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Não é possível falar de história do Brasil sem falar de cultura negra e de seu impacto no jeito

de falar, comer, dançar e até rezar do nosso povo. Lamentavelmente, as narrativas


majoritárias de representação do Brasil tem sido impactadas pelo pensamento e pelas práticas
coloniais, pelo escravismo, o racismo e a discriminação. A nação brasileira tem dimensões
continentais, mais de 200 milhões de habitantes, sendo que, segundo dados do IBGE de 2010,
54,1% são pretos e pardos na pátria detentora da maior população negra fora da África. Nos
quase quatrocentos anos de escravidão, os negros aqui escravizados foram submetidos a um
longo tempo de sofrimento e perdas que não se esgotou com a abolição. A liberdade não foi
concedida, mas conquistada. A história da população negra é sobretudo uma história de
resistência.

O teatro brasileiro deu os seus primeiros passos no século XIX, em um Brasil ainda nascente,
com espetáculos compostos de atores negros e indígenas, em um período histórico em que
não havia prestígio para o exercício da atuação. Desde então, o teatro nacional tem percorrido
um longo caminho em busca de sua identidade, uma vez que os padrões preferencialmente
adotados foram os eurocêntricos. A construção de instituições de prestígio como o Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, o Teatro Municipal de São Paulo e o Teatro Amazonas, com claras
referências arquitetônicas aos teatros parisienses, trazem consigo o protagonismo e o
estrelato dos atores portugueses e brasileiros não negros que falassem em prosódia
portuguesa. Impactada pelo imperialismo e pela desumanização dos povos tradicionais, a
estética cênica seguiu desconsiderando a riqueza das matrizes culturais africanas e indígenas
estruturadas em símbolos repletos de elementos pré-teatrais, como o cantar, o dançar e o
rezar o ato de performar o cotidiano e o mundo espiritual, que não constituíram linguagem
primordial de representação nas atividades artísticas nacionais.

Produzir um teatro que reflita o ponto de vista da negritude diante da hegemonia estética, que
ainda considera a brancura como um cânone de beleza, exige um entendimento
multidisciplinar da história brasileira. Numerosas foram as formas de resistência de grupos e
coletivos na luta pela manutenção da identidade negra na cena. A partir dos anos 1940,
iniciativas como as do Teatro Experimental do Negro (TEN – 1944 –61), de Abdias do
Nascimento (1914–2011), do Teatro Profissional do Negro (TEPRON – 1970–85), de Ubirajara
Fidalgo (1949–1986), do Teatro Popular Brasileiro (TPB – 1950–75), de Solano Trindade (1908–
1974), e também do Teatro Folclórico Brasileiro (1949–57), de Haroldo Costa (1930–), que
contribuiu para a difusão das danças populares brasileiras no exterior, realizando várias
temporadas na Europa, , se estabeleceram, capacitando artistas e fazendo crítica social e
política em cena, driblando assim as assimetrias de um horizonte desigual. Alguns dos
dramaturgos integrantes desses grupos, escreviam para as demais companhias, outros
atuavam, outros coreografavam ou dirigiram, tudo para produzir um teatro cuja estética desse
conta das temáticas afro, do jongo, do coco, dos maracatus, dos lundus – havia muito trabalho
criativo a fazer. Vale lembrar que nessa época, brasileiros e brasileiras estavam diante do mito
da democracia racial e de seu ideal falacioso da miscigenação integradora, disseminados pelo
governo militar brasileiro.

Alguns atores e atrizes negros também construíram as suas trajetórias em meio às


contrariedades da profissão: Benjamim de Oliveira (1870–1954), o primeiro palhaço negro do
país; Grande Otelo (1915–1993), ator, notável no teatro de revista e no cinema, comediante,
cantor e compositor; Ruth de Souza (1921–2019), primeira artista nascida no país a ser
indicada a um prêmio internacional de cinema na categoria de Melhor Atriz no Festival de
Veneza de 1954, por seu trabalho em Sinhá Moça; Aguinaldo de Camargo (1918–1952), um
dos fundadores do TEN ao lado de Abdias do Nascimento; Léa Garcia (1933–), atriz indicada
como Melhor Atriz no Festival de Cannes, na França, de 1957, por sua atuação no filme Orfeu
negro, entre outros. Em diferentes períodos da história, essas personalidades enfrentaram
dilemas de constituição e manutenção das suas propostas estéticas e de sua sobrevivência e
exercício de cidadania diante do racismo estrutural e institucional brasileiros.

Esses multiartistas também ficaram marcados pelas propostas que apresentavam, paralelas às
suas atividades teatrais, como o amplo debate pedagógico e político em torno da reivindicação
da inclusão de pretos e pardos na vida pública do país, realizando cursos de alfabetização e
outras formações para os seus integrantes, operários, donas de casa e estudantes, como os
encontros promovidos pela 1ª Reunião da Convenção Nacional do Negro, em 1945, e o 1º
Congresso do Negro Brasileiro, em 1950. Cabe destacar também a fundação do Instituto
Nacional do Negro, em 1949, e a publicação, elaborada pelo departamento de estudos e
pesquisas do TEN, entre 1948 e 1950, dos dez números do jornal Quilombo, com notícias sobre
as atividades do TEN e de outras entidades do movimento negro.

É importante destacar que os grupos de dança e de teatro formados por artistas negros não
viveram isolados, eles estiveram vinculados ao surgimento da Frente Negra Brasileira, primeiro
partido político da população negra do Brasil, nos anos 1930, e do Movimento Negro Unificado
(MNU), em 1978, só para citar alguns núcleos. Esses coletivos articulavam-se entre si,
aquilombados, colaborando para o êxito de suas atividades, foram parceiros em prol da
construção de uma estética negra no embate artístico e político do cotidiano. Importa frisar
ainda que esses agrupamentos foram diretamente influenciados pelas lutas a favor dos
direitos dos negros dos Estados Unidos, pelos movimentos de libertação dos países africanos
como Guiné Bissau, Moçambique e Angola, e por correntes do pensamento marxista.

Ainda hoje, vivemos diante da escassa participação de artistas negros em montagens


nacionais, no cinema e na TV, e também de docentes negros nos departamentos de artes das
universidades. A educação étnico-racial não é uma realidade no dia a dia do brasileiro, apesar
dos dezesseis anos da promulgação da Lei Federal 10.639, de 2003, que institui a
obrigatoriedade do ensino de história da África e do negro, acrescida com os conteúdos da
11.645, de 2008, que traz a obrigatoriedade dos conteúdos indígenas nas instituições de
ensino e a adoção do sistema de cotas para negros e indígenas, com o objetivo de fomentar a
promoção do acesso desses povos a todos os níveis educacionais.

Por fim, nos palcos e na vida, urgem a releitura crítica da história e das identidades, o combate
aos discursos hegemônicos, à marginalização, ao genocídio negro, à violência policial, ao
desemprego e à pobreza, a busca por melhores condições de vida, em geral, e para o devido
reconhecimento da população negra no país e a afirmação de seu importante papel histórico,
cultural e social, além da recuperação da memória e a valorização das raízes africanas e
indígenas.

Para saber mais

Mendes, Miriam Garcia, A personagem negra no teatro brasileiro. São Paulo: Ática, 1982.

___________. O negro e o teatro brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1993.

Munanga, Kabenguele (org.), História do negro no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares,
2004.

Sobral, Cristiane, Teatros negros. Estéticas na cena teatral brasileira. São Paulo: 2018: Mi Pariô
Revolução, v. 1, Coleção Quadro Negro.

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