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Sagrado e

Literatura

Carlos Giovani Dutra Del Castillo


(Organizador)
Sagrado e Literatura
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Sagrado e Literatura

1ª Edição

Carlos Giovani Dutra Del Castillo


(Organizador)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2018
Copyright © da editora, 2018.

Capa e Editoração
Mares Editores

Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores e não representam


necessariamente a opinião da editora.

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Sagrado e literatura / Carlos Giovani Dutra Del


Castillo (Organizador). – Rio de Janeiro: Mares
Editores, 2018.
182 p.
ISBN 978-85-5927-051-8
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura I. Título.

CDD 801.95
CDU 82

2018
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
CNPJ 24.101.728/0001-78
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação ................................................................................ 9

O mito como elemento sagrado, psicológico e moral em Don Juan


.................................................................................................... 13

(Des)encontros com o sagrado na poesia de D. Pedro Casaldáliga


.................................................................................................... 47

Catimbó e Mandinga: a composição do misticismo nos poemas de


Ascenso Ferreira ......................................................................... 81

O sagrado afro-feminino: Oxum em Olhos d'água (2014) de


Conceição Evaristo.................................................................... 100

A interferência das videntes no destino das personagens


machadianas em “A Cartomante” e em Esaú e Jacó ................ 121

A subversão do sagrado na obra Enquanto Agonizo, de William


Faulkner .................................................................................... 156

Sobre os autores ....................................................................... 180


O sagrado afro-feminino: Oxum em Olhos d'água
(2014) de Conceição Evaristo

Dênis Moura de Quadros19

A mitologia afro-brasileira, oriunda de vários e difusos lugares


da África, trazidas ao Brasil no corpo dos negros escravos e escravas é
rica em detalhes que dialogam com a cultura judaico-cristã e outras
mitologias como a grega e a romana, por exemplo. Essa mitologia está
fortemente expressa e (re) existindo ao tempo e ao preconceito
étnico-cultural nos terreiros de Candomblé, nos terreiros de Batuque
no Rio Grande do Sul e nas religiões de matriz africana como a
Umbanda e a Quimbanda. Tal como a cultura indígena, a cultura afro-
brasileira é oral, forma como é passada, reatualizada pelos griôs,
homens e mulheres que trazem guardada na memória a
ancestralidade negra.
Os Orixás trazidos de diferentes regiões da África, colonizadas
pelos portugueses, no Brasil, constituem uma gama de diferentes
divindades, com a maior influência dos povos Yorubás, que constituem
o que conhecemos hoje, e assim a nomearemos, de mitologia
afrobrasileira. Essa mitologia está viva e é (re) passada pelas mães-de-

19
Doutorando em Letras, FURG. Bolsista CAPES.

- 100 -
santo e pais-de-santo (onde o mais correto seria a designação no
santo), mantenedores da religião e cultura:

As clássicas noções ocidentais de bem e mal estão


ausentes na religião dos Orixás no Brasil. Seus
devotos creem que os homens e mulheres herdam
muitos dos atributos de personalidade de seus
Orixás, de modo que em inúmeras situações o
modo de alguém se conduzir pode espelhar-se em
passagens míticas que relatam a aventuras dos
Orixás. (AZAMBUJA, 2010, p.22)

Os Orixás começaram a ser representadas dentro da literatura


através das obras de Jorge Amado, e aqui falaremos de Mar Morto
(1936), onde a representação de Iemanjá que permeia todo o romance
é representada em contraposição à cultura judaico-cristã, onde
Iemanjá sendo Mãe, relacionada à Maria Mater, é, ao mesmo tempo,
a esposa que leva os marinheiros fortes e corajosos para tê-los só para
ela no fundo do mar. Essa característica do mito feminino de Iemanjá
é, ainda, não compreendida pela sociedade brasileira que não entende
que não há as noções de bem e mal dentro da mitologia afro-brasileira,
onde os Orixás (donos da cabeça, em tradução livre) possuem
características positivas e negativas.
Ainda, em busca dos Orixás dentro da literatura brasileira, não
podemos deixar de citar a novela de Carlos Vasconcelos Maia (1923-
1988), O leque de Oxum publicada em 1958 e que traz a cotidianos de
uma yalorixá que desafia o poder de Oxum. Nessa novela o culto de
Babá Egun (Espíritos Ancestrais) aparece, pela primeira e única vez, na
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literatura brasileira. Ainda, devemos citar o álbum dos Afrossambas
(1966) do violinista Baden Powell e de Vinícius de Moraes onde dentre
vários Orixás homenageados o Canto de Oxum é constituído em sua
maior parte por Xangô do que os ítãs (lendas orais afro-brasileiras) de
Oxum.
No ano de 2016, o escritor JP Pereira lança uma trilogia Deuses
de dois mundos (Livro do silêncio, Livro da traição e Livro da morte) faz
uma relação com vários mitos de Orunmilá, Oxum, Iemanjá, Nanã,
Iansã, Obá, Euá, Xangô, Ogum, Oxóssi e outros em relação com a
atualidade. JP Pereira inter-relaciona o mundo mítico dos Orixás
(Orum) com o nosso mundo (Ayê), mostrando como um reflete (n) o
outro. Apesar de fazer essa relação, JP Pereira apenas transcreve os
mitos dos Orixás reatualizando-os. Traz, também, arraigado na trama
da trilogia a má fama das Mães Ancestrais, as Yami Oxorongás, mito
feminino mais representativo, ao meu ver, da mitologia, onde o mito
da Mãe e o mito da Bruxa da tradição judaico-cristã, de acordo com
Beauvoir (2016) convivem e dialogam de maneira autônoma.
A escolha por analisar a representação do mito de Oxum e não
de Iemanjá (que dentro das poucas e raras presenças dos Orixás
femininos na literatura brasileira é a mais representada), deu-se pelo
fato de haver dentro desse mito a representação dupla de mulher que
rompe com a ordem machista e patriarcal e, ao mesmo tempo, carrega
a característica dos mitos femininos em outras mitologias: deusa da
fertilidade e, logo, reforça o mito materno.

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Discorreremos, ainda, acerca da escrita afrofeminina que
dentro da Literatura Negra é, ainda, pouco estudada, mas que alcança
os objetivos dos dois grupos que não abriram espaço para essa
mulheres: De um lado o Movimento Negro que resgatou autores
homens negros dentro da literatura, mas não abriu espaço para as
escritoras negras e de outro o Movimento
Feminista que, no Brasil, buscou os direitos das mulheres
brancas de classe média. Dentro da escrita afrofeminina, destacamos
duas autoras que terão seus contos analisados: Conceição Evaristo que
tem seus contos e poemas publicados, em um primeiro momento,
pelos Cadernos Negros, escritora, também, de romances e que traz o
conceito de escrevivência em suas obras e Mãe Beata de Yemonjá que
escreve Coroço de dendê: a sabedoria dos terreiros que publica em
1998 seu livro de contos orais que trazem personagens da mitologia
afro-brasileira diluídos em vários contos, bem como outras lendas
difusas da mitologia afro-brasileira. Dessas duas autoras recortamos
os contos Olhos d’água (2014) de Conceição Evaristo e Balaio de água
(2002) de Mãe Beata de Yemonjá, ambas mulheres negras engajadas
na luta pela valorização da identidade feminina negra que se constitui
de forma diferente à identidade feminina e à identidade negra.

A mitologia afro-brasileira: Oxum e a insubmissão feminina


Fazendo as vias do mensageiro Exu, Orixá mediador entre
Orum e Ayê, Prandi (2001) resgata a mitologia afro-brasileira levando

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para a escrita as características de uma cultura oral, em que: “Para os
iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria
acontecido antes” (PRANDI, 2001, p. 18).
A mitologia afro-brasileira, tal como outras mitologias, possui
suas divindades masculinas e femininas, contudo, ela é constituída de
Orixás (denominação yorubá) advindos de diferentes lugares da África,
como já dissemos, e cultuados de distintas maneiras em cada
segmento religioso que chamamos de nações. Há um denominador
comum de nomes de Orixás e características que, dentre os mais
conhecidos do panteão afro-brasileiro estão: Oxalá, Xangô, Oxóssi,
Ogum, Omulu/Obaluaiê, Ossaim, Nanã, Iemanjá, Obá, Iansã e Oxum:

[...] o mito está impregnado nos objetos rituais, nas


cantigas, nas cores e desenhos das roupas e
colares, nos rituais secretos da iniciação, nas
danças e na própria arquitetura dos templos e,
marcadamente, nos arquétipos ou modelos de
comportamento do filho-de-santo, que recordam
no cotidiano as características e aventuras míticas
do orixá do qual se crê descender o filho humano.
(PRANDI, 2001, p. 19)

Dessa forma, a cada saída de santo, onde os laços entre


indivíduo e seu Orixá são confirmados e fortalecidos após 1, 7, 14 anos
e sucessivamente, a mitologia renova-se sempre pelas vias da
oralidade. Esse fato, faz com que a cultura e a mitologia afro-brasileira
seja menosprezada em comparação com outras culturas que mantêm
um registro escrito de sua cultura e que sobreviveu por essas vias.

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Na mitologia, Oxum é descrita como filha de Iemanjá e
Orunmilá, associação mítica que pode ser vista no conto de Mãe Beata
de Yemonjá que analisaremos. Há, dentro da mitologia afro-brasileira,
o que chamamos de caminhos, características de um Orixá que não se
repete em outros de seus caminhos, como, por exemplo, Oxum
Iopondá que vem da região da África chamada Iopondá e Oxum Opará
onde a Oxum divide o corpo com Iansã, onde a cada seis meses há uma
troca. Desses caminhos surgem dois ítãs distintos onde um retrata
Oxum como uma mulher fiel que fica pobre por amor à Xangô e outra
que retrata Oxum como ardilosa, onde ela terá relações com Exu para
aprender o oráculo de Ifá:

Logo que o mundo foi criado,


Todos os Orixás vieram para a Terra e começaram
a tomar decisões e dividir encargos entre eles em
conciliábulos nos quais somente os homens
podiam participar.
Oxum não conformava com essa situação.
Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás
masculinos.
Condenou todas as mulheres à esterilidade, de
sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido
de fertilidade era fadada ao fracasso.
Por isso, os homens foram consultar Olodumare.
Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer
sem novos braços para criar novas riquezas e fazer
guerras e sem descendentes para não deixar
morrer suas memórias.
Olodumare soube, então, que Oxum fora excluída
das reuniões.

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Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras
mulheres, pois sem Oxum e seu poder sobre a
fecundidade nada poderia ir adiante.
Os orixás seguiram os sábios conselhos de
Olodumare e assim suas iniciativas voltaram a ter
sucesso.
As mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na
Terra prosperou. (PRANDI, 2001, p. 348)

Como podemos notar, o mito de Oxum rompe com os mitos


femininos ocidentais que conhecemos e, se partirmos para uma
análise comparada entre outras mitologias, desenvolvesse de forma
autônoma. Partindo da mitologia mais conhecida, estudada e que
sobreviveu através da arte, a mitologia grega, temos a deusa Afrodite
que possui seus encantos e belezas e representa essa força que guia
os humanos que é o amor em todas as suas faces, mesmo as mais
ocultas. Dentro da cultura em que estamos imersos há dois mitos
femininos que são atualizados e sobrevivem: Maria Mater, reforçando
um estereótipo de mulher virgem e submissa e seu contrário: a
prostituta, Lilith, que rompe com essa ordem e que se tornará mais
velha, a bruxa:

Muito de sua mitologia mostra papeis libertários


para a condição feminina. Mas como no caso de
outras divindades femininas ao longo da história
das religiões, também as formas de compreender
Oxum sofreram e sofrem a influência das religiões-
e epistemologias- patriarcais. [...] Como objeto
feminino de culto, é reduzida à “deusa da
fertilidade”, como boa parte da pesquisa
arqueológica e ou antropológica, que tendo por

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modelo mítico dominante do feminino uma virgem
mãe, reduz ao aspecto da maternidade o único
sagrado relacionado ao feminino.(ROSÁRIO, 2008,
p.7)

Há um ítã de Oxum que comprova essa total ruptura com a


sociedade patriarcal que não está presente nos ítãs recolhidos por
Prandi (2001), mas contado dentro dos terreiros acada iniciação de um
novo filho para o Orixá é que após a divisão do Orum e do Ayê, os seres
humanos clamaram à Olorum (Orixá primordial) que os Orixás
voltassem a habitar o Ayê, como era antigamente. Contudo, para que
os Orixás pudessem vir ao Ayê seria necessário um ritual de purificação
dos corpos desses homens e mulheres que receberiam os Orixás.
Oxum toma a frente e vai ao Ayê orientar essa purificação de banhos
de ervas, de Boris (dar comida ao Orixá individual), bem como as saídas
que contam com roupas e apetrechos específicos.
Essa lenda, contada, principalmente, nos terreiros de nação
Jejê, onde a sua rainha e principal Orixá é Oxum, nos mostra a
importância dessa Orixá para o panteão afro-brasileira, tanto na
mitologia, quanto na religião que permite e mantêm vivos esses mitos.

A escrita afrofeminina e a identidade da mulher negra:


ancestralidade e cultura oral construída através das memórias
individuais e coletivas
Ao falarmos da literatura negra, escrita por autores negros
temos uma situação de marginalidade no sentido de serem autores

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muito pouco lidos e editados. O Movimento Negro resgatou vários
autores como Luís Gama (1830-1882), Cruz e Sousa (1861-1898), Lino
Guedes (1897-1951) e Solano Trindade (1908-1974), entre outros.
Esses autores que não estão presentes nas histórias da literatura, com
exceção de Cruz e Souza, não são conhecidos ou estudados. Essas
vozes foram silenciadas e, mesmo após seu resgate, são pouco
estudadas:

[...] a literatura Negra ou Afro-Brasileira continua à


margem porque o objetivo do sujeito autoral negro
comprometido com a etnicidade afrodescendente
não é silenciar sua voz, mas se impor no centro
canonizado, mesmo com o grito de liberdade ainda
inaudível [...] e segundo, devido, principalmente,
ao preconceito racial contra os escritores/as
negros/as e à péssima situação sócio-econômica.
(LIMA, 2009, p.33)

Sobre a escrita feminina, o resgate do movimento feminista


brasileiro, pautado na crítica feminista e, em especial, os estudos de
ginocrítica (Showalter, 1994), resgatou e tem resgatado muitas
escritoras que, assim como os autores negros, foram silenciados e
apagados das páginas das histórias da literatura e, quando aparecem
são como forma de legitimar que suas produções são menores
esquecendo que o lugar de fala delegados à elas foi o espaço privado
e, logo, esse espaço aparecerá com mais frequência através de diários
e das escritas de si.

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Na contramão desses dois movimentos que resgatam vozes
silenciadas e minoritárias, presente no entre lugar da escrita feminina
e da literatura negra está a escrita afrofeminina, conceito muito
recente que objetiva resgatar as vozes de mulheres negras,
percebendo como está constituída e que mecanismos a (des)
constroem a identidade da mulher negra. Primeiramente, a identidade
dos africanos que foram escravizados é constituída por um
apagamento que Lima (2009) chama de um processo de
desafricanização.

Tomavam-se algumas medidas estratégicas para o


processo de desafricanização, como faz com que os
cativos esquecessem o mais rapidamente sua
condição de africanos e assumissem a de negro,
marca de subalternidade (LIMA, 2009, p. 79).

As mulheres, além de passarem por esse processo que contava


com o batismo e o recebimento de um nome português como Maria,
tinham seus cabelos raspados, como forma de interditar qualquer
característica africana de suas tribos. Dentro das senzalas estavam
tribos inimigas com o intuito de que não houvesse, nesse momento,
possibilidades de revolta contra o senhor da fazenda a que eram
comprados. Os sobrenomes dessas “peças”, como eram tratados, era
de seu dono, sobrenomes estes que após a abolição da escravatura
perseguem os descendentes desses africanos.
Portanto, as identidades desses povos eram apagadas e
silenciadas sendo-lhes impostas a língua e uma identidade subalterna
- 109 -
delegada a eles pelos brancos. Interessante notar que após ser iniciado
no Candomblé, o indivíduo esquece sua identidade profana e recebe
o nome a que será chamado associando sua identidade à do Orixá. Ou
seja, no ritual de iniciação o indivíduo (re) nasce para o seu santo,
deixando o profano e recebendo o divino em seu corpo.
Partindo dessa questão de identidade dos povos descendentes
de africanos, temos uma comparação entre as mulheres brancas e as
mulheres negras dentro da nossa sociedade, onde:

A mulher branca de família mais abastada atribuía-


se a modéstia, a pureza, a ociosidade, enquanto as
menos favorecidas, entre as quais se pode incluir
as mulheres negras, ficavam relegadas a
preconceitos como a promiscuidade, a
sensualidade, a sedução e o próprio trabalho como
algo pouco apreciado, na medida em que este se
apresentava como fundamental para sua
sobrevivência. (COSTA, 2008, p.39)

Essas representações são facilmente percebidas na literatura


em que, por exemplo, em O Cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo, a
representação de Rita Baiana reforça o estereótipo sensual e sexual da
mulata com “ancas” largas. Além disso, as mulheres idealizadas pelos
românticos na literatura brasileira eram brancas, alvas e com
características europeias e não negras. O estereótipo feminino
propagado, ainda hoje, pela mídia não é o de mulheres negras, mas
mulheres de cor branca, cabelos lisos e magras. Para aproximar-se
desse padrão de beleza imposto pela sociedade o primeiro traço de

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identidade apagado são os cabelos que são alisados. Esse fato faz com
que as mulheres negras que assumem sua identidade e, aqui diria,
assumem a negritude, segundo Bernd (1984), é deixar os cabelos
crespos ou cacheados soltos como uma coroa de orgulho pela raça,
rompendo com o padrão branco europeu de beleza, assumindo a
negritude:

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem


significado, concretamente, demarcar e instituir na
agenda do movimento de mulheres o peso que a
questão racial tem na configuração, por exemplo,
das políticas demográficas, na caracterização da
questão da violência contra a mulher pela
introdução do conceito de violência racial como
aspecto determinante das formas de violência
sofridas por metade da população feminina do país
que não é branca. (CARNEIRO, 2011, p.3)

Essa necessidade de enegrecer o movimento feminista e,


talvez, levar o feminismo para dialogar com o Movimento Negro no
intuito de abrir espaço às mulheres negras e ampliar o olhar para esse
entre lugar duplamente marginalizado. Esse espaço faz com que
pensemos os mecanismos que (de) formam a identidade negra, bem
como possibilidades viáveis para discutirmos e resgatarmos essa
identidade menosprezada no sentido de assumir a negritude e aceitar
sua própria cultura exigindo, dessa forma, seu lugar de direito:

As representações da mulher negra na literatura


brasileira nas suas primeiras manifestações
estavam associadas ao trabalho escravo. [...]
- 111 -
Entretanto, na segunda metade do século XX, com
Carolina Maria de Jesus, mesmo sendo
categorizada como dona de um corpo subalterno,
a mulher negra tem sua identidade adaptada ao
contexto da pós-modernidade e a parir dela são
percebidas outras transformações das identidades
femininas, sobretudo, na escrita das mulheres
negras. (OLIVEIRA; SOUZA, 2015, p. 239)

Essas representações femininas negras dentro da literatura


corroboram para que os processos de embranquecimento ou mesmo
de desafricanização iniciado no período de escravização atualize-se e
sobreviva. Se às mulheres não temos uma abertura para que suas
escritas sejam lidas e analisadas com o mesmo prestígio a que temos
aos autores homens, quando falamos de negras, a subalternidade,
segundo Spivak (2010), é ainda mais complicada. Teremos uma voz
feminina negra, que é vista para muitos como memorialista, apenas
em 1960 quando Carolina Maria de Jesus é encontrada pelo jornalista
Audálio Dantas que edita e publica seu diário como o título de Quarto
de desepejo. Contudo é com os Cadernos negros, ainda,
majoritariamente masculino, que as mulheres negras terão espaço
para publicarem suas produções:

Ao (re) apresentar uma diferença negativa da


mulher negra, a literatura reproduz
simbolicamente, estereótipos que a subjugam,
através de qualitativos carregados de imagens de
um passado de escravização, exploração,
sensualidade, libido e virilidade exacerbada,
negando-lhe aspectos positivos, que promovem

- 112 -
uma construção afirmativa de suas identidades.
(SANTIAGO, 2012, p.99)

Construir uma identidade feminina negra é um dos objetivos


da escrita afrofeminina que, além de resgatar essas muitas mulheres
escritoras, valoriza a manutenção da cultura ainda oral, buscando a
abertura de espaço para que essas mães ancestrais compartilhem o
que sabem e aprenderam. Os nomes dessa literatura são muitos, ainda
poucos conhecidos e que já fazem parte de estudos acadêmicos,
dentre esse muitos nomes citamos Cristiane Sobral, Miriam Alves,
Geni Guimarães e, as autoras que terão seus contos analisados:
Conceição Evaristo e Mãe Beata de Yemonjá:

[...] a literatura afrofeminina é uma produção de


autoria de mulheres negras que se constitui por
temas femininos e de feminismo negro
comprometidos com estratégias políticas
civilizatórias e de alteridades, circunscrevendo
narrações de negritudes femininas/feminismos por
elementos e segmentos de memórias ancestrais,
de tradições e culturas africano-brasileiras, do
passado histórico e de experiências vividas,
positiva e negativamente, como mulheres negras.
(SANTIAGO, 2012, p.155)

Há duas possibilidades de analisarmos a escrita afrofeminina.


Uma primeira é buscar as marcas de ancestralidade e, logo, da
mitologia afro-brasileira ou africana. Essa análise parte de um conceito
de negrismo, onde a busca por uma determinada ancestralidade
também designa mecanismos de formação identitária da mulher, do

- 113 -
negro e, sobretudo, da mulher negra que fala sobre ela mesma. Uma
segunda forma de análise parte da (des) construção do estereótipo
negativo da identidade feminina negra e uma construção, pelas vias
da valorização e resistência, da identidade negra, seguindo o que
podemos chamar de negritude.
Neste trabalho, associaremos ambas as noções, buscando nos
contos analisados como Oxum é representada e se faz presente na
identidade das personagens que em Conceição Evaristo passam pelo
conceito de escrevivência, onde há uma escrita de si (memórias
individuais) que permitem delinearmos uma representação mais
ampla do universo feminino negro (memória coletiva), Halbwachs
(2003). Já em Mãe Beata de Yemonjá o que marca os contos são a forte
presença da oralidade, em que o leitor é levada a imaginar que alguém
estácontando, como se a griô Mãe Beata estivesse-nos narrando as
histórias cotidianas em que Oxum e Iemanjá fazem-se presente na vida
de suas filhas, bem como outros Orixás do panteão africano.

Olhos d’água de Conceição Evaristo: matriarcado e escrevivência


O livro de contos Olhos d’água (2012) de Conceição Evaristo,
traz 15 contos que tratam da identidade feminina negra, bem como a
presença de uma O livro de contos Olhos d’água (2012) de Conceição
Evaristo, traz 15 contos que tratam da identidade feminina negra, bem
como a presença de uma ancestralidade africana. O termo cunhado
pela própria escritora que o utiliza em sua tese, designa o ato de

- 114 -
escrever associado à vivência, resistência e, podemos dizer, resgate e
reafirmação de uma identidade negra feminina.
Dos contos 15 contos, escolhemos para analisar o conto que
nomina a obra de Conceição Evaristo, Olhos d’água, com o intuito de
perceber como o mito de Oxum reflete uma família matriarcal e que
resgata, através da memória coletiva (Halbwachs, 2003) do povo
africano e o processo de reafirmação de sua identidade. Esse fato
perpassa o conceito por mim defendido, cunhado pela professora
doutora Ana Rita Santiago (2012) de literatura afro-feminina. Uma
literatura engajada em resgatar esse passado e essa cultura:

Assim, Conceição Evaristo assumindo uma atitude


compromissada, reelabora o papel da mulher,
fugindo dessa perspectiva de apagamento e dando
a ela instrumentos identitários que guia em
especial a mulher negra, para uma vida de
resistência e contestação cultural. (MAGALHÃES,
2014, p.10)

Ao questionar-se sobre a cor dos olhos de sua mãe, a


narradora-personagem vai rememorando, ao longo do conto, a
relação que havia entre mãe e suas sete filhas, número simbólico que
represente, dentre outras coisas, a perfeição. Mesmo em meio à
extrema pobreza, havia momentos afetuosos, onde mãe passava às
filhas o orgulho de assumir sua cor, mesma cor de seus antepassados.
Retornando à casa de sua mãe, a narradora-personagem se dá conta
que os olhos de sua mãe são olhos d’água.

- 115 -
Na mente da protagonista, a descoberta da cor dos olhos de
sua mãe seria uma “oferenda” aos Orixás. Logo, essa descoberta é um
rito, cujo mito de Oxum exige. As oferendas ainda estão presentes na
cultura e na religiosidade afro-brasileira. Essas comidas, diferente do
que a sociedade pensa, não são jogadas fora, elas servem de alimento
para os médiuns e simpatizantes. Inclusive a cada nova “reza”, cântico
de entoamento dos Orixás, é servida sua comida como, por exemplo,
o amalá de Xangô:

Minha mãe trazia, serenamente em si, águas


correntezas. Por isso prantos e prantos a enfeitar
seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe cor de
olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos,
mas profundos e enganosos para quem contempla
a vida apenas pela superfície. Sim, águas de mamãe
Oxum. (EVARISTO, 2014, p. 18-19)

Essas águas caudalosas que aparentemente parecem calmas,


demarcando Oxum, como Orixá das águas doces que trazem a
fertilidade, bem como a Orixá da doçura e da felicidade é contrastada
com as águas, por vezes, mortais das cachoeiras, regato da Orixá que
rompe com estereótipos femininos e com o mito de fragilidade. Essa
presença de Oxum também pode ser lida como forma de resistência
feminina.
Interessante notarmos que ao lado de Iemanjá, Oxum pertence
ao elemento água. Esse elemento, por si só, liga as Orixás à
fecundidade e a maternidade. Afinal, somos gerados dentro do útero

- 116 -
materno cheio de água; nossa composição possui 75% de água e ela é
imprescindível para a vida. Ainda, a figura das Yamins Oxorongás
reforça a força e necessidade primordial da presença feminina na
mitologia e nas religiões de matriz africana:

Mulheres ligadas pela tradição ancestral: as


gerações se enleiam nas águas jorradas, no
passado e no presente, nas exclusões sofridas que
perpassam os tempos. [...] As mães guardam nos
olhos as experiências vividas por elas e também as
memórias de suas ancestrais. (FIGUEIREDO, 2009,
p.83)

Podemos perceber como o mito de Oxum, através desse


pequeno passeio por Olhos d’água, rompe com vários paradigmas e
mitos que oprimem a identidade feminina. Esses mitos que somados
ao processo de desafricanização e menosprezo pela identidade
afrobrasileira, constituem a deformidade dessas mulheres e a
importância de permitir que as subalternas falem e resgatem suas
identidades.

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Referências

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