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Minicurso Ancestralidade negra e literatura: (R) Existências

Dênis Moura de Quadros (FURG)1


Jane Clair Ávila Duarte (FURG)2

A lei 10.639/03, modificada pela lei 11.645/08 que adiciona o estudo da cultura
indígena, prevê a obrigatoriedade do ensino de história e da cultura de matriz africana. Esta lei
é o resultado de muitas lutas e iniciativas dos movimentos negros que buscavam a valorização
da cultura negra e, sobretudo, o reconhecimento do papel desempenhado pelo negro na
história do país. Contudo, o que ocorre é a discussão em uma determinada data como, por
exemplo, 20 de novembro (dia da consciência negra). Esta discussão realizada em uma data
específica do ano não dá conta de todo o conteúdo de ensino que pode e deve ser ofertado aos
alunos e a comunidade em geral. Além disso, os materiais dispostos pelo MEC (Ministério da
Educação) são orientados para a disciplina de história, quando o mais correto seria a
organização de material interdisciplinar. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, o conteúdo sugerido no currículo escolar vai além do material
trabalhado nas disciplinas de História, Literatura e Artes. O conteúdo abrange as relações
étnico raciais, ou seja, ele estende-se também aos fatos e a postura do professor e do aluno
diante de determinadas situações que ocorrem no âmbito escolar. Assim, propomos nesse
minicurso uma ampliação significativa da implementação das leis a partir das disciplinas de
língua portuguesa e literatura com a apresentação/discussão de trechos de romances e poemas
que tragam em sua temática a ancestralidade negra e afro-diaspórica, percebendo como essas
narrativas precisam ser lidas/discutidas na sala de aula.

Enegrecendo os espaços da educação básica brasileira


A rapper Preta Rara, ativista negra que mantêm a página no facebook “Eu empregada
doméstica” compõe Falsa abolição em que evoca no refrão a falta de representatividade negra
nos espaços mercadológicos em que “Crianças negras não brincam com bonecas pretas”.
Ainda, a rapper fala dos cabelos, raspados no processo de desafricanização, que renascem em
busca das raízes africanas no processo de negritude. O rap de Preta Rara nos faz refletir sobre

1
Doutorando em Letras, área de concentração História da Literatura, pela Universidade Federal do Rio Grande-
FURG, Rio Grande, bolsista CAPES. E-mail: denisdpbg10@gmail.com
2
Graduada em Letras, Português/francês, pela Universidade Federal do Rio Grande- FURG. E-mail:
janeduarte10@yahoo.com.br
os poucos espaços ocupados pelos negros, o que é resultado da falta de oportunidades. Mesmo
que exista uma lei que exige o estudo da cultura africana, as escolas não o fazem e quando a
cumprem é de forma desconexa e a parte como, por exemplo, na semana instituída de
reflexões acerca da consciência negra.
Conceição Evaristo (1946- ) nasceu em Belo Horizonte, mas reside no Rio de Janeiro
desde a década de 1970, graduada em Letras (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira
(PUCRJ) e Doutora em Literatura Comparada (UFF), começa publicando nos Cadernos
Negros. Em 2003 publica seu primeiro romance, o segundo escrito, Ponciá Vicêncio pela
editora Pallas, depois publica Becos da memória (2006) pela Mazza editora. Publica, também,
Poemas da recordação e outros movimentos. (2017); Insubmissas lágrimas de mulheres
(2016) e Histórias de leves enganos e parecenças (2017) pela editora Malê. Em 2018 publica
seu terceiro romance: Canção para ninar menino grande.
Em seu poema Vozes mulheres evoca a força da ancestralidade e da descendência que
recolhe essas vozes como se fosse nutrida pelas raízes africanas. A voz da bisavó ecoa a dor
da escravidão, baixa nos porões de um infecto navio escravagista. Como se fosse herança, a
voz da avó ecoa a dor e a obediência aos brancos. A voz da mãe já ecoa revolta nas cozinhas
alheias, profissões antes ocupadas pelas mucamas são reatualizadas como forma hereditária
de uma roda que começara na escravidão. A voz narrativa afirma ecoar: “ecoa versos
perplexos/ com rimas de sangue/ e/ fome” (EVARISTO, 2017, p. 25), mas é na voz da filha,
recolhendo todas as vozes, que o eco abafado insubmissa ressoará.
Para a elaboração do minicurso foram pesquisados os conceitos da palavra “ancestralidade”
chegando ao que é e o que representa a “ancestralidade negra”. A ancestralidade é tudo aquilo
que é passado através das gerações e, claro, a cultura é a principal fonte repassada. A
ancestralidade pode ser encontrada na culinária, nas vestimentas e, falando em ancestralidade
negra, na religião. Para Fábio Leite (2008), a concepção do ancestral em África pode ser de
duas formas: mítica (Orixás) e familiar (ancestrais familiares).
Percebemos que no Rio Grande do Sul, as formas de resistir do povo negro
encontram-se na ocupação dos espaços negados e no existir. Há lugares de memória
distribuídos pelo estado em que cada cidade mantém seus lugares de memória. Na capital, a
figura do Bará do Mercado Público é o símbolo maior da (r) existência negra. Conta-se que o
Bará Lodê fora assentado no Mercado Público pelo príncipe Custódio de Xapanã. Em Rio
Grande, o Cais do Porto, o Mercado Público e o monumento à Iemanjá na Praia do Cassino
marcam a presença e influência da cultura afro-brasileira na cidade.
Ao partirmos para o campo literário, questionamos os presentes acerca de quantos
escritores negros eles já haviam lido e uma boa parte dos presentes citara Conceição Evaristo,
principal nome que destaca a abre espaço para a literatura afro-brasileira, negro-brasileira,
afrofeminina ou negrofeminina, nomenclaturas, em constante discussão, que são válidas para
pensarmos a complexidade dessas obras. Como forma de ampliar o leque de leituras
apresentamos as obras basilares como: Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis (1822-
1917); Quarto de despejo: Diário de uma favelada (1960) de Carolina Maria de Jesus (1914-
1977) e a atualíssima Conceição Evaristo com o conto Olhos d’água (2016[2014]).
Após, abrimos espaços para as autoras contemporâneas com a apresentação do poema
Preservando heranças (2012) da poeta Elizandra Souza (1983- ). Poema Eu sou (2017) de
Cristiane Sobral (1974- ). Ambos resgatam a ancestralidade negra reafirmando as raízes
africanas. Elizandra Souza evoca as argolas, os panos de cabeça (turbantes) e as cores nos
vestidos como força herdada de suas ancestrais. Cristiane Sobral enumera os heróis e as
heroínas negras como Ray Charles (1930-2004), Jovelina Pérola Negra (1944-1998), entre
outros.
Além da literatura, o minicurso teve como objetivo evocar outras formas de resistência
e heróis e heroínas que nos servem de raízes. Para tanto elencamos Zumbi dos Palmares
(1655-1695); Dandara dos Palmares (?-1694), responsáveis pelo maior quilombo no Brasil,
além da ajuda na criação e manutenção de outros quilombos; Luiza Mahin (Séc. XIX), figura
central na revolta dos Malês ficcionalizada por Ana Maria Gonçalves em Um defeito de cor
(2006); André Rebouças (1838-1898) engenheiro, inventor, abolicionista e monarquista; e
João Cândido Felisberto (1880-1969), revoltoso da revolta da Chibata, também conhecido
como Almirante Negro.
Cada herói e sua história constituem nossos ancestrais negros, nossa raiz resistente.
Ainda, destacamos os movimentos de insubmissão como, por exemplo, a 1ª Organização
Sindical dos Negros em Campinas (1914); a Frente Negra Brasileia (1931); Grupo Palmares
em Porto Alegre-RS (1931); a consolidação do MNU (Movimento Negro Unificado) em 1978
através de importantes figuras como Abdias do Nascimento (1914-2011); a inauguração do
Memorial Zumbi dos Palmares no Rio de Janeiro (1990) e o surgimento das cotas raciais que
diminuíram a falta de “oportunidade” para a população negra e não, ao contrário do que a
branquitude prega, atestaram acerca de “capacidade”, dois termos distintos. Na FURG, as
cotas raciais para ingresso na graduação iniciaram em 2013 e, nesse ano (2019) foram
implementadas as cotas raciais para ingresso na pós-graduação.
Ao encerrar o minicurso, encerrando e seguindo resistindo, destacamos os grupos que
foram surgindo dessas lutas e que permanecem resistindo. Entre eles o grupo Quilombhoje
(década de 1970); o projeto Enegrescência (Eixo Rio- São Paulo); Sopapo Poético (Porto
Alegre); Macanudos (FURG). A reflexão culmina com a canção Tropas de São Benedito
(2018) com letra de Lilian Rocha e composição de Lilian Rocha e José Carlos Rodrigues.

Referências
ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado: Literatura Brasileira Contemporânea. Belo
Horizonte: Nadyala, 2010.
BRASIL. Lei nº. 10.639 de 9 de janeiro de 2003 - Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnicos Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira
e Africana. MEC/SECAD. 2005.
GOMES, Heloísa Toller. “Visíveis e invisíveis grades”: Vozes de mulheres na escrita afro-
descendente contemporânea. Caderno Espaço Feminino. Uberlândia: Ed. UFU, v.12, n.15,
p.13- 26, 2004.
GONZÁLEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje,
ANPOCS, p.223-244, 1984.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca
Nacional, 2016.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro:
Malê, 2017.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. São Paulo:
Francisco Alves, 1960.
LEITE, Fábio Rubens da Rocha. A questão ancestral: África negra. São Paulo: Palas Atena:
Casa das Áfricas, 2008.
PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2018.
SANTIAGO, Ana Rita. Vozes literárias de escritoras negras. Cruz das Almas: Ed. UFRB,
2012.
SOBRAL, Cristiane. Terra negra. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
SOUZA, Elizandra. Águas de cabaça. São Paulo: Ed. Da Autora, 2012.

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