta de se masturbar deve fazer muitas tal das Clínicas de Goiás onde realizava seu pro-
perguntas – e ponderar respostas cuidadosamen- cesso transexualizador] que dizem esse tipo de
te – antes de embarcar nas cirurgias. Nesta pers- absurdo: “Eu não toco no órgão.” Que absurdo!
pectiva, a busca da cirurgia visa à satisfação se- Isso é para ser mais mulher do que as outras. É
xual, o que difere da interpretação que argumen- uma mentira. Se elas me dizem: “Eu nunca me
ta que a demanda pelas cirurgias de transgenita- toco”, eu digo: “Mentira! Se você não se tocar, o seu
lização é pela inserção na vida social e que o reco- pênis estaria podre, né?” Eu me masturbo sim. Eu
nhecimento do gênero escolhido é que tem prio- toco o órgão, sem quaisquer problemas. Menina, é
ridade. Vale ressaltar que não há rejeição linear uma parte do meu corpo [...].
ao corpo entre as pessoas trans, conforme tenta- João se masturbava enquanto assistia a fil-
rei mostrar. mes eróticos e quando olhava no espelho ele via
A alegação de que as pessoas trans odeiam um homem. Neste cenário, seu clitóris se torna
seus corpos é baseada em tropos metonímicos. um pênis. O caminho seguido por João como
A parte (os órgãos genitais) é considerada o todo um homem trans revela processos singulares na
(o corpo). Este movimento para a construção construção de sua identidade. Até os 23 anos, ele
do argumento metonimicamente espelha a in- só tinha tido relações com rapazes. O medo de
terpretação moderna para os corpos, onde o sexo ser considerado uma lésbica e dos preconceitos
define a verdade suprema dos indivíduos. familiares fez com que exagerasse em sua reputa-
A rejeição aos órgãos genitais significa que ção de “loba”. “Ela” teve muitos namorados, mas
não se pode obter prazer com o seu toque? O sempre mantinha um amor feminino secreto. A
transexual produzido pela ciência médica-psi não forma encontrada para reconstruir seu corpo foi
pode tocá-los, seja para a obtenção de prazer e através de exercícios rigorosos. “Eu fazia oito
nem tampouco para realização da higiene: é uma horas de exercício por dia. Quando olhava para
relação do total abjeção. No entanto, quando os corpos dos meus namorados, pensava: sou
Marcela diz: “acho o pênis algo podre, horrível”, melhor que ele.”
não se pode deduzir do que foi dito, “eu não o Aos 23 anos ele decidiu “parar de mentir” e
toco, eu não o masturbo”. encontrar soluções para seu corpo. A história de
Marcela: Às vezes, para dizer a verdade, eu me João enfatiza que a relação entre o corpo e a se-
masturbava, sabe? Eu não posso mentir. Eu me xualidade não é simples. Ele não gostava de seu
masturbava. Pode ser uma coisa que às vezes a pes- corpo de mulher, mas não tinha grandes proble-
soa tem vergonha de falar. Somente se uma pessoa mas nas relações sexuais com homens. No mo-
está doente, com todo o corpo paralisado e não mento em que eu fiz a pesquisa, ele tinha uma
consegue uma ereção, como uma pessoa normal namorada, a primeira de sua vida. Nesse novo
[...]. Eu sendo transexual ou não, a masturbação é contexto, ele não gostava que ela tocasse sua ge-
normal. nitália mesmo que ele não teve dificuldades para
Por que algumas pessoas trans mentem ou se masturbar. Com a idade de 30 anos estava no
têm vergonha de se masturbar? Mais uma vez processo de mudanças físicas através da hormo-
temos de voltar para a construção do transexual nioterapia.
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Bento B

A história de João nos coloca diante de uma seu namorado. O sentimento de inferioridade em
tensão entre a identidade de gênero e a identida- um relacionamento amoroso, e sentir-se amea-
de sexual. Por um momento de sua vida foi reco- çada pelos fantasmas dos “corpos normais”, fa-
nhecido como um heterossexual, em seguida, zem com que ela aceite esta relação. A vagina e o
como lésbica e agora se defini como heterosse- pênis, nesse sentido, são moedas de negociações
xual. Conclui-se que sua identidade sexual é de- nas relações. Marcela, igual à Andreia, se sentiu
terminada por sua identidade de gênero. É o gê- ameaçado por sentir-se incompleta e acreditava
nero que marca socialmente a identidade sexual. na necessidade natural do homem penetrar uma
Além disso, estes fluxos de identidade nos leva a vagina, um sentimento partilhado por outros/as
perguntar qual é o sentido de falarmos de identi- entrevistados/as.
dade sexual e de gênero? Essas questões evocam De um modo geral, o grande fantasma entre
outras tensões que repercutem na natureza ficci- os homens trans heterossexuais é o medo de ser
onal das identidades sociais. A suposta tese de abandonado pela parceira pela ausência do pê-
que nossos gêneros e sexualidades são fixos care- nis. Carlos, por exemplo, disse que teve uma par-
cem de fundamentação. É esta armadilha da iden- ceira por vários anos e ela nunca descobriu que
tidade essencial que a história de João nos revela. ele era um homem trans. O sexo sempre foi rea-
Se a masturbação é possível ou se não há ne- lizado no escuro. Ele fez uma grande e grossa
nhum problema em tocar seus genitais, porque prótese de borracha e a guardava em um local
fazer a cirurgia transgenitalização? Alegar que al- secreto. Segundo ele, sua companheira tinha
guns se masturbam não revela os conflitos que muito prazer e nunca foi posta em dúvida sua
alguns vivem com suas sexualidades. masculinidade. Neste caso, a virilidade sexual
Para Marcela, sua vida sexual com seu par- constituinte do sexo masculino foi garantida.
ceiro é bem sucedida, “o chato é ter que esconder Entre mulheres trans lésbicas no momento
o pênis durante a relação sexual”. A cirurgia irá inicial da relação sexual, há uma tensão sobre o
livrá-la desse incomodo. As respostas e formas uso de vibradores e outros objetos fetiche. Car-
de se relacionar com os órgãos genitais e sexuali- men fez a cirurgia de transgenitalização. Ela ti-
dades são diversas. No entanto, quando pergun- nha relações sexuais com rapazes, mas em algum
tava por que queriam realizar as cirurgias as res- momento se apaixonou por uma mulher. Co-
postas se repetiam: “Eu quero ser livre.” Ninguém meçaram a namorar. Em certo momento sua
respondeu: “Eu quero a cirurgia e ser penetrado namorada pediu-lhe: penetra-me, e mostrou-lhe
ou de penetrar, para atingir o orgasmo.” Entre os um vibrador. Neste momento, Carmen pensou,
homens trans a mastectomia é a cirurgia que lhe caramba, o que está acontecendo aqui ... eu tinha
dará maior liberdade. É o desejo de ser social- um pênis, eu o tirei e agora eu tenho que usar um
mente reconhecido como um membro do gêne- pênis de plástico e grudado em um cinto? [Entre-
ro que os leva a demandá-la. vista realizada em março de 2002 em Barcelona.
Carmen faz parte do Coletivo de Mulheres trans
A genitalização das relações da Catalunha/Espanha]. Todo o processo de re-
construção de seu lugar de mulher lésbica foi tenso
A genitalização da sexualidade é um dos des- e sofrido. Para Carmen, o trabalho psíquico que
dobramentos do dispositivo da sexualidade que teve que fazer foi fundamentalmente libertar-se
faz coincidir sensações com determinadas zonas das etiquetas.
corporais, reduzindo o corpo a zonas erógenas, Para Manolo [Entrevista realizada em março
em função de uma distribuição assimétrica do de 2002 em Barcelona], um homem trans gay, a
poder entre os gêneros (feminino/masculino), grande dificuldade foi ser aceito entre os homens
conforme apontou Preciado20. A genitalização gays. É como se seu corpo, sem falo, não tivesse
não se limita à sexualidade: atravessa as relações. nenhuma função. A obsessão com o falo o tor-
O medo de perderem seus namorados e suas naria imediatamente para fora do registro do
namoradas por falta de uma vagina, (entre as desejo. Esta é a força da heteronormatividade:
mulheres trans) e pênis (entre os homens trans), organiza subjetividades no âmbito do genitaliza-
é constante em suas narrativas. Para Andreia, o ção do desejo, ao mesmo tempo, reforça o mo-
homem precisa de sexo “vaginal”. Ela se relacio- delo binário para ativa versus passiva em rela-
na com um homem que vive com uma mulher ções não heterossexuais. Mas, ele disse: eles têm
não transexual. A necessidade de ter uma vagina um pau, eu tenho muitos, de vários tamanhos e
para satisfazer suas necessidades sexuais é o sen- cores. Eu posso ser penetrado através do ânus e da
tido que Andreia atribui a esta “dupla vida” de vagina, e também posso penetrar.
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Ciência & Saúde Coletiva, 17(10):2655-2664, 2012


Conclusão soa é um(a) “transexual de verdade”. Não exis-
tem testes clinicamente apropriados e repetíveis
As experiências trans revelam os traços das ver- ou testes simples e sem ambiguidades. O que as-
dades construídas socialmente para o gênero, susta é perceber que tão pouco conhecimento dito
para sexualidades e subjetividades. Nessa experi- científico gerou tanto poder. Diante da transexua-
ência, o que é estabelecido como norma é revela- lidade, a suposta objetividade dos exames clíni-
da em tons dramáticos. A carência de ferramen- cos não faz nenhuma diferença.
tas, inclusive linguísticas, para entendê-las no Não existe uma “identidade trans”, mas posi-
âmbito da diferença humana, as empurra para o ções de identidade organizadas através de uma
campo dos distúrbios ou aberrações. complexa rede de identificações que se efetiva
Em última instância, são as normas de gêne- mediante movimentos de negação e afirmação
ro que contribuirão para a formação de um pa- aos modelos disponibilizados socialmente para
recer médico sobre os níveis de feminilidade e se definir o que seja um/a homem/mulher de “ver-
masculinidade presente nos demandantes. Serão dade”. Não há identidade sexual típico para as
elas que estarão sendo citadas, em séries de efei- pessoas trans. Suas sexualidades são feitas do
tos discursivos que se vinculam às normas, quan- mesmo material que as outras experiências: in-
do se julga ao final de um processo se uma pes- terdição, desejo, rebeldia, sofrimento, alegria.

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Artigo apresentado em 26/07/2012


Aprovado em 04/08/2012
Versão final apresentada em 19/08/2012

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