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Curitiba
2023
INTRODUÇÃO
Toda ação é previsível? Ou, melhor, alguma ação é previsível? O que fazemos quando
somos surpreendidos pelo improvável? Por que a dúvida é incômoda? O diferente causa receio,
mas o incompreensível é apavorante; a identidade diferente causa receio, mas a identidade
incompreensível é apavorante. Não tem como falar de corpo sem falar de identidade, e não tem
como falar de identidade sem falar de história, pois o corpo tem história, é completamente
atravessado por ela. Deste modo, trabalharemos com a história considerando a cultura e o social
também, já que estas esferas não estão dissociadas.
Neste sentido, verifica-se que nós aprendemos, socialmente, a ser quem somos, e
aprendemos de formas diferentes dependendo dos elementos que constituem os ambientes em
que vivemos. Os jeitos de andar, dormir, correr, dançar, e até mesmo respirar, são socialmente
construídos. Tudo em nós todos é imposto 1; as organizações, ideias e valores do contexto em
que estamos situados são transmitidos através de técnicas que, por sua vez, são absorvidas e
expressas a partir do corpo, e os processos de diferenciação se dão neste corpo.
1
MAUSS, M. “As técnicas corporais”. In.: Sociologia e Antropologia. Vol. 2. São Paulo: E.P.U./EDUSP, 1974.
p. 408.
Quando Signe Pierce caminha pelas ruas de Myrtle Beach, é possível observar diversas
reações, e ao seu corpo é atribuído significados que partem das organizações, ideias e valores
daquela comunidade local. Um corpo socialmente constituído de feminilidade, que se cobre
com um vestido curto, anda sobre saltos altos, e omite seu rosto, logo, omite sua identidade,
provoca e causa dúvida. Em um contexto generificado, atravessado pelo machismo e pela
misoginia, este corpo incomoda diferentes sujeitos, de diferentes formas, e a questão mais
reiterada durante o experimento é, perceptivelmente, uma das questões que mais incomodam:
é homem ou mulher?
Sobre um contexto generificado, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí escreve em sua obra que a
“questão da mulher” é uma questão ocidental2, se referindo ao fato de que em países do
Ocidente, o processo de identificação dos sujeitos – logo, de suas posições sociais – se deu a
partir da fisiologia dos corpos, isto é, as diferenças físicas corporais foram e são compreendidas
como base da organização social. Deste modo, as dicotomias sexo/gênero e mulher/homem do
pensamento ocidental partem da “cosmovisão”, termo que, segundo Oyěwùmí, é extremamente
limitado, pois resume o entendimento de diferentes lógicas culturais à visão 3.
Assim, todo corpo que foge da lógica biologizante e que não explicita em si suas
crenças, valores e posição social, causa incômodo; um corpo incomoda à medida que não é
identificável à vista do outro. E quando a não-identidade de Pierce é identificada, ou melhor,
pressuposta em vários momentos do experimento, a ela é associada um conjunto de significados
e ações. Seu corpo é depreciado e condenado enquanto apreendido como um corpo cisgênero,
marcado pela objetificação em sua forma de se portar e de se vestir – isso é evidenciado em
falas como: “I don’t know what your face looks like but your body’s alright”4; e como um corpo
transgênero, recebendo reações transfóbicas e comentários de aversão – implícita ou
explicitamente, baseados no discurso religioso, como por exemplo: “he who sins is of the
devil”5. Em ambas identificações, a sexualidade é tratada como algo sujo, condenável, e
consequentemente, passível de violência.
Em História da Sexualidade I: a vontade de saber, Michel Foucault aponta que o corpo
foi historicamente entendido como a fonte de todos os pecados. É por volta do século XVIII
que nasce uma incitação política, econômica e técnica a falar do sexo, configurando
2
OYĚWÙMÍ, O. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de
gênero. 2021. p. 19 e p. 214.
3
OYĚWÙMÍ, 2021, p. 42.
4
“Não sei como é o seu rosto, mas o seu corpo está bem”.
5
“Quem peca é do diabo”.
mecanismos para produzir discursos sobre o sexo suscetíveis de funcionar e de serem efeito de
sua própria economia6.
No Ocidente, os discursos sobre a sexualidade durante os séculos XVIII e XIX
enfatizaram o modelo de normalidade baseado na monogamia heterossexual – apresentando o
casal legítimo como norma e estabelecendo relações de poder/saber, constituindo, assim, uma
repressão do sexo e de práticas consideradas desviantes da norma. Ao situar a discussão no
contexto do experimento, entende-se que é a partir da oposição binária entre os corpos
biologicamente masculino e feminino como noção de normalidade que a transexualidade é
compreendida como desviante.
A percepção da sexualidade, tal como produzida por uma rede de saberes e poderes que
agem sobre o corpo individual – e sobre o corpo social –, torna-se a chave para a análise e para
a produção da individualidade e da coletividade. Com a constante transformação da nossa
sociedade, o corpo e a sexualidade são compreendidos como objetos de disciplina e controle
social nas relações de poder. Mais precisamente, estas relações de poder são construídas sob a
noção do corpo biologicamente masculino, havendo, assim, uma submissão do corpo e da
sexualidade do feminino ao biopoder exercido pela sociedade, chamada de patriarcal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
6
FOUCAULT, 2012, p. 25.
REFERÊNCIAS