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Agora. São Paulo, n. 26, v. 1, p. 186-203, 2014.
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Mestre em Antropologia Social. Professor no Departamento de Comunicação Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Contato: jofagner@gmail.com.
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Introdução
No painel do senso comum, a primeira sensação que se tem diante de uma figura travestida é
de estranhamento. O olhar recua, curioso, contorna, acompanha e logo estaciona na ebulição
de comentários e pensamentos críticos e pré-elaborados, que ora se estabelecem apenas na
comunicação telepática, mas que também transcendem à força física e simbólica que fermenta
estatísticas sobre violência contra pessoas travestis. Do preconceito que discrimina à
inquietação anônima que assina o asfalto na noite com o sangue de vítimas, as narrativas e
experiências sobre metamorfoses corporais e sexuais tem como destino o mesmo referencial
de partida: as marcas de gênero.
Antes mesmo de existir socialmente, o sujeito é construído por uma série de projeções que
acompanham a descoberta de seu sexo. Conforme observado por Berenice Bento (2008), nas
interpelações “é menino!/é menina!” se assinalam as primeiras expectativas de pais, parentes
e conhecidos em relação ao novo membro. Enxovais, brinquedos e nomes somente são
definidos após se tomar conhecimento da genitália do feto. Mais que uma atmosfera gerada
para receber a nova vida, a trama que se desenha é percebida como um território simbólico
que se estende dos primeiros contatos orgânicos com o mundo até mesmo o pós-morte. Cada
posição assumida na relação familiar, no convívio social e no mercado de trabalho é delineada
pelos significados que são atribuídos aos corpos, como espécies de roteiros que toda história
deve seguir.
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Em estudos antropológicos clássicos, tais como os trabalhos de Margareth Mead (1979) e de
Pierre Clastres (2003), é questionada a premissa de que os condicionamentos sociais
constituam propriedades naturais da pessoa. Em seus exemplos etnográficos, os autores
verificam o caráter fabricado das diferenças entre os sexos, contestando a predisposição
biológica a partir da prescrição de qualidades temperamentais de machos e fêmeas em acordo
com a influência social e cultural do lugar ao qual o indivíduo pertence. Desse modo, o
sistema de divisão sexual é assinalado por relações e elementos de antagonismo que
estruturam os espaços e sociabilidades, demarcando territórios simbólicos e circunscritos às
especificidades de cada sexo.
O que se constitui como gênero revela, de acordo com as ideias de Joan Scott (1990),
categorias sociais impostas sobre corpos sexuados, responsáveis pela criação de papeis
adequados a homens e mulheres, através de códigos e normas que tem como finalidade
regulamentar seus modos de vida. Estes significados encontram-se expressos no conjunto de
caracteres que revestem todo corpo humano e expressam o seu lugar social predestinado e
hierarquizado no interior do binômio homem/mulher. Nesses termos, o que se lê masculino ou
feminino não referencia atributos natos ao ser biológico, mas indica pedagogias da criatura
cultural2.
Inscritas na trama cultural das sociedades, tais classificações agem como mecanismos de
organização das relações de poder e da vida moral dos sujeitos. À luz das teorias feministas, o
conceito de gênero é examinado por Marilyn Strathern (2006) como uma categoria explicada
na dualidade das estruturas sociais a partir da interação assimétrica entre masculino-feminino,
onde a mulher aparece associada a papeis de domesticidade e fertilidade pelas concepções
fisiológicas de seu corpo. Fundamentada nas imagens sexuais, o modelo patriarcal de
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Marcel Mauss (2003) utiliza a expressão “técnicas do corpo” para descrever “as maneiras pelas quais os
homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (p. 401) no sentido
de que as mecânicas de postura e comportamento existem num contexto amplo de fatos de educação
disseminados desde os primeiros passos do ser humano. Para cada atitude do corpo existe um hábito próprio do
qual uma sociedade se utiliza para inscrevê-lo em seu regimento interno ou desenvolver habilidades que possam
satisfazer fins especiais.
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ordenação das relações entre os indivíduos situa, de um lado, a submissão, a mãe, provedora
do lar, e do outro, o chefe de família, responsável por buscar no mundo o sustento da casa.
Sob a forma de papéis de gênero, os mecanismos assertivos das “verdades” reiteram a relação
de oposição entre masculino/feminino nas pedagogias do sujeito de maneira a garantir o
potencial reprodutivo do modelo heterossexual. Anterior ao seu nascimento, o corpo abriga
projetos sociais externos que, mesmo no reconhecimento da genitália, designam expectativas
sobre comportamentos a serem desenvolvidos no decorrer de sua existência. Desse modo, o
pênis identifica um indivíduo como macho, mas somente na vivência de papéis instituídos
enquanto masculinos é que o homem será legitimado em seu ambiente social. Na construção
da mulher, também se imprime sobre a vagina a perspectiva de uma série de condutas
femininas para que ela seja reconhecida como tal. Assim, toda pessoa carrega consigo, além
das especificidades anatômicas e fisiológicas relacionadas ao sexo, um conjunto de
propriedades afetivas, morais e comportamentais que lhes são predestinadas e reguladas antes
mesmo que qualquer consciência de vida.
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discursivas, criando em caráter fictício e linguístico, indivíduos em conformidade com uma
sexualidade imposta psicossocialmente. Nesses termos, gestos, palavras e expressões
corporais em uma pessoa atuam como atos repetidos e estilizados que tecem a aparência de
uma classe natural nos processos de interação social.
O pensamento de Butler contribui para desconstruir a relação de coerência admitida quando
essencial entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Enquanto dados estatísticos e pesquisas
quantitativas são divulgadas massivamente nos meios de comunicação na intenção de
classificar comportamentos distintos a homens e mulheres, a constituição do binômio
masculino/feminino se expressa em signos do qual o sujeito dispõe para reivindicar um lugar
social prescrito na normatividade heterossexual. Da mesma forma, todas as enunciações que
se ouve desde a infância nos aprendizados sobre “jeito de homem” ou “jeito de mulher”
representam pressões externas para que meninos e meninas internalizem uma fórmula em
conformidade aos padrões que assegurem o seu potencial reprodutivo.
Se o gênero se apresenta aqui como um repertório de códigos e discursos que são acionados
de forma incessante pelo indivíduo em seus processos de comunicação com o mundo, então
por que desconsiderar a autonomia destes símbolos no âmbito das construções identitárias que
não se encontram inscritas na máquina heteronormativa? De que forma compreender os
corpos que burlam as regras para vivenciar experiências divergentes do modelo decretado na
continuidade obrigatória que recaem sobre os projetos pênis/macho/masculino/homem e
vagina/fêmea/feminino/mulher? Quem é o estranho: a imagem de traços viris que se apresenta
vestida em códigos de outro gênero ou o olhar de anormalidade vetorizado em direção àquele
corpo produtor de conceitos de identidade em dissidência ao padrão reprodutivo?
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Considerando a premissa de que até os papéis de gênero que são considerados genuínos ao
sexo se constroem por meio de artifícios e truques performativos, em que sentido as
expressões que não se localizam sob a disciplina rígida das instituições de poder necessitam
de uma classificação “anormal”, “estranha”, “excêntrica” ou “desviante”? Se a gramática que
nomeia e categoriza corpos é contextual ou sintática, as particularidades históricas e culturais
que assinalam as pluralidades sexuais e de gênero não constituem formas destituídas de
inteligibilidade. Elas representam, sobretudo, a fragilidade dos laços anunciados como
rígidos, fixos e essenciais dos regimes de elaboração discursiva sobre corpo, gênero, sexo,
desejo e outras instâncias afetadas pela matriz de lógica heteronormativa.
O espelho mostra um pouco do outro, mas também revela muito de si: vestir-se de outro ser,
aflorar identidades cultivadas na intimidade, e sob outras poéticas possíveis de se construir em
relação à imagem travestida. É como se o corpo fosse realmente uma tela em branco, e as
roupas, gestos e acessórios fossem cartelas de cores dispostas numa mesa para dar forma e
movimento à determinada pintura. Nas mãos habilidosas dos atores que apagam, disfarçam e
redesenham contornos de si, estão em jogo mais que a simples construção estética, mas
entram em negociação os processos de constituição identitária, tecnologias de modificação
corporal e os diálogos entre práticas e desejos sexuais. Não se trata, portanto, de
transformações físicas acionadas para subverter, inverter ou transgredir quaisquer normas de
gênero. Em realidade, estes significados permanecem inalterados, até mesmo para os sujeitos
em questão. Conforme exposto por Butler (2003), particularmente no caso das drags, os
signos servem de artifício às paródias elaboradas para questionar a fixidez das identidades e
papéis essenciais aos corpos sexuados.
Em sua concepção mais genérica, a drag queen pode ser entendida como o homossexual
masculino que se traveste para finalidades artísticas e profissionais, mas que também pode
adotar os mesmos procedimentos de transformação estética para atuar em outras
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circunstâncias (Santos, 2012). O que opera, de fato, não é a transfiguração em si, mas o
significado político, social e cultural que a categoria representa nos espaços de sociabilidade e
nas relações interpessoais. Alguns rapazes podem “se montar3” apenas para fins lúdicos tanto
em boates GLS quanto em outros eventos públicos, tais quais paradas de orgulho gay. Outros,
no entanto, podem apresentar as mesmas características e não se considerarem drag queens.
Mesmo diante do universo de glamour que caracterizava a cena dos festivais e desfiles, a
imagem da travesti ainda não estaria livre do preconceito e do estigma ao qual são associados
pelo deslocamento da regra heteronormativa. Em sua pesquisa sobre indumentária na Bahia
do século XIX, Jocélio T. dos Santos (1997) menciona o papel central da vestimenta na
qualificação em tom de zombaria de “vadio” que era atribuída aos travestidos, principalmente
no contexto do papel da imprensa ao agenciar a marginalização dessas identidades naquele
momento histórico.
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“Se montar” é como as drag queens comumente denominam o processo de transformação da aparência, desde a
utilização de vestimentas, próteses e acessórios até a adoção de outro nome, postura, comportamento, uma nova
possibilidade de existir.
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No cenário apresentado por João Silvério Trevisan (2007), outras formas de expressão se
localizam em carga menos negativa em relação à disseminação de imagens ambíguas e
andróginas na mídia brasileira. O autor lembra que a cena travestida, para além do carnaval,
começara a se popularizar no teatro de revista carioca das primeiras décadas do século XX,
quando outros espetáculos artísticos institucionalizaram o “travestismo profissional”, que
passou ainda a ser chamado de transformismo4. Das identidades periféricas ao estrelato dos
palcos, o novo significado também acompanha um cenário de abertura no país. As
manifestações integradas ao comportamento de “desbunde”, contextualizado no radicalismo
vivenciado no período militar, tinham como principais expoentes o Tropicalismo de Caetano
Veloso e Ney Matogrosso, vocalista do grupo musical Secos & Molhados, ambos com
postura de afronte sexual.
Num ensaio publicado no jornal Lampião da Esquina em março de 1980, Darcy Penteado
provocou inquietação no que diz respeito à interpretação sobre o indivíduo travesti. Em seu
texto, o autor teatral mapeou as principais preocupações observadas em relação aos
mecanismos que agem na diferenciação social entre essa categoria e a transexual. De um lado
o comportamento mental feminino, álibi do atrito entre corpo e mente, num tormento que
resulta da repulsa do próprio órgão sexual e, do outro, um disfarce elaborado através da
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É interessante ressaltar que, de acordo com Don Kulick (2008), os hormônios e o silicone passaram a
representar a linha divisória entre “travestis de verdade”, que viviam aquela identidade de forma mais
permanente, e “transformistas” que aplicavam espumas e perucas para viver essa aparência com prazo de
duração estipulado, sendo homens de dia e mulheres à noite.
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adoção de posturas, gestuais, maquiagens, hormônios e cirurgias plásticas, de modo a
assemelhar-se com o sexo imitado. Na compilação apresentada por Penteado, os marcadores
mencionados ilustram a discussão daquele período, uma tentativa de levar a discussão na
assinatura de estereótipos genéricos de um contexto mais amplo.
O nome de Rogéria, atriz fluminense que nasceu Astolfo Barroso Pinto, figura entre os
trânsitos identitários e os processos de visibilidade que contemplam esse aspecto. Em termos
de atuação profissional, eis um exemplo de transformista dentre os mais bem sucedidos desde
a década de 1960. Na visão objetiva que sempre expusera de sua condição, Rogéria reconhece
sua presença numa dimensão composta por três pilares: corpo de homem, alma de mulher e
consciência de ator (Oliveira, 2004). Das várias incursões em palcos de teatro e nas telas de
cinema e televisão, a atriz é renomada pela tão importante participação no prestígio social da
obra do transformismo enquanto atividade artística.
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sexuado, “a força do macho e a graça da fêmea”, lema que acabou representando a trajetória
do grupo e que mais tarde possibilitou uma moda difundida em todo o território brasileiro.
É percebido até este ponto que a indicação de diferentes categorias atribuídas às práticas de
travestir-se de mulher contorna diferentes negociações em períodos específicos da história
brasileira. Os distanciamentos entre travesti e transformista, bem como deste último em
relação ao andrógino representam, numa primeira análise, a criação de taxionomias para
legitimar atuações artísticas de uma classe profissional. Entretanto, as rupturas entre essas
identidades sinalizam sua complexidade no momento em que o estigma da homossexualidade
atravessa essas trajetórias. Na expressão da categoria transformista se inclui, além da
produção estética através de espumas, próteses e perucas que o permitem regressar ao estado
físico masculino inicial, a busca pelo prestígio social, nos palcos, diferente do estigma que
acontece na rua e nas pistas, em atividades de prostituição comumente associadas às travestis.
Já para os andróginos Dzi há a tentativa de escapar às denominações advindas dos universos
homossexuais e dos conceitos relacionados às travestimentas utilizadas em seus espetáculos.
Numa articulação de tais aspectos com as análises de Peter Fry (1982), no âmbito da
sexualidade masculina no Brasil, sublinha-se a atitude cultural classificar as pessoas em
personagens sociais, especialmente no sentido de reduzir a ambiguidade de suas experiências.
De acordo com o autor, o dilema da igualdade é marcado pelas transações identitárias entre
esses indivíduos e apontam imediatamente para a existência de sistemas hierárquicos no
interior dos grupos.
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capas de revista e comerciais para grifes renomadas no país. Diante da efervescência de
nomenclaturas, a presença da drag destaca fronteiras, referenciais estéticos e alternatividades.
Por meio de desenhos e limites corporais se pretende alcançar o desafio de organizar as
diferentes formas de se vivenciar a travestilidade.
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Goffman (1988) fala que, nos meios de categorização de criaturas e atributos como comuns e naturais nos
ambientes coletivos, algumas pessoas apresentam características que as tornam diferentes das outras, o que pode
em alguns casos reduzi-las a níveis de desprestígio social, conceituando “estigma” no âmbito dos atributos
profundamente depreciativos.
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homossociabilidades não seriam considerados drag queens. E no cenário brasileiro, como se
apresenta essa realidade?
Trevisan (2007) situa que o modelo trazido pela drag queen sugeria um conceito mais flexível
de travestimento, partilhando da nova consciência homossexual aflorada durante a década de
1990, em especial no contexto das boates e casas noturnas, além das paradas do orgulho
LGBT6 que se concentravam principalmente no eixo São Paulo – Rio de Janeiro. Enquanto
isso, o ator transformista continuava sua trajetória pelos palcos dos teatros, casas de
espetáculo e no cenário midiático do país, a exemplo dos programas de auditório na televisão
aberta. Situada em outro universo estético, simbólico e social, a drag queen apresentava
características diferentes de performance: roupas em cores, volumes e formas extravagantes,
maquiagens e perucas exageradas, todas voltadas para um modelo de aparência referenciada
nos ícones da moda e nas imagens das drags norte-americanas.
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Aqui se utiliza a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transformistas) para
identificar a instância militante das minorias sexuais representadas no acrônimo em movimentos políticos.
Anteriormente, no texto, se usou a sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) que, por sua vez, se relaciona a
uma atmosfera de consumo direcionada a este público por meio de serviços especializados.
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Na região sul do Brasil, a pesquisa de Anna Paula Vencato (2002) analisa questões de
negociação de identidades entre drag queens da Ilha de Santa Catarina. A ideia central dos
“corpos que se fabricam” conduz a discussão da antropóloga sobre a complexidade das
modificações corporais envolvidas nos processos de montagem dos personagens, em especial
diante das especificidades mapeadas em subcategorias. Assim, entre diferenciações adotadas
para definir estilos e afirmar pertencimentos a determinadas classes, surgem as top drags,
bonitas, sensuais e femininas; as caricatas, cômicas e alegóricas; as ciber drags, com um
visual considerado como “futurista”; as andróginas, com aparência mais masculinizada; e
ainda a figura da transformista, aqui citada para designar a drag queen que se dedica à
imitação de alguma atriz ou cantora. Nota-se que, nesse último exemplo, persiste a referência
a um padrão já conhecido do cenário brasileiro. Além disso, o próprio Carnaval também se
relata como elemento constitutivo da experiência das drags.
Mesmo tendo sido importada de outra região geográfica e cultural, a drag queen que se fixou
no Brasil começou a desenhar contornos próprios e, dessa forma, a estabelecer estilos
particulares pelo país. Na perspectiva das articulações com outras dimensões identitárias, os
indivíduos incorporam as características de um mundo dito globalizado e, ao conectar-se a
uma rede multiterritorial de pessoas que compartilham dos mesmos interesses, se modernizam
e se tornam globais (Bauman, 1999). Nesse sentido convém observar que esses personagens
constroem imagens e repertórios de práticas em relação, num primeiro plano, a uma
representação internacional, e depois se apropriam dos estereótipos regionais para adquirir
corpo.
É contemplando tal aspecto que a composição das top drags encontra subsídios para existir no
perfil imaginário da travesti. Por meio da produção corporal desse estilo são sintetizados em
um ideal sexy, glamoroso e hiper feminino, o fundamento do luxo como elemento oposto à
abjeção7. A beleza fatal, a sofisticação e a sensualidade são, desse modo, os principais
atributos na constituição do personagem que, inclusive, também se destaca em aspectos
7
Pelúcio (2009) conta que, entre as travestis, “o glamour se coloca também no contraste entre a aceitação versus
o escárnio; o palco versus a prostituição; ser uma diva versus ser um „viado de peito‟. O seu oposto é, portanto, a
abjeção” (p. 97).
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particulares, como o conhecido gesto de “fazer carão8” e a coreografia do “bate-cabelo9”,
consideradas típicas às drags brasileiras (Santos, 2012). Por outro lado, a caricata é a categoria
que joga com os significados de beleza em contraposição ao glamour, num desdobramento
dos atores comediantes que encontram na teatralidade do riso a estratégia para celebrar o
humor. A manifestação cênica desse estilo já se fazia presente entre comediantes que se
vestiam de mulher, principalmente em programas de televisão, a exemplo dos personagens
multifacetados de Chico Anysio, Renato Aragão e outras personalidades. A caricata agrega,
em seu estilo cômico, os estereótipos do brega, do grotesco e do caipira presentes na cultura
popular ao modelo importado da drag queen global.
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“Fazer carão” significa, entre as drags, a pose expressa na expressão facial imponente, característica das top
models de sucesso internacional em passarelas e capas de revista.
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“Bater cabelo” consiste em agitar a cabeça para os lados, de modo que a peruca seja arremessada rapidamente
como um chicote em movimentos ritmados.
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Para Sontag (1996), a atitude camp é uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético, que se
estabelece em grau de artifício e estilização.
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participação de drag queens, travestis e transexuais, em eventos de visibilidade reconhecida
pela imprensa regional e que tradicionalmente atraem a participação de um público sem
demarcações de gênero, faixa etária, classe social ou identidade sexual.
Considerações Finais
Entre os projetos de gênero que acompanham o indivíduo desde a sua pré-existência até os
últimos momentos de vida, masculino e feminino representam categorias sociais que
organizam o mundo heterossexual das instituições de poder no sentido de regular práticas,
comportamentos e afetos de modo a assegurar os fins procriativos da espécie humana. Diante
de uma imagem travestida, o olhar de estranhamento situa corpos em denominações de
anormalidade sem, entretanto, compreender o processo histórico e cultural das pluralidades
sexuais e de gênero.
No caso das drag queens, os processos de formação dessa categoria na cultura brasileira
ambientam tais personagens em mecanismos de embaralhamento dos signos de gênero e, mais
além, também representam momentos específicos na sociedade brasileira em relação à
categoria travesti. Os marcadores de diferença que organizam as classificações incluem, na
lógica taxionômica, distanciamentos entre identidades sexuais e estigmas associados ao
universo da homossexualidade. Assim, o fenômeno drag queen, em comparação ao que se
conheceu como travesti e transformista, apresenta-se como uma designação em um momento
da história brasileira em que se contemplava o afloramento político das questões envolvendo
muros e fronteiras simbólicas do movimento LGBT.
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reinterpretados e originar novas formas de existências fluidas, plurais e híbridas, assim como
os códigos que as constituem.
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