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Mary Garcia Castro

Raffaella Fernandez
(organizadoras)

SABERES
DECOLONIAIS
SABERES DECOLONIAIS
LITERATURA E OUTROS GÊNEROS DO CONHECIMENTO
NA AMÉRICA LATINA
Comitê editorial
Caroline Izidoro Marim
Susana de Castro

Conselho científico
Claudia de Lima Costa
Karina Bideseca
Maria Clara Dias

Conselho editorial
Gabriela A. Veronelli
Heloisa Buarque de Hollanda
Joshua M. Price
Mary Garcia Castro
Mirian Pillar Grossi
Paola Baschetta
Rafael Haddock-Lobo
Suely Messeder
Yuderkys Espinosa Miñoso
Mary Garcia Castro
Raffaella Fernandez
(organizadoras)

SABERES
DECOLONIAIS
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Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos - CRB-8/9166

S115
Saberes decoloniais: literatura e outros gêneros do conheci-
mento na América Latina / Mary Garcia Castro (Organizadora), Raffaella
Fernandez (Organizadora). – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2022.

(Pindorama)

320 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-80154-51-7

1. Filosofia. I. Castro, Mary Garcia (Organizadora). II. Fernandez,


Raffaella (Organizadora). III. Título.

CDD 100

Índice para catálogo sistemático

I. Filosofia
SUMÁRIO

PREFÁCIO..............................................................................................................9
Mary Garcia Castro
Raffaella Fernandez

NA BOCA DA NARRATIVA DAS PERSONAGENS MASCULINAS TAMBÉM COME


ÈSÙ: NO CORPO-TERRITÓRIO.......................................................................... 19
Dejair Dionísio

TRANSIÇÃO CIVILIZACIONAL DECOLONIAL: UMA CONVERSA DE LONGA


DURAÇÃO............................................................................................................ 41
Francisco Uribam Xavier de Holanda

A LITERATURA DE CAROLINA MARIA DE JESUS COMO DENÚNCIA AO


RACISMO NUMA PERSPECTIVA DECOLONIAL NOS ESPAÇO ESCOLARES...69
Michael Dias de Jesus
Ana Márcia Lima Costa

MATERIAIS ORAIS E DECOLONIALIDADE: REFLEXÕES NECESSÁRIAS.......... 91


Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal

CURTAS BRASILEIROS: LABORATÓRIO DE ESTÉTICAS INSURGENTES...... 115


Maria Camila Osorio Ortiz
Tereza Maria Spyer Dulci
UM PROJETO DECOLONIAL EM UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA (2013), DE
LUIZ BOLOGNESI..............................................................................................143
Davi Silistino de Souza

DESLOCAMENTOS DE CAROLINA NA AMÉRICA HISPÂNICA: ALGUNS


APONTAMENTOS A PARTIR DAS TRADUÇÕES DE QUARTO DE DESPEJO PARA
O ESPANHOL..................................................................................................... 161
Bruna Macedo de Oliveira
Mario René Rodríguez Torres
Penélope Serafina Chaves Bruera

SABERES ANCESTRAIS NA LITERATURA: UMA ANÁLISE DAS ESCREVIVÊNCIAS


DE CIDINHA DA SILVA E ELIANE POTIGUARA............................................... 191
Amanda Volotão

MULHERES E TRADICIONALISMO GAÚCHO..................................................219


Márcia Esteves de Calazans
Marjuliê Angonese
Cristina Bartholomay
Luiza Vesselai da Veiga

DESENCONTROS ENTRE COSMOVISÕES AFRICANAS (ETNIAS YORUBÁ E


IGBO) E FEMINISMOS OCIDENTAIS: NOTAS A PARTIR DE IFI AMADIUME E
OYÈRÓNKE OYÉWÙMI......................................................................................237
Mary Garcia Castro

LITERATURA E “NARRATIVAS DE LIBERTAÇÃO”: MAYA ANGELOU E BELL


HOOKS...............................................................................................................267
Susana de Castro
DAS MARGENS DA LITERATURA À CRÍTICA SOCIAL: UMA ANÁLISE DE
CAROLINA MARIA DE JESUS EM DIÁRIO DE BITITA..................................... 277
Rayron Lennon Costa Sousa
Claudia Letícia Gonçalves Moraes

DECOLONIALIDADES, RESISTÊNCIAS E LITERATURAS NO BRASIL ........ 295


Mary Garcia Castro
Raffaella Fernandez

SOBRE ORGANIZADORAS, AUTORAS E AUTORES........................................313


PREFÁCIO
Laróyè Èṣù Ọnọn! Assim saudamos as linhas que se seguem neste livro,
abrindo nossos caminhos. Essa coleção tem o prazer de convocar o Mensagei-
ro com a sugestiva pesquisa “Na boca da narrativa das personagens masculinas
também come Èṣù: no corpo-território”, de Dejair Dionísio. Nesse historiar,
personagens negras são acessadas, destacando representações do arquétipo Èṣù
e cotidianidades do povo negro em periferias, do periférico Brasil, tendo
como referência contos dos Cadernos Negros, três décadas: ensaios, poemas,
contos (2008), refletindo sobre ressignificações sobre história da África, cul-
tura negra e racismos, tema importante para a operacionalização da Lei no
10.639, de 9 de janeiro de 2003, que incluiu no currículo oficial da Rede de
Ensino brasileira a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Bra-
sileira” que deveria ser “ministrada nas diferentes disciplinas, com ênfase na
Literatura e na História Brasileiras, bem como na Educação Artística”. Dio-
nísio desmistifica racismos epistêmicos, comentando os contos e nos levando
às encruzilhadas de razões, ressaltando a mágica, lembrando que controvérsia.
Enfatiza:

O racismo está nas letras, está na edição e encontra-se


idem na representação. Necessário, portanto, se faz bus-
car outros moldes de narrar e apresentar o texto. Acredi-
tamos que os contos aqui elencados, bem como o cote-
jamento com os textos assinalados, servem de contributo
para que outros insumos sejam gerados.

Peça básica aos horizontes da decolonialidade do saber na remodela-


gem do se fazer Brasil, além do hegemônico, oficializado e mais resgatando
sentidos na cosmopercepção africana, do corpo-território, a mãe maior, a ter-
ra, saindo dos parâmetros ocidentais, dessa como commodity, parte do proces-
so de exploração do ser humano/natureza.
Em “Transição civilizacional decolonial, uma conversa de longa du-
ração”, Uribam Xavier, “professor, ativista político decolonial e anti-impe-
rialista”, estimula polemicas, por suas leituras próprias do debate decolonial,
fixando-se em alguns autores do grupo Modernidade/Colonialidade sobre
modernidade e modelos de desenvolvimento. Focaliza tema caro e urgente,
o da modernidade, sua relação com a colonialidade do poder e fonte de risco
maior à vida do planeta e das crises relacionadas a modelos de desenvolvi-
mento. Contudo resgata questões que envolvem uma longa biografia, como
o fato de ter a modernidade, como conceito absoluto, minimizando debates
marxistas sobre modo de produção e o capitalismo, já desde sua inauguração,
codificado por intrusões.1 Ulrch Beck é acessado no plano de destacar a sim-
biose violência-modernidade que o poder, em diversas dimensões, eurocên-
trico e norte americano infringe ao outro, quer sejam países não cêntricos e
pessoas não brancas, mas ainda como Habermas apostando em mais moder-
nidade, e omitindo o capitalismo no horizonte do risco à vida. Reflete sobre a
potencialidade de perspectivas decoloniais, para sair de tal labirinto epistêmi-
co, quando contribuições de povos tidos como originais, na América Latina,
África e Ásia, por exemplo são revisitadas não com o sentido de passado, mas
de história por devir. Insiste-se, sua filiação sem reservas a alguns autores do
tema colonialidade, estimula questões, mesmo que não seja esta a intenção
do Autor do capítulo, como a que vêm iniciando alguns autores: se não seria
1 Sobre critica a autores decoloniais como Mignolo e Boaventura de Souza Santos por suas rotula-
ções do marxismo, como ‘eurocêntrico’, ver entre outros Cahen, Michel em CAHEN, Michel e Ruy
Braga (org.) Para além dos pós(-)colonial. Ed. Alameda, São Paulo, 2018; e os destaques de Quijano
às influencias do marxista José Carlos Mariategui à sua obra, em GERMANÁ, César. El pensamien-
to de Aníbal Quijano: el largo proyecto de subversión del poder. In: QUIJANO, Aníbal. Cuestiones
y horizontes de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos
Aires: CLACSO, 2020

12 Saberes decoloniais
necessário mais investir em críticas às propostas de mudanças sociais dos de-
coloniais mais relacionadas ao comunal e à pluridiversidade, e com ênfase em
raça, desconsiderando por exemplo, o lugar de religiões fundamentalistas na
América Latina e minimizando o poder do capitalismo2.
No texto “A literatura de Carolina Maria de Jesus como Denúncia
ao Racismo numa Perspectiva Decolonial nos Espaços Escolares” de Michael
Dias de Jesus e Ana Márcia Lima Costa observa-se em que medida aspectos
decoloniais presentes na obra de Carolina Maria de Jesus possibilitam prática
de ensino voltadas ao letramento racial- crítico de crianças e jovens negros(as)
nos seus espaços escolares. Conforme os autores “as escritas pretas e Carolinis-
ta nos dão subsídio para debater as violências raciais em seus diversos sentidos,
assim como, possibilitam a discussão de combate às práticas discriminatórias
que sujeitos negros sofrem diariamente”.
Em “Materiais orais e decolonialidades: reflexões necessárias” Mau-
ren Pavão Przybylski da Hora Vidal, pesquisadora idealizadora do grupo de
estudos poéticas decoloniais, debate as oralidades a partir do conceito de “ma-
teriais orais” de Vázquez e Hernández (2020) e Paul Zumthor (2007), em
relação à sistematização os conceitos de decolonialidade instituídos por Walter
Mignolo (2017), Aníbal Quijano (2002) e Catherine Walsh (2019). A autora
nos apresenta alguns materiais orais que foram analisados a partir das pesqui-
sas realizadas pelo Laboratório Nacional de Materiales Orales (LANMO) e
pelos registros do Repositório Nacional de Materiales Orales da UNAM, a
fim de valorizar produções comunitárias mobilizadas para além de modelos
ocidentais canônicos.
Em “Curtas Brasileiros: Laboratório de Estéticas Insurgentes” Maria
Camila Osorio Ortiz e Tereza Maria Spyer Dulci nos trazem uma linguagem
cara aos debates decoloniais, o cinema, no caso os curtas, associando-o a apre-
sentações do racismo estrutural. O que é antes documentado quanto a alguns
indicadores, em especial sobre violências sofridas por negros e negras, assim
como silenciamentos.
As autoras esclarecem que é “gritante desigualdade entre os(as) ne-
gros(as) e não-negros(as) o que pode ser também percebida no setor audio-

2 Este é um debate que se inicia, ver LEHMANN, David. After the Decolonial. Polity Press, Cam-
bridge, 2022

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 13


visual brasileiro. Segundo a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), nos
filmes brasileiros comerciais homens brancos são hiper- representados, sendo
a maioria entre os diretores (75,4%), produtores (59,9%) e elencos (80%).
Entre os grupos marginalizados, a situação é ainda pior para as mulheres ne-
gras, que ficam de fora de diversas categorias”. O que não estaria associado
a ausência de candidatos e talentos, mas à escolha do audiovisual comercial.
Refletem sobre algumas produções que mais recentemente têm con-
seguido romper barreiras elitistas de tal mercado, “produções contra hegemô-
nicas, facilitadas pela luta do movimento negro e pelas cotas em editais de
produção da ANCINE e do Ministério da Cultura”. É quando outra leitura
do Brasil é visibilizada. Mas essa é diversa ou com “múltiplas vozes” e se ca-
racteriza pelo que as Autoras bem demarcam como “estéticas insurgentes” do
chamado “novíssimo cinema” e “cinema negro brasileiro, contemporâneo”.
A peça aterriza em três realizadores negros e também se alastra por território
criativo, do afrofuturismo. Quintal, Rapsódia para o homem negro e Chico são
três curtas focalizados. Decoloniza-se verdades sobre a história nacional em
tempos recentes, tendendo alguns ao distópico mas todos destacando uma
estética negra, uma estética política em diálogo com o movimento negro bra-
sileiro. Se o passado e o presente são portos de decolagem, entre violências,
fogem aquelas produções de vitimismos e se embrenham em possíveis devires.
A produção, as estratégias de driblar imposições do mercado são dis-
cutidas, como o caso do “cinema de guerrilha” que se vira com baixos orça-
mentos. Manifestos específicos sobre tais insurgências e outras são refletidos
em prosa/história pouco contada, como personagens básicos de tais movi-
mentos nomeados.
O texto estimula o resgatar impulsos que vem do Teatro Experimental
Negro (TEM) dos anos 40, mas com perfis próprios. Reconhecem as autoras,
que os curtas comentados são de diretores homens e que haveriam poucas
autoras negras que elas codificariam como insurgentes, ou alinhadas aos mo-
vimentos discutidos. Mas como bem refletem se a “colonialidade de gênero”3
se realiza no campo de curtas, uma outra insurgência se faz preciso, ou quem
sabe ser escavada/ reconhecida.

3 SEGATO, R. “Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estra-


tégico decolonial”. E-cadernos CES, 18, 2012.

14 Saberes decoloniais
O filme Uma história de amor e fúria (2013), dirigido e roteirizado por
Luiz Bolognesi, é discutido no texto “Um projeto decolonial em uma história
de amor e fúria (2013), de Luiz Bolognesi”, assinado por autoria de Davi Silis-
tino de Souza. O autor discute como os grupos ditos hegemônicos reagiriam
à crescente potência da perspectiva decolonial, que visibiliza os/as ‘subalterni-
zados’, como o povo LGBTQI+, as/os negros, as/os povos originários e tantas
outras/outros, como sujeitos de uma outra história. Souza sobre o filme, infor-
ma: “O filme de Bolognesi é uma animação contemporânea brasileira que re-
constitui quatro momentos históricos nacionais distintos: o “descobrimento”
do Brasil; a Colonização e o regime escravocrata; a Ditadura Militar; e uma
prospectiva da sociedade do Rio de Janeiro em 2096. Nas narrativas presentes
no filme, há a presença de personagens silenciadas e subjugadas na sociedade”.
De fato, Silistino de Souza destaca do filme o terrível da colonização,
materializa em letras a tese de Santiago Castro-Gómez (2005)4 de que seria
uma falácia: a “hybris do ponto zero”, desmistificando que teria cabido aos
europeus trazer ‘a civilização’, saberes construídos para iluminar aos ‘não hu-
manos’, ou melhor, tidos como selvagens. Resistências em vários períodos his-
tóricos da então Pindorama, dita Brasil, transitam em linguagem de filme ani-
mação, que apela para lendas, e registra violências contemporâneas de Estado,
“colonialidade do poder”. Contradiz em imagens moveis, a tese conservadora
que acusa perspectivas decoloniais de saudosismo e reivindicar um passado
idílico, sem atentar que para o futurar passados questionando presentes, nem
um tempo cronológico é estático. Reflete Silistino de Souza em seu capitulo
neste livro: “Na obra de Bolognesi, o passado, o presente e o futuro estão
interligados de forma indissociável na trajetória dos heróis: os aprendizados
dos indígenas, dos escravos, dos guerrilheiros contrários à ditadura militar e
dos manifestantes contrários à milícia e ao monopólio empresarial de água se
complementam para constituir uma história de resistência”. Vale e muito ler a
reapresentação do filme no capitulo aqui pautado e buscar o filme.
O texto de Bruna Macedo de Oliveira, Mario René Rodríguez Torres
e Penélope Serafina Chaves Bruera intitulado “Deslocamentos de Carolina na
América Hispânica: alguns apontamentos a partir das traduções de Quarto

4 CASTRO-GÓMEZ, Santiago. La hybris del punto cero: ciencia, raza e ilustración en la Nueva
Granada (1750-1816). Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2005.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 15


de despejo para o espanhol”, reflete sobre Carolina Maria de Jesus conside-
rando os diferentes deslocamentos pelos quais passaram a autora e sua obra,
em sua maioria marcados por situações de violência e imposição, conforme
os autores. A partir de uma abordagem no campo da tradução, adotam esse
termo e suas variações para pensar em como Carolina foi deslocada no espa-
nhol e quais deslocamentos de sentido resultaram de sua tradução, leitura e
reescrita nessa língua. Com esse objetivo, os autores e tradutores de Cuarto de
desechos y otras obras (2019), abordaram alguns aspectos das duas traduções
para a língua espanhola de Quarto de despejo surgidas na década de 1960 e da
tradução por eles realizadas. Os autores destacam a proposta colaborativa de
tradução que defenderam junto ao “Laboratório de Tradução” da Universida-
de Federal da Integração Latino-Americana, realizada, portanto, na região da
fronteira trinacional. Demonstram os mecanismos que o projeto de extensão
buscou, inspirado nas novas leituras da autora feitas no Brasil, corresponder à
singularidade de sua escrita e contribuir para potencializar as conexões entre
periferias no contexto as América Hispânica.
Amanda Volotão, apresenta mais uma contribuição para a busca de
experiências decoloniais em escritos com a marca de Pindorama. Resgata o
conceito de ancestralidade em uma autora afro brasileira e outra indígena em
“Saberes ancestrais na literatura brasileira contemporânea: uma análise das es-
crevivências de Cidinha da Silva e Eliane Potiguara”, assim combina literatura
e sociologia nos romances Um Exu em Nova York (2020), de Cidinha da Silva,
e Metade cara, Metade máscara (2018), de Eliane Potiguara. Debate o conceito
de ancestralidade, como construto de resistência, e sua fluidez, ora se refe-
rindo a antepassados consanguíneos, ora a deiades, e como as mulheres mais
cultuam as/os ancestrais quer entre os descendentes de povos livres, muitos
reais na África e no Brasil escravizados, como entre povos originais. Destaca
comunalidades, e.g., “Em ambas as obras, a proximidade das mulheres com o
animalesco é forma de representar suas ações diante de estruturas de violên-
cia”, e singularidades, como o fato de Silva mais sublinhar o sagrado, e Poti-
guara, ainda que se refira aos espíritos da floresta, muito se referir a parentes
passados, e vários presentes. Na seção “Do sujeito hegemônico do feminismo
ao sujeito ancestral do feminismo decolonial: o coletivo que reside naquelas
que se constroem na diáspora”, a Autora brinda a reflexão: “ferramenta políti-

16 Saberes decoloniais
ca, a ancestralidade desafia o modelo eurocêntrico. Ela dá voz a coletividades
silenciadas, chamando a atenção para suas existências. Deste modo, sinaliza
para outros caminhos possíveis”.
Em “Mulheres e o tradicionalismo gaúcho” Márcia Esteves de Cala-
zans, Marjuliê Angonese e Cristina Bartholomay Oliveira combinam conhe-
cimentos disciplinares, em sociologia, psicologia e comunicações, com análise
baseada em pesquisa sobre gênero, patriarcado e tradições próprias do Rio
Grande do Sul, até hoje simbolizando colonialidade que se faz presente, con-
figurando a diversidade Brasil e o nexo de tempos em que as mulheres são ob-
jetificadas, desafiando tal diversidade. Discutem o conceito de prenda, o movi-
mento tradicionalista gaúcho, suas regras e sentidos e o concurso para escolher
entre jovens, la prenda. Recorrem à pesquisa documental e entrevistas com ‘las
prendas’, em tal concurso que mulheres competem por tal título, e assim con-
tribuem para ilustrar a institucionalização cultural do patriarcado colonial, via
tal concurso, Ciranda Cultural de Prendas , no qual as jovens mulheres devem
representar “as virtudes, a dignidade, a graça, a cultura, os dotes artísticos, a
beleza, a desenvoltura e a expressão das gaúchas”. A outra em tal ambiência,
segue o principio colonial, da raça subalternizada, é a “chinoca” – “substanti-
vo feminino, china (índia, ‘cabocla) moça ou menina; caboclinha, chininha;
china (prostituta) jovem; chininha, piguancha” (Calazans et al, neste livro.)
Em “Desencontros entre Cosmovisões Africanas (etnias Yorùbá e
Igbo) e Feminismos Ocidentais: Notas a partir de Ifi Amadiume e Oyèrónké
Oyéwùmí” Mary Garcia Castro após breves referências às etnias Igbo e Yorùbá
e às autoras nigerianas Amaudime e Oyéwùmí, discute artigo de Amadiume
(2005), mais referido à cultura Igbo e publicações de Oyéwùmí (2000, 2005 e
2015) que decolam da filosofia de vida da cultura Yorùbá, destacando críticas
dessas autoras a formulações feministas ocidentais sobre gênero e maternida-
de. De Oyéwùmí (2015) pinça o conceito de “matripotencia” sugerido pela
cultura Yorùbá e o que a autora considera como “materfobia” (conceito em
Adrienne Rich5) em perspectivas feministas ocidentais. Identifica, acima de
tais divergências, a propriedade, ou melhor, a potencialidade da maternidade
para a reprodução social.

5 RICH, Adrienne Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution. Norton Ed. New
York, 1995.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 17


Em “Literatura e “narrativas de libertação”: Maya Angelou e bell
hooks”, Susana Castro trabalha o conceito de ‘narrativa de libertação’ cunha-
do por Djamila Ribeiro (2018) para analisar sua obra Cartas para Minha Vó
de bell hooks e Eu sei por que o pássaro canta na gaiola de Maya Angelou. A
autora discute o lugar da mulher racializada em países marcados por uma
mentalidade colonizada como os EUA e o Brasil, bem como quais os meios
que as mulheres encontram para se libertarem do olhar subjugador do sistema
patriarcal, da supremacista branco, na medida em que contam suas histórias
de vida. Conforme a autora, a vida de uma mulher negra intelectual no con-
texto de uma sociedade patriarcal e racista é obstaculizada em maior e menor
grau dependendo das condições em que se dá sua educação em família e na
escola, como nos mostra bell hooks. Castro referencia os ataques que hooks
sofreu por ser diferente dentro da família e como esses afetaram de tal maneira
a sua autoestima que ela só conseguiu se recuperar graças a espiritualidade, o
feminismo, da importância do amor e do perdão e a crítica cultural (2022).
O texto “Das margens da literatura â crítica social: uma análise de
Carolina Maria de Jesus em Diário de Bitita”, assinado por Rayron Lennon
Costa Sousa e Claudia Letícia Gonçalves Moraes parte da obra Diário de Biti-
ta (1986), de Carolina Maria de Jesus para pensar o processo de marginaliza-
ção da história e das contribuições das populações afrodescendentes e outros
grupos sociais marginalizados. Os autores discutem os temas da pobreza, da
condição de mulher e negra e os descasos sociais denunciados nessa obra.
Além disso, discorrem sobre o teor autobiográfico e testemunhal na escrita de
Carolina Maria de Jesus como uma característica que se destaca, pois como
demostram, a obra parte do olhar de quem viveu o extremo da pobreza mate-
rial, a exclusão, o racismo, o sexismo e o patriarcalismo enquanto “categorias
de extermínio sobrepostas umas às outras, quando se considera a relação entre
vida e obra”. É sobre a “escrita do eu” que percorreu diversos abandonos e
vivências violentas nas casas de brancos e nos contextos dominados por esses,
que os autores se debruçaram a fim de perceber, por meio da “estética caro-
liniana e seu projeto literário”, mobilizado entre a denúncia da condição da
mulher negra periférica no Brasil e a efetivação de sua literatura como “con-
tra-campo literário”.
O último texto, “Decolonialidades, resistências e literaturas no Bra-

18 Saberes decoloniais
sil”, assinado por nós, Mary Garcia Castro e Raffaella Fernandez, buscou rea-
lizar incursões acerca de algumas produções da literatura contemporânea que
resistem às formas de saberes colonializados. Focamos no slam produzido por
mulheres, enquanto exemplos do giro decolonial desde Abya Yala expresso por
essas literaturas num misto de estética e política. E assim, demonstramos uma
curva na encruzilhada na constituição de imaginários rumo à percepção de
novas sensibilidades em proveito da proposição do ser/estar latino-americano,
mas alla do paradoxo autêntico/mimético como condição primordial de suas
existências. Seguimos saudando aquele que guarda esse fecundo caminho, La-
róyè Èṣù Ọnọn!

por Mary Garcia Castro e Raffaella Fernandez

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 19


NA BOCA DA NARRATIVA DAS PERSONAGENS
MASCULINAS TAMBÉM COME ÈSÙ:
NO CORPO-TERRITÓRIO
DIONÍSIO, Dejair1

Le Brésil est une terre mystique. C’est le pays de l ‘incon-


nu, de l ‘invraisemblable, de l’incroyable. Je l’ai compris
presque dès mon arrivée.

David Saint-Clair

Deves ir a dezesseis lugares para saber o que significam


/ esses cocos de palmeira. / Em cada um desses lugares
recolherá dezesseis odus. / recolherá dezesseis histórias,
dezesseis oráculos. / Cada história tem a sua sabedoria, /
conselhos que podem ajudar os homens. / Vai juntando
os odus / e ao final de um ano terás aprendido o suficien-
te. / Aprenderás dezesseis vezes dezesseis odus.

Conhecimento e sabedoria oral nigeriana

1 Pós-doutor no FALE - Programa de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em


Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina. dejair.dionisio@gmail.com
A ESCRITA E SUAS NARRATIVAS NO CORPO-TERRITÓRIO:

A Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, incluiu no currículo oficial


da Rede de Ensino brasileira a obrigatoriedade da temática “História e Cul-
tura Afro-Brasileira” a ser ministrada nas diferentes disciplinas, com ênfase
na Literatura e na História Brasileiras, bem como na Educação Artística. Os
conteúdos referentes à História da África e dos africanos, à luta dos negros
no Brasil, à cultura negra brasileira e à contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política na constituição do projeto-nação, até então subes-
timados na educação formal dos brasileiros, tornam-se, hoje, pedras angulares
na constituição da cultura média das crianças e dos jovens, desafiando seus
professores também quanto ao domínio de novas informações e ao desen-
volvimento de atitudes que favoreçam o reconhecimento da participação da
cultura africana na modernidade. Neste bojo, o combate a toda forma de
reprodução do racismo em nossa sociedade.
A partir desse contexto, percebe-se a forma como os escritores posi-
cionam-se diante da representação do homem e mulher negros. Posição esta
que mudou e muda com o passar do tempo, uma vez que novos contextos
desencadearam formas outras para se analisar tais personagens.
Sendo assim, poder-se-ia observar o contemporâneo a partir da Segun-
da Guerra Mundial, da Revolução Chinesa, da Queda do Muro de Berlim,
do fim do Apartheid na África do Sul ou pela contagem de épocas, como no
escape de estudantes em 1960-70, o boicote africano a Copa do Mundo em
1966 ou o fim das ditaduras nas Américas nos idos anos 1980, além da liber-
tação dos países africanos em guerras coloniais? Então, o que é atual se torna
um problema para o contemporâneo, pois, passados quase 40 anos, poderia
não ser atual. Pode- se dizer que o moderno se associa ao contemporâneo,
sendo uma aceleração do moderno e do capitalismo científico, relacionado à
Agamben (2009), que propõe ser o contemporâneo, qualquer época associada
a algo que diz respeito a ela.
Pensar esse contemporâneo conduz, diretamente, aos contos e poesias
compilados nos Cadernos Negros, lugar em que se busca demonstrar como as
narrativas dos personagens afrodescendentes, sobressaem como uma categoria

22 Saberes decoloniais
específica a ser visitada, numa sociedade que, como bem pontuou Mário de
Andrade em seu poema Garoa de meu São Paulo, todos são brancos. Portanto,
esta intenção de plano de trabalho, procurará a recuperação de registros refe-
rentes à representação desse sujeito negro nos Cadernos Negros, que trazem a
marca da diferença como distintivo, procurando também fazer emergir dis-
cursos que se colocam do lado contrário do instituído, demonstrando como
este sujeito, o afrodescendente – mesmo quando aviltado em sua humani-
dade, consegue sobrepujar as adversidades históricas e construir formas de
permanência, sobretudo quanto à identidade cultural. E no que se refere a essa
cultura, vem a ser presença imprescindível para se entender a constituição des-
te segmento social e seus mecanismos desenvolvidos para continuar trilhando
nessas tortuosas e generalizantes noites ocidentais. As opções pelos contos se
devem pois percebemos ser

[..] a descrição como uma expansão da narrativa, um


enunciado contínuo e descontínuo, unificado do pon-
to de vista dos predicados e dos temas, cujo fechamento
não abre nenhuma imprevisibilidade para o seguimento
da narrativa, e que não entra (globalmente) em nenhuma
dialética de classes lógica complementares e orientadas.
(HAMON, 1972, p. 58)

Porém, três problemas se apresentam, para o mesmo Philippe Hamon,


estão cercados pela preocupação de observar como se insere a descrição em um
conjunto textual. Poderíamos perceber dentro dos contos, elementos míni-
mos, como signos que demarcassem um espaço que se perceba a introdução,
a descrição ou a sua conclusão? Ele opera, ainda, em outro sentido, tratando
de procurar compreender como “a descrição, enquanto unidade destacável”,
pode funcionar coerentemente enquanto coesão semântica, assegurando seu
funcionamento interno. Outro item é se o funcionamento global, se verifica
no papel geral de uma narração (1972, p. 58).
Assim, algumas questões se percebem e que podem nos ajudar a com-
preender como esses mecanismos operam dentro das narrativas produzidas
por autores/as negros/as, quando se trata de compor seus textos atribuindo
ao leitor a possibilidade de sentir a força tributária aos olhos da personagem,
de forma que o autor/a fará “da personagem, um ‘espião’, uma personagem

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 23


‘curiosa’, um ‘amador’ de mecânica, um pintor que se interessa pela moder-
nidade de certos temas” (HAMON, 1972, p. 59). Neste caso, o perceber a
atuação das personagens, quando masculinas, para o nosso caso e, especifica-
mente, quando negras, nos levam a propor outras leituras para o mesmo texto,
devido as possibilidades da modernidade da descrição, de outros personagens,
para “certos temas”, como advoga Hamon na sua análise da descrição.
Mas como perceber essa diferença do narrar? Trabalhos anteriores já
pensado por nós, que dialogam como o que se propõe acerca da narrativa e da
descrição dos espaços em que personagens negros atuam, revelam uma falên-
cia de representatividade dessas personagens. Em pesquisa sobre A personagem
do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004, Regina Dalcastagnè (2005)
alerta para a ausência de estudos que se debrucem sobre duas identidades, a
do afrodescendente e a do pobre. Para Dalcastagnè (2005, p. 15), “de um
modo geral, esse tipo de ausência costuma ser creditada à invisibilidade desses
mesmos grupos na sociedade brasileira como um todo”. Interessa ao plano de
trabalho aqui proposto, a constituição do afrodescendente e sua representação
literária.
Importante ressaltar termos observado que pesquisas recentes têm
contemplado a questão familiar (SILVA, 2014), o insólito e questões perifé-
ricas (SILVA, 2011), esboços de análises em Cadernos Negros (ANTONIO,
2005), a mulher negra nos Cadernos Negros (FIGUEIREDO, 2009), o corpo
e o erotismo (CASTRO, 2007), o homem negro, (DIONÍSIO, 2016) tem
sido contemplada ou discutida – mas ainda é um devir, a formação de um cor-
pus e que, inclusive, dialogue com África, considerando os limites da CPLP -
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em termos da literatura ou dos
enfoques na especificidade da própria Literatura Afro-brasileira e como ela se
insere no contexto de sua gênese, que vem a ser os componentes primeiros da
sua constituição estética.
Longe das estereotipias a que sua imagem foi submetida ao longo do
tempo, os textos em questão revelam outro rosto desses personagens. Não
mais a imagem tão servil ou do homem/mulher bom e pronto para a cama,
mas preferindo trilhar caminhos contrários aos da submissão, sobretudo men-
tal, buscando na produção dos escritores afro-brasileiros uma preocupação em
recuperar o que foi ocultado pela vigência discursiva.

24 Saberes decoloniais
É ainda dentro desta mesma linha que se estabelecem diferenças con-
ceituais, distinguindo, a partir de então, diferenças culturais, ao apontar for-
mas de traduzir e estar no mundo. Se pela cultura ocidental a terra é tratada
como algo a ser explorada - a terra como propriedade -, na visão civilizatória
da filosofia e religião africanas ela é mãe doadora, algo a ser amado e cultiva-
do. Dentro desta dicotomia, a terra explorável surge como denúncia de um
sistema perverso que se sustenta, tendo por base a exploração do homem pelo
homem; a terra cultivável, ao contrário, apresenta-se como proposta para um
entendimento maior entre as pessoas, numa relação mais humanizada.
Sendo também a literatura um reflexo da sociedade, lugar em que
questões circundantes são discutidas, torna-se frutífero suscitar debates que
levem este segmento social, em particular, a uma conscientização criteriosa de
sua condição numa sociedade de vícios ainda segregadores. Somente assim se
reconhece a contribuição para a formação de um pensamento independen-
te que se emancipa na medida mesma que permita, a futuros pesquisadores
comprometidos com estes estudos, perceberem valores que os expliquem e
identifiquem. É com este objetivo que se elucida a produção que verse sobre
a representação de personagens afro-brasileiros. Portadores de linguagens e
simbologias próprias, produtores de discursos tradutores de um ethos que os
singularize, trazem, em suas inscrições, elementos a apontarem outra ordem
de sentido. Nos textos, “outras” palavras lançando luz para “outros” (até agora
ocultados) lugares de saber e fazer literários.

CADERNOS NEGROS, EPIGENIA

O conceito de epigenia, pensado numa representação gráfica, poderia


ser pensado num formato de espiral e que admitiria a possibilidade de algo
estanque, parado ou estacionado, aguardando que determinada situação, saía
do estado de “patinação”, que é quando o movimento fica rodando em círculo
até encontrar destino em ascensão ou descenso.
Em outros termos, considerando o tema em tela que estamos abor-
dando, a representação do personagem negro, pode evoluir ou simplesmente
se desfazer. Nesse sentido, e considerando o que estamos discutindo nos textos
selecionados em Cadernos Negros, três décadas: ensaios, poemas, contos (2008)

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 25


na perspectiva da epigenia, a representação negra e a sua ideia de “aguardar”
uma solução, que está numa espiral, tendendo a cair ou subir, coloca a suges-
tão de intervenção negra na literatura e “o problema das modalidades da sua
análise e o do seu estatuto constitui um dos pontos de ‘fixação’ tradicional
da crítica (antiga e nova) e de toda a teoria da literatura” (HAMON, 1972,
p. 79) em estado de patinação, aguardando por um desfecho. Desfecho esse
que, para nós, nos apoiando agora em outras possíveis definições, considera-
-se o fenômeno de transformação de um corpo em outro, mas que mantém
as mesmas características, atributo costumeiramente aplicado a representação
de negros, sempre nas mesmas condições, condicionantes das “superstições
literárias” que Paul Valéry já assinalava à todas as crenças que têm em comum
o esquecimento da condição verbal da literatura” (apud HAMON, 19772, p.
77), alteradas agora, na espiral ascendente, pelos/as escritores/as negros/as. Se-
rão eles o devir imaginado, esses literatos que dão outra dimensão psicológica
às suas personagens, recriando de forma harmônica as representações estéticas
de forma diferente e que proporcionam aos leitores outra visão, de forma a
trazer outros caminhos estéticos para a obra literária.
Portanto, critérios estéticos e culturais se tornam necessários para a
compreensão que no caso aqui analisado, merece um outro olhar, sendo que,
a ideia de literariedade e territorialidade negra proposta, passa necessariamen-
te pela aceitação de um outro modelo civilizatório, que contemple códigos
internos próprios e que busquem compreender como a questão da epigenia
negra se apresenta em vários momentos, mas como ela pode, também, ser
alterada a partir da evocação de outros saberes que construam novas observa-
ções. Partimos da ideia inicial desse novo paradigma. Sobre pensar e conside-
rar outros olhares para a escrita e versão das narrativas sobre homens negros,
quando personagens, começaremos com uma que consideramos primordial,
para estabelecer o vínculo com as questões de valores etnicorraciais, que nos
interessam. O primogênito, Èsù:

Um dia, em terras africanas dos povos iorubas, um men-


sageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à pro-
cura de solução para terríveis problemas que na ocasião
afligiam a todos, tanto os homens como os orixás. Conta
o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas

26 Saberes decoloniais
as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres
humanos, pelas próprias divindades, assim como por
animais e outros seres que dividem a Terra com o ho-
mem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento,
das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos
insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manu-
tenção da saúde contra os ataques da doença e da morte.
Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por
menos importantes que pudessem parecer, tinham que
ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento
também aos relatos sobre as providências tomadas e as
oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz
em cada desafio enfrentado. (PRANDI, 2015, p. 17)

Pedimos o Padêlicença a Guelwar Adún pois nas “encruzas, monta-


nhas, quebradas / há sumo de verdades conflitantes / assumo, o falo falará
antes da fala...” (ADÚN, 2016, pp. 32-33), pois devemos e faz todo o sentido
observar a função do diálogo entre o Òrun e o Àiyé2, quando cabe considerar
as ações-palavras representantes desse território, aos quais acessaremos em for-
ma de análise na encruzilhada do saber proposto pois toda

[...] força dinâmica que move o sistema mítico ancestral,


como também na vida, no dia-a-dia que, segundo a cren-
ça do povo de santo, é a energia que vitaliza as pessoas
e de tudo o que existe. Em resumo, sem Exu não tem
movimento, logo sem ele não teríamos culto aos orixás,
nem vida para os seres. (SOARES, 2008, P, 39)

E é nessa encruzilhada de Èsù que se estabelece justamente a troca


epistemológica do corpo-territorialidade que evocamos. “A produção do saber
científico, ao passo de que os princípios interpretativos acionam os valores e
saberes africanos e afro-brasileiros” (MIRANDA, 2020, p. 23), sendo que o
que potencializa justamente a nossa inquietação quanto aos corpos que evo-
cam palavras, advém desse lugar esquecido pela literatura, mas que se tornam
presentes a partir dos aràiyè, convidados/convocados que estão, para “o fato

2 “O àiyé é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habitam, portanto,
mais precisamente, os arà-àiyè, ou aràiyè, são os habitantes do mundo, a humanidade. Já o òrun
corresponde ao espaço sobrenatural, o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele habitam
os arà-òrun, que são os seres ou entidades sobrenaturais” (LUZ, 2000, p. 109).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 27


da oralidade ser a primeira possibilidade de comunicação da maior parte das
pessoas” (MIRANDA, 2020, p. 22).
Em Os prazeres de Sara (ALVES, 2008, p. 165), Ademiro Alves - o
Sacolinha, nos propõe no inicio da narrativa a figura emblemática do arquéti-
po de Èsù, o primogênito da constelação mitológica dos orixás, pendurado na
porta de entrada da casa comprado na Casa São Jorge em Salvador. Márcio de
Jagun no seu “Vocabulário Temático do Candomblé” assim explica a impor-
tância de re(ve)ferenciar o orixá:

Òrisá que é o dono dos caminhos, o interlocutor das


divindades, portador das oferendas aos deuses. Èsù não
deve ser confundido com o Diabo, nem com Santanás,
pois não representa o opositor ao Criador. Èsù não é bom
e nem mau: é a própria ambiguidade humana. É o irmão
primogênito de Ògún e Òsóòsì; filho de Òsàlá e Yemo-
ja; originário da cidade yorùbá de Ìgbètì. Denominado
também como Bara. [...] é ligado ao elemento fogo (JA-
GUN, 2017, p. 598)

Observemos que a junção de dois orixás populares entre os “fazedores


de macumba” largamente conhecido da população da diáspora africana em
geral, está atrelada ao movimento de entrar - porteira, e poder avançar, con-
quistar, superar - que é o caminho da estrada, duas referências diretas ao mito
de fundação, composto pelo arquétipo de Esù e de Ogùn, aqui evocado na nar-
rativa sincretizado com São Jorge, santo do fazer católico que aparece invoca-
do simbolicamente no comércio, espaço por excelência de Esù, mas que se co-
necta com a representação possível de Ogùn, assemelhado a São Jorge durante
o período da escravidão, em que os/as escravizados/as, afim de poder manter o
culto aos orixás, aproximavam as qualidades desses aos santos católicos, sendo
que os dois aqui citados - um da guerra e o outro idem. Assim, aproximar os
dois já nos permite observar os embates que o conto nos apresentará.
Interessante notar como no incêndio que toma a casa, somente esse
espaço físico consagrado a segurança da porteira, logo de Èsù, é a única preser-
vada e que não se incendeia, pois, para efeito de interlocução com as origens
de Èsù importante se faz lembrar que

28 Saberes decoloniais
Ele é o guardião das portas que separam o mundo dos
humanos do mundo dos espíritos. Presente nos cruza-
mentos das estradas, no centro dos mercados, na entrada
das cidades, e nas portas das casas, costuma ser venerado
enquanto protetor e é, no continente africano, frequen-
temente representado por um monte de terra endurecida
e com dois búzios no lugar dos olhos, costume que pode
ser evidenciado em regiões da Nigéria e do Benim, prin-
cipalmente. (DIONÍSIO, 2016, p. 131)

Sara é a personagem principal que tem no avô exemplo de resiliência,


a mãe é a guardiã dos saberes ancestrais africanos, no cultivo de plantas me-
dicinais, que tem sua casa tomada pelo fogo na favela no dia 24 de dezembro
época anterior ao Real, moeda brasileira. A favela Arco íris, nome interessante
pois remete diretamente ao orixá Osumaré para o Candomblé de origem keto,
simboliza o renascimento, o momento em que se busca alimento para Sangó,
o rei de Oyó, levado por Osùn até ele, via o arco íris. Importante observar essa
passagem pois ela nos ajuda a compreender o nó da narrativa estabelecido no
conto: a perda de toda a sua família na narrativa, a vida embalada pelo forró,
a cachaça e a batida de amendoim, a entrega ao mundo do delírio no baile
popular, com lágrimas (SACOLINHA, p. 170), suor e um ataque cardíaco
fulminante e a consequente ausência de socorro, típica de um espaço que cada
um vive de maneira individualizada sua vida. O conto sugere que a morte se
torna a única possibilidade, já que toda a sua família foi consumida pelo fogo
de Sango, no incêndio da favela. Apesar de ser a personagem principal, as
demais personagens masculinas presentes no conto, nos dão a dimensão, prin-
cipalmente, quando observamos a narrativa que cerca o avô, da importância
moral que o cerca, dos valores falocêntricos de motivação para a continuidade
do interesse em preservar a própria vida.
O mesmo se observa no conto Presença, de Oubi Inaê Kibuko (KI-
BUKO, 2008, p.233). O narrador apresenta o personagem Olufêmi, que tem
um galo preto chamado de Escurinho, ofertado ao guarda de tráfego, que
cotejamos com a representação simbólica, dentro da lógica da natureza repre-
sentativa, com Èsù. Nota-se a aproximação devido a série de confusões que o
personagem está envolvido, que lembram muito o arquétipo desse orixá. Há
um ditado africano que pede a Èsù que “não faça mal a quem o cultua, mas

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 29


que vá fazer mal a outro”. A interpretação desse conhecimento ancestral, se
percebe na discussão que o personagem tem com a mãe, por ter saído e retor-
nado sem ter encontrado emprego. Mas há outras referências das situações de
abandono social e as tentativas de abortá-lo, obviamente sem sucesso.
O ódio gerado entre as duas personagens, gera todo o clímax do en-
redo, sendo que a narrativa ainda apresenta outras situações ligadas à discri-
minação racial e ao preconceito epigênico, no momento em que sofre uma
batida policial e toma um “telefone” (costuma-se dizer da agressão física carac-
terizada como um tapa no ouvido, abuso de autoridade, coação; Outra carac-
terística de representação do homem negro nesse conto, é a maneira como o
personagem rábula - advogado sem formação, que se coloca como tal, apesar
de não ter frequentado os bancos escolares, lhe dá um adágio interessante.
O advogado/personagem Kijuanje, lhe diz sempre: “não se emaranhe em ro-
los de olhos fechados. Aprenda a desembaraçar as linhas da lei” (KIBUKO,
2008, p. 235). Logo, o chamado pelo qual responde simbolicamente Èsù que
é “Làròyé! (Ele é a controvérsia!)” (JAGUN, 2017, p. 598). A controvérsia é
exatamente o enredo em que o personagem se encontra, pois são idem todos
os seus desencontros.
Ao voltar para casa sem conseguir nenhuma ocupação laboral, sua
mãe lhe diz de forma severa que algum dia encontrará o galo na panela, já
que ele não contribui com nada na casa. Sai de casa e, com muita fome, furta
frutas em um supermercado, mas é perseguido por seguranças. Ficando sem
saída, aperta o patuá que seu pai lhe dera, que funciona como proteção ou
amuleto de segurança, para momentos difíceis ou não esperados. A narrativa
se fecha com um tiro de trinta e oito acerta sua nuca (Èsù tem um dos olhos
na nuca) e Olufêmi “abrindo os braços em cruz” (2008, p. 236) cai de cima
do muro por onde tentava fugir com as frutas do supermercado. Interessante
a proximidade com o corpo de Cristo estendido, como se fosse um mártir, e
estar “entre os presentes, uma loira oxigenada ansiava chegar logo em casa e
viajar com o amante num gostoso e prolongado orgasmo, revivendo a cena
presenciada” (KIBUKO, 2017. p. 236). Os seguranças, um deles negro, ao
vasculharem toda a área, encontram “somente um belo e enorme galo preto,
de olhar profundo e perturbador, bicando uma suculenta maça. Ruflando
asas, ele entoou um longo e ecoante canto gargalhante, desaparecendo no

30 Saberes decoloniais
infinito” (KIBULO, 2017. p. 236). Importante relembrar a amarração com o
início da narrativa pois Escurinho, tinha sido “presente natalício de seu pai e
oferendado ao guarda de tráfego” (KIBUKO, 2017. p. 233). O que se observa
é a preocupação em narrar de forma valorativa o pertencimento simbólico e
civilizatório da personagem, apesar das agruras que a sua vida está envolta.
No conto “O homem invisível”, cujo autor é Décio Vieira (VIEIRA,
2008, p. 185), a aproximação das representações dos personagens, tanto ne-
gros quanto não negros, tem um forte diálogo com outros dois textos, sendo
que um deles, “a peça Race faz parte da dramaturgia do autor norte-america-
no, David Alan Mamet. No espetáculo, o espectador observa os bastidores da
construção da defesa de um homem branco, acusado de estuprar uma jovem
negra”. (In: Mundo Negro). Considerando que a peça esteve em cartaz no
biênio 2017/2018, sendo adaptada no Brasil pela “Cia Teatro EPIGENIA”,
problematiza a mesma questão da personagem Gracinda, do conto de Décio
Vieira e para além, ainda dialoga com o rap – termo de origem da língua
inglesa que significa rhitm and poetry ou revolução através das palavras, do
grupo paulistano Face da Morte intitulada A Vingança, que discute esse estado
de mudança de corpos, mas com a mesma performance ou comportamento
em espiral epigênico, da representação do negro no texto. Presentes em três
momentos distintos, a dramaturgia, a letra de música e o conto, as narrativas
se concentram em apontar uma única culpada para o suposto crime, saindo
de cena o estupro em si, que os três textos problematizam, ficando a epigenia
do negro e a sua reação esperada, presente nas composições.
No texto que nos debruçamos o enredo dentro da lógica do conto é
econômico. O personagem Juca ao fim é baleado com dois tiros nas costas,
apresentado como afro-brasileiro, sendo o centro da narrativa. Sua mãe Gra-
cinda e o pai dela, o velho Firmino, saem do Nordeste, e ele é narrado como
trabalhador da construção civil e ela empregado doméstica nos Jardins, bairro
de alta renda da cidade de São Paulo. Percebemos a transferência da espiral,
empurrando os personagens para o fundo da espiral: a epigênia histórica ocu-
pando os corpos narrados, já que ambos têm profissões invisíveis. Quinze
anos que tinham saído do Piauí enquanto retirantes da cidade de São João
da Tapera, percebemos uma relação de proximidades temáticas outros textos
que abordam o grande êxodo de mulheres e homens e as migrações brasileiras,

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 31


com a decadência do Nordeste brasileiro. Gracinda trabalha em uma casa cujo
patrão é juiz de Direito e a companheira deste é professora universitária, o
que nos aponta uma diferença social importante, e a marcação de quem pode
ou está apto, a ocupar os espaços literários de poder. Os dois tem três filhos
adultos chamados Thiago, Felipe e Gabriel nomes bíblicos, outra marca de
distinção do campo simbólico semântico que marca a hierárquia dos perso-
nagens. A mãe dos três, Dona Ermelinda têm comportamentos questionados
pelos empregados da casa. O clímax do conto é o estupro de Gracinda come-
tido por um dos filhos, Felipe, numa noite de sábado (VIEIRA, 2008, p. 186).
O desenlace aparece quando um amigo de Felipe, Rodrigo, o alerta sobre a
possibilidade de ser descoberto; Gracinda já grávida decide contar para Dona
Ermelinda o ocorrido, porém essa diz que o filho não é de Felipe. Passados 14
anos, Juca, o nosso personagem masculino negro que nos interessa, descobre
pela vizinha Amélia o que houve. Felipe Porto é seu pai. A reação do persona-
gem fica em aberto no texto, mas o diálogo com a letra da música do grupo
“Face da Morte”, nos permite considerar algumas questões. O trecho a seguir,
é bastante significativo

Ao meio-dia, horário marcado, plano bolado, vigia en-


quadrado / Abriu a porta do escritório, o engravatado
atrás da mesa / Parecia conhecê-lo, mas não tinha certeza
/ Com uma arma apontada para sua cabeça / O covarde
abriu o cofre tremendo igual vara verde - Por favor não
atire. Eu acho que eu te conheço. / O mano olha bem pra
ele e tem a mesma impressão / O engravatado pergunta
se sua mãe é Maria. Ele responde que sim. - Pode levar
o que quiser, mas não me mate, eu sou seu pai. - Nem
quero mais seu dinheiro. Seu sangue é meu pagamento.
Vou cumprir meu juramento e vingar minha mãe. 7 tiros
disparados de um cano de 8 polegadas calibre 357. Fo-
ram 5 na cabeça e mais 2 no peito. O serviço está feito.
Ele chega em casa, chama a mãe e diz: - Mãe, guarde
estas armas pra mim. Com elas não preciso mais atirar
pois o fulano que um dia te usou e nos abandonou eu
acabei de matar ... (Face da Morte, 1998, grifo nosso)

Evidente que a comparação, é lógica e possível. A temática da violên-


cia do estupro, do abandono afetivo do pai – personagem branco, afeta direta-

32 Saberes decoloniais
mente o filho, o personagem negro, levando-o a situação psicológica proposta
pelo narrador de um conflito existencial. Juca se rebela, sendo empurrado para
o fundo da espiral, dentro da lógica reinante do peso do seu fado.
Em Os donos das terras e das águas do mar, conto de Celinha (CELI-
NHA, 2008, p.171) Tibério, menino negro, “jamais em sua infância ele fez
sossegar seu instinto traquinas. Foram dias de farra, de diabruras e de correria,
de lá pra cá, e de cá pra lá. “Eita vida boa hein, Tibério?” (2008, p. 171). De
posse de um estilingue, o menino traquinas xingava Pedrinho, “tadinho, era
todo magrinho e de pele fininha” (2008, p. 171). Dona Rosa do Prado, patroa
da Preta Babaça, ensina o menino as cantigas da terra distante em África, dos
costumes e como uma ancestral a forma de um baobá, que esconde e guarda
segredos que para poucos devem e podem ser revelados, ensina o menino, que
vai nos sonhos, em busca do lugar idealizado que ouve o narrar das histórias
da arauto. Ela o ensina da importância de respeitar o mar, pois mar é calun-
ga - cemitério (2008, p.172), que o amor é luzolo, ensina as danças sagradas
como o Candomblé, “que a terra é odara, alma é fimbo, Deus é Olorum”
(2008, p. 172). O menino é órfão, mas as rezas que ouve o levam para a Áfri-
ca, diferentes daquelas do padre Vigário, que não significam muita coisa para
ele. O narrador tema preocupação em valorizar as questões simbólicas que
formam a lógica de vida e de costumes, bem como as vivências, a partir do que
uma mais velha, a ancestral daquela família e da região, conta para o menino e
para as demais personagens adolescentes presentes, criando a possibilidade de
problematizar e comparar o contar de outras contar histórias, tanto as religio-
sas quanto as ligadas a sua descendência. Preta Babaça fala de um herói mítico,
Alao, que veio com os navios negreiros, da sua luta e resistência/resiliência.
As questões bantuísticas de pertencimento presentes nesta narrativa, nos dão
a localização possível das origens ancestrais de Tibério, para além de outros
personagens, como Cabulo e Peralta, guias espirituais de Alao, escravizado
que foi, mas que é narrado de uma forma heróica, a partir do ponto de vista
negro na História.
Apresentar Ana, Jacinto, Januário e até Anita, negrinha magrinha, tem
o sentido de descrever as agruras em que vivem os negros daquela localidade,
nos permitindo cotejar o texto com o poema em prosa “O Emparedado”, de
Cruz e Souza. Diferentemente do desespero daquele eu lírico/narrador, aqui

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 33


a prosa em forma de conto/poema possibilita a recuperação de valores sim-
bólicos importantes, que conectam acontecimentos atuais com anteriores. De
forma gradual, o rememorar de Preta Babaça encantando Tibério, falando da
importância do respeito ao mar na sua narrativa,

Conta aos seus camaradas que a vida da gente da terra


é tão diferente do povo do mar. Os meninos ouvem as
histórias de Tibério, eles não conhecem os povos da ter-
ra. Os negros marinhos não sabem como é Dona rosa
do Prado, Rosinha e Pedrinho, que é branco, magrinho
e de pele fininha... Os negros marinhos só conhecem os
negros que moram no fundo do mar, e as crianças negras
da terra que conseguem, como Tibério, cruzar o oceano e
pedem licença para poder passar (2008, p. 173).

As narrativas históricas revelam situações que navios foram afunda-


dos, levando junto consigo, cargas e seres humanos capturados em África,
a caminho das Américas. A narrativa nos apresenta esse diálogo de Tibério
que, em sonho, visita seus ancestrais que estão “eternamente “adormecidos no
mar, transformando então em calunga, o cemitério, o fundo do mar. O narrar
empodera Tibério, como um jovem negro sonhador, que lidera um grupo de
colegas em tenra infância da mesma forma que foi o negro Alao, que anseiam
ser livres das amarras e dos distanciamentos provocados pelo preconceito e pe-
las situações geradas com o fim da escravidão, para os jovens afrodescendentes
que ele precisa cuidar, simbolizadas pelas personagens “Anita, Jacinto, Januá-
rio, Ana e das outras crianças para que elas possam ser livres como querem ser
os pássaros e como são os negros do mar” (2008, p. 174).
Assim, a mensagem que o narrador nos apresenta dentro da lógica da
narrativa, é a de que a recuperação das histórias de vida dos povos oprimidos
pelo descaso da escravidão, pela ausência de escolas e pela falta do espelho, o
mesmo “Espelho” de João Nogueira que em seus últimos versos, insinua “Mas
tão habituado com o adverso/Eu temo se um dia me machuca o verso/E o
meu medo maior é o espelho se quebrar” (NOGUEIRA, 1992) pois, se não
há a figura do pai para que a verdade se estabeleça e para que o espelho seja
percebido, ainda há a figura Tibério, a partir da anciã, que fomentará a recu-
peração da imagem de valor da população negra.

34 Saberes decoloniais
Em Di Lixão, de Conceição Evaristo (EVARISTO, 2008, p. 175), o
poder falocêntrico de imediato é atingido, uma vez que o símbolo de força
masculina, se revela inútil, pela escrevivência da narradora. A evocação de ma-
neiras diversas da dor, manifestada ao passar “lentamente a língua no canto da
gengiva. Sentiu que a bola de pus ainda estava inteira” (2008, p. 175), resvala
na proximidade com “um pontapé nas suas partes baixas. Abaixou desespe-
rado, segurando os ovos-vida” (2008, p. 175). Se os ovos são o enigma a ser
perseguido na narrativa, já que o pontapé foi recebido após ter dado uma cus-
parada em seu colega de quarto, também são, simbolicamente, o prenúncio de
que sua força física está sendo aniquilada, ao comparar o escroto com a bola
de pus que tanto o incomodava na boca já que “ele era uma dor só. As dores
haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio”
(2008, p. 176). Analisando as proximidades com a representação fálica de Èsù,
já que é um bastão em forma fálica que o representa, simbolizando seu poder
reprodutor e o vigor sexual, “brincar” literariamente com essa representação
estética e com a mitologia de Èsù, coloca Evaristo em uma posição diferente
daquela pensada por Cidinha da Silva que afirma “que tudo o que se fala sobre
Exú está sempre amarrado a uma ponta de mistério, ensina Carolina Cunha.
Ele vive em um tempo mágico” (SILVA, 2010, p.19).
O conto problematiza, ainda o abandono no escolar, cujos índices de
abandono escolar são alarmantes no Brasil, considerando a idade das persona-
gens, entre 14 e 15 anos. Importante ressaltar que o outro personagem aparece
de forma periférica na narrativa. “O sol anunciava o dia quente [...] Num
gesto coragem-desespero levou o dedo em cima da bola de pus e apertou-a
contra gengiva, Cuspiu pus e sangue. Tudo doía” (2008, pp. 176-177). Morre
abandonado na rua, com dores, fome e com a alcunha, homônima do nome
do conto. O personagem tinha hábito de chutar latões de lixo.
Em uma conversa sobre religião e literatura, com a própria Conceição
Evaristo no Congresso Nacional de Pesquisadores/as Negros/as no Rio de Ja-
neiro de 2010, ela mesma me disse que não ter invocado religiosamente seus
personagens ou representações estéticas, na concepção do romance “Ponciá
Vicêncio” (2003), ao referir-se aos valores civilizatórios bantus verificáveis no
enredo, conforme foi analisado por nós (DIONÍSIO, 2013). Assim, o ponto
de vista evocado por Cidinha da Silva e suas preocupações em preservar o

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 35


sagrado, de forma alguma faz com que as citações e amarrações dos “ovos-vi-
da” da narrativa de Di Lixão, sejam puramente vistas de forma conceitual no
sentido religioso. Nos parece ter havido muito mais a intenção em aproximar
a bola de pus, as bolas das dores com as pancadas e as dores de mijo no ponto
de reserva da manutenção de fecundação da vida, o saco escrotal. Porém, para
nós, as aproximações são pertinentes, no sentido de buscar recuperar a repre-
sentação da constituição masculina das personagens, considerando Èsù como
uma personagem masculina equivocadamente narrada historicamente.
O Exú e o pastor de Tico de Souza (SOUZA, 2008, p. 253), proble-
matiza algo presente há tempos, nas diversas comunidades em que as religiões
de matrizes africanas são exploradas com o único fim de manter a epigênia
presente na memória equivocada das representações estéticas dos costumes e
valores civilizatórios pregados em terras de escravidão. A dificuldade de buscar
outras possibilidades de representação valorativa, não atreladas aos costumes
judaico cristãos, mas com o olhar europeizado, convém compreender o que
busca o narrador, neste conto. De partida, a advertência para jamais botar “fé
nessa coisa de possessão como certas igrejas costumas mostrar em seus canais
de televisão” (SOUZA, 2008, p. 253) pois apesar de Èsù “ser encontrado em
todos os templos, pois é ele quem abre o caminho para os demais orixás pode-
rem atuar” (DIONÍSIO, 2016, p. 134) não significa que ele deva ser invocado
a qualquer momento, como o personagem representado na figura do pastor,
que traz a cena a nossa personagem mítica, Èsù. A medida do cuidado do
narrador em problematizar essa dinâmica pois

Esse papo de Exu dar entrevistas com toda aquela ilumi-


nação, falar em microfone, detalhar fatos, que, conhece
sabe que é fora de questão. Tá pra nascer Exu tão evoluí-
do pra tal façanha, mas isso aqui é Brasil, tem a liberdade
de expressão, quem tem boca fala o que quer, o que não
deve e por aí vai. (SOUZA, 2008, p. 253)

A preocupação em divulgar/difamar a religiões de matrizes africanas,


se tornou fato presente e diário fora das linhas textuais, sendo observada no
dia a dia e no fazer equivocado da própria plateia presente ao culto narrado
pois “eles, os pastores, é que são os verdadeiros encostos, pois encostam nas

36 Saberes decoloniais
fragilidades de um povo fraco, carente, sem muita cultura na grande maioria,
prometendo a ele mundos e fundos” (SOUZA, 2008, p. 253), mantendo a
lógica de difamação e escamoteamento do arquétipo de Èsù, personagem
principal do conto de Tico. Para JUNIOR e ENOQUE (2018):

A teologia da batalha espiritual ganha ênfase nas últi-


mas décadas no Brasil. Desde o final da década de 1970,
quando desponta o neopentecostalismo, última onda a
surgir entre os pentecostais, emerge também a noção de
que o mundo é dividido entre forças do bem e do mal,
forças estas permanentemente em tensionamento, con-
flito. É como afirmar que as influências divinas e malig-
nas seriam destrutíveis umas às outras na realidade do
mundo material e perceptual. (JUNIOR; ENOQUE,
2018, p. 239)

A problematização desse tensionamento que alcança esse singular


conto de Souza, se reafirma na ação da personagem pastor que “dizia que os
fiéis precisavam se armar para lutar na guerra contra o diabo, e, nisso, vendia
livros, jornais, óleo vindo de Israel para ungir a todos, tudo em nome de Je-
sus” (SOUZA, 2008, p. 253) o que evidencia o comércio da fé, revestido de
discriminação histórica. Ainda para JUNIOR e ENOQUE

as engrenagens do neopentecostalismo não funcionam


sem o diabo, contudo, demonizar práticas advindas do
outro já é exercício consideravelmente antigo, da época
do cristianismo. Funcionando como fonte de arbitra-
riedade, o diabo serve para justificar, muitas vezes, os
desvios de conduta dos fiéis, que explicam os erros que
cometem utilizando de sua figura, personificação do mal
absoluto: culpam-no e distanciam-se das responsabilida-
des. Ora, essas justificativas só funcionam por causa do
declínio da noção de autonomia do indivíduo, atrelada
à teologia liberal do século XVII, em que o diabo era
apenas uma abstração e não se fazia presente na vida das
pessoas. Em suma, o diabo é o sintoma do declínio da
ética. (JUNIOR; ENOQUE, 2018, p. 247)

Souza problematiza bem essa questão, ao trazer um diálogo direto en-


tre o pastor e outro personagem do conto, o César, descrito como frequenta-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 37


dor de um terreiro de “Candomblé lá no Jardim D’Abril” (SOUZA, 2008, p.
254), um patrício que chamou a atenção por não corresponder a expectativa
de estar naquele lugar. De forma arqueada e com o corpo curvado, contrastava
com o comportamento ensaiado de outra personagem feminina com um en-
costo, apresentada anteriormente, que incorporava uma Pomba-gira chamada
Maria Fadiga que alegou ter sido chamada para fazer a irmã perder o empre-
go. Segundo a narrativa, o diferencial desse outro “encosto”, é justamente a
diferença comportamental, uma vez que era “bem diferente dos ‘encostos’
mostrados na TV [...] As falas daquele Exu eram familiares [...] O Exu pegou
uma cadeira, sentou e ficou aguardando o pastor mandá-lo embora (SOUZA,
2008, p. 255). O texto termina com um recado do orixá para o narrador,
dando um aviso para o “cavalo”, dono do corpo que ele havia usado para a
incorporação, no sentido de crer mais na sua própria religião, e não buscar
saídas fáceis no discurso equivocado daquele pastor. O texto, na medida que
tensiona as relações de poder entre Exu e o pastor, revela a dificuldade em
manifestar publicamente o fazer religioso no Brasil. Considerando

presente dentro do discurso fundamentalista religioso a não


aceitação de antagonismo e de comportamentos contrários
aos descritos “aceitáveis” pela sua religião. Observa-se que
há uma grande preocupação com a moral e com o com-
portamento alheio, ocasionando um caráter reacionário
nos discursos e nas tomadas de decisões, com o objetivo de
minimizar a participação política dos grupos minoritários.
Esse tipo de fala pode ser qualificado como discurso de
ódio, pois desqualifica e inferioriza indivíduos ou determi-
nados grupos sociais, gerando efeitos nocivos que podem
perdurar no tempo dependendo do veículo de comunica-
ção utilizado. (SILVA; CARDOSO, 2018, p. 224)

As articuladoras do texto problematizam outra questão que influencia


diretamente o comportamento de pastores e fiéis que, aproximados ao discur-
so político que tratam no seu artigo, constroem a aproximação da manuten-
ção dos equívocos históricos, mas engendrados num plano de poder, que vem
de uma construção de mais de quinhentos anos de negação de direitos, da
geração de despertencimentos, de narrativas equivocadas sobre o personagem
masculino, aqui cotejados de forma simbólica no arquétipo de Èsù.

38 Saberes decoloniais
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Convém recuperar a definição de racismo de Carlos Moore, que versa


sobre “ser inútil discutir acerca do ódio racial sem remeter aos custos e bene-
fícios que ele implica para todos o s segmentos e atores sociais que compõem
as sociedades e nações historicamente racializadas” (MOORE, 2007, p. 283),
compreendam a necessidade de encerrar os conflitos e “consiga abrir-se para um
novo caminho e uma nova direção na constituição de uma sociedade verdadei-
ramente democrática e inclusiva de todos, superando o ‘sortilégio da cor’, o feti-
chismo das feições e o essencialismo racial” (MOORE, 2007, p. 8). O racismo
está nas letras, está na edição e encontra-se idem na representação. Necessário,
portanto, se faz buscar outros moldes de narrar e apresentar o texto. Acredi-
tamos que os contos aqui elencados, bem como o cotejamento com os textos
assinalados, servem de contributo para que outros insumos sejam gerados.
Assim como o èpè - ódio, maldição e praga rogada ao longo da história
de narrativas e categorizações de personagens masculinos negros na literatura
oficial, considerar a necessidade de evocar na atualidade, a maneira como au-
tores/as negros/as pensam essas questões nos seus textos, se faz necessária no
momento em que as discussões etnicorraciais se tornaram essenciais com os
discursos de ódio endêmico na contemporaneidade. Alguns estudos que proble-
matizam as questões de representação, que tem sido divulgada e publicada nas
últimas décadas, demonstram a necessidade de versar e analisar essas represen-
tações, avançando das discussões do estético esperado para o estético inusitado,
de valorização do personagem masculino negro. Os contos aqui selecionados
e analisados, revelam a preocupação em afastar da narrativa a possibilidade da
epigenia reinante histórica e condicionante que amarra e contém em lugares
equivocados, já visitados por Eduardo Oliveira Miranda, entre outros/as, e as
aproximações com o medo, o esquecimento e a desvalorização permanente.

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42 Saberes decoloniais
TRANSIÇÃO CIVILIZACIONAL DECOLONIAL:
UMA CONVERSA DE LONGA DURAÇÃO
Francisco Uribam Xavier de Holanda1

Não preciso ser físico, astrônomo, cosmólogo, climatologista, quími-


co, filósofo ou biólogo para saber que a existência no e do planeta se encon-
tram ameaçadas. A causa é atribuída ao modelo de relação que os homens
estabeleceram com a natureza e entre si, principalmente a partir do proces-
so civilizador moderno, quando, segundo Mignolo (2017), passamos de um
mundo policêntrico e não capitalista, antes de 1500, para uma ordem mun-
dial monocêntrica e capitalista, que dura até os dias de hoje e na qual o planeta
enfrenta, de forma simultânea, uma situação de múltiplas crises.
O planeta Terra – nossa morada, o que chamamos de mundo – é um
ser vivo e não pode ser tratado como objeto ou totalmente transformado em
mercadoria, como imagina a lógica do capital. A razão instrumental ilumi-

1 Uribam Xavier - gosta de café com tapioca e cuscuz, peixe frito ou no pirão, de frutas e verduras,
antes de ser hipertenso era chegado a uma buchada e a uma feijoada. Frequenta o espetinho do
Paraíba, no boêmio e universitário bairro do Benfica [Fortaleza], e no pré-carnaval segue o bloco
Luxo da Aldeia. É professor, ativista político decolonial e anti-imperialista, estuda e escrever para
puxar conversa e fazer arenga política. Seu último livro escrito foi “Crise civilizacional e pensamento
Decolonial. Puxando conversa em tempos de pandemia”. Dialética Editora, Belo Horizonte, 2021.
uribam@ufc.br
nista, objetivada na forma de conhecimento científico e tecnológico, levou-
-nos, em nome do progresso e do desenvolvimento, à construção de uma so-
ciedade do presente trágico, na qual a vida não tem garantia de continuidade e
a promessa de emancipação não pode ser cumprida. Em ralação à promessa de
emancipação da modernidade, tanto Habermas como Ulrich Bech afirmam
que, diante do seu fracasso, precisamos rumar para outra modernidade, pois
acreditam que a modernidade ainda pode ser reformada, já que ela é um pro-
jeto inacabado.
Mesmo constatando que, no final do século XX, a natureza havia sido
subjugada, explorada e absorvida pelo sistema industrial moderno, Beck con-
tinuava apostando na validade da modernidade. Para ele, até o final do século
XX, todas as formas de sofrimento, violência e miséria que os seres humanos
infligiam a seres humanos eram reservadas aos outros: negros, povos originá-
rios, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas e homossexuais. Depois
do final do século XX, a violência da civilização moderna, diz Beck (2011, p.
7): “[...]é a violência do perigo, que suprime todas as zonas de proteção e todas as
diferenciações da modernidade”.
O pensamento de Ulrch Beck é bem claro, enquanto a colonialidade
do poder, a modernidade euro-norte-americana, a epistemologia eurocentra-
da, reservava a sua violência aos outros, aos não euro-norte-americanos, aos
não brancos, aos países pobres colonizados e periféricos, estava tudo bem, pois
o mundo caminha sem risco para o homem branco, cristão, patriarcal e para
o poder imperial por ele controlado, já que a resistência dos outros poderia
sempre ser quebrada e derrotada por meio da violência.
Todavia, agora foi suprimida a proteção para todas as diferenças da
modernidade, são todas as formas de vida e de existência no próprio planeta
que está sob ameaça, vivemos numa sociedade de risco, diz Beck. No entanto,
para ele, a solução não é a busca de um outro padrão civilizador, mas de uma
outra modernidade como condição para preservação da colonialidade, que é,
como diz Walter Mignolo (2017), o lado escuro, a parte oculta e constituinte
do modo de ser do projeto moderno.
No discurso de Beck, quando fala do sofrimento que os seres hu-
manos infligem aos próprios seres humanos, o sofrimento aparece como se
tratasse de uma questão moral, de uma questão de comportamento individual

44 Saberes decoloniais
egoísta, como se a ordem social e suas relações não fossem estruturadas e sis-
têmicas, como se o capitalismo não fosse parte da colonialidade de poder da
modernidade, como se a razão moderna não comportasse a colonialidade.
Habermas e Ulrich Beck não conseguem falar da crise do capitalismo
enquanto modo de produção e de reprodução das condições materiais de exis-
tência, falam de crise da sociedade moderna entendendo a modernidade como
projeto de realização última da razão. Por isso, como solução para a crise da
razão moderna, propõem mais modernidade.
Habermas, na sua principal obra, “Teoria do Agir Comunicativo”, de-
fende a saída da crise da razão moderna por meio da substituição de sua teoria
da consciência, baseada na relação sujeito e objeto, por uma teoria moral do
agir comunicativo, baseado na relação sujeito e sujeito. Isso poderia fazer com
que a modernidade passasse a ser subordinada ao “mundo da vida”, criando,
assim, condições para a realização de sua promessa de emancipação humana,
com a qual a modernidade chegaria ao fim da história.
Para Habermas, com a globalização dos mercados, particularmente
dos mercados financeiros, o processo de modernização se encontra em um
estágio diferente, a sociedade mundial aparece como dividida em países ven-
cedores, beneficiários e perdedores. Os Estados Unidos, como liderança insu-
perável em termos de desenvolvimento, aparecem, ao mesmo tempo, como
um insulto e um modelo secretamente admirado pelos perdedores. Assim, diz
o filósofo:

O Ocidente como um todo serve de bode expiatório


para as experiências muito efetivas de perda vivenciadas
pelo mundo árabe, sofridas por parte de populações ar-
rancadas de suas tradições culturais durante os processos
de modernização acelerada. O que foi experimentado na
Europa, sob circunstâncias mais favoráveis, como um
processo de destruição produtiva não comporta em si a
promessa de compensação pela dor da desintegração de
modos habituais de vida em outros países HABERMAS,
2004, p. 44).

A partir da América Latina, a partir dos debates sobre modernidade


versus pós-modernidade, iniciado nos anos de 1990, eclodiu o desafio de se

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 45


pensar para além da modernidade e da pós-modernidade, esta entendida como
prolongamento da razão moderna. Foi nesse contexto que foram formuladas
as noções de colonialidade, por Aníbal Quijano, e de transmodernidade, por
Enrique Dussel.
A colonialidade (QUIJANO, 2014) é um processo de dominação
imaterial que consiste na colonização do imaginário dos colonizados pelos
colonizadores. Resulta de uma ação intensa e violenta de desvalorização do
modo de ser e de se relacionar com o mundo dos colonizados. Consiste na
desvalorização, inferiorização e invisibilidade dos modos de aprendizado e re-
produção de conhecimento, dos símbolos, das imagens e crenças, das suas
estéticas e recursos naturais e de toda a cultura singular dos dominados e a
incorporação neles da imagem do colonizador (dominador e opressor) como
superior, civilizado e modelo a ser imitado e seguindo como condição de se
atualizarem no mundo.
Colonialidade, para Walter Mignolo, nomeia a lógica subjacente da
fundação e desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até
hoje. O conceito especifica um projeto particular, o da ideia de modernidade,
que surgiu com as invasões e conquistas de Abya Yala em 1492, e consequente
das formações das Américas e do Caribe, para onde foram traficados diferen-
tes os povos africanos para uso em trabalho escravo. A colonialidade ou matriz
colonial de poder (MCP) é parte constitutiva da modernidade, mas se confi-
gura como o seu lado escuro, como explica Mignolo:

A colonialidade, em outras palavras, é constitutiva da


modernidade – não há modernidade sem colonialidade.
Por isso, a expressão comum e contemporânea de “mo-
dernidades globais” implica “colonialidades globais” no
sentido exato de que a MCP é compartilhada e disputada
por muitos contendedores: se não pode haver moderni-
dade sem colonialidade, não pode haver modernidades
globais sem colonialismos globais. Consequentemente,
o pensamento e a ação decoloniais surgiram e se desdo-
braram, do século XVI em diante, como respostas às in-
clinações opressivas e imperiais dos ideais europeus mo-
dernos projetados para o mundo não europeu, onde são
acionados (MIGNOLO, 2017, p. 2).

46 Saberes decoloniais
A categoria de colonialidade gerou toda uma disputa de narrativa so-
bre a origem da modernidade e do lugar da América Latina na formação do
sistema-mundo colonial moderno. A partir da noção e colonialidade, pas-
sou-se, então, a pensar em um giro decolonial, numa forma de superação do
processo civilizador moderno para além da modernidade.
Pensar para além da modernidade pressupõe, para o pensamento de-
colonial, pensar a partir do um processo constante de resistência que faz parte
do cotidiano dos povos originários das américas e de todos os explorados e
dominados do planeta, articulando-o ao desejo e à capacidade de imaginar um
outro horizonte histórico, ou seja, um outro padrão civilizatório, no qual a sua
objetivação seja efetivada por meios de vários caminhos estratégicos e por uma
ecologia de saberes que ponha fim ao império cognitivo eurocêntrico; horizonte
que negue a tentação moderna de se pautar por um pensamento único, por um
único modelo de sociedade ou por meio de um único sujeito ou classe social.
Trata-se da construção de um novo ethos (uma maneira de ser e de estar no
mundo) pluriversal, em que vários mundos possam coexistir e se retroalimentar.
No mundo presente, faz-se necessário afirmar que coexistimos com
outros padrões civilizatórios, modos de vida que são bem mais antigos que
a modernidade, como a cultura maia, a inca, a asteca, a africana, a chinesa,
a indiana, a semita e outras. Todavia, no imaginário moderno, e eurocentra-
do, esses outros padrões civilizatórios são tratados como primitivos, atrasados,
subdesenvolvidos, pré-modernos, pré-científicos e, portanto, inferiores, logo,
não podem ter existência em si e por si ou se constituírem como modelos
dignos de respeito ou de padrão de humanidade.
Esse comportamento de negação dos outros modos de vida aconte-
ce porque, embora essas experiências outras coexistam em espaços e tempos
contemporâneos, o modelo colonial moderno se impõe como universal. Ou
seja, como padrão de evolução e de desenvolvimento a ser seguido, seja por
meio da cooptação ou pela força. Os outros modos de vida, os não europeus
ou não imperiais, são tratados como restos do primitivismo e do atraso, por
isso, devem ser negados, apagados, são modos de vida de povos sem história,
como afirmou Hegel.
Diante dessa negação da coexistência do pluriculturalismo – seja pela
invisibilidade do outro ou pelo multiculturalismo, no qual a diversidade pode

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 47


existir, mas sem projeto próprio e subordinada à visão de mundo única do
colonizador e de seu domínio imperial –, Johannes Fabian constata que o
conhecimento e a antropologia moderna se constituíram como dispositivos
de dominação e de negação da coetaneidade (sincronicidade/simultaneidade)
do outro. A visão de tempo do pensamento iluminista, afirma Fabian

[...] é constituído como um sistema de coordenadas (pro-


venientes, naturalmente, de um centro real, a metrópole
ocidental) em que determinadas sociedades de todos os
tempos e lugares podem ser esboçadas em termos de re-
lativa distância do presente. [...] Para expressar isso de
modo mais concreto: o que torna o selvagem significante
para o Tempo do evolucionista é o fato de ele viver em
outro Tempo. Pouco precisa ser dito, eu assumo, sobre a
separação e o distanciamento na práxis colonialista que
desenhou sua justificação ideológica a partir do pensa-
mento iluminista e do posterior evolucionismo (FA-
BIAN, 2013, p. 62).

Podemos nos perguntar: qual a dificuldade da Modernidade em reco-


nhecer, respeitar e conviver de forma colaborativa, respeitosa e solidária com
os outros modos de vida (modos de conhecer, de saber, de subjetividade e de
se relacionar com a natureza)? Um conhecimento que se coloca como único
verdadeiro e universal, por si só, já não cria certa dificuldade para uma convi-
vência com os sistemas compostos de diferentes saberes? Para alguns pensado-
res decoloniais, a pretensão da modernidade em ser portadora de uma racio-
nalidade verdadeira e universal implica no fato de não ser possível pensar para
além da modernidade, pensar o pluriversal a partir de categorias epistemoló-
gicas forjadas pela própria racionalidade moderna, seria necessário, como diz
Walter Mignolo (2003), um pensamento outro.
Para Arturo Escobar (2019), vivemos um momento em que somos
desafiados a pensar uma transição civilizatória, o que significa ter paciência
histórica de longo prazo, ou seja, de décadas ou séculos. A noção de transição
civilizatória se refere ao complexo deslocamento da modernidade – heteropa-
triarcal, colonial capitalista ocidental, com pretensões de ser o único modelo
de vida e supostamente globalizado (fim da história e o fim do sujeito) – para
a coexistência tensa entre uma multiplicidade de formas de organização da so-

48 Saberes decoloniais
ciabilidade humana, enfim, para um pluriverso em que muitos mundos sejam
possíveis.
Para muitos críticos da modernidade, a partir da crise estrutural do
capitalismo, nos anos de 1970, passamos a viver numa civilização de morte.
A crise do socialismo real vivido pela União Soviética, o declínio e abandono
do compromisso com o modelo de Estado de bem-estar (Welfare State), uma
resposta ao pós-guerra, mesmo que restrito apenas ao mundo euro-norte-a-
mericano, e a adoção do neoliberalismo se constituíam como um sinal de
incapacidade da modernidade em realizar a sua promessa de emancipação.
Portanto, por nenhum dos seus dois grandes sistemas políticos e econômicos,
o capitalismo ou socialismo, a modernidade conseguiu o êxito prometido.
Os indicadores de morte presentes na civilização modernas são
muitos: as diversas formas de violência; a fome; a miséria; a repressão po-
licial; as legiões de refugiados espalhados pelo planeta; o feminicídio; a
repressão policial; os golpes políticos e militares; as guerras; a quantidade
de negros, pobres e jovens em cárceres; a concentração de riquezas e rendas;
o desemprego; as legiões de pessoas sem teto largadas nas ruas dos centros
urbanos; o racismo estrutural; as pandemias; a proliferação de doenças; o
tráfego de drogas, armas e órgãos humanos; a crise ambiental: diversidade de
poluições, desmatamentos, aquecimento global, extinção de várias espécies
de plantas e animais. Esses indicadores de morte são prova de que a mo-
dernidade é uma tragédia para a maioria da população do planeta, de que a
racionalidade moderna produz os condenados da terra; que a modernidade,
por meio da guerra de todos contra todos, caminha para barbárie, ou seja,
para o fim do mundo.
Estudos2 realizados no ano de 2016, pela Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT) juntamente com a Organização Mundial de Saúde
(OMS), revelaram que 745 mil pessoas morreram de derrame e de doenças
cardíacas causadas por estarem submetidas a longas horas de trabalho. Segun-
do os dados da pesquisa, trabalhar 55 horas ou mais por semana está associado
a um risco 35% maior de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a 17% maior

2 Os dados apresentados aqui foram publicados são da matéria “Trabalho excessivo causa 745 mor-
tes por ano, indica estudo da OMS”, assinada por Luísa Costa. In: Super Interessante. Disponível
em: www///super.abril.com.br. Acesso em: 24 maio 2021.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 49


de morrer de doença cardíaca, em comparação com uma semana de 35 a 40
horas de trabalho semanal.
Há duas maneiras pelas quais jornadas longas de trabalho levam a
morte: a primeira, por meio das respostas fisiológicas diretas ao estresse; a
segunda, levando os trabalhadores a se tornarem mais propensos a adotarem
comportamentos prejudiciais à saúde, como sedentarismo, uso de tabaco e
álcool, menos horas de sono e dieta pouco saudável. Esse fenômeno não pode
ser considerado como uma modalidade de genocídio silencioso? Não tem re-
lação com as propostas de reformas trabalhistas e previdenciárias promovidas
pelo neoliberalismo? Não é um indicador que vivemos numa sociedade que
promove a morte e não a vida?
Em Discurso sobre o Colonialismo, Aimé Césaire constata a crise da
civilização ocidental nos seguintes termos: “[...] uma civilização que se mostra
incapaz de resolver os problemas que suscita seu funcionamento é uma civi-
lização decadente” (CÉSAIRE, 2020, p. 11). Todavia, o sistema econômico
da modernidade, baseado no mercado capitalista, não precisa resolver os pro-
blemas e as mazelas que ele mesmo engendra porque a não solução dos seus
problemas também lhe permite abrir novos mercados e gerar mais acumulo
de riquezas.
Por exemplo, o capitalismo não tem interesse em resolver o problema
da violência porque essa abre um fabuloso mercado que inclui vários setores
da economia: a venda de armamentos, de seguros de carros, de segurança par-
ticular, a venda de equipamentos como câmeras e cercas elétricas para casas e
lojas, de carros blindados, de compra de viaturas e armas por parte do Estado,
etc. A violência ajuda a movimentar valores milionários por meio do mercado
ilegal de armas e drogas, dinheiro que alimenta a corrupção do aparelho poli-
cial estatal, a formação de grupos milicianos e os paraísos fiscais.
Além de transformar as mazelas sociais que produzem em ampliação
de mercado, já se tornou comum ouvir dos economistas e publicitários neoli-
berais, nos meios de comunicação de massa, que: “[...] tempos de crise é tem-
po de oportunidades”. E é verdade. Diante das crises, alguns setores do mer-
cado reproduzem e acumulam capital ao ponto de desdenharem da miséria
que produzem no mundo, ao publicarem em revistas, como a Forbes, a lista
dos poucos bilionários do planeta todo ano. A perversidade da racionalidade

50 Saberes decoloniais
moderna fica clara nessa lógica de encontrar oportunidade para acumular ri-
queza, submetendo à maioria da população a situação de mais privação, mes-
mos nos momentos em que ela se encontra muito vulnerável, como quando é
vítima do desemprego, da situação de miséria, de guerras e pandemias.
Pensadores sistêmicos, conservadores e defensores da modernidade e
do sistema capitalista afirmam, de forma muito convicta, talvez porque vivam
numa bolha, que vivemos em um mundo que caminha para realização de uma
sociedade emancipada, como afirma Arthur Herman:

Hoje as instituições e os conceitos culturais gozam de


mais prestígio do que durante o apogeu do império eu-
ropeu e suas colonizações. As principais contribuições do
Ocidente para o mundo contemporâneo incluem o pa-
pel desempenhado pela ciência e pela tecnologia no pro-
gresso da vida material, nossa crença na democracia, os
direitos do indivíduo e as normas jurídicas, assim como a
emancipação resultante do sistema de livre comercio e da
posse da propriedade. À medida que nos aproximamos
do século XXI, essas crenças parecem pilares cada vez
mais inabaláveis da mentalidade moderna global (HER-
MAN, 1999, p. 9).

No pensamento político moderno, tanto de matizes liberais como so-


cialistas, os indicadores sociais de morte são tratados como sintomas ou maze-
las causadas pelo sistema capitalista, como se a racionalidade ou a lógica que
sustenta a dinâmica do sistema econômico não fizesse parte da racionalidade
instrumental moderna, que determina formas de saberes científicos voltados
para o desenvolvimento de tecnologias e dispositivos de dominação da natu-
reza, dos territórios, dos corpos humanos e, até, do espaço sideral.
O pensamento político moderno, ao ocultar a colonialidade, ao con-
trário das pretensões do pensamento decolonial, esquece-se de que no pen-
samento moderno a razão é a razão do todo e de suas partes. Portanto, o en-
frentamento das crises econômicas (parte) desvinculadas da crise civilizatória
(todo) se tornar insuficiente, pois na realidade não existe sistema econômico
sem padrão civilizador, mas padrão civilizador com sistemas econômicos.
Na América Latina, a resistência à morte há mais de meio milênio,
quando os europeus invadiram o continente, vem gerando uma consciência

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 51


de que por meio da razão eurocêntrica não podemos encontrar saídas. To-
davia, os povos originários que resistem e os povos negros que aqui foram
trazidos como escravos para produzir mercadorias para o capital mundial, são
portadores de uma dupla consciência: a consciência originária de suas civili-
zações e a consciência de suas feridas coloniais, ou seja, eles têm a consciência
de dois projetos civilizatórios em conflito, o que lhes possibilita realizar um
pensamento outro, um pensamento de fronteira, um pensamento pluriversal
que pode construir múltiplas alternativas.
Produzir múltiplas alternativas, a partir das diferenças culturais, é uma
resposta ao entendimento da humanidade com o mesmo protocolo. Será
que o pensamento decolonial pode, além de denunciar a crise da civilização
moderna, contribuir para adiar o fim do mundo, como pensa Ailton Krenak?
Para o autor: (2019, p. 32):

[...] já que a natureza está sendo assaltada de uma ma-


neira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de
manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéti-
cas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais,
e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é
diferente do outro, como constelações. O fato de poder-
mos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajan-
do não significa que somos iguais; significa exatamente
que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas
diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida.
Ter diversidade, não é isso de uma humanidade com o
mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma ma-
neira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos
(KRENAK, 2019, p. 32).

Distante da apologia e da crença cega dos modernistas em suas insti-


tuições e em seus conceitos culturais, Arturo Escobar afirma que a moderni-
dade ou o processo civilizador moderno se caracteriza:

Pela classificação hierárquica das diferenças em termos


de escalas raciais, de gênero e civilizatórias (colonialida-
de); pelo domínio econômico, político e militar sobre
a maioria das regiões do mundo; pelo capitalismo e os
chamados mercados livres como sua modalidade de eco-
nomia; pela secularização da vida social; pelo liberalis-

52 Saberes decoloniais
mo hegemônico baseado no indivíduo, na propriedade
privada e na democracia representativa; nos sistemas de
conhecimentos baseados na racionalidade instrumental,
com marcada separação entre humanos e natureza (an-
tropocentrismo) (ESCOBAR, 2019, p. 458).

Para pensadores decoloniais, como Enrique Dussel, Aníbal Quijano,


Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel, as origens do modelo civilizacional
moderno têm como marco histórico a invasão e conquista das Américas pela
Espanha a partir de 1492. O processo civilizador moderno passou a ser ins-
taurado por meio da violência material e simbólica contra os povos originários
da América que eram constituídos, no período pré-colombiano, por várias
civilizações, sendo as mais expressivas a Asteca, a Maia e a Inca.
Depois do processo de conquista e da invenção da ideia de América,
em seguida de América Latina, as diversas civilizações passaram a coexistir em
permanente conflito e tensão, numa longa resistência que ultrapassa meio mi-
lênio. Os povos originários, com suas feridas ou heranças coloniais (Mignolo
2003), são portadores de uma dupla consciência civilizacional, o que lhe do-
tam de condições para contribuírem com a elaboração de um pensamento de
fronteira ou um pensamento outro, capaz de apontar r alternativas para além
da modernidade e da pós-modernidade.
O atual padrão mundial de poder, segundo Aníbal Quijano (2002, p.
4), consiste na articulação da dominação por meio da ação conjunta e articu-
lada: i) da colonialidade do poder, isto é, a ideia de raça como fundamento
do padrão universal de classificação social básica e de dominação social; ii) do
capitalismo, como padrão universal de exploração social do trabalho; iii) do
Estado, como forma central universal de controle da autoridade coletiva, e do
moderno Estado-nação, como sua variante hegemônica; iv) do eurocentrismo,
como forma hegemônica de controle da subjetividade/intersubjetividade, em
particular, no modo de produzir conhecimento. Para manter o atual padrão
de poder, em nossa epocalidade, o bloco imperial mundial, segundo Quijano:

Necessita dos Estados locais para impor suas políticas em


cada país. Desse modo, esses Estados locais estão sendo,
uns, convertidos em estruturas institucionais de admi-
nistração local de tais interesses mundiais e, os outros,

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 53


tornando mais visível do que já vinham exercendo essas
funções. Esse processo implica uma reprivatização local e
global de tais estados, a fim de responder cada vez menos
à representação política do conjunto dos setores sociais
de cada país (QUIJANO, 2012, p. 12).

Para Arturo Escobar (2019), o projeto de uma civilização global da


modernidade encontrou, por parte das diversas nações e civilizações por ela
conquistada, uma intensa resistência à tentativa da modernidade em ordená-
-las e fundi-las ao modelo eurocêntrico e transatlântico como única ordem
mundial possível. Um conflito que Walter Mignolo caracteriza como sendo
entre histórias locais e projetos globais. Portanto, a vontade libertária dos po-
vos não europeus, dos povos originários, dos condenados da terra, do chama-
do sul global, expressa-se nas lutas contra a MCP.
O poder, segundo Aníbal Quijano (2002), é um tipo de relação social
constituído pela coexistência de três elementos: dominação, exploração e con-
flito. Não existe exploração do outro sem dominação desse. Assim, o objetivo
do poder é o controle ou o domínio das quatro estruturas básicas da existência
social, a saber: i) o trabalho, seus recursos e seus produtos; ii) o sexo, seus
recursos e seus produtos; iii) a autoridade pública (coletiva), seus recursos
e produtos; iv) a subjetividade/intersubjetividade, seus recursos e produtos.
Cada uma dessas estruturas está, na sociedade de mercado capitalista, sob a
hegemonia de uma instituição: o trabalho, sobre o controle da empresa capi-
talista; o sexo, sobre o controle da família patriarcal burguesa; a autoridade
pública, sobre o controle do Estado-nação; e a subjetividade, sobre o controle
da epistemologia eurocêntrica.
Um movimento pluriverso, para o pensamento decolonial, é uma
forma de resistência contra o domínio hegemônico da razão moderna (euro-
cêntrica e antropocêntrica), contra o padrão mundial de poder (QUIJANO,
2002) e de suas consequências nefastas para todas as formas de vida (animal,
mineral e vegetal) do planeta. Nesse sentido, mais do que a defesa de uma
ecologia de saberes (Boaventura de Sousa Santos) e de epistemologias outras
(MIGNOLO, 2017), ações concretas estão em curso.
No Norte global, as economias ecofeministas de subsistência, a defesa
dos bens comuns, a proposta de decrescimento na Holanda, o intercâmbio e

54 Saberes decoloniais
troca de alimentos, energias e transportes, o diálogo inter-religiosos. No Sul
global, a valorização das ontologias e cosmovisões holísticas que enfatizam
a interdependência de todas as formas de existência, o bem-viver, o Estado
plurinacional, os direitos da natureza, a justiça indígena. Tratam de práticas
que coexistem no e com o mundo moderno, mas que são ações de resistência
contra o extrativismo e o desenvolvimentismo, como constata Arturo Escobar
(2019, p. 460): “[...] não se trata de retorno às tradições autênticas e nem de
formas hibridas alcançadas mediante uma síntese racional do melhor e cada
civilização”.
Em um mundo pluriversal, cada universal é investido do poder de sig-
nificar, o que rompe com o pensamento único multicultural da modernidade,
abrindo espaço para o encontro de alternativas de projetos sociais e de vida por
meio de uma ecologia de saberes. A pluriversalidade é o fim do pressuposto de
que existe uma única teoria, um único sujeito e um único sistema verdadeiro
para a organização da economia e para a efetivação das utopias libertárias.
No processo permanente de resistência, quando o inesperado irrom-
pe, constituindo-se em um acontecimento decolonial, as feridas ou heranças
coloniais passam a ser o lócus de anunciação, então, os sentidos da vida e da
história passam a ser ressignificados e algumas relações são rompidas, outras
são reinventadas e criadas.
Como a colonialidade torna insignificante, invisível e ausente o su-
balterno, ele nunca está presente na história oficial como sujeito. O que o faz
presente é a sua ação de existência, que ressignifica a história, a sua imagem
e a sua importância no mundo. O ato de ressignificação da história é, já, a
afirmação do pluriversal, é um passo para transição civilizacional para além da
modernidade; uma transição de longa duração.
O pluriversal é, também, a chave para a descolonização e humanização
do próprio homem branco, tanto de direita como de esquerda, eurocentrado,
cristão, patriarcal, homofóbico, racista e colonial. O campo político branco,
que inclui desde a extrema direita até a extrema esquerda, está presente nos
quatro cantos do planeta. É bom deixar claro que branco não se refere à cor
da pele, mas a um ethos cultural, a uma maneira de ser e de estar no mundo,
do modo eurocentrado de ver, pensar e agir. Portanto, trata-se da epistemo-
logia e da ontologia de uma prática política de um padrão mundial de poder

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 55


(QUIJANO, 2002). Por isso, como afirma Houria Bouteldja (2017), o giro
decolonial é uma política do amor revolucionário.
O amor revolucionário, como ação libertária decolonial, implica a
necessidade de um movimento afirmativo de longo prazo, que, orientado para
além da modernidade, implica a instauração de um mundo pluriverso através
de práticas (política, econômicas, linguísticas, ecológicas, estéticas, literárias,
festivas, arquitetônicas, tecnológicas, etc.) descolonizadoras capazes de efeti-
var o giro decolonial. Como afirmam os zapatistas no México, a civilização
moderna é mono, ou seja, produz um mundo onde somente um mundo é
possível, o desafio decolonial é produzir uma civilização em que outros mun-
dos sejam possíveis, e o que temos, o mundo da morte, faça-se impossível.
O amor revolucionário, como ação política decolonial, não é uma
defesa de uma política essencialista ou sectária que não permite a construção
de alianças e ações conjuntas com a esquerda branca euro centrada. A ação
política decolonial deve abrir espaços para construção de alianças políticas,
mas sem abrir mão da crítica ao eurocentrismo, ao colonialismo, ao racismo,
ao sexismo, ao desenvolvimentismo, à exploração capitalista, ao imperialismo,
ao extrativismo, ao rentismo, ou seja, ao sistemamundo colonial moderno.
Na gramática política da modernidade, encontram-se separadas a luta
de classes, as lutas identitárias e as lutas em defesa do meio ambiente. Todavia,
para o pensamento decolonial, todas as formas de resistência devem ser tecidas
juntas, pois não existe colonialidade sem modernidade e nem modernidade
sem colonialidade. A relação modernidade/colonialidade é o complexo, e este,
como diz Edgar Morin (1984), é o que é tecido junto.
O pensamento decolonial rompe com o determinismo encontrado
na formulação de Marx e Engels (2007, p. 49) na obra “A Ideologia Alemã”,
quando afirmam (que: “[...] não é consciência quem determina a vida, mas
a vida que determina a consciência”. Para Edgar Morin (1984, p. 23): “[...]
um todo emerge a partir de elementos constitutivos que interagem, e o todo
organizador que se constituiu retroage sobre as partes que o constituem. Essa
retroacção faz com que estas partes só possam funcionar graças ao todo”.
Uma ação política decolonial implica o esforço de ruptura e negação
permanente das estruturas de dominação, das epistemologias, do imaginário,
da organização econômica, da política e dos modelos de sociabilidades do

56 Saberes decoloniais
padrão civilizatório moderno, ou, nos termos de Quijano (2014), da colonia-
lidade do poder.
Para parte do pensamento decolonial, o capitalismo não é o funda-
mento de todo o sistema de dominação e subalternização, como pensa seg-
mentos da esquerda euro centrada. O modo de produção capitalista (Marx) e
o capitalismo histórico (Wallerstein) são estruturas econômicas de algo mais
fundamental: a civilização-mundo moderna ocidental, com suas múltiplas
hierarquias de exploração, instrumentalização e dominação. A partir dessa
compreensão, afirma Ramón Grosfoguel (2017), no prefácio do livro de Hou-
ria Bouteldja (2017), que diante da crise da civilização moderna:

Já não basta dizer que somos anticapitalistas. Se o capita-


lismo é racista, genocida, patriarcal, epsitemicida, ecolo-
gicida, eurocentrado, é porque está organizado e atraves-
sado a partir do seu interior pelas lógicas civilizadoras da
modernidade ocidental [p.10]. Não existe modernidade se
capitalismo histórico, nem luta anticapitalista que possa
salvar a modernidade (GROSFOGUEL, 2017, p. 12).

Para o pensamento político decolonial, portanto, não faz sentido falar


de forma exclusiva3 de luta anticapitalista que não ponha em questão o projeto
civilizatório da modernidade. Um exemplo histórico esclarecedor é o da Revo-
lução Russa, de 1917, a revolução marxista-leninista, uma revolução anticapi-
talista que acabou reproduzindo todos os tipos de dominação e hierarquização
contra os quais a sociedade russa lutava antes. Para muitos, essa revolução, o
socialismo real, não passou de um capitalismo de estado burocrático.
Karl Marx escreveu no “Manifesto do partido comunista” que a mo-
dernidade revoluciona constantemente a vida e as relações de produção, com
3 Vladimir Safatle, ao analisar a forma violenta como foi tratada a greve geral na Colômbia, iniciada no
final do mês de abril e que se arrastou por todo mês de maio, afirma que na América Latina ou em parte
substantiva do continente: “[...] está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de
articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tencionam, ao
mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização
insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas que têm à frente sujeitos trans em afirmação de sua
dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas, explicam bem o que a
revolução molecular significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centra-
lizadas em uma linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento,
tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos
lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho (SAFATLE, 2021).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 57


ela tudo que é sólido desmancha no ar. Todavia, o que podemos constatar,
em meio milênio de modernidade, considerando que seu marco temporal
fundante é a conquista da América, em 1492, é que nas revoluções que a mo-
dernidade promove no conhecimento, na tecnologia, na política e nos costu-
mes, embora ela traga muitas melhorias e amplie a liberdade para alguns, não
promove a emancipação. A colonialidade, como componente constitutivo da
modernidade, segundo o pensamento decolonial, faz com que a modernidade
seja um projeto civilizador que só possa existir pela manutenção de múltiplas
formas de dominação, exploração e hierarquização.
Se a modernidade foi anunciada, a partir da Europa, em um de-
terminado período de sua história particular, como um projeto universal e
emancipatório, hoje podemos constatar que ela é o projeto emancipatório
responsável pelo desastre planetário e humanitário em que nos encontramos
na segunda década do século XXI. É um projeto que forjou um sistema pro-
dutivo e financeiro, a partir de seu saber científico e tecnológico, que atingiu
a capacidade de suprir todas as necessidades materiais humanas, mas que se
nega a ter como finalidade última a vida.
A razão moderna é instrumental, sua epistemologia, saber como poder
(Bacon), voltado incialmente para o domínio da natureza (técnica), expandiu-se
para o domínio da maioria da população (política, biopoder e necropoder) a ser
explorada e dos países colonizados e dependentes a serem controlados (geopo-
lítica). Os subalternizados, os condenados da terra, nos termos de Fanon, são
invisibilizados, são a condição de ser (ontologia): colonialidade do ser.
A cada revolução industrial, o trabalho vivo, as pessoas com seus sa-
beres e habilidades, torna-se menos necessário. Assim, legiões de pessoas vão
se tornando descartáveis e suas existências indesejadas. Como corolário, a mo-
dernidade multiplica suas formas de genocídios: fome, chacinas, desemprego,
campos de refugiados, milícias armadas, guerras, múltiplas formas de violência,
pandemias, etc. Em relação à quarta revolução industrial em curso, o fundador e
presidente do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwad (2019, p. 20) afirma,
de forma clara e direta que, com a quarta revolução industrial: “[...] os desafios
colocados pelo aumento da desigualdade são difíceis de quantificar”.
A luta política euro centrada por mais modernidade – do keynesianis-
mo, do desenvolvimentismo, do socialismo – não é uma luta emancipatória,

58 Saberes decoloniais
dentro do entendimento de parte do pensamento decolonial, posição que fica
bem explicitada com Ramón Grosfoguel (2021). As lutas pela inclusão social,
pelo reconhecimento das diferenças, pelo combata à fome e por distribuição
de renda, por desenvolvimento sustentável, em si, não passaram de lutas con-
junturais, cíclicas e economicistas, que até chegam a alcançar algumas con-
quistas pontuais e provisórias em algumas conjunturas, mas não entram no
âmago da crise do padrão civilizador moderno.
Com o processo de globalização, no qual o neoliberalismo tem a pre-
tensão de ser a nova razão do mundo, fazendo-nos entrar na era pós-democrá-
tica (Dardot/Laval), a disputa entre os capitalistas, pelo controle e pela acu-
mulação da maior parte das riquezas socialmente produzidas, dos territórios e
patrimônio natural a ser mercantilizado, coloca-os na condição de inimigos,
de guerra de todos contra todos.
Nessa guerra, os capitalistas se unem contra a ideia de um capitalismo
distribuidor de renda, de um Estado de bem-estar, o que reduz a ação e o hori-
zonte da esquerda euro centrada à defesa de projetos minimalistas de respostas
imediatas e subordinados aos atendimentos dos setores extrativistas e rentistas
neoliberais. Assim, se numa sociedade que caminha para barbárie, as políticas
de combate à fome e à miséria se tornam necessárias e urgentes, é preciso ter
clareza que isso é o imediato, não um horizonte. Ficar preso ao imediato ou
à pura disputa do poder pelo poder é ser consumido pela matriz colonial de
poder da modernidade. A imagem para reproduzir tal situação é de uma cobra
em círculo, com a boca engolido o rabo, consumindo-se, sendo auto engolida.
A política decolonial tem a noção de transmodernidade como hori-
zonte de luta de longo prazo. Nesse sentido, as lutas imediatas contra a fome;
o desemprego, as exclusões; pelo combate às desigualdades; pela defesa do
meio ambiente, das identidades e diferenças sexuais e as lutas contra as formas
de exploração e dominação são as pautas concretas e materiais de partida para
mobilização e organização das lutas, mas que devem ser orientadas, também,
por uma disputa epistemológica, pelo fim do império cognitivo do eurocen-
trismo e pela ruptura com a colonialidade do poder, do ser e do saber.
Para os modernistas, os países por eles considerados subdesenvolvidos,
os pobres, os povos originários e negros, que vivem sendo desrespeitados e em-
pobrecidos, é que constituem o problema do mundo contemporâneo. Para o

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 59


pensamento decolonial, o verdadeiro problema é a modernidade/colonialida-
de, não as suas vítimas: os povos e os territórios que foram e continuam sendo
explorados, dominados, inferiorizados e subalternizados pela matriz colonial
de poder da modernidade.

O PENSAMENTO DECOLONIAL E O MARXISMO

Para o pensamento decolonial, Karl Marx é um pensador eurocêntrico


e o comunismo um projeto com pretensões de realizar a modernidade, pois a
realidade histórica, cultural e material na qual ele está inserido e pensando é
a da Europa. O pensamento filosófico, econômico e político que Marx toma
como universal é particular, é localizado, é provinciano. Em “Glosas críticas
ao artigo o rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano”, texto de 1844,
Marx (2010, p. 45) afirma que: “[...] é preciso reconhecer que o proletariado
alemão constitui o teórico do proletariado europeu, assim como o proletaria-
do inglês é o seu economista e o proletariado francês seu político”.
Em 1848, quando Marx encerra o “Manifesto do Partido Comunis-
ta” com a famosa frase “proletários de todo mundo, uni-vos!”, este “de todo
mundo” era a Europa, pois não incluía a América Latina, a África e nem a
Índia. Nos meios marxistas, é de conhecimento comum a síntese elaborada
por Lênin de que as três fontes e as três partes constitutivas do marxismo são
a filosofia alemã, a economia política inglesa e a política francesa. Portanto,
como afirma o pensamento decolonial, todo pensamento é geolocalizado.
O pensamento de Marx é fundamentado na dialética moderna (filo-
sofia) ou no materialismo histórico (ciência), no qual o socialismo, para sua
realização, pressupõe o avanço constante da revolução dos meios produtivos
até o ponto do emperramento das relações de produção, quando seria sinal do
esgotamento do sistema capitalista. Mesmo, sem ainda ter sido efetivado, o
socialismo foi defendido por Engels como científico, como forma de conheci-
mento moderno mais apurado.
O socialismo passou a ser considerado científico porque, contra o so-
cialismo utópico, defendia que a sua realização só poderia acontecer com o
fim da propriedade privada como fruto da revolução proletária. Será mesmo
que a abolição da propriedade privada colocará mesmo fim à exploração e

60 Saberes decoloniais
às múltiplas formas de dominação produzidas pelo modo de produção da
modernidade? Na obra o Anti-Dühring, Engels (1976), ao falar sobre o socia-
lismo, declara:

Pelo seu conteúdo, o socialismo moderno é, antes de


tudo, o produto da tomada de consciência, por um lado,
das posições de classes que reinam na sociedade moderna
entre possuidores e não possuidores, assalariados e bur-
gueses, por outro lado, da anarquia que reina na produ-
ção. Mas, pela sua forma teórica, surge incialmente como
uma continuação mais desenvolvida e que se pretende
mais consequente, dos princípios estabelecidos pelos
grandes filósofos do saber na França do século XVIII (p.
21).

O socialismo é a expressão da verdade, da razão e da jus-


tiça absolutas e basta que o descubramos para que ele
conquiste o mundo pela virtude de sua própria força;
como verdade absoluta é independente do tempo, do es-
paço e do desenvolvimento da sua história, a data, e o
local da sua descoberta são um mero acaso (p. 21).

Karl Marx, não se pode negar, era um pensador extraordinário e bri-


lhante. Enraizado em seu tempo, foi seguidor de Hegel e acreditava, como ele,
que a razão moderna era emancipadora, que a sua efetivação era a condição
última para o fim da pré-história. Ou seja, para Marx, a razão moderna era a
última razão, a razão na história.
Todavia, pesando com Hegel e ao mesmo tempo contra, para Marx, a
efetivação da razão moderna não era possível no modo de produção capitalista
como pensava Hegel, pois o fim da história não poderia ser uma sociedade in-
justa e dividida por antagonismos de classes; a modernidade, enquanto razão
última, só poderia ser efetivada com o reencontro do homem com o seu ser
genérico, com a realização da emancipação humana por meio da revolução
proletária. Nesse processo histórico, Marx via no proletariado o sujeito re-
volucionário que efetivaria a modernidade, o coveiro da burguesia, o sujeito
político universal.
Para Marx, o sujeito da modernidade, o burguês (tanto o capitalista
como a intelectualidade iluminista), firmou-se com a promessa de ser senhor

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 61


de si e do mundo, projeto que prometeu universalizar para todos os indiví-
duos e territórios do planeta. Todavia, a relações materiais de produção que
gestou o burguês como sujeito da modernidade, gestou, ao mesmo tempo e
no mesmo processo, o proletário como coveiro da burguesia.
Na modernidade, para Marx, é o proletário o único sujeito capaz de
realizar o sonho burguês de tornar o homem senhor de si mesmo e do mundo.
Como portador da razão universal, o proletariado estava predeterminado a
realizar a última revolução da história, a revolução constituidora do comunis-
mo, que consumaria o fim da história efetivando a razão moderna, quando o
homem não seria mais privado dos meios de vida. Segundo Marx e Engels, na
Ideologia Alemã:

[...] onde cada indivíduo não tem para si um círculo ex-


clusivo de atividades, mas pode desenvolver suas apti-
dões no rumo que melhor lhe aprouver, a sociedade se
encarrega de regular a produção universal, com o que ela
torna possível, justamente através disso, que eu possa me
dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que eu possa caçar
pela parte da manhã, pescar pela parte da tarde e à noite
apascentar o gado, e depois de comer, criticar, se for o
casso e conforme meu desejo, sem a necessidade de por
isso me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum
dia (MARX; ENGELS, 2007, p. 56).

É extraordinário e, para alguns, até desejante esse reencontro do ho-


mem com o seu ser genérico a ocorrer como realização da modernidade por
meio do comunismo. O paraíso, a “terra que corre leite e mel”, prometida por
Deus aos judeus por ter sido o povo escolhido, seria realizado, como pesava o
judeu Marx, como razão moderna, por meio de um sujeito universal: o prole-
tariado.
O ciclo da razão que marcou a pré-história da humanidade a partir do
modo de produção primitivo, passado pelo escravismo, feudalismo, modo de
produção asiático, capitalismo, agora se realizando como fim da história com
o comunismo. A mais importante contribuição do capitalismo para a huma-
nidade foi gestar o sujeito histórico universal que poria fim aos antagonismos
de classes, pois a história da humanidade até o capitalismo nada mais foi do

62 Saberes decoloniais
que a história da luta de classes. O fim do capitalismo marcaria o fim da pré-
-história da humanidade.
Karl Marx expressou que a ideologia é um componente da razão mo-
derna que apresenta os interesses particulares como ideias universais. Todavia,
a ideologia, como elemento da colonialidade, é mais do que um instrumento,
ela nos instrumentaliza. Assim, somos possuídos por ela e, em alguma medi-
da, todos nós somos submetidos à colonialidade do poder, do saber e do ser.
O que significa que o fato de lutarmos contra a exploração capitalista, contra a
opressão, contra as formas de dominação, contra o racismo, contra o machis-
mo e contra a homofobia, desejamos ou não, reproduzimos, em algum grau,
em nossas relações sociais tais explorações, opressões ou dominações. Nesse
sentido, não existem agentes ou sujeitos sociais de transformação puros, como
bem afirma Paulo Freire, na sua obra A Pedagogia do Oprimido:

Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimi-


dos é a prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção
de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador que
transforma a consciência recebedora no que vimos chama-
do de consciência hospedeira da consciência opressora. Por
isso, o comportamento dos oprimidos é um comportamen-
to prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as
pautas dos opressores (FREIRE, 1983, p. 35).

Ao contrário do pensamento decolonial, o marxismo toma o prole-


tariado de forma essencializada, como consciência pura que evoluirá de uma
consciência em si para a consciência para si. Mesmo tendo o entendimento de
que a classe dominante de uma época exerce também o poder espiritual domi-
nante da mesma época, de que as relações sociais são alienadas, o proletariado
é apresentado, por ocupar um lugar de explorado no processo de produção de
mais-valia, como portador e sujeito revolucionário, sujeito da emancipação
moderna, como razão pura a se efetivar na história, fazendo a espécie humana
se reencontrar com o seu ser genérico.
No pensamento decolonial, a modernidade não é só racista, capitalista
e imperialista, mas também colonialista, cristã, eurocêntrica, branca, patriarcal,
heteronormativa e ocidentalcêntrica, e, todos nós, pela colonialidade, somos
portadores, em alguma dimensão, do seu modo de ser e de estar no mundo. O

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 63


proletariado é um hospedeiro da pauta e dos valores do seu opressor, ele é racis-
ta, machista, patriarcal, homofóbico, cristão, branco, bem como as feministas,
os negros, os intelectuais marxistas e decoloniais, os povos indígenas e todos os
segmentos que compõem o sistema-mundo moderno colonial.
Esse é o motivo porque ninguém se liberta sozinho, a liberdade é um
ato de comunhão, que, no pensamento decolonial, implica ruptura com a
colonialidade do poder, com a civilização moderna, é um compromisso de
longo prazo com a construção de um mundo pluriverso. Até lá, muito sangue
ainda vai ser derramado, porque comunhão libertária não é passividade, mas
conflito e luta pela afirmação da vida em sua pluriversalidade.

TRANSIÇÃO CIVILIZACIONAL E O DESENVOLVIENTISMO

A transição civilizacional decolonial significa, entre outras coisas,


também a proclamação do fim do desenvolvimentismo, o que inclui a ideia
de desenvolvimento humano e sustentável, como promessa de que, seguindo
suas orientações, diretrizes e modelos sugeridos por seus formuladores, todas
as sociedades alcançarão um nível de vida digno, com justiça social, o que
diminuirá a diferença entre pobres e ricos e permitirá que todos desfrutem das
extraordinárias invenções e benefícios advindos das revoluções industriais.
O que constatamos é que o desenvolvimento, como crescimento
econômico, operado por meio da disputa entre empresas e nações dentro da
matriz colonial de poder, significa a insustentabilidade do planeta para todos
os homens e para todas as formas de vida, significa prolongar os caminhos
de um padrão civilizatório de morte. Desenvolvimentismo na era da globa-
lização é a exploração da natureza, da força de trabalho e de territórios sem
Estado-nação. Significa a submissão sem limite aos interesses das corporações
transacionais, significa a promoção de uma brutal concentração de riquezas
nas mãos de alguns bilionários combinada com a vulgarização do empobreci-
mento, como bem demonstra o ranking anual da revista Forbes.
O desenvolvimento é um mecanismo da modernidade para a afirmação
do modelo único a ser seguido pelas nações colonizadas como condição ilusória
para sair da sua situação de atraso. O desenvolvimento passou a significar cres-
cimento econômico por meio da industrialização e do desenvolvimento cientí-

64 Saberes decoloniais
fico e tecnológico. O desenvolvimentismo se fundamenta na ideia de que, sem
romper com a matriz colonial de poder, sem romper com a dependência e a
superexploração dos países subdesenvolvidos pelos desenvolvidos, os países em-
pobrecidos podem, seguindo a orientação dos países do centro, sair da condição
de periferia, tornando-se desenvolvidos, de primeiro mundo.
Não é por acaso que quem controla, define, estabelece metas de cres-
cimento e modelos de políticas de desenvolvimento (combate à pobreza, cres-
cimento econômico e sustentável) são técnicos, especialistas e pesquisadores
a serviço de governos, empresas, bancos, agências de classificação de risco, do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Fundo Mo-
netário Internacional (FMI) e Banco Mundial.

TRANSIÇÃO CIVILIZACIONAL E O LUGAR DE FALA

A transição civilizacional decolonial nos desafia a quebrar o nosso sis-


tema de autoengano ou de autoilusão. Ela nos faz entender e tomar consciên-
cia que mesmo os considerados conscientes, os pensadores críticos, nós, os
que nos situamos no chamado campo da esquerda, reproduzimos comporta-
mentos racistas e formas de dominação que nem sequer chegamos a imaginar
que existem em nós de forma tão arraigada.
Além disso, a categoria colonialidade nos ajuda a entender e a com-
preender que os que sofrem com o racismo também o reproduzem. Portanto,
uma grande contribuição da categoria colonialidade é quebrar os essencialis-
mos, a ideia de que existem os dominadores e exploradores de um lado e os
dominados e explorados de outro, em forma pura. Assim sendo, saber quem
oprimimos e como, quando lutamos por libertação, é um ato radical.
​ A dicotomia entre luta de classes e luta identitária, ou a polêmica
entre fala partidária e o lugar de fala, é a colonialidade de poder pensada e re-
produzida como um dos eixos de dominação e opressão. Trata-se de uma gra-
mática de posse do meu discurso, de minha fala, de minha narrativa autêntica.
É a gramática política mercantil da reserva de mercado de fala, do discurso,
uma gramática da propriedade sobre a violência simbólica.
Trata-se de fazer da nossa (de um grupo identitário) opressão, de nos-
sa indignação e de nossas revoltas e sentimentos uma narrativa na gramática

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 65


política daqueles que nos oprimem. Na gramática mercantil da propriedade,
existe uma fala que me pertence, uma fala que é só minha e ninguém tem
autorização ou legitimidade de falar sobre ela.
​ Quando o lugar de fala ou as lutas identitárias são pensadas na gra-
mática política da colonialidade do poder, elas perdem a possibilidade de
coexistirem com vários universais, ou seja, de construírem uma identidade
na política ou, invés de afirmarem uma política de identidade, renunciam a
pluriversalidade ou a universalidade, esta que não pode ser realizada pela mo-
dernidade porque o universal moderno é um universal abstrato.
​Na narrativa discursiva da colonialidade, o problema não é que o su-
balterno exista, mas que seja visível, que ele seja, trata-se da colonialidade do
ser. Daí, a repressão, a invisibilidade, o apagamento. Se o outro, o diferente,
existe e é visível, toca-me, afeta-me, atravessa-me, cria relações eu-outro, obri-
gando-me a transformar-me. Então, vem a violência simbólica e material: a
eliminação do outro, que só pode existir em silêncio, só pode existir tendo o
seu ser colonizado, só pode existir como não ser.
​ Com a colonialidade do ser, o outro não pode ocupar o mesmo lugar,
tampouco ter as mesmas coisas e nem ter a mesma fala. A igualdade não pode
existir, e para que a desigualdade impere é preciso eliminar a liberdade para
que, com ela, não se queira ser igual. E ser igual significa ter o direito de ser
diferente.
​ O grande êxito do sistema-mundo colonial moderno, que opera a
colonialidade do poder, tem sido fazer com que os que são socialmente domi-
nados e explorados pensem epistemologicamente como os dominantes. Nesse
processo, é muito importante, segundo Walter Mignolo (2003), entender a
distinção entre localização social e localização epistêmica, sabendo que uma
coisa não se reduz à outra, pois se pode estar socialmente localizado do lado da
dominação de uma relação de opressão (Friedrich Engels, Karl Marx, Lênin,
Fidel Castro), como a luta de classes, e assumir uma perspectiva epistêmica a
partir do dominado da mesma relação de poder. Da mesma forma, pode-se
estar socialmente localizado do lado dos dominados e subalternizados, numa
relação racista e homofóbica (Sérgio Nascimento de Camargo, Fernando Ho-
liday) e se colocar do lado dos dominadores e subalternizadores.
​ O papel do intelectual, numa perspectiva decolonial, não é o de fa-

66 Saberes decoloniais
lar ou de representar os “ou” a perspectiva dos dominados, dos explorados e
subalternizados (operários, negros, indígenas, homossexuais, mulheres, sem
teto, sem terra, etc.), mas o de defender a mudança geográfica da razão ou a
geografia do conhecimento como instituição política e epistêmica. Seu com-
promisso é com a defesa de uma ecologia de saberes, das epistemologias do
sul, do pensamento de fronteira, da decolonialidade do saber.
Nesse sentido, o lugar de fala, quando compreendido como a posse de
uma fala verdadeira, legítima ou autorizada, porque proferida por um sujeito
legítimo, é uma reprodução da gramática da colonialidade do poder como um
“discurso competente” que tem um dono, que quer se impor como reserva de
mercado de bens simbólicos, é uma forma de silenciar o outro. Todavia, todos
têm o direito de tornar claro o seu lugar de fala, de demarcar o seu lócus de
enunciação.
A transição civilizacional decolonial implica o processo permanente
de descolonialidade ou de desobediência epistêmica, política, econômica, cul-
tural, estética, emocional, espiritual e ética. O giro decolonial implica um
localismo cosmopolita no qual o modo de ser local e de fazer política leva em
conta a articulação com as necessidades de todo o planeta.

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Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 69


A LITERATURA DE CAROLINA MARIA DE
JESUS COMO DENÚNCIA AO RACISMO NUMA
PERSPECTIVA DECOLONIAL NOS ESPAÇOS
ESCOLARES
Michael Dias de Jesus1
Ana Márcia Lima Costa2

E digo que, da colonização à civilização, a distância é


infinita; que, de todas as expedições coloniais acumula-
das, de todos os estatutos coloniais elaborados, de todas
as circulares ministeriais despachadas, não sobraria um
único valor humano.
Aimé Césaire

INTRODUÇÃO

A obra de Carolina Maria de Jesus é composta pelo que Evaristo


(2007) denomina como escrevivências3, pois a mesma descreve o cotidiano

1 Michael Dias de Jesus -Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP - maicon.social@gmail.com


2 Ana Márcia Lima Costa -Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP - inana.lima@gmail.com
3 O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quan-
do muito, semi-alfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento
de uma família negra moradora de uma favela, no Canindé, cidade de São
Paulo, relatando os dilemas e tensões que estão postos a sua sobrevivência,
dos seus entes, vizinhos e vizinhas, que revelam as dificuldades e a situação de
vulnerabilidade social vividas por cidadãos excluídos do acesso a direitos fun-
damentais: moradia, alimentação, saúde e educação, entre outros. Por outro
lado, ela não conta a sua história pela voz de quem relata episódios de horror,
nos impondo raivas e ressentimentos, e sim pela voz de quem escreve e com-
preende seu espaço-lugar e localização social de mundo.
Para pesquisadores(as) interessados(as) na produção escrita e sua in-
serção na literatura brasileira, Carolina Maria de Jesus pode ser estudada, no
sentido de compreensão acerca de sua cultura, seus conhecimentos e de como
sem alto nível de escolaridade ou acesso à academia conseguiu produzir obras
literárias publicadas a partir da década de 1960 no Brasil e outros países.
Neste momento o debate em torno de sua produção literária se am-
plia por reflexões acerca da reorganização do pensamento acadêmico diante
de novas possibilidades, novas formas de compreensão do desenvolvimento e
construção do conhecimento, o que a faz voltar à cena e ser merecidamente
reconhecida como uma escritora da literatura brasileira.
Outra parte de pesquisadores(as) acadêmicos(as), mais especificamen-
te os(as) que se detém aos estudos na área das ciências sociais e educacionais,
se debruçam no legado deixado por Carolina Maria de Jesus em sua literatura,
pois fomenta o debate acerca das condições objetivas da mulher negra, pobre,
favelada que como catadora para não morrer de fome, sozinha e manter seus
filhos, se descobre escritora, intelectual, e desenvolve uma escrita Carolinista4,
da escrita? Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de
ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida.
Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto
inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras,
que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura
das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar,
muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina
Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. A nossa escrevivência não pode ser
lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
(EVARISTO, 2007, p. 21)
4 Aponta-se que Carolina Maria de Jesus tem em suas obras processos filosóficos que podem pensar
a formação de professores a partir de Quarto de Despejo pelo viés da Filosofia da educação. Para tal,
entende-se como Carolinista o modo como os espaços escolares são pensados com a inserção dos
manuscritos da escritora.

72 Saberes decoloniais
como chama Jesus (2020), rompendo não apenas barreiras geográficas, mas
conceituais e de ordem econômica chegando a atender ao mercado editorial
da época e publicar seus livros.
Ao escrevermos esse trabalho, nos colocamos como pesquisador e pes-
quisadora que reconhecem todos esses aspectos como importantes e relevan-
tes que ao serem estudados e postos em evidência, tensionam debates que
confrontam as teorias dominantes em jogo até aqui e revelam conhecimentos
pós-coloniais a partir da produção literária de Carolina Maria de Jesus.
Acrescemos ao debate sobre seu legado, analisando a luz de saberes
decoloniais, as narrativas da escritora Carolina Maria de Jesus, que a nosso
ver ajudam a evidenciar e explicar em alguma medida o caráter excludente
presente no espaço escolar ao não reconhecer os dilemas e tensões sofridos por
milhares de crianças e jovens negros(as) que não conseguem dar continuidade
aos seus estudos, passam por sucessivos fracassos propositais estruturantes em
seu desempenho educacional e, como Carolina Maria de Jesus, vivem na peri-
feria dos grandes centros urbanos, tão atuais quanto as descritas pela escritora
em seus vastos textos.
A essas crianças e jovens negros(as) por meio de práticas educacionais
que não reconhecem o ponto de partida de suas vidas e as dificuldades de
sua permanência nos espaços escolares ante às carências de objetivas que ex-
perimentam por suas condições e estrutura de vida material e social, lhes são
negados direitos fundamentais, entre eles, o direito à escolarização, à medida,
em abandonam a escola e/ou passam por sucessivas mazelas ao longo da sua
trajetória escolar.
A construção de saberes e conhecimentos acumulados pela huma-
nidade, via instituição escolar, é fator preponderante e reconhecido social-
mente como definidor de possíveis chaves de melhoria de vida e redução de
desigualdade entre as pessoas, “comum é a atribuição à educação do papel de
instrumento de correção das desigualdades injustas produzidas pela ordem
econômica” (CUNHA, 1977, p. 55).
A escola ideologicamente é reconhecida por classes menos favorecidas
como um portal de oportunidades que podem por meio da aprendizagem dos
conhecimentos veiculados, ajudar as pessoas a ascenderem socialmente, mas
sabemos que para pessoas advindas do mesmo contexto de Carolina Maria de

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 73


Jesus, essa equalização das desigualdades provenientes da socialização escolar
é “[...] falsa e não franqueada a todos.” (CUNHA, 1977, p. 15) são muitas as
barreiras, históricas, raciais, sociais e materiais que impedem crianças e jovens
negros(as) permanecerem e obterem êxito na escola, assim como, na vida.
Cunha (1977) retrata também o aspecto contraditório dessa ideologia
e diz que é necessário lançar críticas a esse contexto escolar que “[...] desem-
penha um importante papel justamente na legitimação da ordem econômica
que produz as injustiças sociais.”(CUNHA,1977, p. 15). É importante enun-
ciar que Carolina Maria de Jesus e seus filhos estudaram nessa instituição
chamada de escola e que outros(as) Carolinas, Carolinos e Carolines5 que se
sentem impotentes e mesmo acreditando que a escola possa ser fundamental
em sua melhoria e ascensão de vida, encontram práticas pedagógicas que estão
distantes de sua realidade e que ao invés de conectá-las com uma experiência
de aprendizado aos poucos vão sentindo a necessidade de abandonar a escola
e ir em busca de condições materiais de sobrevivência.
Ter contato com a literatura de Carolina Maria de Jesus significa co-
nhecer a realidade social que ainda persiste quanto as desigualdades entre
crianças e jovens negros(as), pobres das periferias urbanas e pode nos ajudar a
pensar na encruzilhada que podemos estar quando “aprendemos desde cedo
que nossa devoção ao estudo, à vida do intelecto, era um ato contra hegemô-
nico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colo-
nização racista.”( (HOOKS, 2013, p. 10). E, no entanto, mesmo desejando
ou reconhecendo a escola como importante para melhoria de vida as crianças
e jovens negros(as) encontram barreiras que os impossibilitam a prosseguir
altos níveis de escolaridade.
Uma das barreiras que pode impedir a progressão e continuidade de
crianças e jovens negros(as) a altos níveis de escolaridade, e porventura, assim
como, Carolina Maria de Jesus, colocar em curso seus sonhos e projetos, são
as práticas pedagógicas que invisibilizam o contexto social e econômico desses
estudantes e não reconhecem as condições objetivas em que se encontram
para que possam ter êxito no espaço escolar.
A forma como Carolina Maria de Jesus e sua obra foi invisibilizada ao

5 Referimo-nos desse modo para fomentar a compreensão de que a vida e obra de Carolina Maria
de Jesus tem a possibilidade de Carolinizar as pessoas de acordo com suas identidades.

74 Saberes decoloniais
longo de anos, já demonstra como a sociedade e seu projeto educacional trata
da inclusão de crianças e jovens negros(as) na escola. Estudos envolvendo
a trajetória de vida de Carolina Maria de Jesus se situam nessa intervenção
quanto a organização do conhecimento, que desprivilegia a vida e o contexto
das pessoas que estão na escola, o conservadorismo acadêmico silenciou a
história de uma mulher que ultrapassou fronteiras que obteve sucesso em sua
produção de literatura brasileira.
Carolina Maria de Jesus poderia se dedicar aos estudos escolares tendo
sua vida solapada diante de tantas dificuldades financeiras e de manutenção
da vida? Mas a sua condição não a impediu de escrever e ainda assim construir
um sonho. Quantas crianças e jovens negros(as) abandonam seus sonhos ao se
depararem com as dificuldades de manter-se estudando?
Pensar de forma crítica sobre como o conhecimento acadêmico si-
lencia sonhos e desejos ao não conhecer a realidade de milhares de crianças e
jovens negros(as), é perceber que não temos um pensamento escolar elitizado
ocasionalmente, mas que ele faz parte de um processo de organização do co-
nhecimento com base em uma “epistemologia dominante “[...] deste hiper-
-contexto na reivindicação de uma pretensão de universalidade” (SANTOS
e MENESES, 2009, p. 10), classificando e normatizando o que reconhecem
como uma experiência válida e “com isso, desperdiçou-se muita experiência
social e reduziu-se a diversidade epistemológica, cultural e política do mundo”
(SANTOS e MENESES, 2009, p. 10).
Propomos na construção desse texto, uma leitura de aspectos deco-
loniais expressos pelo legado de Carolina Maria de Jesus uma mulher preta,
pobre e periférica que com conhecimento, sensibilidade, nos contou a vida de
difícil acesso aos bens materiais de consumo e sucessivas dificuldades que se
apresenta na condição material de sobrevivência, assim como, toda violência
sofrida ao seu corpo negro, nos permitindo refletir sobre quais práticas nos
inspiram a encontrar sonhos e esperanças para as crianças e jovens negros(as)
nos seus espaços escolares.
Destarte, as escritas propostas aqui, fazem parte do projeto decolonial
numa perspectiva do Sul para repensar os espaços escolares com o recorte racial
a partir da vida e obra de Carolina Maria de Jesus. Atenua-se que as escritas
pretas e Carolinista nos dão subsídio para debater as violências raciais em seus

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 75


diversos sentidos, assim como, possibilitam a discussão de combate às práti-
cas discriminatórias que sujeitos negros sofrem diariamente. Carolina Maria de
Jesus se insere no centro de uma pedagogia que tem como principal objetivo
emancipar seus pares e a sociedade em geral. A vasta obra da escritora nos ampa-
ra como potencialidade para construir uma escola e uma sociedade antirracista
a partir do corpo negro feminino da intelectual mineira do Canindé.
Se um dia Carolina Maria de Jesus ouviu que deveria ir para o tanque
lavar roupa por ser negra, neste texto e na perspectiva decolonial ela vai para os
espaços escolares como produtora de conhecimento e possibilidade de novas
epistemologias para além do ocidente. Carolina nas escolas!

COLONIALISMO, COLONIALIDADE, DESCOLONIZAÇÃO E DECOLONIALIDADE

O movimento insurgente imbricado no processo decolonial nos per-


mite acessar novos conhecimentos e formas de organização, nesse sentido, a
aplicabilidade dessa concepção evidencia novas possibilidades para além do
que foi imposto como racional pelo ocidente. Discutir novas formas de pen-
sar, ler, escrever, criar, educar, etc-, é parte de um sistema-mundo que foi sufo-
cado por séculos e nas últimas décadas vem ganhando destaques e escritos que
estão possibilitando uma guinada nas estruturas dominantes e excludentes.
Nesse sentido, compreender o processo decolonial faz parte de um
projeto de emancipação e valoração de povos que historicamente não tiveram
a oportunidade de lançar ao mundo suas concepções e valores milenares.
Obviamente, é importante compreender que esse processo não se co-
loca como verdade universal, caso isso aconteça, repetirá as mesmas agruras
impostas pela concepção da razão ocidental. Assim, a decolonialidade está na
esteira do que chamamos de possibilidade, ou seja, surge como mais um ins-
trumento de compreensão das coisas que estão à nossa volta e fazem parte da
construção dos valores sociais.
Essa possibilidade de nova organização dos instrumentos de com-
preensão das coisas e dos valores sociais, não pretende impor verdades a partir
do processo decolonial, mas exercer seu direito de falar e produzir de maneira
que não sejam questionados, assim como, a organização e sistematização das
suas vidas e ciências.

76 Saberes decoloniais
Nesse sentido, a decolonialidade é elemento para que a fala de quem
não pudesse falar seja escutada e respeitada em qualquer espaço que ecoar e,
também, que suas produções de conhecimentos, culturas e corpos sejam com-
preendidas como elementos constituintes no mundo.
Para compreender esse modo de inversão enquanto possibilidade, é
preciso uma atenção nas diferentes formas de se dizer como esse processo se
estabelece na prática, visto que, a prática é parte fundante nesse projeto.

Nesse contexto, decolonialidade como um conceito ofe-


rece dois lembretes-chave: primeiro, mantém-se a colo-
nização e suas várias dimensões claras no horizonte de
luta; segundo: serve, como uma constante lembrança de
que a lógica e os legados do colonialismo podem con-
tinuar existindo mesmo no fim da colonização formal
e da conquista da independência econômica e política.
(TORRES, 2020, p. 28)

Assim, uma das primeiras acepções importantes nessa discussão é a


não ingenuidade que a partir da decolonialidade os processos estratificados da
colonização e, consequentemente, da colonialidade irão esvair-se de maneira
súbita. Pois, “[...] não creio na redenção colonial, aposto na fresta, defendo
que a outros caminhos possíveis”. (RUFINO, 2019, p. 37)
O movimento decolonial necessita ser encarado como processo insur-
gente de resistências duradouras no que tange às formas como o sistema-mun-
do está organizado. Destarte, “é por isso que o conceito de decolonialidade
desempenha um importante papel em várias formas de trabalho intelectual,
ativista e artístico atualmente”. (RUFINO, 2019, p. 37)
É por isso, que a partir das categorias acima, necessita-se desvendar
quais processos aconteceram em determinados momentos da história e quais
ainda reverberam. Logo, o colonialismo não pode ser reduzido apenas à colo-
nialidade, assim como, descolonização para decolonialidade. Desse modo, a
evidenciação dessas diferenças conceituais é parte do processo de resistência.
Em tela, podemos aferir que colonialismo está posto para coloniali-
dade e descolonização está posta para decolonialidade. Em outras palavras,
são movimentos que se estabeleceram após cumprimento do anterior. Diga-se
que:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 77


Colonialismo pode ser compreendido como a forma-
ção histórica dos territórios coloniais [...] colonialidade
pode ser compreendida como uma lógica de desumani-
zação humana que é capaz de existir até mesmo na au-
sência de colônias formais. (TORRES, 2020, p. 36 - gri-
fo nosso)

Portanto, colonialismo está ligado ao modus operandi de como acon-


teceu o processo de exploração e invasão de outros territórios, já a colonia-
lidade são sequelas (estruturas/valores) herança desse primeiro movimento.
Em relevo, a colonialidade é parte das nossas relações atuais, visto que, ela é
a responsável pela perpetuação das desgraças estruturais e subjetivas do co-
lonialismo. “A implicação disso é que o fim do colonialismo não significou
o fim das relações coloniais: estas últimas continuam se reproduzindo como
desqualificações racistas do outro”. (SANTOS, 2010, p. 28)
Em outro momento, a descolonização é a responsável pela derrubada
do colonialismo, em outras palavras, a descolonização foi o movimento res-
ponsável pelo barramento do tráfico de corpos e povos, ela se deu por movi-
mentos de revoltas e clamor por direitos. Já a decolonialidade é o movimento
que luta contra as heranças impostas por esses processos de desgraças e que
permeiam entre nós até os dias atuais. Heranças essas que estão por toda parte
e espaços e são possíveis constatar por manchetes de jornais que noticiam
diariamente o racismo sistêmico em vários segmentos sociais, políticos, eco-
nômicos, subjetivos etc-,

Desse modo, se a descolonização refere-se a momen-


tos históricos em que os sujeitos coloniais se insurgiram
contra ex-impérios e reivindicaram a independência, a
decolonialidade refere-se a luta contra a lógica da colo-
nialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbóli-
cos. (TORRES, 2020, p. 36 - grifo nosso)

Não nos resta dúvida que o movimento decolonial é urgente e agora,


visto que, “sobre a colonização não se ergue civilização, mas sim barbárie”.
(RUFINO, 2019, p. 11)
Portanto, a decolonialidade é responsável por legitimar quem histo-
ricamente foi humilhado (a) sufocado (a), inviabilizado (a) e assassinado (a)

78 Saberes decoloniais
tanto corporalmente, quanto no sentido epistêmico.
Ainda nessa discussão, é preciso haver a compreensão que decolo-
nialidade deve estar ligada diretamente à concepção de práxis (discurso +
ação), a mesma não acontece quando essas duas categorias caminham dis-
tantemente. Rufino (2019) nos chama atenção para essa especificidade alo-
cada ao movimento decolonial. É importante frisar que o autor se utiliza da
palavra descolonização como processos de decolonialidade, o mesmo explica
que compreende as duas categorias como processos contínuos e resultantes de
movimentos históricos que estão ativos.

Assim, a descolonização6 deve emergir não somente


como um mero conceito, mas também como uma práti-
ca permanente de transformação social na vida comum,
é, logo, uma ação rebelde, inconformada, em suma, um
ato revolucionário. (RUFINO, 2019, p. 11)

Desse modo, podemos falar em Giro Decolonial (TORRES, 2020)


ou Rolê Epistemológico (RUFINO, 2019) que são conceitos que se estabele-
cem a partir da noção de práxis com a perspectiva de transformação a partir
de novas concepções, epistemologias e valores.
Portanto, a decolonialidade é responsável por uma agenda secular que
foi se constituindo como resistência diante da máquina esmagadora de moer
gente que é a colonização como chama Rufino (2019).

A colonização é uma engenharia de destroçar gente, a


descolonização7, não somente como conceito, mas en-
quanto prática social e luta revolucionária, deve ser uma
ação inventora de novos seres e reencantamento do mun-
do. (RUFINO, 2019, p. 12)

Com relevo, Torres (2020) nos direciona como devemos entender a


decolonialidade num âmbito também da continuidade de movimentos com-
batentes do colonialismo a partir das suas próprias formas de organização.
Igualmente, “a decolonialidade, portanto, tem a ver com a emergência do
6 Assim, a descolonização, aqui empregada, os sentidos fanonianose compartilha também dos prin-
cípios da decolonialidade. Assim, ao longo do texto descolonização e decolonialidade aparecerão
imbricadas como parte de um mesmo processo e ação. (RUFINO, 2019, p. 11).
7 Salientamos que para o autor a descolonização também tem sentido de decolonialidade.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 79


condenado como pensador, criador e ativista e com a forma de comunida-
des que se juntem à luta pela descolonização como um projeto inacabado.”
(TORRES, 2020, p. 46)
Nesse sentido, nos apontamentos de Fanon (2008) a decolonialidade
é uma explosão dos saberes indevidamente negados pelo ocidente, visto que,
ao nascermos nos deparamos com esse mundo-sistema colonial que nos ex-
prime à margem e a morte e, quando não, reduzem à concepção de objeto.
Porém, por mais que a colonialidade continue operando esses processos, é
possível uma nova constituição de sistema-mundo a partir de outros seres
e epistemologias. O enclausuramento colonial não será para sempre, assim
como, as armadilhas coloniais serão desarmadas e o que pareceria não aceitar
outros povos e ciências será desmascarado pela decolonialidade.

Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas


coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do
mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros
objetos. Enclausurado nessa objetividade esmagadora,
implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu
corpo subitamente livre de asperezas, me devolveu uma
leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo,
me entregou ao mundo. Mas, no novo mundo, logo me
choquei com uma outra vertente, e o outro, através de ges-
tos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução
com um estabilizador. (FANON, 2008, p. 103)

Destarte, o silenciamento colonial não será mais permitido e a de-


colonialidade tem como uma das suas principais funções esse erguer dá voz
que irá transpor para além dos limites ocidentais. Pois, como bem disse Fa-
non (2008), “[...] explodi. Aqui estão reunidos por um outro eu”. (FANON,
2008, p. 103)
Assim, estamos diante da possibilidade de novos “eus”, de novas pro-
duções, de novas epistemologias. Portanto, decolonialidade também está liga-
da ao processo de cidadania no sentido mais amplo da palavra, pois a cidada-
nia só é atingida por um sujeito quando ele (a) não nega a si e seu povo.

O questionar das formas em como os diferentes passa-


dos produziram diferentes estruturas sociais e políticas,

80 Saberes decoloniais
ou os diferentes sistemas de valor que hoje chamamos
de culturas, etnias, tradições e civilizações, assim como
estes continuam a delinear comportamentos emerge
como uma dimensão básica do exercício da cidadania.
FANON, 2008, p. 103)

A partir do questionar, do explodir, “a decolonialidade é, portanto, não


um evento do passado, mas um projeto a ser feito”. (TORRES, 2020, p. 50)
Rufino (2009) evidencia que o colonialismo não venceu, essa aferição
nos traz mais sopros de esperança na continuidade do movimento decolonial,
se os processos coloniais tivessem obtido plena vitória, não estaríamos escre-
vendo esse texto, por exemplo. E por que escrevemos? Escrevemos porque
diante da estrutura colonial sempre tivemos inúmeros processos de resistên-
cias em diversos momentos da história.
Essa dinâmica de resistir o autor denomina de contra-colonial, ou
seja, são processos que estão no oposto, que estão no outro lado com a pers-
pectiva de resistir para (re)existir.

Parto de uma provocação ou, melhor, travessura em tom


de abuso: o colonialismo não venceu nas bandas de cá!
Talvez isso não seja exatamente uma afirmação. A minha
intenção é de que a palavra que sai de minha boca encarne
o texto, dê a ele vida, mobilidade. Invoco uma lógica, um
saber ancestral para que o que possa parecer uma afirma-
ção opere como um enigma.( RUFINO, 2019, p. 36)

Nesse sentido, o não vencer colonial é parte das estratégias elaboradas


nas bases de resistência, estratégias essas que são diversas, porém, não dis-
persas. Essas mesmas continuam atravessando a colonialidade e provocando
rachaduras nessa estrutura. Se para Rufino (2019) uma das estratégicas pro-
vocativas e de resistência foi pensar uma pedagogia a partir da cosmologia
Iorubá, com a entidade Exu. Aqui partimos de outro ponto de saída, visando
o mesmo de chegada.
Uma das estratégias que identificamos na continuidade da luta con-
tra-colonial é a inserção da vida e obra de Carolina Maria de Jesus como parte
do projeto decolonial. Ao propormos o estudo sobre a escritora nos espaços
escolares, orientando novas práticas pedagógicas a partir de sua história de

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 81


vida, de imediato, se inicia a continuidade da perspectiva de fissuras na co-
lonialidade. Pretendemos não apenas que os escritos da autora adentrem os
espaços escolares. Mas, também seu corpo negro e feminino para potencializar
reflexões para construirmos novas formas de ser, conhecer e promover apren-
dizagens com as crianças e os adolescentes negros(as) das escolas públicas.
Ao pensar essa dialogicidade entre a produção literária e o corpo, apa-
rece uma categoria importante nas discussões decoloniais, a ancestralidade,
visto que, “a ancestralidade é a vida enquanto possibilidade, de modo que ser
vivo é estar em condição de encante, de pujança, de reivindicação da presença
como algo credível”. (RUFINO, 2019, p. 15)
Ancestralidade aqui é compreendida como uma práxis emancipatória,
ao recorrermos às explosões (FANON, 2008) que a intelectual perpassou, te-
remos milhares de fragmentos que nos dão base na luta contra a colonialidade.
Invocar Carolina Maria de Jesus é evidenciar como a escrevivência é mais um
aparato à decolonialidade. “Por essa razão, a escrita para muitos intelectuais
negros e de cor é um evento fundamental. A escrita é forma de reconstruir
a si mesmo e um modo de combater os efeitos da separação ontológica e da
catástrofe da metafísica”. (RUFINO, 2019, p. 15)
Carolina Maria de Jesus é uma dessas figuras ancestrais, a autora deve
ser compreendida como a senhora da sabedoria e intelectualidade, que com
sua escrita tem muito a nos contar e ensinar.
A escrita para a autora foi o processo mais importante em toda sua
vida, foi por meio dela que a intelectual sistematizou seus pensamentos e aná-
lises a partir dos acontecimentos que atravessaram sua vida e de quem estava
ao entorno.

CAROLINA MARIA DE JESUS E SUAS CONTRIBUIÇÕES


DECOLONIAIS NOS ESPAÇOS ESCOLARES

Gomes (2020) aponta que a vida e obra de pessoas negras nos espa-
ços escolares é um movimento importante no processo decolonial. A inserção
desses sujeitos como produtores(as) de conhecimentos é potência para práti-
cas pedagógicas e possibilidades de reflexões que fazem a partir de “[...] um
percurso de ruptura epistemológica e política no sentido de descolonizar os

82 Saberes decoloniais
currículos e o próprio campo do conhecimento” (GOMES, 2020, p. 224).
Essa perspectiva de inserção das produções de Carolina Maria de Jesus
para contribuir com reflexões acerca do racismo nos espaços escolares dialoga
com a dimensão acima e promove uma possibilidade de ruptura de conhe-
cimentos impostos como universais e irrefutáveis, visto que, é a presença de
uma autora negra com sua história contribuindo com o desenvolvimento de
um novo olhar sobre a possibilidade de produção de conhecimento.
Consideremos que o próprio corpo da escritora já faz parte da decolo-
nialidade, pois, estamos falando de uma mulher intelectual que escrevia com
os papéis que encontrava em seu ofício.
Partindo da lógica da razão eurocêntrica, Carolina Maria de Jesus
não teria todas as características fundantes para estar nesses espaços como
produtora de conhecimento. Seu labor e a necessidade de angariar dinheiro
para a manutenção de sua família, já a afastaria dos espaços escolares que não
reconhecem as itinerâncias sociais e as alternativas encontradas para a busca
de uma renda. Itinerâncias e necessidades materiais que por vezes causam a
infrequência na escola entre crianças e jovens negros(as) que como Carolina
Maria de Jesus, trabalham por necessidade extrema de ajuda e/ou sustento dos
seus lares junto às suas famílias.
O que não acontece na lógica decolonial, nessa linha de pensamento
a intelectual emerge como possibilidade de atravessamento nos espaços es-
colares a partir da categoria sujeito e produtora de ciência, o que referencia
qualquer prática a partir da sua vida e obra.
O que a vida de Carolina Maria de Jesus ensina aos(as) educadores(as)
nos espaços escolares? Que os processos pedagógicos devem estar atrelados à
função emancipatória que a escola deve propor a partir de outros sujeitos que
fundam outras pedagogias (ARROYO, 2014).
Em tela, estamos falando de um projeto educacional que deve evi-
denciar como as mazelas construídas e perpetuadas socialmente devem ser
combatidas de maneira incisiva a partir de outras produções que nascem no
âmbito espacial onde essas mazelas se localizam.
Numa inserção epistemológica a produção escrita de Carolina Maria
de Jesus apresenta uma base de como, a mesma, deve ser referência nessa ques-
tão no que tange às discussões de raça. A categoria raça aparece em diferentes

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 83


momentos no processo de escrita da intelectual e oferece conhecimentos e in-
formações que podem promover um processo de pensar os espaços educacio-
nais como locais de possibilidade de emancipação a partir da sua vida e obra.
A introdução da vida e obra de Carolina Maria de Jesus na educação
deve estar alinhada com a noção de tensionamento e ruptura do que está
posto entre o que a escola ensina e do que os(as) educadores(as) pensam sobre
as realidades de vida de crianças e jovens negros(as), moradores de periferias
urbanas e socialmente vulneráveis.
A escritora escreve a partir da verdade e da realidade que abarcou seu
corpo no processo criativo. “Eu disse: Meu sonho é escrever! Responde o bran-
co: ela é louca. O que as negras devem fazer… é ir pro tanque lavar roupa” (JE-
SUS, 2018, p. 7). Vejamos, aqui, Carolina Maria de Jesus nos leva para uma re-
flexão de como historicamente as mulheres negras são empurradas para posições
subalternas. A condição da mulher negra escritora desloca os valores brancos e
legitimadores, numa lógica ocidental e colonial a intelectual deve continuar um
processo milenar em que as mulheres negras não têm direito à escrita.
Kilomba (2019) nos chama atenção de como as máscaras do colo-
nialismo são impostas aos nossos corpos, Carolina Maria de Jesus completa,
“quando o preto grita igualdade eles pôe mordaça” (JESUS, 2021b, p. 224),
no caso desta citação, a máscara imposta à Carolina Maria de Jesus se deu atra-
vés da sua intelectualidade e do seu corpo por meio das suas mãos, visto que,
foi um espanto para o branco ter uma mulher negra como escritora. E por que
do espanto? Por que esses sujeitos não podem escrever? É porque quando essas
pessoas escrevem não falam apenas de si, mas de todo um coletivo, que é abar-
cado por suas experiências e o lugar que são postos e se ressurgem como um
projeto de resistência. Pois, “grupos subalternos - colonizados - não têm sido
nem vítimas passivas nem tampouco cúmplices voluntárias/os da dominação”
(KILOMBA, 2019, p. 49). Eles(as) estão a todo tempo tentando resistir aos
danos e impactos a sua identidade, construída por um currículo escolar que
nega as diferenças e se compromete com uma educação colonialista.
Nesse sentido, Carolina Maria de Jesus nos espaços escolares é parte
dessa não passividade e se apresenta como uma resistência, ela é a responsável
pela denúncia de como as relações raciais operam e quais impactos provocam
nos corpos negros.

84 Saberes decoloniais
Os meus filhos andam tristes com receio de sair na rua,
porque são apedrejados por desconhecidos. Quem pre-
domina no Brasil é o branco. E ele quer tudo de bom
só para ele. [...] O branco nos persegue. Achando que o
negro não deve ter posição elevada. Deve ser desajustado
favelado e ladrões (JESUS, 2021b, p. 144).

Um espaço escolar que não tensione essas situações relatadas, não va-
loriza os corpos negros que dele faz parte e, consequentemente, não cumpre
a função social da escola de emancipação dos sujeitos, evidenciando quais
processos estão infundidos em nossa sociedade, nesse caso, a raça.

O branco é que diz que é superior. Mas que superiorida-


de apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco
também bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge
o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A
natureza não seleciona ninguém (JESUS, 1960, p. 58).

Nesse trecho anterior e em outros do livro, Quarto de Despejo: Diário


de uma favelada, a escritora está discutindo como a sociedade é organizada
para que umas pessoas se sintam superiores às outras a partir da raça. Caroli-
na Maria de Jesus evidencia que o racismo é produzido e alimentado porque
interessa ao sistema social da forma como ele está organizado e isso não acon-
tece de maneira ingênua e natural, é cotidianamente reproduzido, ainda mais
porque “o Brasil é predominado pelos brancos” (JESUS, 1960, p. 106).
É fundante compreender que “o racismo é uma realidade violenta”
(KILOMBA, 2019, p. 71).
Essa realidade violenta é apontada pela escritora em diversas passa-
gens dos seus diversos manuscritos, “Sentei ao sol para escrever. A filha da
Sílvia, uma menina de seis anos, passava e dizia: está escrevendo, negra fidida!
A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que instigam” (JESUS, 1960, p.
20). Uma face perversa de ações que Carolina Maria de Jesus relata são poten-
cializadas pelas pessoas que educam as crianças, como na passagem adiante:
“uma menina que prestava atenção nas minhas palavras perguntou: -- Mamãe
esta negra é doída, será que ela fugiu do hospício. É que o hospício é perto da
favela” (JESUS, 2021a, p. 158).
A denúncia de Carolina Maria de Jesus nos coloca dilemas importan-
Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 85
tes que se reproduzem nas relações perpetuadas na escola, que ao promover
um espaço de omissão às discussões sobre as relações raciais e sociais da forma
como elas se evidenciam nesta sociedade ratifica um outro relato da autora
que clama e exclama sobre os caminhos da civilização como uma temática que
ainda é cara, ao país “Será que existe um país civilizado? Quem é civilizado
não prejudica o próximo”. (JESUS, 2021, p. 146)
Os escritos da autora como uma possibilidade de denúncia e amplia-
ção do debate das relações raciais na escola, entendemos que ela apresenta
uma resistência que não é sua apenas, do seu tempo, dos dilemas que viven-
ciava na década de 1960, mas anuncia situações vividas por um coletivo e que
nos dias atuais ainda persistem.
Essa noção de coletivo nos espaços alimenta o que Gomes (2020)
apresenta como fundante, em que os movimentos sociais historicamente pro-
duzem ao longo das suas trajetórias. O coletivo pela identidade nos apresenta
outros elementos que não aparecem na ideia do individual, é nesse entrelaçar
coletivo que encontramos a decolonialidade como ferramenta de liberdade
abarcando diversas categorias.
Os escritos de Carolina Maria de Jesus, com essa aplicabilidade, são
desnude das relações raciais e denuncia como elas estão presentes em nosso co-
tidiano, pois essa discussão não será inserida de fora para dentro, mas a partir
de quem passou por inúmeros casos de violência racial.
Conhecendo na escola as vivências de Carolina Maria de Jesus, edu-
cadores(as) e educandos(as) poderão pensar sobre as evidências que demons-
tram como as violências raciais são produtos estabelecidos e propagados pelas
relações estabelecidas socialmente e reproduzidos historicamente na sociedade
brasileira, através do silenciamento, mas que a autora expõe como essa lógica
opera. “Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho
nada com estas desorganizações” (JESUS, 1960, p. 63).
Ao dizer que não tem nada com as “desorganizações”, criadas por
brancos(as), a autora trata o termo como palavras, gestos, atos, atitudes per-
versas aludidas a ela por sua condição de mulher negra e pobre que vive do
ofício de catadora, mas que desse lugar se reconhece como uma escritora. A
partir dessa fala “desorganizações” das quais ela não tem nada o que ver, Ca-
rolina Maria de Jesus denuncia que como mulher negra sabe que não foram

86 Saberes decoloniais
os negros que criaram o racismo, e, ao contrário disso segue resistindo para
existir e escrever mesmo diante de toda violência que seu corpo negro sofre
por meio das relações sociais.
A sua consciência acerca da divisão entre coisas que são para bran-
cos(as) e coisas que são para negros(as), impostas por essas relações raciais
que vai viveu, não esconde a compreensão sobre o enrijecimento das relações
entre aquelas pessoas que a destratam. Ela mesma empreende sua resistência,
reconhecendo o racismo e ajudando seu coletivo corpóreo quando diz: “ela é
preta. E eu também. Se puder auxiliar a raça negra auxílio com todo prazer”
(JESUS, 2021, p. 166). Ou quando aponta: “Na questão do negro com o
branco, ninguém procura saber com quem é que está a razão. E o negro é
quem acaba sendo bode expiatório.” (JESUS, 2014, p. 65).
Por que acreditamos que os escritos de Carolina Maria de Jesus, por
meio das evidências da violência de práticas racistas, podem se apresentar
como denúncia e promover uma reflexão dentro dos espaços escolares se cons-
tituindo numa prática decolonial? Primeiro, não podemos nos esquecer que
ainda hoje, infelizmente, o racismo se reproduz na escola, seja pela forma
como o currículo, as práticas pedagógicas ou mesmo as relações entre os sujei-
tos no seu interior estão postas, que permanecem silenciando e inviabilizando
conteúdos importantes para que possamos conhecer a real face de como o ra-
cismo foi estruturado e organizado no projeto de sociedade colonial no Brasil,
ou seja porque o racismo encontra também ressonância no desconhecimento
de educadores(as) sobre a realidade vivida por educandos(as) que estão na
escola pública e advindos das periferias dos centros urbanos.
Segundo, porque os(as) educandos(as) que estão na escola pública e
advindos(as) das periferias dos centros urbanos são negros(as). A exemplo,
dados publicados pelo IBGE em 2020 que demonstram que há cada “Seis de
cada dez estudantes matriculados na rede pública de ensino médio são pretos
ou pardos”.8
Terceiro, porque a escola é tradicionalmente, conforme declara Ara-
nha (2006), uma instituição da sociedade moderna que promete ser portal
8 Dados do IBGE publicados em 12 de novembro de 2020 descrevem que pretos ou pardos repre-
sentavam 62,1% da população entre 15 e 17 anos em 2019. Entre os estudantes da rede pública
de ensino médio, essa proporção é 63,9%. Já na rede particular, eram 35,7%. IBGE, Agência de
Notícias. 2020.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 87


de transmissão de cultura e reconhecida por legitimar saberes científicos e de
cultura erudita que formarão o (a) cidadão (a), e por seus objetivos e finalida-
des passam a ter papel político por meio de conhecimentos veiculados, assim,
“[...] alguns teóricos destacaram o caráter ideológico da escola, como lugar de
inculcação de ideias da classe dominante, o que realça o seu caráter reprodutor
do sistema”. (ARANHA, 2006, p. 245)
E por fim, nos espaços escolares os sujeitos se educam e constituem
ou deveriam constituir sua autonomia e criticidade mediante as aprendizagens
que constroem e pensam sobre suas atitudes e ações em relação ao mundo. A
escola, de acordo com Aranha (2006), pode perpetuar por meio dos conheci-
mentos e práticas promovidas, ideias que podem não representar a realidade
da maioria dos(as) estudantes que ali estão.
A escola tem papel fundamental na construção da identidade de crian-
ças e jovens negros(as) e ao desempenhar uma função de “[...] não só instruir so-
cializando, como pode ser emancipadora, ao abrir espaços para a desmistificação
da ideologia.” (ARANHA, 2006, p. 245). O que poderá contribuir de maneira
evidente ao desenvolvimento de práticas antirracista em seu interior.
Ao tornar conhecidos os escritos de Carolina Maria de Jesus em espa-
ços escolares os(as) educadores(as) poderão ter a oportunidade de estar frente
a frente com a realidade dos(as) educandos(as) que por vezes desconhecem
suas histórias e lugares e a partir daí não apenas desejar conhecer os(as) es-
tudantes, mas promoverem debates transformadores sobre como o racismo
produz violência e que essa produção racista nas relações sociais é direcionada
aos sujeitos negros em diversos momentos da vida. Sujeitos esses que estão ali,
com eles, na escola pública.
Carolina Maria de Jesus adentra às nossas vidas, como uma mulher negra,
mãe, solteira, trabalhadora, intelectual, escritora, compositora, estilista e nos ofe-
rece uma ruptura com o existente nos apresentando um processo de compreensão
da sociedade brasileira a partir de outra lógica numa perspectiva decolonial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Carolina Maria de Jesus foi uma mulher à frente do seu tempo que
de forma corajosa, criativa e espirituosa contou ao Brasil por meio da escrita

88 Saberes decoloniais
o que significa ser mulher negra, periférica e com poucas chances de emanci-
pação diante dos elementos que uma sociedade moderna descreve que um (a)
cidadão (ã) deveria possuir para ter acesso a níveis elevados de escolarização e
titulação acadêmica.
Mesmo que não tenha obtido em vida o título formal de Doutora,
deve ser reconhecida como uma das mais importantes escritoras de todos os
tempos que o Brasil já teve a oportunidade de ter, a escrita da mesma é in-
terdisciplinar porque se aportou em diversos campos epistemológicos para
descrever um Brasil forjado a partir do racismo.
A intelectualidade Carolinista é mais uma esperança contra-colonial
na esteira de tantos outros processos de resistência. Conhecer Carolina Maria
de Jesus é fôlego e felicidade na crença que podemos esperançar como nos diz
Freire (1997)

A esperança de produzir o objeto é tão fundamental ao


operário quão indispensável é a esperança de refazer o
mundo na luta dos oprimidos e das oprimidas. Enquan-
to prática desveladora, gnosiológica, a educação sozinha,
porém, não faz a transformação do mundo, mas esta a
implica. (FREIRE, 1997, p. 14)

Uma esperança que pode não transformar o mundo como assim o de-
sejamos, mas pode comprometer a participação de educadores(as) e educan-
dos(as) numa postura desveladora e desmistificadora dos sistemas perversos de
violência nas relações sociais.
Carolina Maria de Jesus, com sua trajetória de luta e resistência abriu
caminhos para que hoje possamos referenciá-la como uma mulher negra que
rompe o estigma imposto aos nossos corpos.
A argumentação deste texto por meio das obras de Carolina Maria de
Jesus, destacando a denúncia que seus textos nos oferecem, é engrenagem ini-
cial de estudos que pretendem anunciar uma emergência no século XXI, pro-
mover reflexões entre educadores(as) e educandos(as) no interior das escolas
para o combate as práticas racistas que violentam o corpo negro dos sujeitos
presentes na escola e destroem a autoestima e os sonhos que por ventura as
crianças e jovens negros(as) possam ter.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 89


A escola conhecida pela sociedade moderna como local de trocas e
aprendizagens entre os seres humanos não pode mais tolerar conviver com
falas, práticas e atitudes que violentam a história do nosso corpo, da nossa
imagem, mantendo-se presa a uma visão eurocêntrica do mundo e reproduto-
ra de valores que não expressam a vida dos sujeitos reais que ali estão.
Carolina Maria de Jesus é nossa grande aliada por meio da sua vida e
obra nesse projeto decolonial em andamento, é urgente que os espaços escola-
res sejam abarcados pela produção intelectual da autora. Carolina nas escolas!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ESPECIALIZA%C3%87%C3%83O/Form a%C3%A7%-
C3%A3o_de_Professores_%C3%8Anfas e_Ensino_Superior/Pro-
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92 Saberes decoloniais
MATERIAIS ORAIS E DECOLONIALIDADE:
REFLEXÕES NECESSÁRIAS
Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal1

O impulso pela temática remonta minha vida acadêmica, da gradua-


ção até os pós-doutorados em Crítica Cultural (UNEB, 2014-2019) e UFSC
(2021, em andamento), este último supervisionado pela Dra. Simone Pereira
Schmidt. A oralidade esteve presente em minha trajetória desde o segundo
ano do curso de letras e foi se configurando de diferentes modos, conforme os
anos de estudo iam passando.
Esse texto será permeado por dois momentos: 1) Debater as oralida-
des tomando como ponto de análise o conceito de materiais orais de Vázquez
e Hernández (2020) e Paul Zumthor (2007); 2) Sistematizar conceitos de
decolonialidade, tomando como base teóricos como Walter Mignolo (2017),
Aníbal Quijano (2002) e Catherine Walsh (2019) sempre pensando em rela-
ção aos materiais orais.

1 Laboratório Nacional de Materiales Orales (LANMO – UNAM).mauren.pavao@lanmo.unam.mx


DEBATENDO AS ORALIDADES: PARA COMEÇAR: POÉTICAS ORAIS OU
LITERATURA ORAL?

Começar essa reflexão com tal diferença, embora não pareça, tem sua
importância. Ingressei, no ano de 2002 no projeto de pesquisa Transmissão,
transgressão e identidade cultural: estudo comparativo dos lendários do Québec
e do RS, coordenado pela Dra. Sylvie Dion (FURG). Na altura, estando eu no
segundo ano do curso de Letras – Português/Francês e respectivas literaturas,
meu conhecimento sobre narrativas era bastante incipiente o que não me per-
mitia, também, ter um olhar crítico para o estudo que começava a realizar.
Tendo tomado como objeto de análise A Salamanca do Jarau, narrativa
pertencente à tradição oral gaúcha e La Jongleuse, advinda do Québec a ideia
primeira foi entendê-las como participes de uma literatura oral, aquela cujo

[..] termo foi criado por Paul Sebillot (1846-1918), no


seu Littérature Orale de la Haute Bretagne (1881) e re-
úne miscelânea de narrativas e de manifestações cultu-
rais de fundo literário, transmitidas oralmente, i. é, por
processos não-gráficos. Essa miscelânea é constituída de
contos, lendas, mitos, adivinhações, provérbios, parlen-
das, cantos, orações, frases-feitas tornadas populares,
estórias … (Câmara Cascudo). (E-DICIONARIO DE
TERMOS LITERÁRIOS)2

No entanto, e com o decorrer da vida acadêmica, pude perceber que


há, em tal definição, alguns problemas, sendo o primeiro deles a questão de
querer atrelar essas narrativas a manifestações culturais de fundo literário. Se
as narrativas contadas no dia-a-dia, em volta da fogueira, na beira dos rios
dizem muito mais sobre as sociabilidades do que possuem um caráter literário
quer dizer, então, que não cabem no que se entende por manifestações orais?
Há, certamente, nessa definição, muito de um cânone ocidental (aos
moldes de Bloom) que quer excluir tudo o que não faça parte de modelos
pré-estabelecidos. Destarte, o conceito nos remete a algo que será mais bem
explicitado no segundo momento da reflexão: a colonialidade do saber e do
ser, de que trata Aníbal Quijano. (2009).
2 https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/literatura-oral Acesso em 22 jun.2022

94 Saberes decoloniais
Então, se para um rol de pesquisadores pertencentes ao GT de Lite-
ratura Oral e Popular3 não bastava mais pensar em algo que desse conta ape-
nas de uma ideia canônica na medida em que suas pesquisas versavam sobre
comunidades ribeirinhas, originárias, arte, poesia, pintura, a arte de contar
histórias, como se poderia pensar e nomear a teoria-chave, central para tais
estudos? Passa-se, então, e inspirados na poesia oral de Zumthor, a consolidar
o campo das poéticas orais.
Sobre isso, Fernandes destaca que:

A escolha do termo poética oral ao invés de literatura


oral decorre do paradoxo que a palavra literatura carre-
ga ao se unir à oralidade. Pois literatura tem sua origem
no termo Littera que nos conduz à letra, nos deparando
assim com uma contradição ao unir letra e voz (oral). O
termo poética oral acaba por totalizar uma produção de
caráter sonoro, que é conduzida pela voz, direcionada a
um público (ou um outro) e caracterizada pelo coleti-
vo que representa uma determinada sociedade em que é
produzida (FERNANDES, 2011, p.38)

Sistematizar narrativas que unem letra e voz, que pensam em diferen-


tes tipos de público receptor e que estarão muito mais próximas dos sujeitos
contadores, valorizando seus espaços de enunciação é muito mais coerente e
urgente do que apenas pensar na letra.
Desse modo, meu caminho enquanto pesquisadora, e sobretudo a
partir de meu doutorado em que investigo um sujeito periférico e encontro
nele o conceito de narrador oral urbano-digital, passa muito mais por uma
reflexão acerca das poéticas orais – que ampliam categorias estanques e olham
para além do que está apenas no papel, preocupando-se com a autoria, com
quem conta as histórias – do que com narrativas lendárias que muitas vezes
tem legitimidade apenas por estarem em um livro publicado por um autor e/
ou folclorista, historiador conhecido.
3 O Grupo de Trabalho Literatura Oral e Popular foi criado em dezembro de 1985, durante
o primeiro encontro nacional da ANPOLL, em Curitiba, por sugestão da professora Idelette
Muzart Fonseca dos Santos. Assim, o GT de Literatura Oral e Popular está entre aqueles criados
e postos em funcionamento antes mesmo de serem elaboradas as normas de criação e funciona-
mento dos grupos de trabalho. Disponivel em: https://anpoll.org.br/gt/literatura-oral-e-popular/
Acesso em 28.jun 2022.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 95


Entender as poéticas orais, a importância da performance que, apesar
de tentarmos congelar a partir de registros videográficos, é irrepetível e acaba
no momento em que é proferida, da voz, não somente nela mesma, mas (ainda
mais) em sua qualidade de emanação do corpo e que, sonoramente, o representa
de forma plena que tão bem nos ensinou Zumthor (2007, p.27) já poderia ser
suficiente para resolver esse embate poéticas orais versus literatura oral.
Paralelo ao GT de Literatura Oral e Popular e seus investigadores que,
em finais dos anos 80 iniciam seus movimentos em prol do reconhecimento
de tais pesquisas até então à margem da academia e a partir dele, como coor-
denadora geral do IV Seminário Brasileiro de Poéticas Orais tenho contato, em
2017, com pesquisadores mexicanos que também vem pensando as oralida-
des. Assim, e com um intervalo de aproximadamente 17 anos para o grupo
brasileiro, surge o trabalho da Dra. Berenice Araceli Granados Vázquez e do
Dr. Santiago Cortés Hernández no sentido de compreender e sistematizar,
tanto de forma teórica como prática, os chamados materiais orais.

MAS, AFINAL, O QUE SÃO OS MATERIAIS ORAIS?

O conceito de materiais orais, segundo Hernández e Vázquez parte


de alguns pressupostos. O primeiro deles está centrado no conceito de artes
verbais. Os pesquisadores afirmam que:

El concepto de artes verbales fue introducido en los es-


tudios sobre folclor por el antropólogo William Bascom.
En un artículo publicado en los años cincuenta en The
Journal of American Folklore, Bascom (1955) utiliza el
concepto de artes verbales para referirse a formas espe-
cíficas del folclore tales como cuentos, leyendas, mitos,
proverbios, adivinanzas y las diferencia de otras manifes-
taciones culturales como costumbres, creencias y rituales,
ambas abordadas en este campo de estudio. El término
resultaba útil porque salvaba algunos obstáculos que pre-
sentaban otros términos que se usaban para referirse a
los mismos materiales tales como literatura no escrita,
literatura popular, literatura folk, literatura primitiva y
literatura oral. Además, según Bascom, el término “artes
verbales” enfatiza el carácter excepcional de estos mate-

96 Saberes decoloniais
riales y su función poética, diferenciándolos del habla
cotidiana y de sus funciones básicas referenciales. (Her-
nández e Vázquez, 2020, p.33-4)

No entanto, a fim de aprofundar suas reflexões, os teóricos trazem, tam-


bém, a perspectiva desta arte verbal como performance, a partir dos estudos de
Richard Bauman em obra homônima na qual “plantea que la performance y en
sí las artes verbales son un modo de hablar que crea marcos de interpretación en los
que los mensajes son entendidos y decodificados por los miembros de una comunidad,
quienes poseen los referentes culturales para hacerlo.” (Hernández e Vázquez, 2020,
p.35). É um outro modo de ver a performance, diferente daquele de Zumthor
que parte de uma perspectiva mais teórica que etnográfica.
Destacam, ainda, o fato de as artes verbais enquanto conhecimento
transmitido pela oralidade deverem ser estudadas a partir de sua performance,
de sua execução e transmissão em atos comunicativos.
Destarte, a partir de tais teorias e com o intuito de alargar os estudos
sobre oralidade, os teóricos propõem o conceito de materiais orais que viria a
servir de base para as investigações até hoje realizadas. Para eles:

Los materiales orales pueden definirse como todas aquellas


producciones de discurso que se generan en actos comu-
nicativos en los que están presentes el emisor y el receptor
en un mismo tiempo-espacio y que tienen como soporte
la voz, el cuerpo y la memoria. El significado de estos ma-
teriales de naturaleza efímera depende no solo de las emi-
siones lingüísticas, sino también de la interacción entre lo
verbal, lo no verbal y los factores contextuales. Considera-
mos que se trata de un término flexible que nos permite
abordar un objeto de estudio concreto desde la multidisci-
plina. Partimos de la idea, ya probada, de que una buena
documentación en campo y un procesamiento riguroso de
los materiales orales son la base para generar análisis desde
distintas perspectivas, que tienen después salida como pro-
ductos en formatos diversos, según el público al que estén
destinados. (Hernández e Vázquez, 2020, p.36)

O primeiro ponto importante de tal definição dá conta de pensar


as produções do discurso que resultam em atos comunicativos. Falar de um

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 97


mesmo espaço-tempo e da voz, corpo e memória como suporte, ao mesmo
tempo que diferencia as narrativas daquelas registradas pelo cânone, valoriza e
legitima outras histórias, que apesar de não terem sido “aprovadas” pelos que
se consideram aptos a julgar, não deixam de possuir elementos que as colocam
em um patamar literário e valorizado.
Isso nos leva a outro destaque do conceito que reside na natureza
efêmera dos materiais cujo significado depende não só de “emissões linguís-
ticas, mas também da interação entre o verbal, o não verbal e fatores con-
textuais” (Grifo meu). Aqui, a valorização da narrativa volta quando se olha
para o fato de ela estar situada em um determinado contexto. Posso arriscar
afirmar que faz parte das manifestações orais e das pesquisas vinculadas a elas
se pensar nesse contexto que, juntamente com a interação entre o verbal e não
verbal, estará presente nas emissões linguísticas que darão forma às narrativas.
Por fim, no tocante aos materiais orais cabe destacar brevemente que o
registro de tais documentos, baseado em um dos projetos do LANMO, desde
sua fundação com este nome, ocorrida em 2015 - o de estabelecer os mecanis-
mos adequados para o armazenamento classificação e preservação dos arqui-
vos que se geram com a documentação de materiais em trabalho de campo - é
feito a partir de uma série de protocolos4 disponíveis no site do laboratório e
armazenados no Repositorio Nacional de Materiales Orales. 5 É obrigatório
aos membros do grupo que tais normas sejam rigorosamente seguidas. Ética e
respeito são valores básicos para a realização do trabalho de campo e, sem eles,
nenhum tipo de documentação ocorre.

4 Para a realização do trabalho de campo os membros do LANMO devem seguir os protocolos:


Protocolo de trabajo de campo para sondeo de materiales orales, Protocolo para el procesamiento de
materiales orales, Protocolo de edición de los Corpus del Laboratorio e o el Codigo de Ética. Todas
eles estão disponíveis em http://www.lanmo.unam.mx
5 El Repositorio Nacional de Materiales Orales (…) consiste en una base de datos electrónica y una
serie de interfases de caputra y consulta de información en línea. El sistema de registro de informa-
ción que hemos construido está basado, por un lado, en las necesidades de almacenamiento de este
tipo de materiales y, por otro, en una revisión bastante detallada de los archivos de lengua oral que
existen hasta ahora y de las normas nacionales e internacionales para la catalogación y preservación
de materiales sonoros y videográficos. Además, todas las características de este repositorio han sido
ampliamente discutidas y acordadas en diferentes etapas de su desarrollo con los investigadores
participantes del Laboratorio (Hernández e Vázquez, 2020, p.39).

98 Saberes decoloniais
OS MATERIAIS ORAIS: UM CONCEITO DECOLONIAL?

Como mencionado anteriormente, o fio condutor deste texto é a re-


flexão acerca dos materiais orais. O modo como os membros do laboratório
trata as diversas manifestações narrativas que estão categorizadas dentro deste
conceito já pode, por si só, ser visto como um posicionamento decolonial.
No “Protocolo de trabajo de campo para sondeo de materiales orales”
está descrito que o Laboratorio Nacional de Materiales Orales busca gerar,
no trabalho de campo, dialogos con la comunidad6, a partir de uma série
de princípios fundamentais observados durante a documentação e que tem
o intuito de estabelecer relações humanas mais equitativas. De acordo com
Vázquez e Hernández esses princípios são:

1. Generar relaciones interpersonales con los miembros


de la comunidad en un marco de respeto, sinceridad y
ética profesional.

Esse deve, aliás, ser um princípio a ser seguido por toda e qualquer
pessoa que deseje ter sujeitos de pesquisa e não objetos. É importante se deixar
claro o objetivo com tal pesquisa para que desde o início seja fácil perceber se
há ou não interesse do outro em estar em diálogo com a academia.

2. Dejar claro que se pretende establecer relaciones de


persona a persona, intentando dejar de lado cualquier
investidura académica.

O segundo princípio correlaciona-se com o primeiro na medida em


que dá conta de pensar em uma relação dialógica e igualitária. Muito embora
o trabalho seja deveras sério não cabe, em campo, vestir-se com diplomas, prê-
mios ou posicionamentos acadêmicos. O que se tem, portanto, é um diálogo
entre iguais que, muito embora possam divergir em ideias, ainda assim elas
não recaem numa esfera de inferioridade ou superioridade intelectual.
O terceiro pode, a meu ver, dar conta desta decolonialidade implícita
em tais princípios bem como no fazer:

6 Grifo da autora.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 99


3. Ser consciente de que el hacer trabajo de campo abre
canales de comunicación para conocer la forma de pen-
sar y concebir el mundo de las personas que viven en el
sitio donde se hace trabajo de campo. Ese canal de co-
municación se sustenta en la escucha activa y la atención.

Essa consciência depende de um despir-se de atitudes coloniais, que-


brando paradigmas e pensando no mundo como um espaço heterogêneo, tan-
to cultural quanto linguisticamente.
Walter Mignolo (2017) vai entender a colonialidade em sua relação
com a modernidade, não existindo uma sem a outra.

A tese básica – no universo específico do discurso tal


como foi especificado – é a seguinte: a “modernidade” é
uma narrativa complexa, cujo ponto de origem foi a Eu-
ropa, uma narrativa que constrói a civilização ocidental
ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mes-
mo tempo, o seu lado mais escuro, a “colonialidade”. A
colonialidade, em outras palavras, é constitutiva da mo-
dernidade – não há modernidade sem colonialidade. Por
isso, a expressão comum e contemporânea de “moderni-
dades globais” implica “colonialidades globais” no senti-
do exato de que a MCP é compartilhada e disputada por
muitos contendedores: se não pode haver modernidade
sem colonialidade, não pode também haver moderni-
dades globais sem colonialidades globais. Consequente-
mente, o pensamento e a ação descoloniais surgiram e se
desdobraram, do século XVI em diante, como respostas
às inclinações opressivas e imperiais dos ideais europeus
modernos projetados para o mundo não europeu, onde
são acionados (MIGNOLO, 2017, p.2)7

As conquistas e colonizações estiveram também presentes no México


e são refletidas em sua cultura até hoje. Assim, a influência da Europa se faz
presente em alguns estados mexicanos mais que em outros e pode-se pensar e
ver o LANMO com um espaço que quer romper com atitudes e pensamentos
ocidentais/eurocêntricos/europeus, valorizando as culturas e manifestações lo-

7 Disponível em https://edisciplinas.usp.br/plu gin file.php/5 540723/mod_ resource/con-


tent/1/M IGNOLO%2C%2 0Walter.%20COLO NIALIDADE%2C%20 O%20lado%20m
ais%20e scuro%20da%2 0mo dernidade.pdf Acesso em 22.06.2022

100 Saberes decoloniais


cais. A própria Escuela Nacional de Estudios Superiores (ENES), onde o labora-
tório está sediado já responde às opressões e imperialismos dos ideais europeus
modernos a partir de diversas ações. Uma delas, que ocorre no ano de 2012,
institui uma Licenciatura em Literatura Intercultural. Deste curso, além de
fazerem parte os coordenadores e outros membros do laboratório, surgem
trabalhos e investigações que corroboram para a legitimação de saberes inter-
culturais dentro e fora da academia.

En México y en el mundo existe la necesidad de entablar


diálogos entre las diferentes culturas para promover una
mejor convivencia a través de nuevos enfoques educati-
vos. De ahí la propuesta de un plan de estudios que com-
prenda la literatura oral y escrita como la mayor mani-
festación de la lengua para contribuir a una comprensión
integral de un fenómeno que caracteriza nuestra nación:
su ascendencia multi e intercultural. 8

Outro conceito importante que pode-se destacar a partir da Licencia-


tura em Literatura Intercultural e que também estará presente nas pesquisas
realizadas, por exemplo pela Me. Sue Meneses Eternod9, coordenadora do
curso e membro do LANMO é a questão da intercuturalidade, da represen-
tação de processos de conhecimento outros, de práticas políticas e poderes
estatais outros, de uma sociedade outra, uma forma de pensamento que tan-
to se relaciona quanto tensiona a modernidade/colonialidade, um paradigma
outro pensado a partir de uma práxis politica. (WALSH, 2019). As pesquisas
da professora dão conta do ensino e pesquisa da língua e cultura p’urhepecha,
originária do Mexico e que representa conhecimentos não pertencentes àquilo
que normalmente é estudado pelo senso comum.
8 https://www.enesmorelia.unam.mx/licenciaturas/literatura-intercultural/ Acesso em 26.06.2022
9 Profesora en la Licenciatura en Literatura Intercultural de la ENES-Morelia, en
donde coordina la planeación de la enseñanza de la lengua p’urhepecha como L2.
Algunas de sus publicaciones son “El género y número en el español de hablantes p’urhepecha”,
“Préstamos del purépecha en la Tierra Caliente del Balsas”, y el libro “Palabrando: un acercamiento
a la diversidad lingüística para niños” que contó con apoyo del Fondo Nacional para la Cultura
y las Artes. Actualmente elabora un diccionario de raíces verbales de la lengua p’urhepecha junto
con dos hablantes de la lengua. Sus líneas de investigación son la lexicografía del p’urhepecha y la
enseñanza de la lengua p’urhepecha como L1 y L2, aunque ahora también está incursionando en
el estudio de las artes verbales en esta lengua. Disponivel em https://lanmo.unam.mx/index.php
Acesso em 22.06.2022

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 101


Voltando aos princípios, o quarto pode, do mesmo modo, ser refleti-
do perpassando a colonialidade do poder, visto que retira o poder dominante
de uma classe hegemônica, passando a responsabilidade de definir o que pode
ou não ser tratado para aqueles a quem de fato cabe. Deve-se, então, para a
realização do trabalho de campo:

4. Hacer explícitas ante las autoridades correspondientes


y las personas involucradas las razones para realizar tra-
bajo de campo en la comunidad donde se lleve a cabo.

E essas autoridades são lideranças indígenas, xamãs, pescadores, ben-


zedeiras, o que demonstra que o poder não está centralizado em um grupo
e/ou liderança política localizada fora da comunidade. Há uma valorização
e respeito pelos saberes locais, abrindo-se para aquilo que Achille Mbembe
(2016) destaca como uma exposição a outros mundos e a outros modos de
vida, já que para o estudioso “a pessoa tem mais probabilidade de acolher a dife-
rença quando se expõe a outros mundos e a outros modos de vida”.10
Essa exposição a outros modos de vida, para Rogério Haesbaert (2021,
p.105) “é o que o sistema-mundo moderno colonial capitalista crescentemente nos
nega, impondo seu padrão contábil-acumulador a todas as esferas da vida”.
Uma forma de se colocar isso de modo mais claro é, de se quebrar
esse padrão contábil-acumulador tratado por Haesbaert pode ser percebido
no quinto princípio.

5. Al hacer documentación de materiales orales deberá


hacerse también el registro de datos etnográficos, socio-
lógicos y geográficos;

São esses dados que descreverão, com detalhes, de onde vem e o que
contam estes sujeitos sendo de fundamental importância na legitimação não
só dos narradores, mas também de suas narrativas.

[...] y finalmente, 6. Todo producto derivado de la do-


cumentación en campo deberá regresar a las personas de

10 Disponível em: https://www.geledes.org.br/por-q ue-julgamos-que-difere


nca-seja-um-problema/#:~:text=A %20diferen%C3%A7a%20cultural%20se%20torna,a%20de
fini%C3%A7%C 3%A3o%20colonial%20 de%20cultura. Acesso em 28 jun.2022

102 Saberes decoloniais


las comunidades que participaron en su realización. 11

O retorno do produto às comunidades é necessário para que sua


importância fique clara, que se mostre que elas são o centro da pesquisa e
não as coadjuvantes, deixando claro o papel do pesquisador como aquele
que vem para mediar saberes até então esquecidos e deixados à margem pela
academia. O registro de campo é, nesse sentido, um modus operandi de luta
contra as diferentes formas de colonialismo que ainda existem, demonstran-
do o caráter decolonial não só das pesquisas bem como dos princípios que
as regem.
Boaventura Santos destaca que, ao contrário do que se pensa o colo-
nialismo em si não acabou,

[...] o que terminou foi uma forma específica de colonia-


lismo — o colonialismo histórico com ocupação terri-
torial estrangeira. Mas o colonialismo continuou até aos
nossos dias sob muitas outras formas, entre elas, o neoco-
lonialismo, as guerras imperiais, o racismo, a xenofobia,
a islamofobia, etc. Todas estas formas têm em comum
implicarem a degradação humana de quem é vítima da
dominação colonial. (SANTOS, 2021, s/p) 12

Santos nos traz, ainda, nessa mesma reflexão um ponto de vista bas-
tante importante quando nos voltamos para o exercício de centralizar falas
e ações de sujeitos colocados em um espaço de pouco ou nenhum destaque
social: a diferença principal entre os três modos de dominação. Para ele, en-
quanto o capitalismo pressupõe a igualdade abstrata de todos os seres humanos, o
colonialismo e o patriarcado pressupõem que as vítimas deles são seres sem plena
dignidade humana, seres sub-humanos (ibidem).
Sem arrogância, mas também despidos de falta modéstia, pode-se di-
zer que o modo como os protocolos estipulam a catalogação dos materiais
orais faz parte de um projeto que intenta “reestabelecer” a dignidade de su-
jeitos que foram desde sempre invisibilizados pela academia. Por isso, é uma

11 Disponível em: https://lanmo.unam.mx/re positorio/LANMO/www/index /pdf/7.%20Pro-


toco lo%20de%20tra bajo%20de% 20campo%20para%20so ndeo%20de%20materiales%20
orales.pdf Acesso em 25 jun. 2022
12 https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/descolonizar-o-saber-e-o-poder/

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 103


ação que combate o patriarcado e as formas de opressão próprias ao rastro
colonialista presente em nossas sociedades.

DE ALGUNS PROJETOS, REGISTROS E SUAS DECOLONIALIDADES

A partir dos protocolos apresentados e refletidos acima, apre-


senta-se, agora, alguns dos projetos que podem demonstrar o quanto a de-
colonialidade, por mais que não seja diretamente citada, se faz presente nas
investigações realizadas pelo LANMO.

FIGURA 1 – PROJETO DRA EVA IZAGUIRRE

FONTE: https://lanmo.unam.mx/proyectos.php

O primeiro, intitulado Historia oral y etnografía del tianguis purépecha


coordenado pela Dra. Eva María Garrido Izaguirre (UIIM) tem por objetivo:

Registrar la historia oral de tianguis purépechas cuya vi-


talidad está referenciada en investigaciones de mediados
del siglo XX y que actualmente siguen vigentes como
zonas de refugio de formas tradicionales de mercadeo y
flujo regional de productos. Mapear los intercambios co-
merciales que se activan a partir del circuito de tianguis
que se celebran en la región.13

13 https://lanmo.unam.mx/proyectos.php

104 Saberes decoloniais


Caminhar lado-a-lado com os tianguis, numa equidade de saberes e
a partir da valorização comercial, é também uma forma de lutar para a ma-
nutenção das línguas e culturas ancestrais trazendo, em consonância com Ca-
therine Walsh “La decolonialidad y la interculturalidad” como “temas de raíz
académica”. A estudiosa ainda afirma que elas são:

[...] ejes, apuestas y horizontes de lucha, de luchas que,


en maneras múltiples, DECOLONIALIDAD, INTER-
CULTURALIDAD, VIDA DESDE EL ABYA YALA
ANDINO pretenden enfrentar los patrones del poder
moderno/ colonial y apuntar a la construcción de un
vivir distinto. Claro es que desde estas luchas podemos
teorizar. (WALSH, 2014, p. 48-9)

É o fato de se tecer padrões outros, mais amplos e igualitários, de se


inserir em lutas concretas que nos permite teorizar em torno da decoloniali-
dade. É a prática que nos leva a uma teoria e não ao contrário. No caso do
estudo com materiais orais são os sujeitos de cada pesquisa que nos permitem
sistematizar pensamentos, aplicar a teoria que por si só não faria sentido.

FIGURA 2 – PROJETO DRA. MARIANA MASERA

FONTE: https://lanmo.unam.mx/proyectos.php

Outro projeto que merece destaque é o Libro infantil de la oca a la


lotería. Impresos populares para niños, de responsabilidade da Dra Mariana Ma-
sera, da Me. Ana Rosa Gómez Mutio e da Dra Grecia Monroy Sánchez. Sobre

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 105


ele as integrantes descrevem como objetivo geral “Es un libro-objeto de car-
toncitos para niños. La divulgación de algunos materiales de la Imprenta de
Antonio Vanegas Arroyo (lotería, naipes, oca y charros)” e específico “Acercar
al público infantil a los textos de una imprenta popular de finales del siglo
XIX”.
Não é de todo uma ação decolonial, no entanto há uma quebra com
a colonialidade na medida em que o material, localizado em fins do século
XIX, é repensado para atingir um público que nem sempre é o alvo: o infantil.
Assim, permite, através da investigação, que o laboratório mostre sua preocu-
pação em abarcar os mais diversos atos comunicativos, sejam eles históricos,
sociais, políticos, artísticos e etc.
Essa investigação é uma das que permite situar o LANMO não so-
mente dentro de uma prática decolonial, mas também de transculturalidade,
já que todos esses princípios anteriormente analisados:

Propõe um trânsito pelo que é comum, ao mesmo tempo


em que estabelece um intercâmbio a partir das bordas,
e não se exige que nenhuma disciplina abandone sua
perspectiva, nem sua posição. Para instaurar um diálogo,
precisam-se de pontos de vista diferentes, porém, para
entrar verdadeiramente em diálogo, precisamos poder
sair de nosso ponto de vista e ser o suficientemente per-
meáveis como para escutar o outro e permitir se modifi-
car. (WEISSMANN, 2018, s.p)14

O que tal pesquisa faz, a partir de uma releitura, é sair da zona de


conforto, permitindo modificações que serão fundamentais para que se atinja
o público-alvo desejado.

14 Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1415-69542018000100004#:~:text=A%20multiculturalidade%20implica%20um%20con-
junto,v%C3%A1rias%20culturas%20no%20mesmo%20patamar. Acesso em 20 jun.2022

106 Saberes decoloniais


FIGURA 3: PROJETO DRA ARACELI CAMPOS MORENO

FONTE: https://lanmo.unam.mx/proyectos.php

O último projeto em que nos deteremos, coordenado pela Dra. Araceli


Campos Moreno, e intitulado “El apóstol Santiago em México: narrativa e ico-
nografia” tem como objetivo “Registrar fotográficamente la iconografía jacobea
mexicana y recopilar relatos (cuentos, leyendas, anécdotas) narrados por los fe-
ligreses del santo.” Dá conta de uma decolonialidade que pode estar presente
a partir do olhar dos pesquisadores para fatos que já são parte da tradição re-
ligiosa. A escuta das narrativas é, nesse sentido, importante para ressignificar o
modo como a história do santo é vista. As fotografias permitirão novos olhares
e diferentes registros que, por vezes, fogem do senso comum, mas que preten-
dem, ao fim e ao cabo, como nos descreve o último objetivo específico “ter um
panorama geral sobre a iconografia e a narrativa popular do culto a Santiago
apóstolo no México”.
A religiosidade, as crenças, assim como as línguas originarias, como
outros tipos de narrativa estão no cerne da fundação cultural mexicana e pre-
cisam/merecem ser relatadas e colocadas em lugar de destaque.

AS PUBLICAÇÕES DO LANMO

Outro ponto importante do laboratório que remete não só à sua

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 107


transculturalidade quanto ao caráter decolonial que vimos expondo são as
publicações.
Normalmente, quando se pensa em um laboratório especializado vincula-
do a área das humanidades o que vem à cabeça, mesmo que seu foco sejam os ma-
teriais orais, é o livro como objeto único de registro, seja ele impresso ou e-book.
No entanto, e por todos os protocolos, princípios e características que
aqui já destacamos, o LANMO quebra paradigmas patriarcais, coloniais e nos
apresenta não somente livros, como também produções sonoras, videográficas
e periódicas. Quando se trata de material escrito ele sempre vem acompa-
nhado da versão digital, com o intuito de difundir, alargar e fazer os saberes
circularem.

FIGURA 4: PUBLICACIONES

FONTE: https://lanmo.unam.mx/publicaciones.php#tf-publicaciones

Há, no LANMO, espaços físicos que podem e devem ser utilizados


por artistas que, em geral, não tem outras possibilidades de gravarem seus ma-
teriais ou preferem fazê-lo de forma colaborativa, em um lugar em que sabem
que serão respeitados.

108 Saberes decoloniais


FIGURA 5: PRODUCCIONES SONORAS

FONTE: https://lanmo.unam.mx/psonoras.php

Essas produções sonoras acabam sendo de poetas populares, cancionis-
tas, artistas que nem sempre tem destaque nas mídias, mas são donos de uma
arte que tem muito a dizer. São sujeitos que representam as tantas culturas e
tradições que o Mexico possui. No site do Laboratório fica disponibilizado,
também, os álbuns produzidos para que quem desejar conhecer tenha acesso.

FIGURA 6 : PRODUCCIONES SONORAS – ALBUNS

FONTE: https://lanmo.unam.mx/psonoras.php

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 109


O REPOSITÓRIO NACIONAL DE MATERIALES ORALES

Muitos materiais orais, seja em áudio, vídeo, ebooks, livros, entrevis-


tas, conversas livres são produzidas a partir dos mais de cinquenta projetos –
representados pelos que aqui decidimos trazer como exemplo - vinculados ao
LANMO. Com isso, foi preciso que houvesse um espaço para catalogação e
publicação desses materiais e, assim, surge o Repositório Nacional de Materia-
les Orales, que em 2020 recebeu a certificação ISSO 9001-2015, o que atesta
a eficácia de seus mecanismos.

[..] después de más de diez años de desarrollo, el Reposi-


torio Nacional de Materiales Orales es una herramienta
electrónica que permite el almacenamiento de docu-
mentación de campo generada desde distintas discipli-
nas. Se buscó que el sistema y su base de datos fueran lo
suficientemente flexibles como para albergar materiales
con metadatos básicos, pero también lo suficientemente
capaz como para agregar tantos niveles de clasificación y
especificidad como fuera necesario. Para esto, partiendo
del concepto de materiales orales, se determinó que los
registros documentales en audio, video o texto pudie-
ran ingresarse a la base de datos con cuatro metadatos
básicos que conforman sus coordenadas espacio-tempo-
rales y contextuales de documentación: dónde y cuándo
se grabó, quién habla y quién documenta. La base de
datos permite almacenar tanto materiales íntegros de
grabación, como segmentos seleccionados por los docu-
mentadores. Para el primer caso, existe una herramienta
que permite clasificar segmentos dentro de ellos. Una vez
ingresados, la base de datos tiene la capacidad de agregar
series de metadatos dependiendo de las necesidades de
los materiales. Un ejemplo de esto es la clasificación de
instrumentos musicales que se ha agregado recientemen-
te para poder etiquetar de manera más específica las gra-
baciones de música tradicional. El repositorio se apoya
en la información generada por el Instituto Nacional de
Estadística y Geografía (México) y al catálogo de lenguas
indígenas del Instituto Nacional de Lenguas Indígenas
(México) para lo concerniente a la clasificación geográ-
fica y lingüística de los materiales. Entre sus últimos de-

110 Saberes decoloniais


sarrollos de programación (todos generados por el equi-
po de trabajo del Laboratorio) podemos mencionar una
interfase tipo mapa que permite la consulta de materiales
documentados en una localidad o en un área específica
definida por el usuario.
El repositorio, además de ser una herramienta de in-
vestigación, también funciona como un servicio de al-
macenamiento y preservación de materiales para otras
instituciones e investigadores. Quien así lo desee, puede
almacenar aquí sus materiales y decidir si quiere que sean
de consulta pública o privada, mantener su derecho de
propiedad sobre ellos y mantenerlos ordenados y dispo-
nibles mediante esta plataforma en línea15

Para além da teoria decolonial, que permeia minha reflexão, é ne-


cessário também destacar a prática que acontece tanto no LANMO como o
Repositório enquanto espaços de difusão e popularização do conhecimento;
espaços que de fato cumprem o papel social da Universidade: a inserção na
comunidade e a possibilidade de muitos sujeitos que por motivos vários não
estão inseridos no ambiente universitário terem acesso a materiais, histórias e
ferramentas de registro.
A imagem abaixo, que figura na página inicial do Repositório Nacio-
nal de Materiais Orais, pode comprovar isso. Nela, tem-se a Mestra Ana Flores
documentando os materiais orais em Tiopxica. Essa documentação foi parte
de um projeto intitulado La sirena huasteca. Entidades femeninas acuaticas,
coordenado pela Dra. Berenice Araceli Granados Vázquez e demonstra como
a relação deve acontecer. Em determinados momentos, quando se vai com o
intuito de fazer uma entrevista, e se deixa isso claro, são os pesquisadores que
procuram seguir um roteiro (mesmo se sabendo que não há controle sobre a
fala do outro, ele conta aquilo que considera importante), mas em outros o
material de registro fica na mão do contador (a) e é ele(a) que, a partir de seu
olhar de morador de um determinado lugar e conhecedor daquele espaço,
definirá o que merece e precisa ser relatado.

15 Disponível em https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/sobreelrepositorio.php Acesso em


28 jun.2022

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 111


FIGURA 7 – PÁGINA INICIAL DO REPOSITÓRIO NACIONAL DE MATERIALES ORALES

FONTE: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/index.php

Sabe-se que ao documentar os materiais orais é preciso que haja uma


organização que, por vezes, pode ser compreendida como uma colonialidade
do ser, na medida em que quer inserir os sujeitos em determinadas categorias.
No entanto, quando se trata deste repositório pode-se afirmar que o catego-
rizar ocorre apenas para fins de organização, não tendo objetivos coloniais ou
de silenciamentos. Não há apagamento dos sujeitos, todos merecem destaque
e são colocados do mesmo modo. Se voltarmos ao princípio dois que prega
as relações interpessoais, deixando de lado qualquer investidura acadêmica,
vê-se que ele está presente nos registros, como é possível perceber na imagem
abaixo.

112 Saberes decoloniais


FIGURA 8 – ENTREVISTA COM DEMÉTRIA ANTONIO GUZMAN

FONTE: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/fichaactocomunicativo.php?id=1

Na transcrição da entrevista com Demétria Antonio Guzmán tem-se


os nomes dos transcriptores em ordem alfabética, sendo as duas primeiras
estudantes e a terceira a Dra. Berenice Araceli Granados Vázquez, uma das
coordenadoras do laboratório..., mas isso não importa. O que conta, nesse
momento, é o diálogo estabelecido a partir das questões preparadas para aque-
le momento. Há de se destacar novamente que é a narradora que define o que
merece ser contado e, por isso, mesmo que os transcritores tenham um roteiro
pré-estabelecido é certo que ele sempre vai mudar.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 113


FIGURA 9 – ENTREVISTA COM DEMÉTRIA ANTONIO GUZMAN

FONTE: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/fichaactocomunicativo.php?id=1

Há, em cada transcrição, um seguimento bem como o arquivo em


pdf. Nesse seguimento é possível se escolher as temáticas tratadas pela entre-
vistada e assistir apenas aqueles trechos. Descreve-se, também, para fins de
organização da catalogação o tipo de arte verbal o qual a narrativa faz parte,
conforme se pode ver no quadro acima.16

(IN)CONCLUSÕES ORAIS-DECOLONIAIS

A reflexão que aqui se desenha é uma das ramificações do meu segun-


do pós-doutorado e está em andamento. Muitos são os materiais orais que
podem ser analisados a partir das pesquisas realizadas pelo LANMO e pelos
registros do Repositorio Nacional de Materiales Orales.
A escolha de narrativas, narradores, perspectivas a ser exploradas,
quando se trata de um laboratório especializado e que tem como intuito pen-
sar as oralidades a partir de um posicionamento ético e humano não é uma
tarefa nada fácil.
Se a colonialidade está presente no ser, no saber e no sentir, sabe-se que
o posicionamento decolonial e intercultural, baseado nas ideias, por exemplo,
16 Esses tipos podem ser consultados no protocolo para el processamiento de materiales orales
disponível no já citado site do LANMO. (traduzir)

114 Saberes decoloniais


da já citada Catherine Walsh, permitem que eu afirme ser o LANMO um
espaço no qual, muito embora não tenha se voltado teoricamente para isso,
é sim lugar de resistência, em que relações patriarcais, hegemônicas, baseadas
num sistema-mundo colonial não se estabelecem.
Se podem eventualmente surgir limitações naturais, próprias do am-
biente acadêmico, é através do diálogo que as narrativas ganham corpo, acon-
tecem; não se pode mais pensar em registros de narrativas orais que não levem
em conta o narrador. Levar em conta, neste caso, é um processo coletivo que
acontece desde os primeiros contatos, quando é feita a sondagem para reali-
zação da investigação, até o retorno para entrega e apresentação do material
resultante do contato. Aliás, outro fator de extrema importância e que muitas
vezes é esquecido é o retorno às comunidades. O mesmo caminho percorrido
até os sujeitos para a escuta das histórias tem que ser feito para a entrega do
produto advindo de tal escuta, porque ele é da comunidade e não do docu-
mentador nem tampouco apenas do laboratório.
Se o objetivo é valorizar histórias de vida, modos de fazer, comunida-
des, essa valorização tem que ser total e nós, acadêmicos, podemos até nos ver
como participes do processo, mas precisamos entender que nesse momento
não somos o centro porque, se continuarmos nos vendo assim, não haverá
coerência no que dizemos e fazemos.
É necessário que não sejamos o centro das atenções para que de fato
estejamos contribuindo para uma sociedade menos colonialista e mais iguali-
tária. Se como nos diz Boaventura Santos o colonialismo apenas mudou suas
formas, cabe a nós, intelectuais das Letras sermos ponte para que, ao menos
quando se trata de materiais orais, de pesquisas que envolvem sujeitos, não
sigamos perpetuando colonialismos disfarçados de liberdades. Aprendamos
com o LANMO.

REFERÊNCIAS

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das poéticas orais. boitatá, Londrina, n. 11, p. 37-46, jan-jul 2011.
HERNÁNDEZ, Santiago Cortés; VÁZQUEZ, Berenice Araceli Granados. El
laboratorio nacional de materiales orales, conceptos, antecedentes, código

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 115


de ética y protocolo de documentación. boitatá, Londrina, n.
29, jan.- jun. 2020
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade O lado mais escuro da modernidade.
Tradução Marco Oliveira. RBCS Vol. 32 n° 94 junho/2017
HAESBAERT, “Rogério Território e descolonialidade: sobre o giro (multi)
territorial/de(s)colonial na América Latina” / Rogério Haesbaert. - 1a
ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Niterói: Progra-
ma de Pós-Graduação em Geografia ; Universidade Federal Flumi-
nense, 2021.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder e classificação social”. In: SAN-
TOS, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (Orgs.). Epistemo-
logia do Sul. São Paulo: Cortez, 2009. p. 84-130.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. Cosac Naif: São Paulo,
2007. 2.ed. Tradução de Jerusa Pires Ferreira. Literatura Oral. Dispo-
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WEISSMANN, Lisette. Multiculturalidade, transculturalidade, interculturali-
dade. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/sci elo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S1415-69542018000100004#:~:tex t=A%20multi-
culturalidade%2 0implica%20um%20conjunt o,v%C3%A1rias%20
culturas%20 no%20mesmo%20patamar. Acesso em 20 jun. 2022

116 Saberes decoloniais


CURTAS BRASILEIROS: LABORATÓRIO DE
ESTÉTICAS INSURGENTES1
Maria Camila Osorio Ortiz2
Tereza Maria Spyer Dulci3

INTRODUÇÃO

De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o


Caribe (CEPAL), existem mais de 130 milhões de afrodescendentes na nossa
região (NU.CEPAL, 2017, p. 51). O Brasil é o país que tem maior número,
tanto em termos absolutos quanto relativos. Em 2019, mais da metade da
população se declarou negra: 56,10%. Do total de 209,2 milhões de habitan-
tes, 19,2 milhões se assumem como pretos e 89,7 milhões se declaram pardos
(AFONSO, 2019). O Brasil é seguido em importância relativa por Cuba, com
36% de afrodescendentes (o número inclui “mestiços”), em menor proporção
1 Uma versão deste artigo foi publicada na Revista Educação, Ciência e Cultura, v. 27, n. 2 (2022),
p.1-17.
2 Graduada em Comunicação Social – Jornalismo. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL), da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA). E-mail: ma.camilaortiz@gmail.com.
3 Doutora em História. Professora do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea
da América Latina (PPGICAL), da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNI-
LA). E-mail: tereza.spyer@unila.edu.br.
por Colômbia, Costa Rica, Equador e Panamá (entre 7% e 10% da popula-
ção total) (NU.CEPAL, 2017, p. 52). Vale ressaltar que a autoidentificação
étnico-racial é influenciada pelo contexto sociopolítico de cada país. Por isso,
levando em consideração o racismo estrutural, os números de afrodescenden-
tes certamente são muito maiores do que aqueles representados nos censos
dos países latino-americanos e caribenhos (ANTÓN; DEL POPOLO, 2009).
Embora os(as) negros(as) sejam a maioria da população brasileira, a
desigualdade entre negros(as) e não-negros(as) é enorme. A população negra
ainda é minoria nas posições de liderança no mercado de trabalho (5%), entre
os(as) representantes políticos legislativos (25%), entre os(as) magistrados(as)
(16%), e em muitos outros segmentos. Por outro lado, os(as) negros(as) são
maioria entre as pessoas desocupadas e subocupadas (65%), entre as vítimas
de homicídio (75%), entre a população carcerária (60% – a maior parte são
jovens com baixa escolaridade) e entre os que morrem em decorrência de
ações de agentes de segurança do Estado (74% das pessoas assassinadas em
intervenção policial). Nesse sentido, os(as) negros(as) são os que mais morrem
e são o grupo em que a taxa de mortes violentas mais cresce no Brasil. Por
último, se fizermos um recorte de gênero, temos que as mulheres negras são o
principal grupo de risco nos casos de feminicídio (61%) e parte considerável
delas ocupa funções de trabalho no âmbito do cuidado (90% das trabalhado-
ras domésticas são negras) (AFONSO, 2019).
A gritante desigualdade entre os(as) negros(as) e não-negros(as) pode
ser também percebida no setor audiovisual brasileiro. Segundo a Agência Na-
cional do Cinema (ANCINE), nos filmes brasileiros comerciais homens bran-
cos são hiper- representados, sendo a maioria entre os diretores (75,4%), pro-
dutores (59,9%) e elencos (80%). Entre os grupos marginalizados, a situação
é ainda pior para as mulheres negras, que ficam de fora de diversas categorias.
Para a ANCINE, essa desigualdade é mitigada parcialmente com a presença
de diretores(as) ou roteiristas negros(as), o que aumenta as chances para que
as produções contem com negro(as) (IZEL, 2018).
Já de acordo com a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro
(APAN), a menor presença de negros(as) nas produções audiovisuais não tem a
ver com quantidade de profissionais na área. O que falta é espaço no audiovisual
comercial, que é elitista, patriarcal e racista, com produções majoritariamente

118 Saberes decoloniais


marcadas pelo ponto de vista branco, heteronormativo e machista. Contudo,
nos últimos anos têm surgido produções contra-hegemônicas, facilitadas pela
luta do movimento negro e pelas cotas em editais de produção da ANCINE
e do Ministério da Cultura, que propõem uma leitura do Brasil a partir da
negritude, pondo em xeque a estrutural sub-representação étnico-racial. Essas
produções mais heterogêneas, resultado da demanda por inclusão de narrativas
e de equipes negras que se pareçam mais ao retrato demográfico do Brasil, fazem
com que “o cinema nacional represente mais e melhor os grupos oprimidos não
só através de suas próprias vozes, mas de múltiplas vozes” (MARTINS, 2018).
Neste sentido, este texto, que procura pensar elementos das estéticas
insurgentes em curtas-metragens brasileiros, pretende tratar alguns espectros
dos chamados “novíssimo cinema” e “cinema negro” brasileiros contemporâ-
neos, com destaque para as produções de três realizadores negros. Para tal, em
um primeiro momento, trataremos brevemente do “novíssimo cinema” e do
“cinema negro”. Em um segundo momento, abordaremos o “afrofuturismo”
como um movimento intelectual e um gênero artístico transdisciplinar que
busca redefinir a cultura e as noções de negritude. Por último, analisaremos
três curtas: Quintal, Rapsódia para o homem negro e Chico.

O “NOVÍSSIMO CINEMA” BRASILEIRO:


ALGUMAS QUESTÕES ACERCA DO “CINEMA NEGRO”

Um dos marcos mais importantes para o cinema brasileiro contempo-


râneo foi a criação, em 2001, da ANCINE. Esta agência contribuiu para a re-
gulação, expansão e disseminação da cultura audiovisual nacional. As políticas
de fomento ao audiovisual, com apoio federal e estadual, foram responsáveis
pelo crescimento do número de produções, de público e de salas exibidoras.
Com isso, as produções audiovisuais, tanto comerciais quanto independen-
tes, passaram a retratar mais “microuniversos concretos habitados por uma
pluralidade de corpos, em uma proliferação e expansão daquilo que constitui
um Brasil cinematográfico, um Brasil no qual, idealmente, muitos Brasis se
encaixam” (BRIZUELA; MONASSA; GUARANÁ, 2020, p.67).
Nos últimos anos, no campo do cinema independente, um conjunto
de produções audiovisuais tem se destacado. Trata-se do “novíssimo cinema”,

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 119


obras de baixo custo feitas por jovens realizadores(as) não mainstream com
estéticas, dramaturgias e narrativas não tradicionais. Estes filmes fizeram car-
reira em diversos festivais e ganharam distribuição nacional e internacional
(IKEDA, 2014). Além disso, muitas das suas narrativas recentes apresentam
alegorias do nosso país imerso em crise pois,

Com a depressão política que atravessamos nos últimos


anos, o presente parece ter perdido um pouco da vocação
para acolher movimentos históricos. Ressurgem, com
mais força, os futurismos, os desencantos, as batalhas im-
ponderáveis e a sensibilidade distópica de maneira geral
(PICHONELLI, 2019).

Nesse contexto de instabilidade e incertezas, artistas negros(as) busca-


ram outras formas de narrar a existência das populações afrobrasileiras, valen-
do-se da estética como artefato político. Ou seja, são parte de um movimento
cinematográfico que denuncia o racismo estrutural, pois opera na contramão
das representações calcadas em depreciações, sub-representações e ausências.
Estes filmes buscam outras formas de narrar as histórias dos povos afrodes-
cendentes ao reivindicarem os direitos das populações negras. Além disso, o
“cinema negro” atual se estabelece em diálogo direto com o movimento negro
brasileiro,

[...] em sintonia com os principais temas das lutas an-


tirracistas no país. Assim, dentre os elementos dessa luta
que se associam ao projeto de cinema negro no Brasil,
figuram no centro do debate os conceitos em torno da
consolidação hegemônica da identidade nacional brasi-
leira empenhada em colocar o negro em posição de su-
balternidade e não como elemento fundamental na for-
mação cultural do país (OLIVEIRA, 2016, p. 1).

Este “cinema negro” contemporâneo é ao mesmo tempo um “pro-


cesso e devir [...] Uma produção que implica, obviamente, novos direcio-
namentos (no âmbito da distribuição, da exibição, do público e da crítica)
e novas hermenêuticas de sentido à história tradicional do cinema brasileiro
contemporâneo” (CARVALHO; DOMINGUES, 2018, p.13). Igualmente,
o “cinema negro” opera dentro e fora do mercado cinematográfico nacional,
120 Saberes decoloniais
caracterizando-se pela sua marginalidade, como é o caso do “cinema de guer-
rilha”, isto é, filmes de baixo orçamento feitos por grupos subalternizados que
utilizam “táticas de guerrilha” para produzir obras evitando a burocracia, as
hierarquias e os formalismos do cinema mainstream. Nesse sentido, o “cinema
de guerrilha” visa sobretudo “a fabricação de um repertório de táticas capazes
de potencializar esses [poucos] recursos” (LEROUX, 2017, p.1).
Vale destacar também dois movimentos recentes liderados por ci-
neastas e atores(as) negros(as) que reivindicaram um outro “cinema negro”.
O primeiro deles, conhecido como “Cinema Feijoada”, foi encabeçado por
realizadores, em sua maioria curta-metragistas, de São Paulo. Este grupo foi
influenciado principalmente pelo manifesto “Dogma Feijoada”, do cineasta
Jéferson De. Já o segundo movimento ocorreu durante a 5ª edição do Festi-
val de Cinema do Recife, no qual atores(as) e realizadores(as) negros(as) as-
sinaram o “Manifesto do Recife” (SOUZA, 2006, p. 28). Ambos pleiteavam
distinções:

[...] tanto estéticas quanto políticas no sentido de dife-


renciar um cinema produzido por negros e negras como
forma de expressarem suas identidades [e] [...] almeja-
vam alcançar com seus filmes o mesmo patamar de qual-
quer outro, mas trazendo consigo a diferenciação étnica
como uma marca (DOS SANTOS; BERARDO, 2013,
p.103).

O manifesto “Dogma Feijoada” (2000), que embora tenha sido idea-


lizado por Jéferson De, foi apoiado por Noel Carvalho, Ari Candido, Rogério
Moura, Lílian Santiago, Daniel Santiago e Billy Castilho, tem como funda-
mento sete princípios básicos:

1) o filme tem que ser dirigido por um realizador negro;


2) o protagonista deve ser negro; 3) a temática do filme
tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira;
4) o filme tem que ter um cronograma exequível; 5) per-
sonagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos;
6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro;
7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados (CAR-
VALHO, 2005, p. 96).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 121


Por sua vez, o “Manifesto do Recife” (2001), assinado por Antônio
Pitanga, Antônio Pompeo, Joel Zito Araújo, Luiz Antônio Pillar, Maria Ceiça,
Maurício Gonçalves, Milton Gonçalves, Norton Nascimento, Ruth de Souza,
Thalma de Freitas e Zózimo Bulbul, pauta os seguintes princípios básicos:

1) O fim da segregação a que são submetidos os atores,


atrizes, apresentadores e jornalistas negros nas produto-
ras, agências de publicidade e emissoras de televisão; 2)
a criação de um fundo para o incentivo de uma produ-
ção audiovisual multirracial no Brasil; 3) a ampliação
do mercado de trabalho para atores, atrizes, técnicos,
produtores, diretores e roteiristas afrodescendentes; 4) a
criação de uma nova estética para o Brasil que valorize a
diversidade e a pluralidade étnica, regional e religiosa da
população brasileira (CARVALHO, 2005, p. 98).

Estes manifestos, que remontam ao Teatro Experimental do Negro


(TEN) da década de 1940, problematizaram nos anos 2000 a produção bra-
sileira, colocando em xeque os modos de representação dos(as) negros(as) não
só no cinema, mas também na publicidade e na televisão. Igualmente, reivin-
dicaram políticas públicas para desafiar a desigualdade estrutural no campo do
audiovisual. Ambos levaram em conta que um:

[...] cinema brasileiro legítimo passa pela legitimação de


um ‘cinema negro’ [...] o que orientou inúmeros pro-
jetos tais como festivais de cinema, criação de ONGs
e Fundações nas quais o cinema é item obrigatório de
suas agendas, de modo a tratar com seriedade a questão
da negritude como um campo de tensões sociais (DOS
SANTOS; BERARDO, 2013, p.103).

O “AFROFUTURISMO”

O “afrofuturismo” é um “movimento intelectual e um gênero artístico


transdisciplinar” que busca desafiar “as representações estéticas sobre África,
através de uma linguagem que (re)imagina e (re)propõe um passado, presente
e futuro da experiência negra na diáspora transnacional” (LIMA, 2019, p.
139). Utiliza-se este termo para:

122 Saberes decoloniais


[...] definir a convergência da visão afrocêntrica com a
ficção científica, inserindo a negritude em um contexto
de tecnologia e projeções sobre o futuro. O conceito le-
vanta possibilidades de vivência negra em mundos que
não são marcados pelo racismo e pela opressão, funcio-
nando como crítica à realidade atual (ROCHA, 2020).

Este termo foi cunhado em 1994 pelo crítico cultural estadunidense


Mark Dery, no livro Black to the Future, para o qual ele entrevistou o escritor
Samuel Delany, o músico Greg Tate e a crítica cultural Tricia Rose. Com eles
Dary tratou da escassa ficção científica negra escrita por negros(as), naquela
época, nos Estados Unidos, tendo em conta a enorme violência vivida pe-
los(as) afrodescendentes. Além disso, problematizou a escassa visibilidade que
os(as) negros(as) tinham dentro do campo da ficção científica. No ensaio,
ele definiu as obras futuristas afro como “ficções especulativas que tratam de
temas afro-americanos e que abordam preocupações afro-americanas no con-
texto da tecnocultura do século XX” (DERY, 1994, p. 180).
Embora tenha surgido enquanto conceito somente na década de
1990, os elementos que caracterizam o “afrofuturismo” já estavam presen-
tes na ficção científica desde o século XIX, como por exemplo, no romance
Imperio in Imperium (1899), de Sutton E. Griggs e no conto The Commet
(1920), de W.E.B Du Bois. Outras referências “afrofuturistas” fundamentais
são Octavia Butler, consagrada por seus livros de ficção científica feminista, tal
como Kindred (1979) e os álbuns de música e as performances de Sun Rá,
Lee “Scratch” Perry e George Clinton entre as décadas de 1950 e 1980, “que
misturavam música, cosmologia e ancestralidade” (II COLÓQUIO AFRO-
FUTURISTA, 2020).
Desde o livro de Dery, o conceito “afrofuturismo” tem passado “por
uma série de redefinições – sobretudo no sentido de ampliar o pensamento
do universo cultural restrito aos negros dos EUA para um pensamento ne-
gro africano e diaspórico mundial” (FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 406). A
socióloga estadunidense Alondra Nelson também contribuiu muito para a
disseminação do conceito, ao criar em 1998 uma lista de discussão online inti-
tulada Afrofuturism. Esta lista ajudou a conformar o movimento e “o termo foi
escolhido como o melhor guarda-chuva para os interesses da lista [incluindo]

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 123


imagens de ficção científica, temas futuristas e inovação tecnológica na diás-
pora africana”. Depois, com o passar dos anos,

[...] esse movimento, que já ganhou outras vertentes e


nomenclaturas (africanfuturism, jujufuturism, ancestro-
futurism), fabula o passado negro, reimagina sua condi-
ção presente e projeta futuros, a partir da ficção científica
e especulativa, do realismo fantástico e de cosmologias
não europeias, traçando laços entre literatura, música,
performance, artes visuais e tecnologia (II COLÓQUIO
AFROFUTURISTA, 2020).

Além disso, Nelson publicou alguns trabalhos sobre o tema, sedo o


mais destacado deles Introduction: future texts (NELSON, 2002), assim como
o cineasta britânico-ganense Kodwo Eshun. Para este, “o afrofuturismo pode
ser caracterizado como um programa para recuperar as histórias de contra-fu-
turos criadas num século hostil à projeção afrodiaspórica”. Argumenta, ainda,
que o “afrofuturismo” é um “conjunto de ferramentas desenvolvido para e por
intelectuais afrodiaspóricos, com o imperativo de codificar, adotar, adaptar,
traduzir, especular, retrabalhar e revisar” os principais pressupostos do movi-
mento (ESHUN, 2003, p. 301).
Importa ressaltar que a linguagem “afrofuturista” é constituída tam-
bém pelo “afrocentrismo”, que busca tratar os(as) sujeitos(as) africanos(as)
ou afrodescendentes (em perspectiva diaspórica) e a África no centro de suas
formulações. Segundo o filósofo estadunidense Molefi Asante: “o objetivo do
afrocentrista é manter o africano dentro e no centro de sua própria história”
(ASANTE, 2009, p.97). Já de acordo com a jornalista e cineasta estaduniden-
se Ytasha Womack, “seja através da literatura, artes visuais, música ou organi-
zação de base, os afrofuturistas redefinem a cultura e as noções de negritude
para hoje e para o futuro” (WOMACK, 2015, p.18). Ainda para esta autora:

Essa articulação artística se contrapõe à falta e/ou apaga-


mento do corpo negro no gênero ficção científica, que
historicamente tem projetado um padrão de representa-
ção excludente, isso pode ser percebido pela ausência de
personagens e signos culturais da construção não euro-
cêntrica (WOMACK, 2015, p.9).

124 Saberes decoloniais


O “afrofuturismo”, enquanto uma estética futurista negra, converte-se
também em uma “declaração política, reivindicando tempos, narrações e re-
presentações” (II COLÓQUIO AFROFUTURISTA, 2020). Conforme res-
salta Eshun, nesse movimento as ficções especulativas negras são reformuladas
à luz da história afrodiaspórica:

Criando complicações temporais e episódios anacrôni-


cos que perturbam o tempo linear do progresso, esses
futuros ajustam a lógica temporal que condena sujeitos
negros à pré-história [...] essas historicidades revisionis-
tas podem ser entendidas como uma série de poderosos
futuros competindo entre si, que infiltram o presente em
diferentes níveis (ESHU, 2003, p. 297).

No que diz respeito às narrativas audiovisuais “afrofuturistas”, os


pesquisadores brasileiros Kênia Freitas e José Messias afirmam que elas cos-
tumam intercalar diferentes tempos de modo propositalmente anacrônico,
fruto do “duplo trauma: o da escravidão (no passado) e o da perseguição,
especialmente da violência estatal (no presente)”. Isso teria gerado uma con-
dição de “dupla natureza: a da criação artística que une a discussão racial ao
universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma
ficção absurda do cotidiano: uma distopia do presente” (FREITAS; MES-
SIAS, 2018, p. 406).
Nas obras audiovisuais os traumas individuais e coletivos se inter-re-
lacionam com vistas a imaginar um futuro alternativo para os povos negros
a partir de uma “lente cultural negra”. Entretanto, importa destacar que as
produções audiovisuais “afrofuturistas” “nunca irão compor um discurso to-
talizante – pois existem, desde a sua mais longínqua origem, como um frag-
mento, como uma reminiscência de uma/milhões de história(s) apagada(s)”
(FREITAS, 2015, p.6).
Ao tratar das experiências-outras dos(as) negros(as) em diferentes
temporalidades e espaços/territórios, a imaginação fílmica converte-se em
uma ferramenta fundamental de resistência, pois criar narrativas com pessoas
negras feitas por pessoas negras no futuro desafia o racismo estrutural do pre-
sente. Além disso:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 125


Não se trata apenas da necessidade de se ver representado
num gênero no qual as vidas de grande parte da popula-
ção foram sempre relegadas a segundo plano, mas de algo
ainda mais importante; trata-se de reivindicar futuros
melhores para todo mundo e de construir estes futuros
coletivamente. Não é (apenas) uma questão de represen-
tação, mas uma questão de experimentação. E claro, uma
questão política por excelência (FREITAS, 2015, p.12).

Portanto, o “afrofuturismo” é um exercício de revisão do passado, con-


testação do presente e especulação sobre o futuro – que “combina elementos
de ficção científica, ficção histórica, ficção especulativa, fantasia, afrocentrici-
dade e realismo mágico com crenças não ocidentais” (WOMACK, 2013, p.9).
Reescrevendo o passado, criticando os problemas do presente e imaginando
futuros melhores, “o afrofuturismo se apresenta como uma projeção (no senti-
do de projeto), e projetos visam futuros. Futuros negros. Narrativas futuristas
que contemplam todas as subjetividades da população negra no mundo” (II
COLÓQUIO AFROFUTURISTA, 2020).

ESTÉTICAS INSURGENTES EM TRÊS CURTAS BRASILEIROS

A seguir trataremos de três obras cinematográficas brasileiras recen-


tes que consideramos que apresentam alguns elementos estéticos insurgentes:
Quintal, Rapsódia para o homem negro e Chico (todos disponíveis no YouTube).
Estes são alguns dos curtas de maior destaque no cenário nacional contempo-
râneo tanto do ponto de vista das participações e premiações em importantes
festivais (Cannes, Melboune, Lisboa, São Paulo, Rio de Janeiro, entre outros)
quanto do sucesso de público e apresentam, respectivamente, protagonistas
negros(as) periféricos(as) idosos(as), adultos(as) e jovens/crianças, o que nos
permite pensar também as diferentes representações generacionais.
Igualmente, nosso recorte se justifica pelo fato de que estes três curtas
se inserem nas dinâmicas de criação cultural contemporânea que fazem refe-
rência ao envolvimento de vários(as) participantes numa produção e visam
reinventar a relação entre produtores(as) e públicos, como a disponibilização
gratuita dos curtas-metragens online, percebendo no YouTube uma via para
promover, exibir e democratizar conteúdos, o que permite ter uma dimensão
126 Saberes decoloniais
do alcance dos filmes, fora da lógica que impõe o mercado cinematográfico4.
Quintal (2015), de André Novais Oliveira, trata da vida de um casal
de idosos negros (Norberto e Zezé - interpretados pelos pais do próprio di-
retor) que vivem no Bairro Amazonas, na periferia de Contagem, em Minas
Gerais. A vida deles é transformada por um portal em contato com outro
mundo que os faz realizar coisas impensáveis/impossíveis para pessoas de sua
idade, classe e raça. No quintal, espaço por excelência de convivência do casal
(lugar destinado também à lavanderia e depósito de coisas velhas), Norberto
encontra em caixas antigas um DVD pornô. Uma ventania forte atravessa o
ambiente e surge uma espécie de fenda mágica. Este elemento sobrenatural faz
com que os personagens entrem em um mundo paralelo, ao mesmo tempo
em que seguem naturalmente suas atividades do dia a dia.
Pensando no espaço como algo que não é dado, mas que vem a ser, em
Quintal não há propriamente uma explicitação de futurismo tecnológico, pois
o curta se centra, em grande medida, na representação do cotidiano pacato
vivido pelo casal de idosos. No entanto, com o portal para outra dimensão, a
obra desmantela uma lógica cultural que vê as periferias como existindo fora
do tempo através de uma metanarrativa que não procura excentricidade.
O filme traz uma sequência inicial de planos gerais que contextuali-
zam o lugar, para depois nos apresentar a rotina do casal em planos médios
com duração da própria ação, inclusive quando o vento sopra tão forte que
os pés de Zezé se desprendem do chão enquanto ela se segura nas grades da
janela. Os planos transcorrem sem nenhum movimento, e Zezé, como se nada
tivesse acontecido, recolhe as roupas secas, deixando o lugar vazio para dar
espaço ao surgimento do portal, a outros fluxos nesse espaço, a outra dimen-
são que se apresenta como questionadora de valores universalizantes sobre a
periferia brasileira, como a violência. Além disso, o portal não causa nenhu-
ma estranheza nos personagens, pelo contrário, ele é incorporado à rotina do
casal. No entanto, ele se apresenta para ampliar os possíveis futuros de um
território, os “futuros-outros” (KHATIBI, 2001). A partir disso, percebemos
que as construções da narrativa se diferenciam das perspectivas hegemônicas e
4 Dados de dezembro de 2021 nos informam que: Quintal possui 48.006 visualizações e Rapsódia
para o homem negro 9.597, ambos postados em dezembro de 2016 no canal do YouTube da produ-
tora “Filmes de Plástico”. Já Chico, postado em abril de 2020 no canal de um dos diretores (Marcos
Carvalho), possui 4 mil visualizações.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 127


dominantes sobre o futuro e, ao mesmo tempo, reforçam ligações que conec-
tam passado, presente e futuro.
A primeira vez que a câmera se movimenta é para acompanhar Norber-
to na busca pela origem do barulho que o incomoda. Ao espionar e encontrar
o portal, não vemos sua reação, só acompanhamos a câmera em ângulo traseiro
até ele desaparecer no portal. Nesta cena cresce a tensão do filme, mas esta não
vai muito longe, voltando à uniformidade dos planos através da montagem. No
entanto, o inusitado não está na encenação e sim nas possibilidades de extraor-
dinariedade que traz a outra dimensão para a criação de “futuros-outros”.
O desafio de construir uma “memória da periferia”, propondo-se a
contar e assumir um espaço possível, faz com que no filme o cotidiano carre-
gue uma possibilidade de transformação a partir da aparição do portal que en-
volve os personagens em acontecimentos extraordinários: Zezé vira assessora
de um político e investidora de uma academia, e Norberto obtém o título de
mestre. Quer dizer, fuçando nas entranhas dos arquivos e da história, com o
objetivo de pensar outros presentes e futuros, Quintal resgata vozes, corpos e
subjetividades diversas – um casal de idosos negros da periferia –, retomando
a história dos(as) negros(as) na diáspora e usando-a como matriz narrativa,
como tema que lhe permite explorar problemáticas que transcendem a ques-
tão da raça. Com isso, o diretor apresenta a periferia também como um lugar
prodigioso, no qual mulheres negras podem romper com a combinação de
diversas discriminações que geram exclusões que produzem zonas destinadas
à população negra marcadas por uma condição de subcidadania.
Na montagem o portal conecta não só as ações dos personagens, como
também revive um espaço comum entre eles criado pela narrativa da experiên-
cia. As imagens se repetem – a cotidianidade na casa – no entanto, o significa-
do muda, e se evidencia com imagens de Norberto tornando-se mestre. Estas,
mesmo que estejam impregnadas de elementos de humor, ironia e crítica às
abordagens acadêmicas, são imagens de uma pessoa negra e idosa defenden-
do uma dissertação de mestrado que confronta as desigualdades construídas
historicamente dentro da academia com base em diferentes padrões de hie-
rarquização definidos principalmente a partir da raça, da classe e do etarismo.
Através dos personagens nascem interrogações sobre como se pensa o
futuro a humanidade e o que é um ser humano, desarticulando binarismos es-

128 Saberes decoloniais


tandardizados que legitimam distintos sistemas de opressão: as dialéticas amo-
-escravo, forte-débil, homem-mulher, outro-eu. A ação política das imagens
gera a interrupção do futuro embranquecido para criar novos espaços-tempos.
Nesta obra há um jogo com a percepção do público, marcando uma
passagem entre o cotidiano/banal e o fantástico/extraordinário. Tanto o casal
quanto os espectadores são absorvidos pelo portal que altera a temporalidade,
pondo em xeque as fronteiras entre ficção e realidade. Vale destacar também
que Quintal é uma “autoficção” que trabalha com uma linguagem do “semi-
documentário”. O realizador compartilha com o público o vínculo afetivo
que tem com sua cidade natal (seu universo cinematográfico por excelência)
e seus filmes de modo geral afirmam uma experiência urbana que torna “os
personagens negros visíveis de uma forma totalmente nova” (BRIZUELA;
MONASSA; GUARANÁ, 2020, p. 68).
Além disso, através dos elementos típicos do realismo fantástico, o
curta “promove uma sensação de uma periferia infinita. Há sempre uma casa
ao lado. Há sempre um telhado colado no outro. E assim sucessivamente”
(DINIZ, 2018, p. 122-123). Nas palavras do próprio diretor: “Seria negligen-
te se não mencionasse os filmes de Spike Lee, que influenciaram fortemente
minha abordagem da periferia e me permitiram identificar os contornos do
cinema negro pela primeira vez” (BRIZUELA; MONASSA; GUARANÁ,
2020, p. 72).
Há que se destacar também que Oliveira faz parte do coletivo cine-
matográfico chamado “Filmes de Plástico”, produtora criada em 2009 em
parceria com Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Correia. Sintoniza-
da com os movimentos de criação do “Novíssimo Cinema” brasileiro, conver-
teu-se ao longo dos anos em um dos principais polos de produção do cinema
nacional. Segundo Oliveira:

Na Filmes de Plástico fazemos parte de um número cada


vez maior de cineastas explorando suas próprias comu-
nidades periféricas - quebradas, para citar Adirley Quei-
roz - e acreditamos que isso gera um olhar mais íntimo
e sincero para esses bairros. A diversidade de pontos de
vista [...] está resultando em filmes potentes que trazem
não apenas um deslocamento geográfico, mas também
um deslocamento do olhar dos focos anteriores [...] As

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 129


questões de raça e classe estão presentes [em todos es-
ses filmes] e foram concebidas dentro dos espaços que
eles representam, em um esforço para retratá-los de uma
maneira honesta e respeitosa (BRIZUELA; MONASSA;
GUARANÁ, 2020, p. 72).

A “Filmes de Plástico” também tem premissas próximas daquelas do


“Dogma Feijoada” e do “Manifesto do Recife”: a realização coletiva (os só-
cios revezam diferentes funções nos filmes), a cooperação e a parceria entre
os membros do grupo e os(as) moradores(as) de Contagem, as narrativas se
centram no universo das populações negras de periferia, as produções são de
baixo orçamento etc. E há uma:

[...] predileção pelo improviso nos diálogos dos atores em


cena, pela decupagem e pela longa duração dos planos.
Ademais, a presença do cotidiano e a marca da banalida-
de e dos gestos insignificantes acompanham seus roteiros
e propostas de encenação (DINIZ, 2018, p. 123).

Já do ponto de vista estético, as obras da “Filmes de Plástico” além de


buscarem expressar “o universo de famílias negras nas periferias, sobretudo
por estabelecerem com os aspectos formais um registro que ultrapassa as na-
turalizações em sua linguagem, desconstroem os campos da interpretação, do
roteiro e do drama” (DINIZ, 2018, p. 123). Por outra parte, de acordo com
Oliveira, o coletivo tem como uma das suas principais preocupações a questão
da representação. As periferias e as negritudes estão presentes desde os roteiros
até as trilhas sonoras, escolhas estéticas muitas vezes fruto de colaboração co-
letiva articuladas por redes de artistas negros(as) e periféricos(as):

Como regra, Filmes de Plástico pensa e se preocupa em fa-


zer com que nossos filmes cheguem a mais e mais pessoas.
[...] Nos quinze anos de existência de Filmes de Plástico,
fizemos amigos - inclusive alguns que fizeram seus primei-
ros curtas há dois anos e agora estão fazendo seus primeiros
longas. Portanto, existe uma amizade estreita com muitos
desses outros cineastas, nascidos e fortalecidos em festivais
de cinema e sets de filmagem, e com muitas outras pro-
dutoras de filmes ou coletivos de cinema (BRIZUELA;
MONASSA; GUARANÁ, 2020, p. 72).

130 Saberes decoloniais


Existe, portanto, um compromisso cinematográfico fundamentado nos
sonhos e dramas locais (lembrando que Contagem faz parte da área metropo-
litana de Belo Horizonte), “afastando-se do registro naturalista e estereotipa-
do que costumeiramente os filmes mainstream fazem da periferia, recorrendo a
linguagens autorreflexivas, alegóricas e poéticas” (MARGULIES, 2020, p. 39),
falando a partir do lugar onde se está para “começar a quebrar com a lógica
colonizadora de construção de conhecimento, posto como universal e único e
imposto de cima para baixo” (ARAÚJO; YARA, 2020, p. 224).
A produtora mineira toma distância da lógica da produção comercial,
ela pensa no processo coletivo que, muito além de apresentar dados “reais” ou
reproduzir narrativas, procura integrar a vizinhança para contar sua própria
história. Acima das expressões culturais e identitárias, há um interesse nas
experiências de criação audiovisual coletiva, motivadas pela necessidade da
comunidade de narrar os cruzamentos de sentidos que compõem sua autorre-
presentação. Os realizadores:

[...] convertem o material pessoal em material cinema-


tográfico, as fotografias e os integrantes da família fazem
que o registro fictício dos filmes seja ambíguo, criando
uma correspondência entre indivíduos e personagens
que ampliam o universo dos filmes desde dentro (MAR-
GULIES, 2020, p. 40).

Outro potente curta-metragem da produtora “Filmes de Plástico” é a obra


Rapsódia para o homem negro (2015), de Gabriel Martins. A obra narra a história
de Odé e seu irmão Luiz (ambos negros). O filme utiliza alegorias e metáforas
para tratar da resistência à especulação imobiliária também na região de Conta-
gem, contextualizando as relações políticas, raciais e de ancestralidade em meio
ao racismo estrutural e as gritantes desigualdades sociais. Para tal, o curta retrata,
de um lado, a aliança entre o poder público (governo e forças de segurança) e o
capital privado (empreiteiras e executivos) e, de outro, apresenta a resistência negra
a partir da articulação comunitária periférica. Aqui, cabe destacar, o cinema é en-
tendido como um espaço de luta que instaura outro regime de visibilidade, pois:

O filme intercala sons, imagens, músicas e textos relacio-


nados à cultura negra e às religiões afro-brasileiras com

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 131


o cotidiano de uma família que perdeu um membro du-
rante um conflito com a polícia. A tradição mitológica
combativa (refletida também no hip hop e no movimen-
to Panteras Negras) é diretamente costurada com a re-
alidade social racista contemporânea (CAVANI, 2015).

A imanência do tempo mescla passado, presente e futuro, tempora-


lidades que se converte em múltiplas alegorias. Isso pode ser observado na
sequência documental do início, que apresenta o rosto de diversas pessoas ne-
gras, “transmitindo a ideia de uma unidade na multiplicidade daqueles rostos.
Unidade advinda, principalmente, do sofrimento, já que a união é um dos
principais instrumentos daquele que luta contra o sofrimento” (SÁ, 2015).
O passado aparece como motivo de evocação que é preciso conjurar
resgatando mundos simbólicos e alegóricos da cultura negra desde as primei-
ras cenas, onde vemos em primeiros planos a Odé andando pela mata acom-
panhado de sons de pássaros e uma encenação que mais tarde percebe-se que
remete a Oxóssi, divindade da caça e das matas, cultuado como Orixá nos
terreiros de candomblé. Isso ocorre a fim de soltar os laços que atam os su-
balternos à sua autorrepresentação como vítimas perpétuas, desprogramando
assim os futuros dominantes e hegemônicos e constituindo futuros outros.
Continuando na mesma cena onírica, as normas espaciais e temporais
se dissolvem, a miragem do modo de representação institucional se quebra e
poderia parecer que todo o curta não é mais do que um grande percurso no in-
terior de um sonho de Odé. No entanto, os planos das algemas com correntes,
em contraposição aos planos de execução por parte de uma força policial que
representa o Estado, seja fazendo uso da arma ou da espada, nos remetem aos
elementos simbólicos do racismo estrutural, do qual foi vítima Luíz, irmão de
Odé, na ocupação Dandara, local identificado através da camiseta que usava
no momento do espancamento.
A encenação do trecho “Oxóssi aprendeu com seu irmão a nobre arte
da caça, sem a qual a vida é muito mais difícil. Ogum ensinou Oxóssi a defen-
der-se por si próprio. Ensinou Oxóssi a cuidar da sua gente” (RAPSÓDIA...,
2015), retirado do livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, transforma
Oxóssi numa metáfora da luta pela terra encarnada na ocupação Dandara
onde “a grande maioria da população na ocupação é negra, de baixa renda e

132 Saberes decoloniais


trabalha fora da comunidade em atividades precarizadas” (VASCONCELOS
DE FREITAS; MIRANDA, 2016, p. 3). Com isso o diretor procura proble-
matizar as relações entre memória e identidade e o canto da abertura anuncia
exatamente que é hora de deixar atrás a catastrófica história que determina o
presente afro-brasileiro como um reino de não identidade.
Neste sentido, a construção de Rapsódia a partir da exploração da me-
mória, de questões de religiosidade junto com a ficção, o onírico e o ato de
fabular, permite uma revinculação no discurso sobre o passado com presente
e futuro, fazendo uso de uma montagem paralela carregada de elementos sim-
bólicos e metafóricos que enriquecem o discurso e contribuem para outras
leituras (subtextos), como por exemplo as sombras e cantos frente a outros
registros contemporâneos, como as imagens da cidade à noite junto com os
sons agitados ou a sala de reuniões da empreiteira e cada uma das tomadas dos
seus integrantes, o que gera autênticos embates auditivos e visuais.
Além das falas, há também outras sonoridades que reforçam o am-
biente da ocupação/periferia, uma matriz musical na banda sonora que remete
à cultura negra com narrações e cantos, junto com os ruídos das flechas, fazen-
do com que o som ganhe uma projeção pela sua polifonia, ele se espalha na
vingança, transformando o ato em um esforço da ocupação contra a injustiça
promovida pelo Estado e pela empreiteira; se antepõe aos sons da cidade, da
“civilidade” e da “evolução”; assim como nas imagens de um negro andan-
do pela cidade com roupas que reativam lembranças, revivem experiências
passadas e preparam o terreno para uma ação subversiva. A vingança não só
pretende uma catarse, senão que também busca dar conta de uma forma em
que a ocupação/periferia seja ouvida.
O diretor joga com o espaço da mise en scène, das performances das
lendas de orixás, da música como afeto vibracional e de dispositivos da ficção
científica expandindo os sentidos, como vemos na cena de Odé com a flecha.
Entre os frágeis interstícios dos corpos, da fala e das imagens, habitam redes
de afetos que lançam o espectador a um universo íntimo e opaco. Os vínculos
do personagem com o passado através da reminiscência (flashbacks), da me-
lancolia, supõem concepções sobre o presente e o futuro que no filme acabam
por se politizar, pois retomam um fato verídico subscrito pela violência estatal
(repressão à ocupação), ao mesmo tempo em que rompem as noções lineares

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 133


de progressão cronológica ao trazer, não somente possibilidades de contra-
-lembranças, mas também de contra-futuros.
E esses contra-futuros se estampam nas flechas de Oxóssi, na penúlti-
ma cena, na qual Odé – armado com arco e flechas – invade uma reunião entre
empreiteiros e políticos (todos brancos!) que estavam discutindo a construção
do empreendimento imobiliário que iria expulsar os moradores da ocupação.
Isso resultou na morte de todos os presentes. Tal sequência proporciona outra
possibilidade à experiência afrodiaspórica, ampliando o panorama das subje-
tividades negras ao propor diferentes cenários de resistência.
No curta os tropos demonstram a “dupla consciência” (DU BOIS,
1999), pois transgridem as visões do futuro que são geradas pela indústria do
futuro e fomentam a desalienação do mundo do amanhã ao inserir a multipli-
cidade de futuros negros. Portanto, para resistir é necessário se apoiar num re-
servatório de memórias e, outras vezes, é preciso desenvolver (paralelamente)
a capacidade de transgredi-lo, a fim de não obstruir as possibilidades de auto-
-invenção: em última instância, de sobrevivência. É, portanto, uma memória
que transforma o passado em motivo de evocação, que provém diretamente
do futuro.
Desse modo, Rapsódia para o homem negro – “especialmente seu final
heroico alavancado pelos poderes mitológicos da cultura negra em associação
com elementos indígenas” – conclama à resistência dos(as) racializados(as) e
subalternizados(as) a partir de uma radical provocação do imaginário, pondo
em xeque a continuidade do genocídio. Nesse sentido, o curta constitui-se
em uma contribuição epistemológica para a prática antirracista através de um
“ebó epistemológico”:

O ebó se configura como o conhecimento praticado, os


ritos de encante e as tecnologias codificadas nos cruza-
mentos de inúmeras sabedorias negro-africanas trans-
ladadas e ressignificadas na diáspora, tem como efeito
operar na positivação dos caminhos. Ao incidir sobre seu
alvo o afeta, conferindo a ele mobilidade, dinamismo
e transformação. O ebó epistemológico, nesse sentido,
compreende todas as operações teórico/metodológicas/
práticas que vêm a produzir efeitos de encantamento nas
esferas de saber (RUFINO, 2016, p. 10).

134 Saberes decoloniais


Finalmente, para Rodrigo Sá, “o diferencial do potencial crítico do
cinema brasileiro contemporâneo está no fato de que o discurso está sendo
formulado justamente por aqueles mais atingidos e que historicamente estive-
ram excluídos das instâncias discursivas (como o cinema)”. Ainda de acordo
com este autor:

Rapsódia não restringe-se ao retratamento dos temas so-


ciais que envolvem o negro. O filme vai além e resgata
os elementos do Candomblé e da cultura popular negra.
As figuras místicas do imaginário afro habitam o filme e
fabulam a narrativa. Um mundo mitológico é invocado,
unindo-se ao negro nas lutas que o envolvem no presente
histórico que o filme encarna (SÁ, 2015).

Por sua vez, Chico (2016), de Eduardo e Marcos Carvalho é um curta


distópico/pós-apocalíptico, ambientando em um mundo pós-golpe de Estado
(2029), no qual “crianças pobres, negras e faveladas, são marcadas em seu
nascimento com uma tornozeleira e têm suas vidas rastreadas por pressupor-se
que elas irão, mais cedo ou mais tarde, entrar para o crime” (CHICO, 2016).
A obra “mais do que uma distopia futurística distante, trabalha especulati-
vamente a distopia do nosso presente” (FREITAS; MESSIAS, 2018, p. 2),
tendo como espaço cênico uma periferia que denuncia o fato de que os(as)
negros(as) estão sendo territorialmente cada vez mais constringidos.
Desde as primeiras cenas aparece a tornozeleira como metáfora
transversal da história de um Estado controlador e punitivista. Vemos pri-
meiro o objeto de metal no tornozelo de Nazaré (mãe de Chico), em tra-
balho de parto, deitada no chão num lugar sórdido, logo na mão de um
homem que parece ser um guarda carcerário e, finalmente, no tornozelo
de Chico, já no ano de 2029, dez anos depois. Esse objeto de monitora-
mento colocado compulsoriamente nos corpos negros, para interditá-los,
rastreá-los e patrulhá-los, funciona como forma de dominação dentro de
uma lógica de uma guerra, objetivando a destruição dos poderes locais e o
controle militar da população: “Nesse caso, a soberania é a capacidade de
definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem
não é” (MBEMBE, 2018, p. 50), ou seja, a tornozeleira pretende determi-
nar o futuro de Chico.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 135


O curta especula sobre o nosso tempo presente. Vale ressaltar que ele
“começou a ser produzido a partir de 2015, ano em que aconteceu a votação
da redução da maioridade penal para 16 anos no Brasil” (SILVA, 2017). A
obra problematiza as principais discussões sociais e raciais do Brasil contem-
porâneo, explora o papel das narrações dominantes em relação ao conflito da
maioridade penal, bem como coloca de manifesto o fato de que a punição
preventiva está sendo posta a serviço da “maquinária propagandística”: de-
nunciando as diversas manobras que efetivamente se levam no país a fim de
“provar” que sempre houve a necessidade da redução da maioridade, eviden-
ciando o gravíssimo problema do encarceramento em massa da população po-
bre e negra (lembrando que o Brasil tem a terceira maior população carcerária
do mundo) e o regime de exceção policial vigente nas periferias urbanas.
Isto fica evidente através de um plano conjunto que nos mostra Na-
zaré trabalhando em um ferro velho, paradoxalmente manuseando uma má-
quina de corte de metal, enquanto de uma televisão que não vemos emana
a voz do ministro de Segurança Pública justificando a aprovação da Lei de
Ressocialização Preventiva:

Nós temos que entender que a gente monitora os meno-


res com potencial para o crime desde 2019, 10 anos de
análise não é precipitado. Os menores de baixa escolari-
dade, baixa renda que vivem em áreas de risco, negros,
têm um potencial gigantesco de cometerem esses crimes
[...] não sou eu que digo isso, são as estatísticas (CHI-
CO, 2016).

Vemos aqui o processo de degradação da democracia que, ao mesmo


tempo que instaura na ordem interna uma lógica colonial que estreita o plu-
ralismo e incrementa a desigualdade, torna verossímil o risco de que as de-
mocracias ocidentais cumpram a função de poderosas máquinas de exclusão:

[...] com o objetivo de provocar a destruição máxima de


pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e no-
vas de existência social nas quais vastas populações são
submetidas a condições de vida que lhes conferem o esta-
tuto de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2018, p. 71).

136 Saberes decoloniais


O curta também problematiza a filtragem racial das intervenções po-
liciais, uma vez que as forças opressoras do Estado, particularmente a polícia,
relacionam negros(as) a potenciais criminosos(as). É importante ressaltar que,
ainda que o racismo seja tipificado como crime no Brasil, as comunidades
negras continuam enfrentando desigualdades na relação com a polícia e com
a justiça.
Igualmente, Chico trata da questão da banalização da violência contra
comunidades negras que são os alvos preferenciais da violência policial. Os
meios de comunicação são agentes-chave desse racismo estrutural. O discurso
midiático reproduz e enfatiza a classificação racial da sociedade. A eleição de
certos atributos relacionados às populações negras, que define e consolida um
olhar negativo sobre a negritude, vêm reafirmando a diferença racial baseada
em uma normatividade branca. Assim, o curta questiona e desvela um proces-
so de silenciamento, uma não-presença de negros(as) que não seja relacionada
a situações de violência.
Finalmente, o zelo de Nazaré pela vida do Chico radica na busca pela
possibilidade de um futuro negro que ela mesma não consegue encontrar. Há
uma frustração dos seus sonhos porque o lugar de exclusão do poder que o
racismo determina para sujeitos(as) racializados(as) parece ser o único que lhe
resta. No entanto, na busca de uma alternativa e na tentativa de não oferecer
o seu filho como a tela sobre a qual a autoridade institucional projeta sua pró-
pria visão de futuro, Nazaré o crucifica e o empina como pipa, transformando
a cena com força estética e poética numa potência geradora de resistência,
apesar de desoladora, desenvolvendo outras estratégias discursivas, que lhe
permitem se posicionar além do papel paralisante de “não-humano” que obs-
trui a capacidade de criar “futuros”, desfuturizando-a (ESCOBAR, 2017).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Narrativas como a dos curtas aqui analisados, que surgem pelo pró-
prio desejo de “re-existir” (ALBÁN, 2018), longe de apelar ao uso e à repro-
dução de imagens essencialistas e romantizadas, utilizam de modo combinado
a ironia, a comédia e o drama no momento de narrar tanto seu passado, seu
presente, como – sobretudo – seus futuros possíveis. Por meio da criação des-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 137


ses cenários, os(as) artistas conseguem mostrar a potencialidade do “novíssimo
cinema”, do “cinema negro” e do “afrofuturismo” como posturas políticas, en-
quanto nos exortam a considerar possíveis “futuros especulativos” (ALBÁN,
2018) das regiões que têm sido periferializadas.
As obras aqui analisadas produzem efeitos insurgentes, em contrapo-
sição aos modelos de desenvolvimento, de gestão das sociedades e de constru-
ção de subjetividades que (através das tentativas de cortar laços que unem o
passado com o presente e, sobretudo, com os futuros possíveis) “desfuturizam”
e pretendem imaginar futuros-outros contra-hegemônicos, subalternos, nasci-
dos das margens que habitam.
A sensação de afastamento das histórias oficiais que se evidencia nos
três curtas-metragens responde à posição de um outro(a) escravizado(a), silen-
ciado(a) e subalternizado(a) na história do Brasil, mediante a construção de
várias descontinuidades estratégicas com o tempo histórico e os espaços/terri-
tórios. Nomear e identificar o “novíssimo cinema”, o “cinema negro” e o “afro-
futurismo” com estas contra-narrativas tem a ver com reivindicar um lugar
para um grupo cuja história tem sido sistematicamente distorcida ou apagada
e cujo futuro tem se escrito predominantemente em termos da desaparição
da sua identidade cultural específica dentro da sociedade branca dominante.
Assim, vemos que há um interesse, por parte dos diretores dos três
curtas, em identificar essas histórias do passado, presente e, inclusive, do fu-
turo que nega a experiência dos(as) negro(as), procurando gerar contra-histó-
rias, a partir de estéticas insurgentes, que voltem a tecer conexões entre estes
espaços e tempos em uma nova prática de narração.
Por fim, vale esclarecer que neste texto selecionamos curtas realizados
apenas por diretores homens pois esta é uma linguagem que realizadores ne-
gros do cinema contemporâneo brasileiro têm instrumentalizado muito nos
últimos anos. Infelizmente, ainda são poucas as realizadoras negras que se
dedicam a fazer obras que podem ser encaixadas dentro dos movimentos aqui
estudados. O fato de que temos pouca representatividade de filmes realizados
por mulheres nos permite pensar/indagar no marco da “colonialidade de gê-
nero” (SEGATO, 2012).

138 Saberes decoloniais


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Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 143


UM PROJETO DECOLONIAL EM UMA
HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA (2013), DE LUIZ
BOLOGNESI
Davi Silistino de Souza1

O nervosismo e a ansiedade gerados por discussões acerca da colo-


nialidade e decolonialidade não é novidade. Maldonado-Torres (2019), ao
dimensionar algumas teses a respeito da temática, traz a incapacidade de in-
tegrantes de grupos hegemônicos em lidar com a mínima possibilidade de
redução de poder como ponto a ser discutido. Ao tratar de colonialidade e
decolonialidade, o autor tem consciência de que as rupturas e críticas ao sis-
tema-mundo moderno/colonial envolvem uma perturbação no status quo de
muitos indivíduos. No entanto, as reações geradas por parte da hegemonia a
partir de tais debates, ao invés de imobilizar o sujeito subalterno, deve servir
de força para impulsionar ainda mais a discussão.
Em entrevista à TV Boitempo, Judith Butler elucida esse aspecto ao
expor que:

O mundo que os conservadores querem destruir, o mun-


1 Doutorando em Letras pelo Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual
Paulista (UNESP) - dsilistino@gmail.com
do gay/lésbico, o mundo trans, o mundo feminista, já
é muito poderoso. Eles não têm nenhuma chance de
destruí-lo. E realmente sabem que não é apenas muito
poderoso, como também está se tornando mais podero-
so, está se tornando mais aceito. E quanto mais aceito é,
com mais raiva ficam (FANON, 2008, p. 111).

Reações como a minimização de pauta de grupos negros, conforme


ilustrado na afirmação “todas as vidas importam”, ou como a intensificação
de discursos baseados em ideologias opressivas (machismo, racismo, lgbtqia+-
fobia, etc.) por parte de líderes políticos conservadores e autoritários atestam
mais do que o jogo de “gato e rato”2, no qual as forças hegemônicas buscam
a perpetuação do não-debate. Seguindo a linha de interpretação de Butler
(2017), comparamos essa situação a de um peixe fora d`água, forte o sufi-
ciente para se debater infrutiferamente e causar rebuliço, mas enfraquecido
pelas mudanças. Assim se encontra grande parte dos grupos hegemônicos na
sociedade brasileira atual.
Relativo a essa discussão, o presente artigo se voltará à análise de como
se dá o enfrentamento a esses grupos hegemônicos por meio das propostas rela-
tivas à decolonialidade no filme Uma história de amor e fúria (2013), dirigido e
roteirizado por Luiz Bolognesi. Assim como veremos a seguir, a obra cinemato-
gráfica pode ser interpretada como representante de um projeto decolonial na
recuperação da história, da cultura e da voz subalterna no contexto nacional, e
na resistência à impulsos opressores de indivíduos em posição de poder.
O filme de Bolognesi é uma animação contemporânea brasileira que re-
constitui quatro momentos históricos nacionais distintos: o “descobrimento” do
Brasil; a Colonização e o regime escravocrata; a Ditadura Militar; e uma prospec-
tiva da sociedade do Rio de Janeiro em 2096. Nas narrativas presentes no filme,
há a presença de personagens silenciadas e subjugadas na sociedade. Vemos índios
tupinambás lutando contra a colonização europeia; negros e negras maranhenses
enfrentando a escravidão e a opressão do estado na Revolta da Balaiada; estudantes
guerrilheiros se opondo à ditadura militar; e o combate de um sistema capitalista
autoritário. A busca pela sobrevivência é constante na obra, revelando uma resis-
tência mais radical por parte das personagens subalternas.

2 FANON, 2008, p. 111.

146 Saberes decoloniais


Dentre os elementos responsáveis pela coesão das histórias no filme,
consideramos como um dos principais a perpetuação da colonialidade ao lon-
go do tempo. Apesar de sua evidente manifestação no filme e na vida, esse
conceito é frequentemente minimizado e tratado como inexistente por in-
divíduos pertencentes a grupos hegemônicos. Esse posicionamento é tratado
por Grosfoguel (2008) como um dos maiores mitos do século XX. Segundo
o teórico, esse mito traz:

[...] a noção de que a eliminação das administrações co-


loniais conduzia à descolonização do mundo, o que ori-
ginou o mito de um mundo “pós-colonial”. As múltiplas
e heterogêneas estruturas globais, implantadas durante
um período de 450 anos, não se evaporaram juntamen-
te com a descolonização jurídico-política da periferia ao
longo dos últimos 50 anos. Continuamos a viver sob
a mesma “matriz de poder colonial (GROSFOGUEL,
2008, p. 126).

De fato, apesar da independência política da maioria dos países da


América Latina, os povos ainda mantêm uma relação hierárquica com os po-
deres ocidentais, cuja dominação política e exploração econômica ainda acon-
tecem. Para além disso, os conjuntos de estruturas opressoras de indivíduos
subalternos permanecem, se reproduzem e se renovam com o passar dos sécu-
los. Em outras palavras, a sociedade ocidental carrega contemporaneamente
em suas estruturas o conceito de colonialidade, o qual corresponde a “[...]
uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na au-
sência de colônias formais” (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 36.
Uma história de amor e fúria consegue captar bem a reprodução e atua-
lização dessas estruturas, mostrando como indivíduos de diferentes grupos
identitários ao longo dos séculos sofrem opressão a partir da colonialidade. O
filme inicia mostrando as consequências da chegada dos portugueses no Bra-
sil, com o extermínio de um extenso número de indígenas, percorrendo até
um hipotético futuro em 2096, quando o sistema/mundo moderno/colonial
capitalista avança para o domínio de um dos bens essenciais para a sobrevivên-
cia humana: a água. De modo geral, em cada uma das histórias representadas
na obra de Bolognesi, vê-se uma tentativa de apagamento, silenciamento ou

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 147


extermínio de indivíduos em situações precárias e subalternizantes, seja no
quesito raça/etnia, gênero ou classe social, por exemplo.
Além do mito da inexistência da colonialidade ou de qualquer sistema
cujas instituições e relações sociais se sustentem com base em hierarquias, San-
tiago Castro-Gómez (2005) traz à discussão outra grande falácia: a “hybris do
ponto zero”. Esse conceito baseia-se na compreensão da existência de um ponto
zero relacionado à epistemologia e às filosofias, o qual seria de base eurocêntrica.
O mito, segundo o autor, provém da ideia de René Descartes (1596-1650) da
necessidade – a fim de o pensamento científico ser concreto e válido – da eli-
minação, por parte dos pesquisadores, das opiniões produzidas anteriormente
e dos contextos situacionais capazes de influenciar o resultado de experimentos
científicos. Precursor do Iluminismo e do racionalismo moderno, segundo Cas-
tro-Gómez, Descartes depreende a necessidade de ter, na pesquisa científica, um
ponto de partida, sendo os fatos e as teorias anteriores rejeitados.
A grande crítica estabelecida a esse posicionamento é a de que a afir-
mação da “neutralidade” científica e do marco inicial historiográfico propor-
ciona o silenciamento e o apagamento da cultura e do pensamento subalterno.
Em outras palavras, por meio da justificativa de imparcialidade, a perspectiva
teórica eurocêntrica continua no ápice, enquanto as subalternas permanecem
silenciadas. A respeito disso, Castro-Gómez (2005) comenta:

Começar tudo de novo significa ter o poder de nomear


pela primeira vez o mundo; de trazer fronteiras para es-
tabelecer quais conhecimentos são legítimos e quais são
ilegítimos, definindo, ademais, quais comportamentos são
normais e quais são patológicos. Segundo ele, o ponto zero
é o do começo epistemológico absoluto, mas também o do
controle econômico e social sobre o mundo. Localizar-se
no ponto zero equivale a ter o poder de instituir, de repre-
sentar, de construir uma visão sobre o mundo social e na-
tural reconhecida como legitima e garantida pelo Estado
(CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 25).3

3 “Comenzar todo de nuevo significa tener el poder de nombrar por primera vez el mundo; de tra-
zar fronteras para establecer cuáles conocimientos son legítimos y cuáles son ilegítimos, definiendo
además cuáles comportamientos son normales y cuáles patológicos. Por ello, el punto cero es el del
comienzo epistemológico absoluto, pero también el del control económico y social sobre el mundo.
Ubicarse en el punto cero equivale a tener el poder de instituir, de representar, de construir una visión
sobre el mundo social y natural reconocida como legítima y avalada por el Estado”. Tradução do autor.

148 Saberes decoloniais


Nesse raciocínio, estabelecer um ponto epistemológico inicial signi-
fica a criação de uma hierarquia que não apenas considera o pensamento su-
balterno inferior, como também sua cultura e suas outras expressões sociais/
políticas ilegítimas. A extrapolação desse raciocínio para níveis mais graves é
presenciada na obra de Bolognesi, na medida em que não apenas os indiví-
duos subalternos são tratados como inferiores, como também são tidos como
alvos de eliminação por parte das forças hegemônicas.
Na segunda história presente no filme, por exemplo, acompanhamos
momentos da vida de Manoel Balaio, homem negro casado com Janaína, filha
de uma escrava fugidia. Após vivenciar na pele a opressão do governo do esta-
do do Maranhão, Manoel começa a se engajar na luta antiescravista, provendo
os escravos com o pouco de comida obtida por sua família e transportando-os
junto de armas para os confrontos com o governo.

FIGURA 1: GUARDAS SEGURAM E AMEAÇAM MANOEL PARA IMPEDI-LO DE INTER-


ROMPER O ESTUPRO IMINENTE DA FILHA (25’12’’).

A expressão da colonialidade e da violência direcionada aos subalter-


nos é exposta na cena em que Manoel é interpelado pelo capitão do exército
do governo do Maranhão, o qual além de o ameaçar por suspeitas de ajudar
escravos fugidios, comete violências e abusos com a família de Balaio:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 149


Na figura 1, vemos o primeiro momento em que Manoel se vê em
contato com a violência do estado repressor e racista. Não somente a filha
é ameaçada de estupro, como o protagonista é imobilizado pelo policial à
esquerda e ameaçado com uma arma pelo policial à direita (cabe notar que
todos os membros da hegemonia são homens brancos).
Assim, Bolognesi retrata a opressão e o contexto de violência vividos
pelas famílias negras e pobres no início do período pós independência no
Brasil. É necessário pontuar que, assim como constataremos a seguir, o filme
também apresenta momentos de resistência subalterna, havendo a manifes-
tação de projetos ativos de decolonialidade, como a iniciativa de Manoel da
criação da revolução da Balaiada.
Ainda sobre a hybris do ponto zero e sobre a ideologia de rebaixamen-
to/silenciamento da cultura e da voz subalterna, um dos pontos mais preo-
cupantes é a introdução dessas ideias não apenas na mobilização de grupos
hegemônicos, mas também na formação e constituição do sujeito subalterno.
Franz Fanon (2008), em Peles negras máscaras brancas, revela como o coloni-
zador, ao trazer à Colônia hierarquias que desprezam a cultura e o colonizado
em si, embute uma série de ideologias racistas e preconceituosas nos indiví-
duos subalternos. Afinal, a mesma cultura mantida na Europa é direcionada
para o país colonizado. Segundo Fanon (2008),

As histórias de Tarzan, dos exploradores de doze anos, de


Mickey e todos os jornais ilustrados tendem a um ver-
dadeiro desafogo da agressividade coletiva. São jornais
escritos pelos brancos, destinados às crianças brancas.
[…] Nas Antilhas – e podemos pensar que a situação
é análoga nas outras colônias – os mesmos periódicos
ilustrados são devorados pelos jovens nativos. E o Lobo,
o Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, o Selvagem, são sempre
representados por um preto ou um índio, e como sempre
há identificação com o vencedor, o menino preto torna-
-se explorador, aventureiro, missionário “que corre o ris-
co de ser comido pelos pretos malvados”, tão facilmente
quanto o menino branco (FANON, 2008, p. 130-131).

Qual outro destino teria uma criança cuja infância se baseia em lei-
turas que reforçam a associação de pessoas de sua raça/etnia com figuras ne-

150 Saberes decoloniais


gativas? Fanon demonstra como essa formação racista leva à absorção de uma
estrutura igualmente racista, na qual o negro antilhano se identificaria com o
branco e se posicionaria contrariamente ao negro proveniente do continente
africano. Além disso, auxilia-nos a compreender os efeitos da hybris do ponto
zero nos povos de países anteriormente colonizados, os quais nutrem, incons-
cientemente, um senso de inferioridade e desprezo pela própria cultura.
Ademais, é possível notar que, a partir da colonização, foram intro-
duzidas nas Colônias uma série de estruturas opressivas. Grosfoguel (2008)
elucida que, por meio da colonização, “[...] chegou o homem heterossexual/
branco/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu, com as suas várias hie-
rarquias globais enredadas e coexistentes no espaço e no tempo” (GROSFO-
GUEL, 2008, p. 122). Essas hierarquias globais, também denominadas de
heterarquias, estabelecem quais sujeitos são valorizados e quais são rejeitados
na sociedade, impondo uma escala hierárquica de poder.
Conforme a descrição do indivíduo colonizador, podemos traçar al-
gumas das hierarquias trazidas para o Brasil: a hierarquia étnico-racial, discri-
minando os não-europeus a partir do fenótipo; a hierarquia patriarcal, prio-
rizando o homem a despeito da mulher; a hierarquia sexual, beneficiando
os heterossexuais e relegando as outras orientações sexuais e identidades de
gênero a segundo plano; a hierarquia religiosa e espiritual, favorecendo a reli-
gião cristã em detrimento das espiritualidades nativas e de outras culturas; e a
hierarquia linguística e epistêmica, privilegiando as línguas e os conhecimen-
tos produzidos na Europa.
Ao identificar as inúmeras heterarquias, no entanto, Quijano (2000)
considera que as questões raciais estariam no cerne das discussões de poder.
O pensador percebe que, conjuntamente com a diferenciação da população
entre europeus e não europeus, vem a classificação de dominantes/superiores
e dominados/inferiores, respectivamente, estabelecendo, assim, uma oposição
centrada na constituição étnica/racial.
Construindo-se a partir do choque cultural e da forte presença de hierar-
quias por parte dos grupos hegemônicos, o racismo colonial se estabelece como
justificativa para a dominação e exploração dos novos territórios “descobertos”. A
respeito de como se constitui a hierarquização a partir da raça, Quijano (2000)
explica que esta ocorre a partir da identificação fenotípica, a qual se dá:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 151


[...] em um primeiro momento, principalmente pela
“cor” da pele e do cabelo, e pela forma e cor dos olhos;
mais tarde, nos séculos XIX e XX, também por outros
traços como a forma do rosto, o tamanho do crânio, a
forma e o tamanho do nariz. [...] Desse modo, definiu-se
aos dominadores/superiores europeus o atributo da “raça
branca”, e a todos os dominados/inferiores “não euro-
peus”, o atributo das “raças de cor”.4

Dessa maneira, a raça/etnia se torna uma das primeiras e principais


hierarquias constituídas pelo colonizador, a qual está acompanhada do con-
junto de heterarquias mencionado anteriormente. O conceito de colonialida-
de, por sua vez, nos auxilia a compreender como essas hierarquias e relações de
poder, saber e ser não se limitam ao período colonial por si só, mas permane-
cem até os dias atuais. Em outras palavras, as metanarrativas machistas, racis-
tas, heteronormativas, etc. continuam até hoje, conforme podemos visualizar
inclusive no filme. Contrários a essas nefastas ideologias, os pensadores latinos
contemporâneos propõem uma forma de resistência à colonialidade e ao pen-
samento heterárquico eurocêntrico. Isso se dá por meio da decolonialidade.
Divergindo do conceito de descolonização, o qual se refere a “[...]
momentos históricos em que os sujeitos coloniais se insurgiram contra os ex-
-impérios e reivindicaram a independência a decolonialidade assume um di-
recionamento crítico e de resistência voltado às estruturas da colonialidade
(MALDONADO-TORRES, 2019, p. 43). Assim, tal concepção envolve o
enfrentamento direto das ramificações coloniais, as quais buscam reduzir, silen-
ciar e apagar os indivíduos subalternos e suas manifestações até os dias de hoje.
A obra de Bolognesi, por apresentar várias histórias que permeiam
diferentes temporalidades, permite a visualização da manutenção da coloniali-
dade mesmo com o fim do sistema colonial. Dessa maneira, o mesmo ímpeto
de subjugar os povos e grupos minoritários expostos na primeira história, com
os colonizadores portugueses realizando um genocídio indígena no território
brasileiro, é repetido nas narrativas subsequentes.
4 “[...] en un primer periodo, principalmente el ‘color’ de la piel y del cabello y la forma y el color
de los ojos; más tarde, en los siglos XIX y XX, también otros rasgos como la forma de la cara, el ta-
maño del cráneo, la forma y el tamaño de la nariz. [...] De ese modo, se adjudicó a los dominadores/
superiores europeos el atributo de ‘raza blanca’, y a todos los dominados/inferiores ‘no- europeos’,
el atributo de ‘razas de color’”. QUIJANO, 2000, p. 120, tradução nossa.

152 Saberes decoloniais


Na segunda seção do filme, por exemplo, embora o Brasil já tenha ad-
quirido a independência, vê-se que o regime escravocrata e as políticas de esta-
do racistas permanecem sem interrupção. Conforme referido anteriormente,
a violência policial contra pessoas negras, materializada na cena das ameaças à
Manoel Balaio e sua família, comprova que as estruturas hierárquicas globais
de poder são sustentadas e atualizadas conforme o decorrer do tempo.
A respeito disso, podemos notar, por exemplo, como, na última se-
ção do filme, Bolognesi traça algumas possibilidades de como a colonialidade
poderá se manifestar no futuro, mostrando a violência policial revestida da
defesa dos interesses de empresas que controlam a disponibilidade de água
potável no ano de 2096. Na cena a seguir (figura 2), vemos algumas crianças
brincando de futebol no Rio de Janeiro enquanto um grupo policial/milicia-
no, ao localizar uma garrafa de água roubada, realiza disparos.

FIGURA 2: AS FORÇAS POLICIAIS ANTES DE ASSASSINAR CRIANÇAS NO RIO DE


JANEIRO (54’04’’)

Após a fala “Fim de linha, pivete”, vemos o ataque realizado pela polí-
cia, a qual não apenas desconsidera a possibilidade de um julgamento ou um
contraditório, como também estabelece a pena de morte imediata a crianças
provavelmente em situação de vulnerabilidade social/econômica. Na figura 2,

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 153


a reação de espanto por parte do menino no plano mais próximo da câmera é
contrastada com a ação imponente e impiedosa dos policiais no plano mais ao
fundo. Apesar de o contexto, as circunstâncias e os agentes serem distintos, a
violência praticada pelo Estado se reproduz do mesmo modo como ocorre no
período da colonização, isto é, centrado principalmente na questão socioeconô-
mica e racial/étnico. Dessa maneira, o combate à colonialidade supera os limites
estruturais do regime do Colonialismo, avançando até a contemporaneidade.
A respeito da materialização do combate à colonialidade, a partir da
“formação de uma atitude decolonial”, a decolonialidade pode se desenvolver
por meio do conceito do giro decolonial, cuja função é a de conquistar:

[...] a abertura e a liberdade do pensamento e de formas de


outras vidas (outras economias, outras teorias políticas);
a limpeza da colonialidade do ser e do saber; o despren-
dimento da retórica da modernidade e de seu imaginário
imperial articulado na retórica da democracia. O pensa-
mento decolonial tem como razão de ser e objetivo a de-
colonialidade do poder (MIGNOLO, 2007, p. 29-30). 5

Os objetivos presentes no projeto decolonial envolvem trazer à luz o


pensamento crítico de estudiosos e personalidades subalternos, evidenciando
a relevância cultural, epistêmica, política e social de sujeitos oprimidos. Ade-
mais, busca-se reverter os malefícios trazidos pelo pensamento colonial de in-
ferioridade dos ex-colonizados, trazendo uma valorização da riqueza cultural
do Sul-global.
Como exemplo de giro decolonial, Mignolo (2007) introduz os escri-
tos de Waman Poma de Ayala, o qual trouxe uma contribuição de relevância
inigualável para a discussão de questões políticas, econômicas e sociais do
século XVII, mas fora, por muito tempo, silenciado e apagado da historiogra-
fia latina. Mignolo revela que Waman Poma de Ayala, habitante da região de
Peru no ano de 1616, registra, logo no início da colonização, como as tribos
Incas são tratadas pelos colonizadores, realizando uma forte crítica ao sistema
político colonial instaurado pela Espanha. Buscando substituir a perspectiva
5 “[...] la apertura y la libertad del pensamiento y de formas de vidas-otras (economías-otras, teorías
políticas-otras); la limpieza de la colonialidad del ser y del saber; el desprendimiento de la retórica de
la modernidad y de su imaginario imperial articulado en la retórica de la democracia. El pensamiento
decolonial tiene como razón de ser y objetivo la decolonialidad del poder [...]”.Tradução do autor.

154 Saberes decoloniais


histórica da época acerca das tribos indígenas e da colonização, Waman Poma
aventura-se a criar crônicas que descrevem a dura realidade da destruição da
cultura nativa.
O manuscrito, o qual fora “dedicado” ao rei Felipe III da Espanha,
muito provavelmente nem ao menos chega às mãos do rei, sendo o autor in-
dígena apagado dos relatos historiográficos relativos ao período. Somente 400
anos depois, os escritos do pensador peruano foram “descobertos”, recebendo
o devido valor por meio da ação do giro decolonial. A partir da leitura dessas
crônicas, Mignolo (2007) expõe ter havido interpretações diversas, como a
insistência por parte de conservadores na falta de inteligência de um indíge-
na. No entanto, a mais impactante é a que percebe a relevância desses textos:
“[...] a incorporação de Waman Poma no pensamento indígena como um dos
fundamentos epistêmicos (da mesma forma que Platão e Aristóteles têm sido
interpretados no pensamento europeu)”. 6 7
De fato, a interpretação trazida por Mignolo é impactante, no senti-
do de que subverte de modo integral a epistemologia ocidental, pois o dito
“ponto zero” estaria sendo desafiado com o surgimento de outras perspectivas
teóricas e críticas de uma localidade distinta da eurocêntrica. Mesmo séculos
depois, o giro decolonial realizado a partir dos escritos de Waman Poma supe-
ram o tempo-espaço tradicional, vindo a influenciar e modificar ideologias e
visões das sociedades contemporâneas.
De forma semelhante, vemos na obra de Bolognesi um movimento
característico do giro decolonial, na medida em que se busca resgatar vozes
latino-americanas apagadas da historiografia, realçando sua relevância atem-
poral para a história e cultura brasileira. Ao trazer a perspectiva dos indígenas
tupinambás, dos negros escravos e ex-escravos, dos opositores à ditadura mi-
litar, e de grupos de resistência ao domínio das corporações no futuro, Uma
história de amor e fúria traz a luz diversas experiências únicas de personagens
subalternas latino-americanas. Uma das mais emblemáticas é a segunda seção
no filme, pois vemos a exposição de parte da Revolta da Balaiada, tendo como
protagonista um dos líderes do movimento: Manoel Balaio.

6 MIGNOLO, 2007, p. 34, tradução nossa.


7 “[...] la incorporación de Waman Poma en el pensamiento indígena como uno de sus fundamentos
epistémicos (a la manera como han sido interpretados Platón y Aristóteles para el pensamiento europeo)”.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 155


Apesar de ser uma obra fictícia, Uma história de amor e fúria é for-
temente baseado em fatos reais, como, por exemplo, o assalto a bancos por
parte de guerrilheiros oposicionistas à ditadura militar, e a própria Revolta da
Balaiada, movimento protagonizado por indivíduos oprimidos no território
do Maranhão. Segundo Birardi, Hörner e Castelani (2001), a Balaiada con-
tou com vários líderes de diferentes frentes, como Raimundo Gomes Vieira,
responsável por liberar detidos em uma prisão em Vila de Manga, município
em Maranhão, e por iniciar a Balaiada; Cosme Bento, líder de um grande qui-
lombo com milhares de escravos fugitivos, mencionado no filme; e Manuel
dos Anjos Ferreiro, o qual deu nome ao movimento por ser conhecido como
“balaio”, justamente por fazer cestos/balaios, assim como a personagem no
filme. A parceria entre as lideranças referidas auxiliou na articulação da popu-
lação maranhense – principalmente os de classes mais baixas e de raça/etnia
negra – a se revoltarem contra o sistema político vigente e contra a escravidão.
No que tange à historiografia maranhense, é triste perceber um movi-
mento válido como o da Balaiada sendo descaracterizado e diminuído por ser
protagonizado por pessoas subalternas, oprimidas em uma sociedade injusta:

Os balaios foram vistos como pertencentes às “classes


inferiores”, sem princípios, ladrões e viciados. Não obs-
tante, eram designados como “homens de cor”, negros,
índios e mestiços. Tal designação demonstra o precon-
ceito sócio-econômico e racial que havia na sociedade
maranhense, ou seja, preconceitos de “casta”, com os
quais a aristocracia se protegia do contato com os pobres
(BIRARDI; HÖRNER; CASTELANI, 2001).

O preconceito e o racismo estão entranhados nas estruturas coloniais,


pois, desde o Colonialismo até os tempos contemporâneos, as sociedades oci-
dentais e as classes elitistas lucram e se beneficiam dessas heterarquias. Não é
de se surpreender que os integrantes da revolta da Balaiada tenham buscado
formas intensas e duras de resistência à opressão histórica colonial, tendo em
vista a violência e a opressão aos quais estavam submetidos.
Apesar da tentativa de silenciamento da voz e da importância do mo-
vimento, o qual durou várias décadas, consideramos a atuação de historiado-
res contemporâneos e de artistas, como Bolognesi, essenciais para a realização

156 Saberes decoloniais


de um projeto decolonial. O resgate dessas personagens e desses eventos con-
tribui para percebermos a força e relevância sociocultural nacional.
Além disso, Uma história de amor e fúria também colabora com um
projeto decolonial brasileiro na medida em que resgata parte das lendas e es-
piritualidades indígenas. Assim, percebemos que as narrativas no filme não se
unem apenas pela temática de resistência e luta contra opressão no contexto
nacional, mas também pelo fato de a protagonista ser capaz de “renascer” em
novos corpos e temporalidades. Na primeira seção, é dada à personagem prin-
cipal masculina Abeguar um destino único: ser um guerreiro imortal com o
poder de se transformar em um pássaro quando morre e de renascer em outro
corpo em localidades e tempos diferentes. Apesar de a protagonista feminina
Janaína também renascer nas diferentes seções, apenas Abeguar consegue se
transformar em pássaro e se lembrar das vidas anteriores.
Esses eventos lendários apresentados na obra não são apenas frutos da
imaginação de Bolognesi. Em entrevista ao site UOL, Bolognesi declara: “É
uma história inventada [...] mas a partir da mitologia indígena. Pesquisei mui-
tas lendas e criei a história do filme com base nelas. Índios que viram pássaro
são uma constante na mitologia de nossos índios” (BOLOGNESI, 2013).
Dessa forma, o resgate de lendas de tribos indígenas, embora permeado de
algumas adaptações para o gênero cinematográfico, é mais uma das diversas
manifestações de cunho decolonial presentes no filme.
Por fim, gostaríamos de abordar a forma como a decolonialidade com-
preende o tempo/espaço e como o filme de Bolognesi é capaz de representar esses
conceitos. Considerando a proposta dos estudos decoloniais em valorizar e resga-
tar vozes importantes da história e da cultura de países latinos, é de se supor que
haveria uma diferenciação da visão de tempo/espaço apresentados pelo pensamen-
to moderno/colonial. Conforme já visto na conceitualização de Castro-Gómez
(2005), para o pensamento eurocêntrico, há a necessidade do estabelecimento
de um marco inicial da epistemologia, por meio do qual se determina alguns
conhecimentos como válidos e outros como descartáveis, além de estabelecer uma
cronologia de eventos de mão única, com um início, meio e fim.
O pensamento pós-colonial, assim como as teorizações decoloniais,
trazem uma alternativa para essa visão temporal hegemônica. O pensador in-
diano Homi K. Bhabha, ao tratar especificamente dessa temática, revela:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 157


[...] o tempo pós-colonial questiona as tradições teleo-
lógicas de passado e presente e a sensibilidade polarizada
historicista do arcaico e do moderno. Essas não são sim-
plesmente tentativas de inverter o equilíbrio do poder
dentro de uma ordem de discurso inalterada (BHABHA,
2013, p. 248-249).

Dessa maneira, a contraposição ao pensamento moderno/colonial en-


volve criticar essa perspectiva e trazer uma nova concepção de tempo/espaço,
na qual as vozes subalternas são ouvidas. Utilizando-se a nomenclatura de
temporalidade performática, Bhabha concebe esse tempo como proveniente
de uma cisão temporal e da emergência de vozes oprimidas, as quais surgem
de fissuras abertas forçosamente na temporalidade hegemônica. Assim, a pers-
pectiva da alteridade passa a ter um local de exposição e a ser ouvida, podendo
se contrapor aos discursos marginalizantes.
Apesar disso, segundo Maldonado-Torres (2019), “De uma perspec-
tiva moderna [...], a decolonialidade é frequentemente representada como
tentativa de retorno ao passado ou como um esforço em retroceder a for-
mações culturais e sociais pré-modernas”, com uma narrativa construída a
fim de desestabilizar e, mais uma vez, rebaixar a perspectiva subalterna. Ao
descrever a iniciativa decolonial como uma busca pelo pré-moderno, vemos
uma tentativa de se estabelecer uma norma moderna/colonial a partir de uma
generalização e incompreensão do pensamento decolonial.
Para os estudos decoloniais, a temporalidade performática/subalterna
não se limita a saudosismos e buscas pelo pretérito. Pelo contrário, as vozes opri-
midas latinas do passado são resgatadas a fim de trazer uma nova perspectiva ao
presente e pavimentar o caminho para o futuro. Mais do que isso, defendemos
que o ato de decolonizar envolve considerar o tempo/espaço de forma simultâ-
nea e não linear, sem o estabelecimento de marcos iniciais ou finais.
Corroborando essa tese, podemos vincular a interpretação de Santana
(2014) acerca da representação do deus Chronos, divindade que personifica o
tempo. Uma de suas possíveis expressões imagéticas é a de Chronos com uma
serpente rodeando o braço e a mão, denotando, segundo a autora, um tempo
que serpenteia de forma espiralar, isto é, um tempo ambivalente e sem dura-
ção. Segundo Silistino-Souza (2018),

158 Saberes decoloniais


Apresenta-se agora a possibilidade de um movimento di-
fuso, com diversos destinos incertos nos quais a narrativa
perpassa, reconhecendo que passado, presente e futuro
estão intimamente conectados, e que as subalternidades
não mais são completamente marginalizadas e esqueci-
das (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 29-30).

Essa manifestação temporal subalterna pode ser notada, por fim, em


Uma história de amor e fúria. A atuação da obra como parte de um projeto
decolonial, além de acontecer ao abarcar múltiplas vozes de indivíduos opri-
midos no contexto nacional, ocorre também por meio da intercalação tempo-
ral não teleológica. A utilização de lendas acerca do renascimento em épocas
e localidades diferentes após a transformação da personagem principal em
um pássaro rompe com o senso temporal hegemônico e cronológico, pois há
uma interconexão entre as temporalidades subalternas. Na obra de Bolognesi,
o passado, o presente e o futuro estão interligados de forma indissociável na
trajetória dos heróis: os aprendizados dos indígenas, dos escravos, dos guerri-
lheiros contrários à ditadura militar e dos manifestantes contrários à milícia
e ao monopólio empresarial de água se complementam para constituir uma
história de resistência.
Obras artísticas como a de Bolognesi, a qual deve ser reconhecida tam-
bém por seus méritos estéticos, trazem uma contribuição inigualável para um
projeto maior de enfrentamento à colonialidade e suas ramificações hierárquicas
na sociedade brasileira. Seja ao resgatar nossas histórias, eventos e lendas, seja
ao quebrar com a tradição do tempo teleológico hegemônico, Uma história de
amor e fúria abre espaço para a manifestação de vozes subalternas e nos faz con-
cordar com os dizeres de Judith Butler: nosso mundo já é muito poderoso e as
forças modernas/coloniais não tem chance nenhuma de destruí-lo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BIRARDI, Angela; HÖRNER, Erik; CASTELANI, Gláucida Rodrigues.
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UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA. Direção: Luiz Bolognesi. Rotei-
ro: Luiz Bolognesi. Produção: Fabiano Gullane, Caio Gullane, Luiz
Bolognesi, Laís Bodanzky, Marcos Barreto, Debora Ivanov e Gabriel
Lacerda. [S.l.]: Buriti Filmes e Gullane, 2013. 75 min.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 161


DESLOCAMENTOS DE CAROLINA NA
AMÉRICA HISPÂNICA:
ALGUNS APONTAMENTOS A PARTIR DAS
TRADUÇÕES DE QUARTO DE DESPEJO PARA
O ESPANHOL1
DESPLAZAMIENTOS DE CAROLINA EN HISPANOAMÉRICA: ALGUNOS
APUNTES A PARTIR DE LAS TRADUCCIONES DE QUARTO DE DESPEJO AL
ESPAÑOL

DISPLACEMENTS OF CAROLINA IN HISPANIC AMERICA: BRIEF NOTES ON


THE QUARTO DE DESPEJO TRANSLATIONS TO SPANISH

Bruna Macedo de Oliveira2


Mario René Rodríguez Torres3

1 O presente texto é a tradução para o português, com pequenas alterações, do artigo “Desplaza-
mientos de Carolina en Hispanoamérica: algunos apuntes a partir de las traducciones de Quarto de
despejo al español” aparecido em espanhol na revista Belas Infiéis v. 10 n. 1 (2021).
2 Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. E-mail: bruna.oliveira@unila.
edu.br
3 Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. E-mail: mario.torres@unila.
edu.br
Penélope Serafina Chaves Bruera4
Deslocamentos de Carolina

A vida e a obra de Carolina Maria de Jesus são marcadas pelos deslo-


camentos. Quando criança, com sua família, em busca de melhores condições
de vida, transitou entre fazendas e povoados dos estados de Minas Gerais e de
São Paulo. Em 1937, após a morte de sua mãe, decidiu deixar o campo e partir
para a cidade grande (São Paulo), como tantos migrantes da época (MEIHY e
LEVINE, 1995). Em 1948, depois de ser uma das pessoas despejadas da rua
Antonio de Barros, foi residir às margens do Tietê, no espaço que viria a ser a
Favela do Canindé. A partir desse momento, como catadora de material reci-
clável, Carolina se moveu constantemente entre o “quarto de despejo”, como
ela chamava a favela, e a “sala de visitas”, o centro da cidade.
Ao falar de deslocamento em Carolina Maria de Jesus, convém come-
çar reconhecendo que muitos dos realizados pela autora em sua vida se deve-
ram a situações de precariedade e violência. Também é pertinente recordar
que o termo aqui privilegiado “deslocamento”, em espanhol “desplazamiento”,
remete, entre outras coisas, às pessoas que foram forçadas a deixar seu lar
dentro dos limites de um país, isto é, ao chamado deslocamento interno ou
forçado. O uso da expressão “deslocamento forçado” [desplazamiento forzado]
é particularmente comum na Colômbia, país para o qual realizamos a recente
tradução Cuarto de desechos y otras obras, de que trataremos a seguir. Por si só,
e com relação a Carolina, o termo deslocamento evoca histórias de violência
e é importante não perder de visto isso, embora outras situações e sentidos
vinculados a tal palavra sejam também considerados.
Assim como Carolina foi obrigada a realizar certos deslocamentos,
também os caminhos percorridos por sua obra foram, em boa medida, impos-
tos por outros, posto que a versão final da maioria dos livros publicadas por ela
em vida foi determinada por seus editores, sem considerar a opinião da autora
(PERPÉTUA, 2014; FERNANDEZ, 2019a). Apesar disso, sua escrita não
deixou de se movimentar, e não deixa de se movimentar, em outros sentidos.
Por isso, as palavras que Silviano Santiago usou para definir o lugar da lite-
ratura latino-americana soam particularmente precisas e duras com relação a
4 Mestranda em Estudos de Tradução (PGET/UFSC). E-mail: serafinachaves@gmail.com

164 Saberes decoloniais


essa autora: seu lugar estaria “entre a prisão e a transgressão, entre a submissão
ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a
expressão” (SANTIAGO, 2000 [1971], p. 26).
Em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, ensaio publicado
em 1971, época em que Carolina estava relegada ao esquecimento, Santiago
propunha como tarefa fundamental da crítica atender à diferença da literatura
latino-americana. Sua principal referência, como sabemos, era Jacques Derri-
da, o qual era colocado em diálogo com autores como Roland Barthes, Michel
de Montaigne, Claude Lévi-Strauss, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Em
seu ensaio, Santiago afirmava que a “infiltração progressiva efetuada pelo pen-
samento selvagem” na “noção de unidade” abria o “único caminho possível
que poderia levar à descolonização” (SANTIAGO, 2000 [1971], p. 15). Hoje
em dia, após a ampla divulgação da chamada teoria decolonial, parece neces-
sário enfatizar que atender à diferença de que fala Santiago implica que seja
pensada a relação entre esta e as divisões de gênero e raça, além das de classe,
que sustentam a ordem social herdade da colônia.
Quando se relê “O entre-lugar do discurso latino-americano” a partir
de uma autora como Carolina Maria de Jesus, sentimos que a noção de “escri-
tor latino-americano” com que Santiago trabalhava nesse momento era ainda
muito homogênea (e masculina). Se no seu ensaio o escritor latino-americano
é definido como um tradutor/transgressor/transformador da cultura que lhe
foi imposta, o caso de Carolina – mulher negra, vinda da zona rural e que
viveu na favela – nos lembra da necessidade de considerar as operações de
tradução/transformação que ocorrem na periferia da periferia, e as que são
realizadas pelas/os/es subordinadas/os/es dos subordinados. Seguindo Judith
Butler, podemos afirmar que sem essa tradução da tradução, a primeira, re-
petindo a imposição cultural à que respondia, só poderia cruzar fronteiras
“de maneira colonial e de acordo com uma lógica expansionista” (BUTLER,
2000, p. 35), fechando “a possibilidade contra-colonial da tradução” (ibidem,
p. 37)5. A luta por “‘deslocar teoricamente o signo’ do ocidente em direção a
novas geografias e línguas descoloniais, teóricas ou outras” (COSTA, ÁLVA-
REZ, 2013, p. 584), de que falam Claudia de Lima Costa e Sonia E. Álvarez,

5 As citações dos textos de Butler (2000), Sahovaler (1961), Trejo (1965), Burneo Salazar (2018),
ASALE (2007) e Ribeiro (2019) são traduções nossas ao português.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 165


requer que as traduções das traduções que mencionamos, por sua vez, sejam
retraduzidas de diferentes formas, incluída a tradução, em sentido mais restri-
to, interlinguística.
Na sequência interessa-nos fazer algumas considerações sobre a forma
em que Carolina foi deslocada ao espanhol, assim como alguns deslocamentos
de sentido que provoca ao ser traduzida/lida/reescrita nessa língua. Para isso,
contaremos com as traduções realizadas para o espanhol de Quarto de despejo
na década de 1960 e, principalmente, em nossa recente experiência como tra-
dutores do livro Cuarto de desechos y otras obras, surgido em 2019.

AS TRADUÇÕES DA DÉCADA DE 1960

Antes de falar especificamente das traduções de Carolina para o espa-


nhol, convém precisar que a publicação de Quarto de despejo mais do que a
saída da escritora e de sua obra da favela, representou, na ocasião, a saída da
própria favela de seu lugar circunscrito para se apresentar, sem maquiagem e
sem a bela fantasia que lhe havia sido colocada pelos sambas (DANTAS apud
PERPÉTUA, 2014), perante os cidadãos do Brasil e, mais tarde, do mundo.
Como bem demonstra Elzira Divina Perpétua, em seu estudo A vida
escrita de Carolina Maria de Jesus (2014), a pauta de leitura proposta pelas pri-
meiras edições de Quarto de despejo (incluindo os paratextos e projeto gráfico),
que teve tanto sucesso, era a do documento autêntico que revelava, a partir de
um olhar de dentro, esse espaço desconhecido para o público leitor, mas cada
vez mais presente nas cidades brasileiras. O que legitimava e tornava valiosa
a obra de Carolina era a sua autenticidade, que não teria parecido suficiente-
mente realista e atraente sem a realização de certos recortes e seleções, sem a
montagem de alguns cenários e a criação de uma personagem; isto é, sem toda
a rede ficcional.
Recortes e seleções como os que foram realizados por Audálio Dan-
tas, o jornalista que editou Quarto de despejo e Casa de alvenaria, nos escritos
da autora. Como se sabe, entre os múltiplos textos presentes nos cadernos
que Carolina apresentou a Audálio, este não escolheu publicar seus poemas,
contos, romances ou peças de teatro, como ela queria, mas fragmentos de seu
diário, o qual a autora havia abandonado e retomou a pedido do jornalista.

166 Saberes decoloniais


Audálio pediu a Carolina que, a partir daquele momento, escrevesse tudo o
que via a seu redor, daí que Quarto de despejo - diário de uma favelada pareça,
em muitas partes, mais um caderno de campo de uma etnógrafa ou de uma
repórter (SOUSA, 2011) do que um diário íntimo.
Os cenários foram as recriações da favela montadas na livraria da edi-
tora Francisco Alves, que publicou Quarto de despejo, ou em sets de televi-
são onde Carolina era convidada para falar de seu livro6. Os publicitários
da época entenderam que a ‘autenticidade’ de Carolina podia servir tanto à
denúncia como ao espetáculo. Para quem assim desejasse, Quarto de despejo
podia oferecer uma visão dos horrores da favela a uma distância segura. Nesse
sentido, pode-se dizer que o livro deu lugar a uma das primeiras formas de
turismo na favela. Quarto de despejo, esse duro testemunho sobre a fome, pode
ser considerado também, devido às operações de montagem descritas, uma
experiência precoce do consumo da pobreza que será comum no início do
século XXI (BENTES, 2007).
O personagem criado foi, por sua vez, o de Carolina, pois a autora foi
transformada na imagem da favela. Por isso, embora em seu dia a dia já não se
vestisse de tal forma, pediam à autora que aparecesse, em diferentes meios de
comunicação, com suas roupas de favelada, incluindo o icônico lenço branco
na cabeça (FERNANDEZ, 2019b). Diríamos que, justamente por não estar
mais na favela, pediam à escritora que tornasse visível o que seria a sua identi-
dade imutável e sem fissuras de favelada, uma identidade que não poderia ser
mais do que imaginária.
Essa imagem, a personagem de Carolina com o lenço na cabeça, ocu-
pará também a capa de muitas das edições de Quarto de despejo fora do Brasil,
como a realizada na Argentina em 1961 (ver o quadro 1 abaixo). O estudo
já mencionado de Elzira Divina Perpétua indica que na grande maioria das
edições que foram feitas desse livro em outras línguas, no século XX, a questão
da autenticidade foi também central. A julgar pelos textos de apresentação
que a crítica analisa, traduzir Carolina implicava fundamentalmente o com-
promisso e o desafio de transmitir a autenticidade de sua obra. Essa orientação
é, certamente, identificável nas edições das duas traduções para o espanhol

6 A esse respeito, indicamos a leitura das páginas 34, 67, 70 e 72 de Casa de alvenaria (JESUS,
2019).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 167


de Quarto de despejo realizadas na década de 1960 que, de resto, apresentam
matizes significativamente diferentes.
A primeira foi a já aludida edição argentina, publicada pela editora
Abraxas com o título Quarto de despejo. Diario de una mujer que tenía hambre,
e que contou com várias reedições. A diferença mais evidente entre esta e a
outra edição em espanhol, a realizada em Cuba por Casa de las Américas, em
1965, é que a tradutora Beatriz Broide de Sahovaler reconhece na escrita de
Carolina uma “alma de poeta” e um “inato senso da estética” (SAHOVALER,
1961, p. 9-10), segundo declara em seu prólogo da obra. Talvez por isso a
questão da intraduzibilidade da escrita de Carolina apareça na referida edição,
embora apenas seja colocada para o título. Beatriz Broide decide não traduzir
o título “quarto de despejo” porque seria uma imagem acertada e sem equi-
valentes adequados em espanhol para referir-se “ao lugar onde se jogam as
coisas que não servem, o quarto de trastes velhos que a sociedade dissimula e
se empenha em ignorar” (ibidem, p. 7). “Quarto de despejo” funciona como
sinônimo, na obra de Carolina, de outra palavra (e subentendida uma realida-
de) que, conforme explica Audálio no começo de seu prefácio para essa edição
em espanhol, é também intraduzível: favela.
O repórter argumenta que favela se refere a uma realidade particular
brasileira, mas que é produto de processos históricos que ocorrem em nível
global e produzem realidades semelhantes: “Esse problema típico das grandes
cidades industrializadas, que recebem grandes massas de homens rurais, os que
fogem do campo em busca de melhores salários” (ibidem, p. 12). O livro de
Carolina retrataria “de forma direta, crua, sem artifícios, o que é a miséria” pro-
duzida pela modernização, uma miséria ao mesmo tempo particular e comum.
Por isso Quarto de despejo seria “universal, apesar de particularizar a tragédia
humana” (ibidem, p. 15), o que justificaria sua tradução para outras línguas.
Na edição argentina de Quarto de despejo, Carolina é apresentada, por-
tanto, como uma escritora com alma de poeta, intraduzível até certo ponto,
mas que realiza um retrato “sem artifícios” da realidade. Ela seria uma poeta,
mas não dessas que fingem ou fabulam. Pelo contrário, diz a tradutora Beatriz
Broide, em sua escrita “a sinceridade de seus sentimentos aparece comove-
dora em toda sua espontaneidade. A realidade é implacável em toda a sua
crueldade” (SAHOVALER, 1961, p. 9). Carolina escreveria de forma sincera

168 Saberes decoloniais


e espontânea; portanto, como as crianças, não poderia mentir. Assim, apesar
de a tradutora reconhecer uma qualidade estética na escrita de Carolina, a
sua autenticidade é novamente colocada como valor central: “Estamos diante
de um verdadeiro documento, e como tal deve ser considerado e estudado”
(ibidem, p. 9).
Dada a ênfase na sinceridade sem artifícios de Carolina, entende-se
a decisão da tradutora de suprimir em espanhol tudo o que pudesse tirar
a transparência do texto. A tradução tende a normalizar, isto é, padronizar
a escrita de Carolina. Assim, Beatriz Broide decide não reproduzir as faltas
ortográficas, que Audálio tinha conservado em português como prova de au-
tenticidade do documento que editava, nem alguns aspectos que dão à escrita
da autora um tom mais oral. Igualmente, tende a substituir por usos comuns
“o vocabulário seleto”, as palavras que “não são de uso comum no ambiente
em que vivia” Carolina e que esta “ingenuamente” se preocuparia em usar,
embora não o fizesse sempre “com propriedade” (ibidem, p. 9), como no caso
de “afluir”, “abluir”, “zarpar” e “galgar”. Mais adiante, no quadro 2, pode-se
ver um exemplo dessas operações de padronização.
Como a edição de Abraxas, a de Casa de las Américas, que tem como
título La favela, também tende a padronizar a escrita de Carolina, com a di-
ferença de que opta por deixar certas irregularidades visando ressaltar, justa-
mente, sua impropriedade. Esse objetivo se torna evidente em várias das notas
de rodapé que, diferentemente da edição argentina, não se limitam a explicar
elementos contextuais ao leitor (comidas, costumes, personagens conhecidos
do público brasileiro), mas apontam o que são considerados problemas do
original ou texto-fonte. Por exemplo, depois da oração “Le di un pedazo a cada
uno, puse el frijol al fuego que conseguí ayer en el Centro Espiritista de la Calle
Vergueiro 103” [Dei um pedaço para cada um, pus o feijão no fogo que con-
segui ontem no Centro Espírito da Rua Vergueiro 103] aparece uma nota de
rodapé que diz: “Sintaxis confusa en el original. Naturalmente «puso al fuego el
frijol que consiguió en. . . » N.d.T.” [Sintaxe confusa no original. Obviamente
«pôs no fogo o feijão que conseguiu no. . . » ] (JESUS, 1965, p. 19). Depois
da frase “hablé que vivía en una favela” [falei que vivia em uma favela], uma
nota explica: “Confuso en el original. Posible: le dije que vivía en una favela, etc.
N.d.T.” [Confuso no original. Possivelmente: disse que vivia em uma favela]

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 169


(JESUS, 1965, p. 34). Com qualquer outra autora e autor da literatura seria
impensável notas de tradução desse tipo, mas, como se trata de Carolina, é
necessário esclarecer que se há algo confuso o problema é do texto-fonte, in-
clusive quando é feita uma tradução tão inadequada como “hablé que...” para
“falei que...”, que em português é uma fórmula normal e aceita (o natural seria
uma tradução por “dije que”, como se faz na nota). Pode-se deduzir que, com
esse mesmo espírito de marcar incorreções, o tradutor decide deixar a ortogra-
fia irregular com a que Carolina escreve palavras de origem estrangeira, como
“shou” (show) (p. 110), “gilete” (gillette) (ibidem, p. 93) e “pulover” (pullover)
(ibidem, p. 127).
A tradução de Casa de las Américas, sem indicação de autoria, segue
a proposta de leitura aberta no prólogo do livro, elaborado por Mario Trejo
(1965, p. VII), o qual adverte que Quarto de despejo não deve ser considerada
uma obra literária (não teria qualidades poéticas ou estéticas), mas

[...] apenas grito, protesto, rebeldia, subliteratura. Pois


não devemos nos esquecer de que de uma subvida só
pode nascer uma subliteratura. E as memórias de Caroli-
na Maria de Jesus valem justamente pela força, a cruelda-
de, a impudicícia de uma matéria-prima em descoberto.
(TREJO, 1965, p. VII)

Para Trejo o livro de Carolina só vale por sua denúncia da expressão


local de uma realidade global: a dos “bairros indigentes” (ibidem, p. X) que
se caracterizariam pela carência de tudo, inclusive de cultura. Por isso essa
realidade não poderia gerar produtos culturais, mas “subprodutos” (ibidem,
p. XI) como Quarto de despejo. Curiosamente, o mesmo Trejo que estabelece
tal relação é o que nos chama a atenção para a “confusão” comum na época de
“identificar o meio, [...] a favela [...], com sua autora” (ibidem, p. XI). Trejo
recorda, com razão, que Carolina escrevia contra a favela, que era um espaço
de que queria sair, e não a favor, como queria um “esquerdismo ingênuo, su-
perficial e lírico” (ibidem, p. XIII). Da seriedade com que Casa de las Améri-
cas propõe assumir este livro de denúncia, sem romantizações ou estetizações,
é expressiva a sóbria capa sem ilustrações.

170 Saberes decoloniais


QUADRO 1: CAPAS DAS TRADUÇÕES PARA O ESPANHOL DE QUARTO DE DESPEJO.

Elaboração: autores, a partir do arquivo próprio.

Entre as muitas coisas que mudaram da década de 1960 para cá está


o fato de que deixou de ser possível definir as favelas exclusivamente como o
espaço da falta ou da ausência (de estrutura, de ordem, de lei, de cultura, de
moral). Hoje é cada vez maior o reconhecimento das favelas como espaços
complexos, habitados por agentes e atores diversos com demandas próprias
(SOUZA; SILVA, 2019), que não se encaixam na simples denominação de
“pessoas necessitadas”. Mario Trejo dá um bom exemplo das limitações que a
visão da favela como puro espaço de falta (da ausência e do erro) impõe. Para
o crítico, as únicas fontes literárias de Carolina eram as “revistas e romances
baratos” que ela encontrava no lixo, ou seja, uma “subliteratura” (TREJO,
1965, p. XI) que não podia dar origem a uma obra verdadeiramente literária.
Ao dizer isso, Trejo não apenas ignora que Carolina leu clássicos da literatura
canônica, principalmente portugueses, em diferentes momentos de sua vida
— por exemplo, na época que trabalhava como empregada na casa do doutor
Euryclides de Jesus Zerbini —, mas que também sua formação literária se deu
através de outras tradições, como a arte da narração oral em que seu avô se
destacava. A escrita de Carolina é produto, portanto, de uma multiplicidade
de fontes e tradições, como advertem, no Brasil, uma série de novas leituras
críticas de sua obra, como as realizadas por Raffaella Fernandez, Elena Pajaro
Peres e a já mencionada Elzira Divina Perpétua7.

7 Uma lista bastante completa da fortuna crítica sobre Carolina pode ser encontrada no website “Vida
por escrito”, organizado por Sergio Barcellos. Disponível em: < https://www.vidaporescrito.com/>.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 171


As novas leituras da obra de Carolina não só são impulsionadas por
uma nova crítica, mas também por novas escritoras e escritores, a grande
maioria vinculados à chamada literatura marginal periférica, que surgiu nas
favelas ao final da década de 1990 e início dos anos 2000, e que mudou a
compreensão que se tinha da literatura brasileira até o momento. Figuras cen-
trais dessa nova literatura como Ferrez, Sergio Vaz, Allan da Rosa e Tula Pilar
reconhecem Carolina como uma precursora; isto é, não só uma importante
voz de denúncia, mas como uma escritora com todas as letras.
Outra mudança significativa da década de 1960 para cá é, então, o
surgimento de um novo público leitor de Carolina. Se nos anos 1960, no Bra-
sil e no exterior, as edições da obra da autora tinham como destinatário o “ho-
mem culto”, como se diz na orelha da edição de Abraxas de Quarto de despejo,
ou seja, o homem que habitava “a sala de visitas”, com sua biblioteca, hoje
Carolina é amplamente lida no Brasil a partir de outros lugares, incluindo as
favelas. É evidente que, desde o começo, a obra de Carolina contou com ou-
tras leitoras e leitores, mas esses passavam (quase) despercebidos. É o caso da
empregada doméstica Joana Josefina Evaristo, que começou a escrever depois
de ler Quarto de despejo. Dona Joana é mãe de Conceição Evaristo, escritora
negra cuja obra é uma das mais reconhecidas da literatura brasileira atual. Ou-
tro caso de que temos notícia é o da líder social e escritora martinicana Fran-
çoise Ega, que trabalhava como empregada doméstica na França quando, em
1962, leu um fragmento dos diários de Carolina na revista Paris Match, leitura
que a motivou a escrever uma série de cartas destinadas à autora brasileira,
que apareceram em forma de livro anos depois, em 1978, sob o título Lettres
à une noire. Como diz Regina Dalcastagnè, que se referiu recentemente aos
dois casos citados, a escrita de Carolina convida implicitamente os “leitores [a]
se transformem em novos produtores” (DALCASTAGNÈ, 2017, s/p). Para
Françoise Ega estabelecer uma correspondência com Carolina era impossível,
mas também era algo que não poderia deixar de fazer. Hoje, outras leitoras
e leitores a partir da periferia continuam e atualizam, de diferentes formas, o
trabalho de Ega, ressignificando a obra de Carolina.
Quarto de despejo já não é o mesmo livro que apareceu no Brasil em
1960. As novas leituras em português feitas desta e de outras obras de Caro-
lina indicam a pertinência de que se empreendam também novas leituras da

172 Saberes decoloniais


produção dessa autora em espanhol e em outras línguas8. Isso implica novas
formas de apresentá-la, transportá-la, reescrevê-la e inscrevê-la em outras lín-
guas. Nossa recente tradução colaborativa de Cuarto de desechos y otras obras,
publicada pela editora Uniandes (2019) e, posteriormente na Argentina, pela
editora Mandacaru (2021), é fruto dessa percepção. Se a motivação e o desafio
das traduções para o espanhol dos anos 1960 era a autenticidade de um docu-
mento que revelava uma miséria local, mas que podia e devia ser reconhecida
também como fenômeno global (e isso, sem dúvida, teve e tem importância),
hoje o desafio de novas traduções seria corresponder à singularidade de uma
escrita que tem dado lugar e se conecta com outras formas de escrever (com
escritas outras) no Brasil, com o objetivo de ampliar seu impacto e conexões
mais além das fronteiras desse país. Hoje interessa reconhecer e ampliar as
redes entre potências periféricas locais e globais.

NOSSA TRADUÇÃO COLABORATIVA

Por tradução colaborativa ou coletiva se entende toda prática com-


partilhada de tradução que envolve mais de uma pessoa em um projeto tradu-
tório. Com efeito, ela existe desde o início desse ofício, e dela são exemplos a
chamada Septuaginta — a tradução da bíblia do hebraico para o grego reali-
zada por mais ou menos setenta eruditos judeus — ou a Escola de Tradutores
de Toledo — onde, no século XIII, muitos se dedicavam a traduzir os textos
clássicos alexandrinos, quando a tradução ainda não era considerada uma dis-
ciplina autônoma e independente.
Como afirma O’Brien (2011), há também uma segunda categoria
desse tipo de tradução, segundo a qual a colaboração se dá entre a/o que
escreve o texto e a/o que o traduz. Um dos exemplos mais conhecidos, no
caso brasileiro, é o do escritor João Guimarães Rosa, que acompanhava de
perto os tradutores de sua obra. É o que observamos nas correspondências que

8 Nos artigos “A construção do outro nas edições e traduções da obra de Carolina Maria de Jesus”
(2019), de Ana Cláudia dos Santos São Bernardo, e “A tradução francesa da linguagem compósita
de Carolina Maria de Jesus” (2011), de Germana Henriques Pereira de Sousa, são apontadas limi-
tações nas traduções inglesa e francesa, respectivamente, da obra de Carolina, semelhantes às aqui
assinaladas para as traduções espanholas dos anos 60, sugerindo a necessidade de novas reescritas da
autora também nessas línguas.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 173


trocava com Hans Curt Werner Meyer-Clason (que o traduzia para alemão),
J.J. Villard (para o francês), Ángel Crespo (para o espanhol), Harriet de Onis
(para o inglês) e Edoardo Bizarri (para o italiano), em cujas cartas Rosa lhes
explicava distintas particularidades de sua criação literária, tanto no que se
refere à descrição de paisagens brasileiras, como no que tinha que ver com as
especificidades da linguagem que empregava em sua escrita.
Hoje em dia, e apesar de que o ofício de tradutor/a tenha ganhado,
no âmbito profissional, uma grande importância enquanto figura que detém
conhecimentos específicos que a/o habilitam para este trabalho, figura muitas
vezes individualizada e isolada, segundo alguns gostam de imaginar, encon-
tramos mais uma prática de tradução colaborativa: a que se dá no ambiente
virtual, por aficionadas/os e interessadas/os em determinada temática e na
linguagem, pessoas que se animam em divulgar um produto cultural em uma
língua diferente da que se encontra originalmente produzido.
Algumas vezes remunerado, outras tantas realizado de maneira gratui-
ta, como é o caso das traduções de wikis, seja dentro de um mesmo idioma ou
para vários deles ao mesmo tempo, estas/es tradutoras nem sempre especialis-
tas na área se dispõem a transladar para outras línguas textos aos quais uma sé-
rie de pessoas jamais teria acesso se não existisse tal iniciativa. Este fenômeno,
que busca atender às demandas de uma dada comunidade – sobretudo de fãs
– ou a exigências do mercado, costuma ser denominado como crowdsourcing
(O’BRIEN, 2011).
Em termos metodológicos, a tradução colaborativa, de acordo com
Célis-Mendoza (2019), pode ocorrer tanto no nível do produto, quando se
apresenta a autoria de partes do texto de sujeitos que não necessariamente tra-
balharam juntos ou nem sequer se conhecem; como de processo, quando além
de poder interagir entre si, as/os envolvidas/os podem ter papéis variados (ser
tradutoras/es, revisoras/es, gestoras/es, pesquisadoras/es) ao longo da execução
de um projeto. Nosso trabalho na tradução da obra de Carolina Maria de Je-
sus responderia a este último tipo de prática, ao constituir-se como uma pro-
posta colaborativa na que participaram professores e estudantes, no contexto
do projeto de extensão “Laboratório de Tradução da Unila”, da Universidade
Federal da Integração Latino-americana (Unila), instituição pública situada
na cidade brasileira de Foz do Iguaçu, na fronteira trinacional com o Paraguai

174 Saberes decoloniais


e a Argentina, criada com a missão de contribuir com a integração solidária
da América Latina e do Caribe, e que tem entre seus princípios filosóficos e
metodológicos a interculturalidade e o bilinguismo.
Com esse trabalho, buscamos criar um espaço favorável à construção
coletiva da aprendizagem no qual, como defende Kiraly (2000) a partir de
uma perspectiva socioconstrutivista, os aprendizes estão no centro do mo-
delo. Nesse sentido, tratamos de promover não apenas a autonomia das/os
tradutoras/es, mas também um lugar de debate bastante horizontal em todo
o processo, desde a divisão do texto até a tomada final de decisões. Para que
o projeto de tradução que pensamos tivesse êxito, era fundamental ter em
conta as características do grupo que o levaria a cabo. Em nosso caso, falamos
de um coletivo de nove pessoas, estudantes e professores, oriundos de distin-
tas regiões e países da América Latina (a Argentina, o Brasil e a Colômbia),
de diversos cursos, os quais faziam parte, naquele momento, do mencionado
Laboratório.
Assim, nesse contexto e com esse grupo em particular, nasce nossa tra-
dução de Carolina Maria de Jesus, como resultado de uma escolha política que
se soma a outras iniciativas de tradução colaborativa que, de maneira análoga,
tratam de aproximar-se de práticas e sujeitos provenientes de setores margi-
nalizados, normalmente designados como minorias, mas que constituem as
verdadeiras maiorias sociais. É o caso da Revista Periferias9, publicação do
Instituto Maria e João Aleixo do Rio de Janeiro, que tem como finalidade
aproximar pesquisadores, ativistas e artistas de diferentes periferias ao redor
do mundo; o Coletivo Sycorax10, responsável pela tradução para o português
de várias obras de Silvia Federici – Calibã e a bruxa (2017), O ponto zero da
revolução (2019), Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns
(2022) –; o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde11, que publicará em breve
a primeira versão completa para a língua portuguesa de Our Bodies, Ourselves
(1970), do Boston Women’s Health Book Collective12; e o blog La escritura
y el afuera/A escrita e o fora13, que desde 2019 busca difundir, por meio da
9 Ver https://revistaperiferias.org/
10 Ver http://coletivosycorax.org/
11 Ver https://www.mulheres.org.br/
12 Ver https://www.ourbodiesourselves.org/
13 Ver https:/http://aescritaeofora.blogspot.com//

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 175


tradução para o português e para o espanhol, escritos literários produzidos no
cárcere ou como resultado de experiências de encarceramento.
Nosso projeto tradutório nasce, ademais, como uma rede de diversos
interesses, formações, vivências e experiências, mas, sobretudo, do desejo de rea-
tivar, para além do âmbito brasileiro e de uma perspectiva coletiva e latino-a-
mericanista, uma obra e sua autora, seguindo o movimento que vem ocorrendo
no Brasil nos últimos anos, ao que antes aludíamos. Tratava-se de reescrever a
singularidade da obra de Carolina em espanhol para fazer aparecer sentidos e
conexões outras. A partir desse entendimento, decidimos realizar uma convo-
cação especial na qual convidávamos mulheres negras de nossa universidade
para integrarem o projeto — como resultado, se somaram três estudantes, duas
brasileiras e uma colombiana —, por entender que a participação delas consti-
tuía uma possibilidade ampliar significados, ao ter em conta em nossa tradução
corpos que, de maneira geral, foram historicamente silenciados.
Embora o trabalho coletivo possa trazer à luz divergências de distin-
tos tipos, que vão do nível linguístico até o cultural, também termina por
imprimir na obra certa diversidade que a tradução efetuada por um/a tradu-
tor/a muito dificilmente refletiria. Seguindo o defendido por Burneo Salazar
(2018), não se tratava de

[...] escrever em todos os espanhóis ao mesmo tempo,


mas de valorizar a diferença por meio de sua visibilização
simultânea e de acolher essa diferença em sua materia-
lidade linguística, acústica, cultural, que é uma forma
de conceber a tradução em sua potência política (BUR-
NEO SALAZAR, 2018, s/p).

Isso significa, em nosso caso, que apesar de ser ineludível que o texto
passasse por um processo de homogeneização, estão presentes nele marcas
que evidenciam particularidades de cada um/a de seus tradutores/as, o que,
de nosso ponto de vista, resulta em uma das características mais positivas do
trabalho que entregamos.
O seguinte percurso é fruto de vários olhares sobre a obra de uma autora
tão expressiva e singular como Carolina, e pretende enfatizar o complexo pro-
cesso que tem lugar como parte do trabalho coletivo que propusemos realizar.

176 Saberes decoloniais


REESCREVENDO A SINGULARIDADE DE CAROLINA EM ESPANHOL14

Cuarto de desechos y otras obras não apenas queria oferecer ao leitor


em espanhol uma nova tradução de Quarto de despejo, mas também chamar
a atenção para outros escritos da autora, que tem uma produção muito vasta
e diversa, como começa hoje a ser reconhecido no Brasil. Por isso, o volume
inclui também uma nova tradução de Casa de alvenaria, que contava com
uma tradução anterior para o espanhol, de 1961, pela já mencionada editora
Abraxas, com o mesmo título que escolhemos para nossa tradução: Casa de
ladrillos. Além disso, o volume incorpora o relato “Favela” e o conto “Onde
estaes, Felicidade?”, traduzidos, pela primeira vez para o espanhol, como “Fa-
vela” e “¿Dónde estáis, Felicidad?”.
O primeiro grande desafio que se enfrenta ao traduzir Quarto de despe-
jo é o do título. Como dissemos, Beatriz Broide de Sahovaler decidiu deixá-lo
em português por considerá-lo intraduzível, embora sem explicar por que,
como assinala Elzira Perpétua. Broide se limita a dizer que Quarto de despejo
se refere “ao lugar onde se jogam as coisas que não servem, o quarto de tras-
tes velhos que a sociedade dissimula” (SAHOVALER, 1961, p. 7), algo para
o qual, como diz Perpétua, existem traduções possíveis em espanhol, como
“buhardilla” [espécie de sótão] (PERPÉTUA, 2014, p. 105). Esta opção tal-
vez tenha sido descartada, conjectura a crítica, porque mudaria o registro do
título, dando a ele um tom elevado. Na realidade, o problema não é apenas
esse, mas sim o fato de que há pelo menos outro sentido relevante implícito na
palavra “despejo”. Esta se vincula com o verbo “despejar” que significa tanto
jogar algo no lixo ou em um lugar destinado aos trastes como desalojar alguém
de um lugar em que esteja residindo. Segundo nos recorda Carolina no relato
“Favela”, Canindé foi resultado de um despejo.
Nossa escolha “Cuarto de desechos” se deveu ao fato de que recuperava
o primeiro significado da palavra “despejo”, com toda a sua dureza, e de que,
apesar de não incorporá-lo, não seria difícil para o leitor associar esse nome,
pelas explicações dadas por Carolina ao longo do livro, com o sentido de ter
sido “jogado na rua”. Além disso, a palavra “desechos” permite a associação
14 Nesta seção retomamos e aprofundamos algumas das ideias expostas no prólogo
de Cuarto de desechos y otras obras.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 177


com “desechable” [descartável], o chocante nome que comumente se dá aos
moradores de rua na Colômbia. Finalmente, a palavra nos pareceu conve-
niente porque remete também ao trabalho com resíduos que realizou, literal e
metaforicamente, Carolina.
A crítica literária Raffaella Fernandez identifica na escrita da autora uma
“poética de resíduos”, pois ela estaria composta de uma variada “reciclagem de
discursos” (FERNANDEZ, 2015, p. 16). Fernandez afirma que, assim como as
casas das favelas são construídas com materiais que têm diversas origens, o mes-
mo ocorre com a escrita de Carolina, a qual, como foi observado anteriormente,
se nutre de fontes diversas como a tradição oral, a rádio, os clássicos literários e
os diferentes jornais, revistas e livros que encontrava na rua.
Traduzir a escrita de Carolina implicava, para nosso grupo, o desa-
fio de corresponder a essa variedade de registros que a compõem, com seus
desvios do normal e da norma em português. Daí que optássemos por um
espanhol muito menos padrão que o empregado nas traduções da década de
1960. A única exceção se deu no caso da ortografia, pois reproduzir muitas das
irregularidades ortográficas da edição brasileira, feita por Dantas, significaria
voltar a colocar Carolina no lugar da falta, e voltaria a contrariar a vontade da
escritora que, com razão, esperava que seus textos passassem, como acontece
com qualquer autor/a, por um processo de revisão. Disso nos dá testemunho
sua filha Vera Eunice que, como professora, foi muitas vezes revisora das obras
de sua mãe quando ainda estava viva. Em razão disso, mantivemos algumas ir-
regularidades na pontuação, com o objetivo de reproduzir particularidades da
dicção com que Carolina é lida em português. Igualmente, como indicamos
abaixo, reproduzimos alguns usos não normativos, mas comuns na linguagem
falada em espanhol.
Nosso objetivo era seguir a fuga da norma da autora, mas sem implicar
que essa proposta caísse na caricatura ou no capricho individual. Pelo contrá-
rio, interessava-nos reconhecer em sua escrita pontos de contato com formas
de ser e dizer que foram emudecidas e invisibilizadas por uma formação so-
cial patriarcal, racista e classista (CURIEL, 2011). Nosso projeto de tradução
devia, no possível, responder a outras tradições, afastando-se de imaginários
hegemônicos vigentes nos que determinadas formas de saber eram “transfor-
madas não só em diferentes, mas em carentes, em arcaicas, primitivas, tra-

178 Saberes decoloniais


dicionais, pré-modernas” (LANDER, 2005, p. 34), e reconhecendo saberes
outros que nem sempre, ou quase nunca, foram valorizados pela academia e
seus estudiosos. Assim, nossas escolhas buscavam atender aos efeitos de sen-
tido que entendíamos ser importantes que a obra de Carolina produzisse na
língua e cultura de destino.
No que concerne aos aspectos fonéticos, podemos mencionar os casos
de “*iducação” e “*lumbriga” no texto em língua portuguesa. Em ambos, ob-
serva-se a transposição à escrita de uma característica própria da oralidade na
variedade do português brasileiro, em que o “e”, em geral em posição inicial,
apresenta uma realização com som de “i” (no primeiro caso); e o “o” adquire
um som de “u” (no segundo). Outro exemplo interessante é o da alternância
do “l” e do “r”, como no caso da palavra “*impricar”. Acerca da ocorrên-
cia desse fenômeno, e embora exista uma forte hipótese de uma influência
de características de línguas africanas sobre o português do Brasil (HOLM,
1992), costuma-se vinculá-lo à pouca escolaridade de determinados setores
da sociedade, que apresentariam usos como os antes indicados, incorretos de
uma ótica prescritiva. Apostamos em manter essas características da oralidade
em nossa tradução para o espanhol, uma vez que nos pareciam ser um aspecto
relevante da escrita da autora. No entanto, nem sempre a passagem de tais
características da oralidade podia ser feita em espanhol nos mesmos lugares
em que ocorriam em português. Para atender a essa necessidade, buscamos
realizar compensações ao longo da tradução, lançando mão de aspectos da
oralidade que seriam reconhecíveis como próprios na língua de destino. Disso
são exemplos a tradução de “*fidida” por “*jedionda” (hedionda), em que de-
cidimos escrever a palavra com “j” en lugar de “h”, como seria em sua grafia
gramaticalmente aceita; e de “meu filho” por “mijo” (mi hijo), que expressa
na escrita uma aglutinação muito recorrente na linguagem oral em espanhol.
Com relação a casos como “Os meus filhos reprova o alcool”, traduzi-
do por “Mis hijos rechazan el alcohol”, nos deparamos com outra das caracte-
rísticas muito presentes na oralidade do português: a não concordância entre
todos os elementos da oração. Tal como no exemplo anterior, Holm (1992)
explica que a ausência da concordância sujeito-verbo ou a marca de número
no sintagma nominal também correspondem a características que podem ser
atribuídas a uma influência de algumas línguas africanas sobre o português do

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 179


Brasil. No entanto, como aponta Mendonça (2012 [1933]), trata-se de um
fenômeno muito estendido na fala de muitas/os brasileiras/os, não restrito ao
baixo nível de escolaridade. Com vistas a recuperar esta característica morfos-
sintática tão presente na obra em português, mas não observável exatamente
da mesma maneira em língua espanhola, decidimos mobilizar outras estraté-
gias de compensação. Deste modo, recriamos, desde que se tratassem de usos
efetivamente empregados pelos falantes do espanhol, outras formas de irregu-
laridade na concordância, a saber: i) não marcar o plural na forma átona do
complemento indireto de terceira pessoa (les [lhes]), nos casos de duplicação
do objeto, fenômeno comum em língua espanhola mas não empregado em
português, como em “Le dije a los niños que no había pan”15, en lugar de “Les
dije a los niños que no había pan” [Disse para as crianças que não tinha pão];
ii) utilizar o plural de “haber [haver]” como sinônimo de existir (um uso não
normativo comum tanto em português como em espanhol) presente em frases
como “Habían varios periodistas y fotógrafos”16 [Haviam várias jornalistas e
fotógrafos] en lugar de “Había varios periodistas…”.
Os casos antes analisados, cabe reforçar, nos permitiram recuperar
usos – alguns mais e outros menos frequentes na língua e variedade do espa-
nhol a que nos aproximávamos – que a gramática normativa costuma rechaçar
e desautorizar por considerá-los incorretos e vulgares. Enquanto coletivo, en-
tendemos que isso tem como resultado ampliar ainda mais os abismos existen-
tes entre distintas classes sociais e subalternizar as/os falantes que se vinculam
a ditos usos, ignorando os aspectos sócio-históricos e a memória que consti-
tuem os sujeitos e sua linguagem.
O que dissemos acima não deve levar a pensar, no entanto, que Caro-
lina simplesmente escreve da forma como se fala em alguns lugares do Brasil.
A autora também rompe com o que se esperaria do discurso oral, ao incorpo-
rar, por exemplo, cultismos e uma série de palavras inusuais. Esse vocabulário
de Carolina foi muitas vezes julgado como inadequado ou desnecessariamente
rebuscado, e foi praticamente apagado nas traduções para o espanhol ante-
15 Nossos grifos destacam a não concordância entre o pronome átono de complemento indireto
(le) e sua forma tônica (a los niños).
16 Nosso grifo destaca a pluralização do verbo “haber” no sentido de existência que, de um ponto
de vista normativo e gramatical, não se considera adequada, mas que corresponde a um uso bastante
comum entre os falantes, tanto em espanhol como em português.

180 Saberes decoloniais


riores, apesar de Carolina reivindicar o seu uso: “Alguns críticos dizem que
sou pernóstica: «os filhos abluiram-se». Será que preconceito existe até na
literatura? O negro não tem direito de pronunciar o clássico?” (JESUS, 1961,
p. 63-64). Em nosso caso, optamos por reproduzir esse vocabulário, o que
também quer dizer apostar em reproduzir em espanhol o efeito de estranheza
que causa o texto em português:

QUADRO 2: FRAGMENTO DAS TRADUÇÕES PARA O ESPANHOL DE QUARTO DE DESPEJO.

Texto-fonte
15 de julho de 1955 – Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par
de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimenticios nos impede a realização dos nossos
desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei
e remendei para ela calçar. [...] Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me. Esperei até
as 11 horas, um certo alguem. Êle não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quan-
do despertei o astro rei deslizava no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: – Vai buscar água
mamãe! (JESUS, 1960, p. 9)
Trad. argentina Trad. cubana Nossa Tradução
(Editora Abraxas) (Casa de las Américas) (Editora Uniandes)
15 de julio de 1955. 15 de julio de 1955. Cumple- 15 de julio de 1955 Cumple-
Cumpleaños de mi hija años de mi hija Vera Eunice. Yo años de mi hija Vera Eunice.
Vera Eunice. Preten- pretendía comprarle un par de Pretendía comprarle un par
día comprarle un par de zapatos. Pero el costo de los ví- de zapatos. Pero el costo de
zapatos. Pero el costo de veres nos impide la realización los géneros alimenticios nos
los alimentos nos impide de nuestros deseos. […] Lavé a impide la realización de nues-
la realización de nues- los niños, los acosté, me lavé y tros deseos. […] Ablucioné
tros deseos. […] Lavé me acosté. Espere hasta las 11 a los niños, los dejé en el
a los chicos, los acosté, por alguien. El no vino. Me tomé lecho, me ablucioné y entré
me lavé y me acosté. un mejoral y me acosté de nue- al lecho. Esperé hasta las 11
Esperé hasta las 11 a un vo. Cuando me desperté el astro a cierto alguien. Él no vino.
cierto alguien. Pero no rey se deslizaba en el espacio. Mi Tomé un Mejoral y me acosté
vino. Tomé un mejoral y hija Vera Eunice decía: ¡Ve a bus- nuevamente. Cuando desperté
me acosté nuevamente. car agua, mamá! (JESUS, 1965, el astro rey se deslizaba en el
Cuando me desperté el p. 17) espacio. Mi hija Vera Eunice
astro rey se deslizaba por decía: —¡Vaya a buscar agua,
el espacio Mi hija Vera mamita! (JESUS, 2019, p. 29)
Eunice decía: Vaya a
buscar agua, mamá. (JE-
SUS, 1961, p. 17)

Elaboração: autores.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 181


PRETO E MALOQUEIRO: PONTOS DE ENCONTRO ENTRE AS PERIFERIAS

No campo lexical, além dos casos que acabamos de mencionar, o lei-


tor pode sentir estranheza na forma como traduzimos algumas palavras que
são comuns em português. Poderíamos dizer que são ocasiões nas que tende-
mos a fazer o que, na terminologia da tradução, se conhece como estrangei-
rização (VENUTI, 1995). No entanto, nos casos a que nos referimos, esta
denominação resulta equívoca, pois não pretendíamos apenas deslocar o leitor
hispanofalante de sua língua para que experimentasse algo que seria próprio
do português, mas que reconhecesse algo que faz parte de sua própria língua,
isto é, do espanhol. É o caso da tradução de “preto/a”17 por “prieto/a”. Esta
escolha gerou muita discussão no interior do grupo e nossa decisão foi objeto
de questionamento também por parte dos revisores da editora bogotana de
destino, os quais nos indicavam que a palavra não figurava no espanhol da
Colômbia. O vocábulo “prieto/a” em espanhol aparece nos seguintes enuncia-
dos definidores, extraídos do Dicionário do Espanhol do México (DEM) e do
Dicionário da Real Academia Espanhola (DRAE):

QUADRO 3: DEFINIÇÃO DE “PRIETO” NOS DICIONÁRIOS DEM E DRAE


DEM DRAE
prieto 1 adj y s Que tiene piel oscura, como prieto, ta De apretar. 1. adj. Ajustado o ceñido.
la de la mayor parte de los mexicanos: “Tener 2. adj. Duro o denso. 3. adj. Mísero, escaso, co-
una buena tierra, un marido trabajador y un dicioso. 4. adj. Dicho de un color: Muy oscuro
chilpayate prieto y sonriente con ojos abiertos y que casi no se distingue del negro. 5. adj. De
como espantado”, “Que ahora sí yo ya me voy/ y color prieto. 6. adj. Cuba. Dicho de una perso-
me llevo a mi prietita”. 2 adj Que es de color na: De raza negra. U. t. c. s. 7. adj. Méx. Dicho
muy oscuro o negro: un caballo prieto, la galli- de una persona: De piel morena.
na prieta, frijoles prietos, zapote prieto.

Elaboração: autores a partir dos dicionários consultados.

17 Salientamos que devido à complexidade e cuidado exigidos pela questão, não trataremos neste
documento as diferenças político-ideológicas que podem ser relacionadas com o uso de “preto” e de
“negro” em português, especialmente no Brasil. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), por exemplo, o uso de “preto” designaria a cor da pele, enquanto “negro” corresponderia
à noção de raça, que é socialmente construída e altamente criticável de diferentes perspectivas e
filiações teóricas (ver a este respeito, por exemplo, LUGONES, 2008).

182 Saberes decoloniais


Embora a identificação entre o que se considera “prieto/a” não neces-
sariamente coincida entre os dois dicionários consultados e exista uma plu-
ralidade de sentidos observáveis em suas distintas acepções, não há dúvida
de que faz parte do vocabulário da língua espanhola. É, evidentemente, uma
palavra de uso muito menos frequente que “preto/a” em português, mas não
deixa de ser um vocabulário comum em língua espanhola em distintas varie-
dades, incluída a colombiana. Disso são exemplos algumas produções artísti-
cas com que nos parece interessante estabelecer uma filiação. Referimo-nos a
alguns clássicos da música caribenha, como a canção “Rebelión”, de Joe Arroyo
(1986), em que aparece: “Quiero contarle mi hermano un pedacito de la historia
negra, de la historia nuestra, caballero… / Ehh, no, no, no, no, no, no le pegue a
mi negra / porque el alma se me agita, mi prieta” [Quero contar meu irmão um
pedacinho da história negra, da história nossa, senhores.... / Ehhh, não, não,
não, não, não, não bata na minha negra / porque minha alma se agita, minha
preta]; e também na canção “Han cogido la cosa” (1999), do Grupo Niche:
“Que tengo grande la boca y la nariz / que nada bueno no me encuentran a mí /
que yo soy prieto, que soy carabalí / pero orgulloso me siento yo así” [Que tenho
grande a boca e o nariz / que nada bom encontram em mim / que eu sou preto,
que sou carabali / mas orgulhoso me sinto assim]. Acreditamos ser relevante
assinalar outras formulações que evidenciam a mesma filiação, como a canção
“Somos los prietos”, lançada recentemente, em 2018, pelo grupo do pacífico
colombiano Chocquibtown. Por último, aludimos a outras vozes, como a pre-
sente no texto “La prieta” (1981) da escritora chicana Gloria Anzaldúa, com
quem, a partir de outro lugar, se pode construir vínculos e redes de significado.
Portanto, o fato de que a palavra “prieto” não seja comum no espa-
nhol bogotano não implicava que não fosse em outras partes da Colômbia,
como é o caso das comunidades afro-colombianas. Não é por acaso tampouco
que esta autoridade sobre o dizer tivesse chegado até nós da capital do país.
Basta recordar que a Academia Colombiana da Língua, fundada em 1871 em
Bogotá, é a mais antiga entre as corporações que constituem a Associação das
Academias da Língua Espanhola, organismo criado em 1951 com o objetivo
de “trabalhar a favor da unidade, integridade e crescimento da língua espa-
nhola, que constitui o mais rico patrimônio comum da comunidade hispano-
falante” (ASALE, 2007, p. 13). Aliado a este projeto unificador estão distintos

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 183


silenciamentos e marginalizações, como a identificação de certos usos como
possíveis ou não, corretos ou não. Ao manter nossa decisão por “prieto/a” tra-
távamos de caracterizar a tradução, mais uma vez, como um ato político, de
deslocamento em direção a esse outro, ao reconhecer reivindicações que, de
seu lugar de fala – como “locus social, isto é, [...] lugar social de onde os grupos
se originam” (RIBEIRO, 2019, p. 17) —, nem sempre se fazem ou podem
escutar, porque não se encaixam em um determinado regime que autoriza que
vozes estão ou não legitimadas para falar.
Nossa proposta, na contramão desses processos silenciadores, buscava
visibilizar identidades e discursos de grupos sociais, negros, periféricos, histo-
ricamente oprimidos, que com certeza produzem saberes e mudam, criam e
ressignificam sentidos.
O próximo caso que exporemos gira em torno de um insulto que a
autora relata ter recebido: “maloqueira”. Em português, poucos lembram que
a palavra provém de “maloca”, nome dado às casas comunais de alguns po-
vos indígenas, que inicialmente eram fabricadas com materiais biodegradáveis
como folhas de palmeiras, paredes de adobe, madeira ou bambu. Possivel-
mente, tanto pelo número de pessoas que albergava como pelos materiais de
construção utilizados, a “maloca” se associou em português, pejorativamente,
à favela e o “maloqueiro”, ao favelado. Inclusive hoje em dia, a palavra “malo-
queiro/a” é usada por muitas pessoas como sinônimo de criminoso ou delin-
quente, e “maloca”, de seu esconderijo.
Nas discussões do grupo de tradução surgiram algumas propostas para
reproduzir o insulto xenofóbico, alguns com vistas a recuperar sua origem em
maloca, tais como “india” ou “guaricha”, e outros em um tom que contem-
plasse a conotação atual, de que seriam exemplos “callejera” ou “verdulera”.
Decidimos finalmente deixar a palavra, adaptada do português, “maloquera”
(com uma nota explicativa), porque esta marca um ponto de encontro simbó-
lico entre os povos indígenas e os favelados, como hoje reivindicam diferentes
sujeitos e produções periféricas no Brasil. Referimo-nos a artistas como o poe-
ta contemporâneo Luan Luando, em cuja escrita se ressignifica a identidade
de “maloqueiro” a partir de uma apropriação da memória que redefine a iden-
tidade nacional, como no caso dos versos do poema “Moambo”: “salve… bra-
sileiro, maloqueiro, mocambeiro / rimo por amor não pelo dinheiro” (2009).

184 Saberes decoloniais


Luando se assume como orgulhoso herdeiro de tradições indígenas: “posso ser
chavão mas também sou Xavante / quem faz pra comunidade é o verdadeiro
diamante / perseverança pré colombina esse é meu lugar” (LUANDO apud
TAVANTI, 2018, p. 124).

CAROLINA LIDA A PARTIR DA TRÍPLICE FRONTEIRA: TORNEIRA E QUARAR

Traduzir, pensar e ler Quarto de despejo a partir da tríplice fronteira


com a Argentina e o Paraguai nos deu a possibilidade inesperada de nos apro-
ximarmos de algumas das ações cotidianas na favela do Canindé narradas por
Carolina, as quais giravam ao redor da “torneira” e da prática de “quarar”.
O primeiro caso faz referência, por meio de uma relação metonímica,
ao lugar onde as mulheres da favela iam para buscar água, um recurso bastante
escasso e que gerava diferentes brigas na comunidade. A prática de fazer fila para
buscar água na única torneira do quarteirão, ou até mesmo do bairro, resultava
familiar para uma das integrantes do grupo. Nas províncias do interior da Ar-
gentina, é conhecida como “canilla pública” e, tal como relata nossa autora, é
um costume diário fazer fila com latas e outros utensílios para buscar água em
bairros precários ou assentamentos onde a rede de água potável não chega a to-
das as casas. O uso permitia esclarecer uma cena descrita sistematicamente nos
diários: “Fui buscar agua. Fiz café” (JESUS, 1960, p. 9). Esta breve construção
semântica nos releva uma das realidades mais pungentes da vida nas margens,
onde satisfazer uma necessidade básica como a água está impregnada de signifi-
cações impossíveis de serem contidas no que se poderia interpretar, erroneamen-
te, como “abrí la canilla/llave, hice café” [abri a torneira, fiz café].
O problema com que nos deparamos consistia em manter essa mesma
relação, produzida pela figura de estilo e, ao mesmo tempo, escolher um ter-
mo que fosse de uso comum para o público colombiano ao que se destinava a
tradução. As propostas discutidas, muito diferentes umas das outras (“grifo”,
“canilla”, “cañería”, para citar algumas) e todas igualmente corretas de um
ponto de vista lexical, evidenciavam como se manifestava na materialidade
linguística a heterogeneidade de nosso grupo. No entanto, tínhamos que che-
gar a um consenso e, entre todos, adotando como critério fundamental o
público de destino da tradução, optamos pela palavra “llave”.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 185


Embora se considere que esta palavra poderia não transmitir tão clara-
mente o contexto social implícito como a expressão “canilla pública”, sobretu-
do os que se relacionam com as precárias condições de vida, foram discutidas
e negociadas as distintas opções de tradução e, apesar de entender que seus
significantes, consideramos que instalar o uso de “canilla pública” na narra-
tiva não teria o mesmo sentido para o leitor colombiano, para quem o termo
“canilla” evocaria mais propriamente uma parte do corpo, o tornozelo. A de-
nominação “canilla pública» foi adotada para a versão rioplatense da tradução
publicada um ano depois pela editora Mandacaru.
Ler e traduzir Carolina a partir da tríplice fronteira também nos per-
mitiu interpretá-la com base nas vivências locais. Um desses casos girou em
torno do termo “quarar” que, após uma extensa pesquisa dentro do léxico
do português, encontramos que se referia a um método popular de lavagem
de roupa, utilizado principalmente em zonas rurais. Tal descoberta deslocou
nossa leitura para práticas rurais da região: ler que Carolina deixava “roupa
para quarar” enquanto ia cozinhar em um fogareiro ossos achados no lixo,
era evocar um imaginário construído com os relatos de avós que lavavam sua
própria roupa e a de seus patrões, e as deixavam estendidas sobre pedras dos
riachos nos anos 1960 para clarearem sob o sol. Era habitual entre emprega-
das domésticas e lavadeiras rurais que não tinham acesso a tira-manchas nem
a produtos de limpeza, uma prática que foi sendo deslocada com o passar do
tempo, substituída por máquinas de lavar e pelos alvejantes.
O longa-metragem “Hamaca paraguaya” (PAZ ENCINA, 2006)
apresenta uma cena que nos ajuda a entender melhor o que implicava lavar e
quarar a roupa para as mulheres do campo. Nele se observa como uma mulher
mais velha limpa a roupa batendo nela com um pau repetidamente, para de-
pois estendê-la sobre uma pedra, enquanto evoca em sua cabeça uma conversa
mantida com seu filho, no mesmo lugar, antes que ele fosse à guerra.
Provavelmente Carolina tenha empregado uma técnica similar, mas a
dificuldade de ler e compreender “quarar” na chave da fronteira é que mesmo
com a diversidade linguística que apresentava nosso grupo, não encontráva-
mos um vocábulo equivalente em espanhol. A técnica de lavagem consiste
em ensaboar a roupa e estendê-la sob o sol horizontalmente, sem enxaguá-la,
normalmente sobre a grama ou sobre pedras, por várias horas. Mais tarde, as

186 Saberes decoloniais


roupas são recolhidas, enxaguadas e estendidas normalmente, ou são enxagua-
das, ensaboadas e esfregadas pela segunda vez. Atualmente, conhecemos este
procedimento como pré-lavagem, e demora o tempo que leva para girar um
botão em um lava-roupas moderno.
Nossa pesquisa sobre “quarar” é um exemplo de como a leitura de
Carolina nos levou a entrar em contato com saberes populares quase extintos
na própria região em que nos encontrávamos. Eles nos fizeram sentir mais
próximos do que narra a autora, ainda que nem sempre tenhamos chegado a
uma solução satisfatória para a tradução. De fato, uma consulta às avós nos
alertou sobre as limitações da própria língua: não há uma denominação para
uma técnica de lavagem tão específica, apenas o verbo mais geral “blanquear”
[branquear/clarear] é suficiente. As opções, então, eram manter “quarar”, ten-
tando preservar suas implicações e a estranheza da palavra, ou buscar explicar
a técnica sem que isso interferisse ou interrompesse demais a narrativa. Uma
vez que o termo aparecia somente duas vezes, sua tradução foi realizada em
função do contexto. No início do livro Carolina nos conta “puse la ropa a
blanquear y me vine a hacer el almuerzo” [Puis as roupas para quarar e vim
fazer o almoço] (JESUS, 2019, p. 44) e, em outra oportunidade, “extendí las
ropas para que se blanquearan” [Estendi as roupas para quarar] (ibidem, p. 97).
A pesquisa, bem como a tradução e a revisão das obras, foram reali-
zadas durante os anos de 2018 e 2019. Anedoticamente, em um telefonema
posterior a uma das avós consultadas à época da tradução, das que lavavam e
“quaravam” roupas por encomenda, voltamos, com a esperança própria dos
tradutores, a perguntar se a técnica tinha nome. Qual não foi a nossa surpresa
ao descobrir que o limite na língua ao que nos tínhamos enfrentado durante
a tradução agora deixava de existir: “para nosotros era asolear la ropa, porque no
te olvides que te hablo de sesenta y cinco años atrás […] no había blanqueador,
por lo tanto enjabonabas la ropa, ponías en la piedra o en el pasto […] Claro, le
poníamos al sol, simple” [para nós era asolear a roupa, porque não se esqueça de
que eu te falo de sessenta e cinco anos atrás... não tinha alvejante, portanto,
você ensaboava a roupa, colocava na pedra ou na grama... Claro, colocávamos
ela no sol, simples”] (MÜLLER, 2020, s/p.). O termo asolear foi incorporado
na versão rioplatense de Cuarto de Desechos y otras obras editada por Manda-
caru em 2021.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 187


Terminamos referindo-nos a essas leituras de fronteira porque nos ofe-
recem outros exemplos das conexões e sentidos que a leitura de Carolina pode
produzir em diferentes espaços periféricos da América Latina. Ao trazer esses
casos, pretendemos também explicitar algumas das limitações que nossas es-
colhas tradutórias inevitavelmente supõem e que só podem ser superadas por
outras releituras/reescritas/traduções de Carolina que, em outras variedades
do espanhol, revelem outras potencialidades de sua escrita.

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192 Saberes decoloniais


SABERES ANCESTRAIS NA LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:
UMA ANÁLISE DAS ESCREVIVÊNCIAS DE
CIDINHA DA SILVA E ELIANE POTIGUARA
Amanda Volotão1

A ancestralidade guia, cuida, cura, encanta e encruzilha


[...]. A encruzilhada é lugar de encontros/encantos, desen-
contros/desencantos, é lugar da diversidade, da transforma-
-Ação, da ética do cuidado, da escuta sensível, do enraiza-
mento [..]. É uterina! (MACHADO, 2020, online)

INTRODUÇÃO

Do pioneirismo de Césaire, Memmi, Fanon e Said ao adotar uma pers-


pectiva atenta à situação do colonizado até a institucionalização dos estudos
pós-coloniais e as posteriores aproximações e divergências que substanciaram

1 Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Mestra em Comunicação e Cultura pela
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Licenciada em
Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense (IL/UFF).
avolotao@gmail.com
o surgimento do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C)2, talvez um dos
aspectos que mais tenha chamado atenção neste percurso de se pensar o mundo
através de novos paradigmas de conhecimento seja a dificuldade de concretizar
a radicalização da crítica aos modelos eurocêntricos. O que é, até certo ponto,
algo bem compreensível: desvencilhar-se de amarras que se pretendem raízes
é um trabalho difícil, que envolve não só enxergar os limites daquilo que já é
conhecido (inclusive, de muitos dos fundamentos que nos guiaram até aqui),
mas também a produção criativa de caminhos outros que nos permitam refletir
sobre nossas próprias e entrecruzadas trajetórias – quer tratemos do passado,
do futuro e/ou do tempo presente. De certa forma, acredito que seja disso que
o presente artigo trata: da crítica, da reinvenção e dos modos como passado,
presente e futuro se encontram nas experiências narradas e nas vivências ex-
perimentadas a partir de pontos de vista subalternizados que germinam neste
lugar ocupado por nós, brasileiras, latino-americanas, afro-latino-americanas,
amefricanas (Gonzalez, 1988), descendentes de indígenas e negras escravizadas,
falantes do pretuguês (Gonzalez, 1988). Mais do que isso, este estudo trata do
caráter revolucionário destes encontros neste entrelugar.
Partindo da literatura brasileira contemporânea, busco compreender
algumas das iniciativas que dão seguimento ao projeto de um feminismo de-
colonial – ainda em construção –, considerando o contexto social brasileiro.
Conforme ressaltado por Heloísa Buarque de Hollanda (2020), não se trata
de adotar uma visão improdutiva de uma realidade brasileira que se isola do
contexto latino-americano, mas de perceber a urgência de se pensar “as espe-
cificidades que podem fazer um feminismo decolonial brasileiro” (HOLLAN-
DA, 2020, p. 23). Tendo em vista que o nosso processo colonial traz peculia-
ridades próprias se comparado ao dos demais países latino-americanos, refletir
sobre os contornos específicos de nossas cicatrizes e seus consequentes efeitos
em nossa sociedade propicia um melhor entendimento acerca das lógicas que
alicerçam as relações de poder que estão presentes na cultura brasileira, hoje.
Neste ponto, as dificuldades brasileiras de se reconhecer enquanto um país
afro-indígena parece exigir de nós, pesquisadoras e pesquisadores, o “giro da
chave decolonial”, de modo a trazer à tona toda essa complexidade, quer seja
na produção de debates sobre nossas noções de origem, ou ainda, no fomento
2 Maiores detalhes desta trajetória podem ser encontrados em Ballestrin (2013).

194 Saberes decoloniais


a discussões sobre categorias analíticas que têm se apresentado como impor-
tantes ferramentas de combate a visões homogeneizantes.
Desta forma, ao questionar-me acerca dos modos como o feminismo
decolonial tem sido experienciado por escritoras brasileiras de origem afro-
-indígena, reflito sobre a categoria da ancestralidade e a sua crucialidade para
tal projeto. E, aqui, corroboro com Miñoso (2020), entendendo que mais do
que objetivos teóricos, esta análise tem como foco “objetivos urgentemente
práticos” (MIÑOSO, 2020, p. 97). Ao colocar em xeque os preceitos de um
feminismo que, com o tempo, mostrou-se cada vez mais racista, eurocêntrico,
capitalista e colonial, creio que as escrevivências dessas autoras afro-indígenas
têm se apresentado como uma prática política que resulta na re-descoberta
de um novo mundo secular, descentralizando o sujeito normativo clássico do
feminismo a partir da ênfase no sujeito ancestral.
Pensando nisso, proponho a análise dos saberes ancestrais nas cosmovi-
sões que alicerçam os projetos feministas decoloniais brasileiros que reconheço
nas obras Um Exu em Nova York (2020), de Cidinha da Silva, e Metade cara, Me-
tade máscara (2018), de Eliane Potiguara. A ancestralidade é uma “ideia”, for-
temente, presente nas culturas africanas e indígenas. Segundo Padilha (2007),
os ancestrais são intermediários dos mundos dos vivos e dos mortos, das forças
naturais e daquelas que pertencem à ordem do sagrado. Ao mesmo tempo pró-
ximos dos homens e dos deuses, eles devem ser compreendidos não só como
espíritos dos antepassados mortos, mas também como os costumes, as tradições
e os valores de suas culturas. Seguindo por um caminho similar, porém mais
voltado para o campo da filosofia, Oliveira (2009) define a ancestralidade como
uma categoria analítica que se alimenta das experiências dos africanos e afrodes-
cendentes (e dos indígenas, ouso dizer) para compreender a complexidade de
suas vivências por meio de uma instância que lhes permita uma unidade com-
preensiva. Assim, menos do que reduzir a multiplicidade das experiências a uma
só verdade, a ancestralidade permite uma polivalência de sentidos. Caminhando
entre a epistemologia do caos e da ordem, a epistemologia da ancestralidade é,
para o autor, algo que nasce do movimento, da vibração e do acontecimento.
Deste modo, assumindo as premissas de que (1) a literatura é um espaço de
potência para a criação de questionamentos acerca das estruturas hegemônicas
do pensamento e das práticas sociais, bem como um terreno fértil para a pro-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 195


dução de paradigmas alternativos; e (2) a ancestralidade tem se mostrado um
importante recurso político tanto para a resistência dos povos originários e dos
afrodescendentes, quanto para a consolidação de vieses decoloniais, analiso o
lugar dos saberes ancestrais nas narrativas dessas autoras.
Inicio com um breve panorama sobre as discussões em torno da an-
cestralidade. Embora pareça algo já dado, aprendi que é próprio da Sociologia
debater conceitos, categorias e determinantes sociais, no intuito de desnatura-
lizá-los. Posteriormente, averiguo de que formas a ancestralidade se apresenta
como um campo de saber e um meio de existir nos livros Um Exu de Nova
York (2020) e Metade cara, Metade máscara (2018). Enquanto a primeira obra
reúne contos diversos sobre o cotidiano, a segunda perpassa diferentes gêneros
literários ao trazer a história de amor de Jurupiranga e Cunhataí, um casal de
origem indígena que se separa durante o período da colonização brasileira.
Por fim, com base na análise destas narrativas, destaco não somente a articu-
lação entre os saberes ancestrais e os modos de existência destes personagens/
sujeitos diáspóricos, como também de que formas estas construções literárias
desafiam as estruturas de poder-saber hegemônicas que tem baseado os discur-
sos feministas do Norte-Global.
Se é certo que o fim do colonialismo não findou as relações de colo-
nialidade que constituíram e ainda fazem parte das dinâmicas políticas, sociais
e econômicas estabelecidas entre países do Norte e do Sul Global, tampouco
é possível dizer que tal projeto obteve sucesso total em suas políticas de exter-
mínio a outras formas de subjetividade. Como salientado por Krenak (2019),
há mais de quinhentos anos, os povos originários do Brasil têm resistido a tais
investiduras, expandindo suas subjetividades, seus conhecimentos e seus modos
de existência. Com as culturas africanas não é diferente. As marcas de ambas
permanecem como bases do nosso cotidiano: existindo, resistindo e reinventan-
do-se. Para reconhecê-las enquanto uma prática política potente, basta um mo-
mento de atenção, a vontade de escutá-las e o interesse em aprender com elas.

ALGUMAS NOTAS SOBRE A ANCESTRALIDADE

Podendo ser compreendida como a principal instância epistemoló-


gica para articular as tradições e experiências afro-diaspóricas e indígenas no

196 Saberes decoloniais


contexto social brasileiro contemporâneo, a ancestralidade nem sempre as-
sumiu tal relevância nos estudos acerca destes temas. Como destaca Oliveira
(2021), foi somente no processo de re-africanização do candomblé, quando
mães-de-santo de terreiros tradicionais buscavam diferenciar-se do catolicis-
mo realizando uma crítica severa ao sincretismo brasileiro, que esta acepção
passou a ganhar maior visibilidade. Até então, a mesma estava restrita à ideia
de pureza nagô e aos terreiros. Sendo um princípio norteador que regia os ri-
tos e as relações sociais que se estabeleciam nestes espaços, a pureza nagô fazia
referência a uma ideia de autenticidade da identidade negra, em contraposição
à identidade banto, associada pelos primeiros estudiosos das religiões africanas
no Brasil como uma identidade mais influenciada pelos modelos hegemôni-
cos e, portanto, considerada como “menos legítima” por esses religiosos.
Mesmo diante da imposição do cristianismo como forma de controle
dos negros africanos trazidos como escravos para o território brasileiro, o culto
aos ancestrais ainda se fazia presente em atitudes, afetos e formas de compor-
tamento. E foram essas expressões que possibilitaram a manutenção dos valo-
res civilizatórios africanos neste país estrangeiro. Baseados inicialmente neste
ideário de pureza nagô, a reafirmação e a valorização de elementos que reme-
tiam às estruturas de significado presentes nos paradigmas de pensamento das
culturas africanas não só se mostrou um símbolo de resistência no âmbito da
religião, mas também uma “norma metafísica”, intimamente, relacionada às
estratégias para se manter os laç os com a África – mesmo que uma África
idealizada e mítica (Oliveira, 2021). Neste paradigma, a ancestralidade era
pouco aludida: como demonstram pesquisas sobre as religiões africanas, as
referências eram, principalmente, ao princípio de senioridade, à sabedoria e
ao respeito aos anciãos, à transmissão de conhecimento entre gerações, dentre
outros (Oliveira, 2009, 2021).
A mudança significativa da categoria da ancestralidade se deu no pro-
cesso de substituição do discurso de pureza nagô, tão presente nas análises
das religiões africanas. No intuito de reduzir o juízo valorativo incorporado
à ideia que a pureza nagô remetia, a ancestralidade passou a ser desenvolvida
como um princípio organizador, uma estrutura estruturante. Assim, passou a
ser entendida como referencial primeiro das experiências do negro brasileiro
(e daqueles que se reconheciam como descendentes das culturas africanas) nas

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 197


diferentes esferas da vida pública e privada. Deste modo, na medida em que
fornecia elementos para a afirmação da identidade negra e daqueles que se
aproximavam das culturas africanas no país, ela se tornou o principal compo-
nente da cosmovisão africana (Oliveira, 2009)..
Neste contexto, a ancestralidade deixou de ser compreendida apenas
como uma referência para as relações consanguíneas, tornando-se um dos prin-
cípios mais importantes do processo formativo das identidades afro-brasileiras.
Podendo ser entendida como uma categoria de relação, ligação, inclusão, diver-
sidade, unidade e encantamento, a ancestralidade se tornou um elemento de
disputa entre diferentes atores sociais: movimentos negros organizados, repre-
sentantes de religiões de matriz africana, acadêmicos interessados nesta temática
e, inclusive, algumas políticas governamentais (Oliveira, 2021).

Com efeito, a ancestralidade atravessa o século XX e


adentra o século XXI com uma história rica em diver-
sidade e polissemia. Tomada como um aspecto das rela-
ções de parentesco no final do século XIX e início do sé-
culo XX, reaparece na segunda metade do século passado
como uma categoria fundante da religião dos orixás no
Brasil. De categoria circunscrita e relações definidas em
contextos familiares, constituindo-se um elemento das
linhagens africanas e, posteriormente, das linhagens dos
negros brasileiros, passa ao status de categoria analítica,
como conteúdo de uma ‘filosofia sutil’ africana sobre-
vivente no Brasil; como substância de uma ‘metafísica
subjacente’ própria dos negros africanos e que aqui per-
manecera alimentando a dinâmica cultural africana e
fortalecendo a cultura do negro brasileiro. (OLIVEIRA,
2021, p. 102)

Já no caso dos povos originários, é possível afirmar que as diáspo-


ras indígenas constituídas a partir dos processos de desterritorialização e de
migração forçados engendraram uma nova realidade social para estes sujei-
tos. Desalojados de suas aldeias, os indígenas e seus descendentes passaram
a conviver com a sociedade não indígena nos centros urbanos, tendo que se
adaptar a um contexto em que sua língua, espiritualidade e costumes eram
desvalorizados. Além da desagregação familiar a que foram submetidos, eles
passaram a compor uma nova classe socialmente desfavorecida e alijada dos
198 Saberes decoloniais
seus territórios tradicionais (Costa, 2020).
Em meio a processos violentos de apagamento e invisibilização, o vín-
culo com os saberes ancestrais se mostrou um elemento identitário de suma
importância para manter laços com suas raízes, ligando-os às suas tradições.
Deste modo, a ancestralidade indígena está, intrinsecamente, relacionada à
própria experiência da existência dos povos originários. De acordo com Costa
(2020), em um diálogo entre passado e presente, a defesa das tradições tem
por objetivo a manutenção da memória e, consequentemente, da vida de um
povo. Sendo a base para os processos de subjetivação dos indígenas brasileiros,
a ancestralidade está associada à herança deixada pelas gerações anteriores:
e, aqui, reside grande parte de suas riquezas. Ressaltando o papel da memó-
ria, estes conhecimentos ancestrais fazem parte do patrimônio simbólico dos
mesmos. Vale ressaltar que há, ainda, um desejo de compartilhamento des-
ses saberes com a sociedade não indígena. Como destacado por Munduruku
(2018), para eles, tais trocas não só engrandecem a cultura brasileira, como
permitem que suas raízes sejam, devidamente, honradas.
Percebe-se, portanto, que as culturas africanas e indígenas reconhe-
cem uma força vital nos laços ancestrais que permeiam suas existências. Esta
força é a base de suas visões de mundo. Neste preâmbulo, a ancestralidade
pode ser vista como uma instância que permite se relacionar com este sagrado,
reconhecendo-se ela própria como um aspecto imanente desta força. Para Oli-
veira (2007), não existe nada mais sagrado do que o saber ancestral. Sejam os
ancestrais históricos (antepassados que já morreram) ou, ainda, os ancestrais
míticos, isto é, os orixás e as entidades divinizados, tudo obedece ao paradig-
ma lógico da ancestralidade.
Diante do exposto, observa-se que a ancestralidade é mais do que uma
forma de referenciar e pôr em prática costumes, valores e tradições ou, ainda,
apenas um elo entre vivos e aqueles que já se foram; ela é um meio de presen-
tificar e dar vida as construções coletivas e saberes seculares que constituem a
cultura destes povos. Ela é movimento, é contiguidade. Tanto para as culturas
africanas quanto para as comunidades indígenas, a ancestralidade é indissociá-
vel do processo formativo de suas identidades. Partindo do pressuposto de que
os sujeitos carregam os saberes ancestrais dentro de si, os afro-descendentes e
os indígenas não só se reconhecem a partir desses paradigmas como também

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 199


têm suas trajetórias marcadas e regidas por eles. Daí a importância de se apro-
ximar dos saberes ancestrais: além de conectá-los aos seus antepassados e aos
conhecimentos que caracterizam suas culturas e estruturam as relações sociais
de seus povos, nota-se que o processo de construção de suas subjetividades
perpassa o contato e a apreensão dos conhecimentos ancestrais.

Ancestralidade é como um tecido produzido no tear afri-


cano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na ur-
didura do tecido está a verticalidade do tempo. Entrela-
çando-se os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do
mundo que articula a trama e a urdidura da existência. A
ancestralidade é um tempo difuso e um espaço diluído.
Evanescente, contêm dobras, labirintos e desdobram no
seu interior e os corredores se abrem para o grande vão
da memória (OLIVEIRA, 2007, p. 245)..

GÊNERO, VIOLÊNCIA E ANCESTRALIDADE NAS NARRATIVAS


DE CIDINHA DA SILVA E ELIANE POTIGUARA

A forma como a ancestralidade é trabalhada nas obras Um Exu em


Nova York (2020) e Metade cara, metade máscara (2018) é, intensamente, vin-
culada ao marcador de gênero. Nestas narrativas, as mulheres são representadas
como sujeitos complexos, fortes e intuitivos. Elas não só são as protagonistas,
como possuem inúmeras facetas. Sujeitas a violências de diferentes tipos, tais
personagens são constituídas por experiências diversas que envolvem amor,
amizade, religião, disputas e superação.
Em Metade cara, metade máscara (2018), deparamo-nos com a saga
poética do casal Cunhataí e Jurupiranga, desde a separação ocasionada pelo
processo de colonização e pelas invasões às terras indígenas até o reencontro
final. Paralelamente, acompanhamos também as memórias literárias que trazem
marcos importantes da história de vida da autora potiguar e de sua família; a
migração forçada, as dificuldades sofridas para sobreviver nos centros urbanos,
o processo de construção identitária de Potiguara enquanto uma descendente
indígena e a sua vida de militância. Não menos importante, somos convidados
a refletir sobre questões polêmicas como a saúde pública dos povos originários, o
trabalho semiescravo dos indígenas nas grandes cidades etc, a partir das denún-

200 Saberes decoloniais


cias realizadas pela escritora, dentre outros. Tudo isso em meio a uma narrativa
polifônica e caracterizada por diferentes gêneros textuais.
Com uma narrativa focada nos sujeitos femininos, podemos perceber
que cabe à heroína Cunhataí o protagonismo na obra: é ela que assume a posi-
ção de narrar os principais acontecimentos e, também, é ela a responsável por
sair em busca do marido desaparecido e por reaver as terras indígenas invadidas.
Neste percurso poético de Cunhataí, são abordados temas como o sofrimento
da mulher indígena, a busca pela recuperação de sua identidade, a dor pela se-
paração familiar e a agonia de ocupar um entrelugar em seu próprio país (Costa,
2020). Temas estes que também vemos nos relatos de Potiguara (2018) sobre
sua história familiar. Com foco nas matriarcas de sua família, a autora relembra
os ensinamentos da avó, o sofrimento de suas parentas com a morte do avô e as
mazelas que marcaram o seu crescimento. Em suas críticas às formas como as
populações indígenas são tratadas no Brasil, a autora destaca, ainda, os contor-
nos específicos do gênero nas violências sofridas pelos indígenas, bem como a
relevância de se pensar na mulher indígena quando debatemos sobre direitos da
mulher. Assim, chama atenção para questões de direitos reprodutivos, sobre a
violência doméstica e sexual que sofre a mulher indígena etc.

Uma mulher indígena Potyguara me contou um dia, em


1989: “Eu estava em casa sozinha, cozinhando; entrou
um homempeixe em minha casa e me tomou o espírito
e partiu. Nunca mais o vi, mas sempre ia à beira-mar
esperar por ele”. Os dias se passaram, os meses, os anos...
A mulher estava louca e velha. Havia passado toda uma
vida e a velha esperava seu homem-peixe, desde que
acontecera aquele incidente. A menina-moça estava em
casa sozinha, entrou um colonizador local inescrupulo-
so, nos anos 1940, a violentou sexualmente e fugiu... O
desastre à mente daquela criança foi tamanho que o uni-
verso cultural foi completamente confundido, tornando-
-a uma criança – mulher – velha maltrapilha e louca!
Quantas histórias dessa natureza teremos? (POTIGUA-
RA, 2018, p. 44.)

Cercadas por muitas formas de sofrimento, as personagens de Metade


cara, metade máscara (2018) demonstram uma grande força espiritual para en-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 201


frentar obstáculos e cumprir os destinos que lhes cabem. No caso das memó-
rias de vida da escritora potiguar, seu percurso de reconhecimento identitário
enquanto mulher indígena tem forte laço com as mulheres que marcam sua
trajetória: sua história familiar abordada através das mulheres de sua família;
a sua relação com a avó e a influência que a mesma exercera no início de sua
vida literária; o papel importante ocupado pela anciã da tribo, a quem cari-
nhosamente Eliane Potiguara (2018) chamava de tia Severina; dentre outros.
Não à toa, Potiguara (2018) escreve uma poesia intitulada “O segredo das mu-
lheres”, onde aborda a relação entre a ancestralidade e a identidade feminina.

No passado, nossas avós falavam forte


Elas também lutavam
Aí, chegou o homem branco mau
Matador de índio
E fez nossa avó calar
(...)
Durante séculos
As avós e mães esconderam na barriga
As histórias, as músicas, as crianças,
As tradições da casa,
O sentimento da terra onde nasceram,
As histórias dos velhos
Que se reuniram pra fumar cachimbo.
Foi o maior segredo das avós e das mães. (POTIGUARA,
2018, p. 75.)

No que tange a Um Exu em Nova York (2020), encontramos diferentes


formas de abordar o universo das mulheres. As personagens possuem caracte-
rísticas distintas e demonstram personalidades complexas que vão sendo evi-
denciadas diante do desenrolar das narrativas, tendo como pano de fundo a re-
presentação múltipla do sofrimento. Em I Love shoes for you, encontramos uma
mulher sem nome, misteriosa, em situação de extrema vulnerabilidade social,
que oferece um par de sapatos para a narradora, também sem nome, deixando-a
curiosa acerca do significado daquela atitude. Mistério este que também encon-
tramos na personagem Kotinha, uma garotinha com fortes laços com os orixás,
que impede um desastre maior provocado pela violência de homens que, “em
nome de Jesus” tentavam destruir o seu terreiro. Já em Akiro Oba Ye!, a jovem

202 Saberes decoloniais


Anya tem que esconder sua paixão por Eduardo Ajagunã para protegê-lo da ira
de Ogunjá, um traficante apaixonado que deseja se casar com ela. No conto
Válvulas, a protagonista sem nome revela uma tentativa de estupro.
É possível perceber, ainda, como as existências das personagens de
Cidinha da Silva são perpassadas por questões de raça, classe, orientação se-
xual, geração, etc. No caso da personagem Farrina, do conto de Silva (2020),
observa-se que a narradora se impressiona com “as marcas do tempo violento
e da pobreza em seu corpo: as cáries, a falta de dentes, cortes e pequenas
queimaduras ao longo dos braços, a pele ressecada, sem uso de hidratante
naquele princípio de inverno” (SILVA, 2020, n.p.). Mas, mesmo em situações
de opressão, essas personagens não se limitam a construções unilaterais de
vítimas. Pelo contrário, mostram-se engenhosas e criativas diante das adver-
sidades. Em O mandachuva, por exemplo, a escrava Maria Felipa desenvolve
um plano para que Nicássio, um escravo reprodutor, engravidasse a dona da
fazenda, uma jovem viúva branca. Já no conto Mameto, a relação amorosa
entre duas mulheres é construída a partir do conflito, onde a mãe rouba a
namorada da própria filha. Importante frisar que o relacionamento amoroso
entre mulheres é trazido em diferentes contos desta obra e, em alguns deles,
ele é construído por uma narrativa romântica e poética.
Em ambas as obras, a proximidade das mulheres com o animalesco é
uma forma de representar suas ações diante de estruturas de violência. Em Lua
cheia, de Cidinha da Silva (2020), a esposa traída, em um rompante de sel-
vageria, tem suas atitudes confundidas com o ataque de um animal e, assim,
mata o próprio marido.

Os dois amigos que prepararam o corpo notaram as


unhas profundas no peito e nas costas, mordidas no pes-
coço, uma delas na jugular. O homem murcho, seco de
sangue. Deve ter sido atacado pela onça, [...]. E foi o
neto quem viu primeiro os fiapos de linha da roupa do
avô nos dentes da avó. (SILVA, 2020, n.p.)

Já em Metade cara, metade máscara (2018), Potiguara descreve a forma


como a mulher é vista na cultura indígena. Segundo a autora, há um aspecto
de selvageria:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 203


Com relação à cultura indígena, a mulher é uma fonte de
energias, é intuição, é a mulher selvagem não no sentido
primitivo da palavra, mas selvagem como desprovida de
vícios de uma sociedade dominante, uma mulher sutil,
uma mulher primeira, um espírito em harmonia, uma
mulher intuitiva em evolução para com sua sociedade e
para com o bem-estar do planeta Terra. (POTIGUARA,
2018, p. 46.)

Como é possível perceber, as autoras destacam uma articulação, ex-


tremamente, íntima entre a ancestralidade e as mulheres afro-indígenas. Para
Potiguara (2018), as mulheres indígenas seriam mais abertas aos saberes an-
cestrais. Desta forma, a autora parece sugerir que se o gênero demarca formas
específicas de sofrimento, a relação singular das mulheres indígenas com os
saberes ancestrais pode ser um caminho para que as mesmas incorporem uma
força também peculiar para resistir e reinventar-se ante tal cenário.

Por isso a importância da mulher na existência huma-


na. Ela é sábia; está mais aberta ao aprofundamento do
eu interior, da busca da ancestralidade. (POTIGUARA,
2018, p. 97.)

Por que aguentamos tanta violência? Nós, mulheres dos


segmentos dos povos indígenas e afrodescendentes, ain-
da aguentamos tanta violência porque não reforçamos
a nossa mulher interna, a mulher selvagem que existe
dentro de nós, a mulher primitiva, no sentido “primei-
ro”. Uma mulher deve andar com a força à sua frente; a
profunda natureza intuitiva dessa mulher deve prevalecer
na dualidade obrigatória de toda a mente feminina. E
quem dá essa força? Receber a herança ancestral de nossa
família ou de uma cultura é uma missão a cumprir, isso é
praticamente obrigatório dentro da anima. ( POTIGUA-
RA, 2018, p. 88.)

De forma menos explícita, Silva (2020) desenvolve os saberes an-


cestrais nas suas narrativas a partir das articulações estabelecidas entre suas
personagens e o sagrado. Apesar de não utilizar o conceito de “ancestralida-
de” propriamente dito, a autora circunscreve os saberes ancestrais nas formas
como as protagonistas se guiam através das entidades, nas relações de afeto e
204 Saberes decoloniais
de aprendizado entre os mais jovens e os mais velhos, na proximidade entre o
mundo dos vivos e dos mortos e, também, nas práticas e nas reflexões das per-
sonagens sobre suas existências. Em última instância, é possível perceber que
tanto para Silva (2020), quanto para Potiguara (2018), nada parece escapar da
ordem dos saberes ancestrais.

No tapete amarelo de Oxum, nossa mãe que me deu ao


mundo para te amar e te dar apoio para que teu pro-
pósito maior não te roube de ti mesma. (SILVA, 2020,
online.)

Todo mundo sentiu a vibração de Bamburucema.


O filho da senhora dos Raios correu para a chuva, como
se ali, nas águas dela, pudesse fugir da mãe. (SILVA,
2020, online.)

DE EXU A TUPÃ: DESTINOS GUIADOS

A religiosidade é um traço importante das narrativas que ressaltam as ma-


trizes indígenas e africanas. Como já apresentado anteriormente, ancestralidade e
religião são instâncias que se interpenetram. Além disso, trazer crenças que foram
e ainda são discriminadas no contexto social brasileiro parece ser o caminho esco-
lhido tanto por Cidinha da Silva em Um Exu em Nova York (2020), quanto por
Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara (2018), para reafirmar e forta-
lecer suas raízes africanas e indígenas. Em Metade cara, metade máscara (2018), as
divindades são acionadas, principalmente, na forma de preces.

É preciso ouvir os velhos, o som do mar e dos ventos. É


preciso a unidade entre as famílias, por isso pedimos a
Tupã que nos proteja e dê um basta ao sofrimento secu-
lar de nosso povo comedor de mandioca. POTIGUARA,
2018, p. 87.)

Rogai por nós, Ave-Xamã No Nordeste, no Sul toda ma-


nhã POTIGUARA, 2018, p. 34.)

Cunhataí, por exemplo, carrega uma marca que permite que a mes-
ma seja identificada pelos anciãos de sua aldeia de origem. Em sua busca por

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 205


recuperar sua identidade indígena, ela é guiada pelos ancestrais e espíritos da
floresta até retornar ao seu lar. Inclusive, observa-se que os ancestrais são os
responsáveis por definir o seu destino.

[...] quando ela retornou à sua aldeia de origem, o ca-


cique, o pajé e os segmentos do povo a reconheceram,
porque ela já era esperada, por decisão dos ancestrais, há
muitos séculos. (POTIGUARA, 2018, p. 73.)

Há de se considerar também a relação divinizada que os povos origi-


nários têm com os elementos da natureza. Como bem mostra o trecho, abaixo
descrito, o Sol, a Lua e as cachoeiras são criações máximas de Deus e, por isso,
merecem ser cuidadas.

Terra terá realmente uma razão de ser: viver bem a vida,


poder enxergar com alegria a criação de Deus, a perfeita
natureza, o céu azul, os mares, as cachoeiras, os infini-
tos rios e riachos, as poderosas montanhas, o calor glo-
rificante do Sol, a magnitude da Lua, o esplendor das
nuvens e dos trovões, o canto lírico e doce dos pássaros
e uma infinidade de belezas naturais, inclusive a beleza
do ser humano. Tudo isso constitui a biodiversidade do
planeta Terra. Tudo é muito sagrado; é preciso fazer essa
leitura para que se possa construir o autorrespeito e o
respeito ao outro (POTIGUARA, 2018, p. 106.)

Já em Um Exu em Nova York (2020), podemos identificar a recorrente


referência a ancestrais míticos, representados por entidades e orixás. Como
visto no próprio título, os orixás são uma presença constante no desenrolar
das diferentes histórias que compõem esta obra, fazendo parte do cotidiano
de seus personagens. De Exu a Ogum, de Iansã a Iemanjá, nota-se que as pre-
senças desses ancestrais têm o poder de influenciar as ações dos personagens.
Ademais, é possível encontrar situações onde os orixás intervêm diretamente
na ordem dos acontecimentos, dando novos rumos às narrativas.
A devoção dos personagens aos ancestrais divinizados é apresentada tan-
to nas expressões ritualísticas, como na forma como que os mesmos refletem
sobre suas vidas a partir dessas entidades. No conto Sábado, presente na obra
de Cidinha da Silva (2020), descreve-se uma cena onde um homem, próximo a

206 Saberes decoloniais


um lago, realiza uma oferenda. Com flores amarelas na mão, ele a joga na água,
“num movimento de desapego” (SILVA, 2020, n.p.). Já em I have shoes for you, a
protagonista, tentando entender os motivos que levaram uma moradora de rua
a lhe oferecer sapatos, relembra um acontecimento onde a “filha de Iansã que
ganhou batalha na justiça contra homens poderosos (....) teve a vida virada do
avesso pela represália dos feiticeiros acionados pelos indiciados” (SILVA, 2020,
n.p.). Com base nesta lembrança e com medo de ter o mesmo destino da filha
de Iansã, a protagonista sem nome decide não seguir o chamamento da morado-
ra. A desconhecida não se revela, mas esse encontro, tão marcante para a narra-
dora, parece ser explicado quando a mesma leva em conta a subversão temporal
ocasionada por Exu. Posteriormente, ao pensar sobre o evento, ela afirma três
vezes: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra de hoje”( SILVA, 2020,
n.p.). E, diante dessa explicação, a mesma agradece.
As divindades dos contos de Cidinha da Silva (2020) também brin-
cam, divertem-se e reagem aos acontecimentos das vidas dos personagens.
Ante o romance desenvolvido entre a protagonista Mameto3 e a namorada de
sua própria filha, a narradora afirma que:

Em pouco tempo formou-se um novo casal no terreiro,


para escândalo geral. (...) O céu ruborizou um abóbora
iansânico no entardecer dos dias frios. Oxum ria um riso
de menina arteira. Os orixás, em festa, criaram um mun-
do novo (...). Só Exu, sábio e cético, trepado na árvore da
vida, não se iludia. (SILVA, 2020, n.p. )

No conto Kotinha, diante da violência praticada por dois homens que,


referindo-se a Jesus, quebravam o terreiro enquanto as mulheres e crianças se
escondiam no fundo do barracão, a protagonista infantil interfere na ação com
o auxílio das divindades. Primeiramente, buscando fazer com que Bamburuce-
ma4 tomasse conta do seu filho, isto é, de um dos homens que estavam des-
truindo o lugar. Em um segundo momento, a menina se aproveita da confusão
gerada pela chegada de Nzázi5 e, num ato fortuito, começa a tocar o adjá6, pu-

3 Refere-se à zeladora das divindades e casas-terreiro na tradição angola-congo (SILVA, 2020, n.p).
4 Divindade dos ventos e trovões (SILVA, 2020, n.p).
5 Refere-se à divindade do trovão, do fogo e da justiça na matriz angola-congo (SILVA, 2020, n.p).
6 Instrumento sagrado utilizado para invocar divindades (SILVA, 2020, n.p).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 207


xando uma cantiga para Bamburucema. Com isso, os “homens bateram cabeça
como dois dos três patetas e um deles reclamou que estava tonto” (SILVA, 2020,
n.p.). Adiante, um deles chega a levar um tombo em meio à lama, enquanto o
outro foge na chuva e com raios caindo em sua direção.
Tendo em vista que os mitos são dramatizações narradas que tem o
intuito de estabelecer e legitimar as bases morais e éticas de uma dada socie-
dade (Oliveira, 2005) , é possível concluir que os ancestrais míticos - repre-
sentados nas figuras das divindades - não só personificam os conhecimentos
e valores coletivos, como destacam suas influências nas trajetórias dos indiví-
duos. Os poderes que tais entidades exercem sobre os personagens destacam
como o controle de suas vidas é regido por uma confluência de forças que,
muitas vezes, independe de suas vontades. Assim, a aproximação com as raízes
ancestrais pode não só auxiliar no atendimento dos desejos daqueles que estão
à mercê das divindades, como aproximar os indivíduos que pertencem ao
mundo dos vivos dos saberes circunscritos em outros planos. E, nesta lógica,
os anciãos parecem ocupar uma função primordial.

ENTRE GERAÇÕES: HERANÇAS, RITOS E APRENDIZADOS


COMPARTILHADOS

Para os povos indígenas e africanos, a relação entre os jovens e as pes-


soas mais velhas é marcada pelo respeito. Comumente associada à sabedoria,
a senioridade representa não só a detenção de grande conhecimento acerca do
mundo, como também a possibilidade de manter a coesão do grupo a partir
do compartilhamento de valores. Deste modo, cabe ao ancião a responsa-
bilidade de repassar seus conhecimentos, mantendo viva a cultura daquela
comunidade. Este processo de aprendizado tem no “contador de histórias”
seu principal ícone. Desta forma, estabelece-se um dos mais conhecidos ritos
comunitário-participativos das culturas de matrizes africanas e indígenas: o
contato entre a sabedoria personificada na figura de um ancião e o jovem
afoito por absorver seus ensinamentos.
Em Metade cara, metade máscara (2018), a narradora já inicia seu dis-
curso rememorando sua experiência na infância de escrever cartas a pedido da
avó, que era analfabeta. Esta, vista como possuidora de grandes conhecimen-

208 Saberes decoloniais


tos, apresentava-se como uma das principais referências de Potiguara (2018)
para desenvolver seu interesse pelo universo mágico e literário. Equiparada a
nomes reconhecidos do campo das artes e da educação, os ensinamentos da
avó foram um dos pilares no processo de construção de sua identidade.

Foi assim que Potiguara começou a escrever, absorta nas his-


tórias da própria avó e no sentimento que tudo isso envol-
via. As histórias reais de sua avó a levavam para um mundo
mágico e literário (POTIGUARA, 2018, p. 26-7_.

Aprendi com minha avó indígena, com Salvador Dali e


Paulo Freire a reconstruir uma imagem de nós mesmos,
desconstruir imposições e a reconstruir nosso discurso
(POTIGUARA, 2018, p. 105).

Dentre as poesias contidas nesta obra, Pele de foca faz referência ao


encontro com os valores ancestrais, representado tanto pela avó, como por
outros antepassados. Neste poema, o eu-lírico não só desafia os limites do pas-
sado e do presente, do mundo dos vivos e dos mortos, como também ressalta
a relevância de se aproximar dos saberes ancestrais para que o sujeito se apro-
xime da sua “verdade interior” e, com isso, afaste-se dos perigos e vicissitudes
presentes na sociedade moderna e nos estilos de vida que a constituem.

A luz se abriu e a minha pele de foca voltou a se ume-


decer.
Minha pele estava seca pelas vicissitudes da vida.
Eu mergulhei nas profundezas dos mares e reencontrei
minha
avó-foca, minhas sagradas ancestrais e os velhos guerrei-
ros que
também não se envergonhavam por suas lágrimas.
Elas – sabidamente – me contestaram e mostraram que
eu,
inconsciente e pacificamente, aceitava os padrões éticos
impostos pela intolerância da sociedade, e voltei com
minha alma
fortalecida, voltei com meus sonhos definidos, voltei
com
minha intuição extremamente clara, precisa, determina-
da (POTIGUARA, 2018, p. 94).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 209


A autora destaca, ainda, a importância dos conhecimentos apreendi-
dos com as mulheres de sua família, mesmo distante de seus territórios tradi-
cionais.

[...] antes, já havia incorporado inconscientemente a sa-


bedoria de minha mãe, minhas tias indígenas e, princi-
palmente, minha avó, Maria de Lourdes, filha do guer-
reiro indígena desaparecido no início do século XX. Sou
feliz porque aprendi esses conceitos com elas, mesmo
que elas estivessem fora de suas terras tradicionais. Elas
foram enxotadas de suas terras, mas os valores, os concei-
tos, os princípios, a cosmologia jamais, em tempo algum,
foram dizimados pelo colonizador. Essa é a nossa maior
herança: a preservação da nossa essência, em um mundo
impune, cheio de diferenças e preconceitos. É como re-
nascer no meio do lixo. É como a flor de lótus, que nasce
na lama e atinge a superfície cristalina (POTIGUARA,
2018, p. 98).

Ao discorrer sobre a necessidade de homens e mulheres reconstruírem


sua mente e espírito, apoiando sua criatura interna – o anima -, respeitando
assim o anseio de suas almas que precisam ser fortalecidas pela ancestralida-
de que habita seus interiores, Potiguara (2020) reafirma a importância dos
anciãos neste processo, criticando a forma como a sociedade não indígena os
trata. Segundo a autora:

Para isso, é importante ouvir os sábios e as sábias indí-


genas e afrodescendentes e de outras etnias e raças. No
entanto, o sistema político e social desvaloriza os idosos,
postergando-os, arrastando-os para o corredor da morte
lenta. Ao longo do tempo, os velhos e as velhas pajés e
xamãs foram subestimados pelas instituições, que insis-
tem em impor valores políticos e religiosos alheios a eles,
conduzindo-os à marginalidade cultural. É tempo de
resgate. Os caminhos e as respostas para um novo mun-
do estão na aquisição e no reconhecimento dos conheci-
mentos tradicionais das primeiras nações deste grande e
luminoso asteroide azul contra o inimigo interno e exter-
no (POTIGUARA, 2018, p. 92).

210 Saberes decoloniais


Ademais, na sua poesia Eu não tenho minha aldeia, Potiguara ressalta
a importância da herança simbólica dos saberes compartilhados por seus an-
tepassados e a riqueza que isso representa frente aos preconceitos que sofre
enquanto mulher indígena.

Eu não tenho minha aldeia


Minha aldeia é minha casa espiritual
Deixada pelos meus pais e avós
A maior herança indígena.
(...)
Eu não tenho minha aldeia
Mas tenho o fogo interno
Da ancestralidade que queima
Que não deixa mentir
Que mostra o caminho
Porque a força interior
É mais forte que a fortaleza dos preconceitos (POTI-
GUARA, 2018, p. 151).

Já em O velho e a moça, um dos contos de Um Exu em Nova York


(2020), temos um diálogo entre dois personagens, onde a moça indaga ao
ancião acerca do livro que precisa escrever: “Mas, por onde devo começar,
velho Ayrá7?” Ao que ele responde: “Do copo vazio, menina! Esvaziar o copo
é uma arte. Demoraste um tempo longo no serviço, agora tens a agulha do
tempo novo” (SILVA, 2020, n.p).. Observa-se que os ensinamentos passados
pelos mais velhos, geralmente, possuem um conteúdo metafórico, subjetivo
que, em última instância, denotam um ar de mistério. Partindo da premissa
de que tanto as questões colocadas aos anciãos quanto os ensinamentos por
eles passados estão circunscritos no âmbito existencial, a complexidade das
respostas diz respeito à própria complexidade da vida.
Vale ressaltar, ainda, que as lágrimas aparecem como marcadores nas
representações dos anciãos nas duas obras. Ambas as narrativas parecem suge-
rir que as lágrimas são demonstrações e/ou representações de uma sabedoria
superior, pertencente aos mais velhos. Em O velho e a moça, podemos perceber
no diálogo, abaixo descrito, que a moça interroga o velho acerca de seu choro.

7 Representa uma “qualidade de Xangô, divindade do fogo, do trovão e da justiça iorubá. Veste-se
de branco” (SILVA, 2020, n.p.)

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 211


Estás chorando, velho Agodô? Não, menina. É a me-
mória das corredeiras que escapa. Sempre à noite, velho
Ayrá? Sim. É o orvalho que brota desse coração cansado.
(...) Água que brota não cessa, mesmo quando cortada.
As correntezas são mais velhas do que esta montanha em
que habitamos. O que brota de mim é a memória das
águas.( SILVA, 2020, n.p.).

Em Metade cara, metade máscara (2018), as lágrimas são citadas em


diferentes momentos: quando a narradora se refere à sua avó, aos seus an-
cestrais e, ainda, ao seu povo como todo, incluindo-se. Mais do que isso,
entretanto, há uma referência direta à capacidade dos homens chorarem pelas
mulheres de seus povos. É possível observar essas referências tanto no poema
Identidade Indígena, quanto no poema Pele de foca.

Mas não sou eu só


Não somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da História.
Seremos milhões, unidos como cardume
E não precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lágrimas (POTIGUARA,
2018, p. 113).

Minhas costelas não estão mais descarnadas, a carne vol-


tou a
crescer depois que os homens derramaram suas lágrimas
pelas
mulheres do mundo e eu não sou mais uma mulher-
esqueleto, jogada ao fundo do mar, como se fora um sa-
pato
velho, pela cultura impostora. Sou uma mulher de fibra,
porque eu me reconstruí por mim mesma, depois de
dançar
desvairadamente na vida com meu iludido sapatinho
vermelho (POTIGUARA, 2018, p. 95.).

Em Um Exu em Nova York (2020), a morte é tida como um impor-


tante rito de passagem. Com exceção da morte repentina de uma mãe que
acabara de ter um filho no conto Sábado, na maioria das vezes, ela é abordada

212 Saberes decoloniais


menos como um momento de sofrimento e mais de uma forma cômica ou
bela. No caso do conto Maria Isabel, a protagonista recém-morta tece comen-
tários – muitos deles, maldosos – sobre as pessoas presentes em seu velório.
Demonstrando certo alívio pelo acontecimento recente, a morta comemora
o fato de ter morrido de causas naturais, já que isto não é algo comum no
lugar que habita. Por fim, afirma que: “Já está chegando a minha hora de fazer
a viagem do fogo. Quis logo virar cinza porque não ia ter paciência de ver
micróbio me comendo aos tiquinhos” SILVA, 2020, n.p.. Percebe-se, assim,
que a morte não é o encerramento da existência, tampouco o fim do vínculo
com o mundo dos vivos. Em Sá Rainha, por sua vez, a protagonista anciã,
cujo “trânsito pelo país dos ancestrais está mais constante a cada dia” (SILVA,
2020, n.p.), é reverenciada e acolhida com carinho, tanto pelas pessoas que a
“acompanham a uma distância reverente e cuidadosa, caso ela precise de algo”
(SILVA, 2020, n.p.), quanto pelos filhos já mortos que, surpreendidos por a
encontrem onde vagam, abraçam-na e chamam por ela.
Em contrapartida, a morte é trazida para representar a relação vio-
lenta estabelecida entre colonizados e colonizadores em Metade cara, metade
máscara (2018). Potiguara (2018), em tom de denúncia, chama atenção para
o extermínio dos povos originários no poema Oração pela libertação dos povos
indígenas. Entre crítica e lamento, expõe a dor dos indígenas e reivindica a
mudança deste panorama.

Parem de podar as minhas folhas e tirar a minha enxada


Basta de afogar as minhas crenças e torar minha raiz.
Cessem de arrancar os meus pulmões e sufocar minha
razão
Chega de matar minhas cantigas e calar a minha voz.
(...)
Não se apaga dos avós – rica memória
Veia ancestral: rituais pra se lembrar
(...)
Rogai por nós, meu Pai-Xamã
Pra que o espírito ruim da mata
Não provoque a fraqueza, a miséria e a morte.
Rogai por nós – terra nossa mãe
Pra que essas roupas rotas
E esses homens maus

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 213


Se acabem ao toque dos maracás.
(...)
Evitai, ó Tupã, a violência e a matança (POTIGUARA,
2018, p. 34.).

Nota-se, por fim, que o compartilhamento dos saberes ancestrais nem


sempre é marcado por relações consanguíneas. Na dedicatória do poema O
Segredo das Mulheres, por exemplo, Potiguara (2020) referencia “À amada tia
Severina, índia Potyguara, grande anciã guerreira que muito me incentivou
e me amou com a força da mulher indígena”. Conforme explica a autora,
Severina era, na verdade, a mulher mais velha da tribo Potyguara que Eliane,
carinhosamente, chamava de tia. O compartilhamento dos saberes ancestrais
é, antes, um pacto coletivo, um processo que se refere, sobretudo, aos laços
comunitários estabelecidos. Neste ínterim, é possível afirmar que não só que
as identidades construídas a partir do conhecimento ancestral mesclam o indi-
vidual e o coletivo, como elas tem características específicas quando pensadas
sob as lentes do feminismo decolonial.

DO SUJEITO HEGEMÔNICO DO FEMINISMO AO SUJEITO ANCESTRAL DO


FEMINISMO DECOLONIAL: O COLETIVO QUE RESIDE NAQUELAS QUE SE
CONSTROEM NA DIÁSPORA

No início deste texto, lancei a ideia de que a ancestralidade tem fun-


cionado como uma importante ferramenta de combate de visões universalistas
e homogeneizantes, na medida em que se mostra um recurso político para o
estabelecimento de estratégias de resistência das culturas de matrizes africanas
e indígenas, bem como de projetos que se pretendam decoloniais. Explico:
a relação que as culturas de matrizes africanas e indígenas estabelecem com
os saberes ancestrais é muito particular. Conforme demonstrado no decorrer
deste artigo, a partir dos excertos das obras analisadas, a ancestralidade trans-
passa a formação identitária desses sujeitos, sendo vivenciada nas suas criações
e experiências de vida.
Ao afastar-se dos saberes ancestrais, tais indivíduos incorrem o risco de
se perderem de si mesmos. Tal premissa, tão forte naqueles que se identificam
com essas culturas, escapa às lógicas hegemônicas, que já não parecem ver tan-

214 Saberes decoloniais


to sentido no estabelecimento dessa relação com divindades e antepassados.
É algo que foge da sua racionalidade. Entretanto, para as matrizes africanas e
indígenas, essas relações são essenciais para sua própria sobrevivência. É a par-
tir dos saberes ancestrais, que seus valores são passados de geração em geração,
são mantidos vivos. Neste sentido, reconhecer a ancestralidade que o habita é,
também, um jeito do indivíduo reconhecer a coletividade que faz parte de si.
Cada ação, cada gesto perpassa o conhecimento coletivo. Não existe identida-
de individual sem a coletividade que, por sua vez, só é reconhecida como uma
instância viva e coesa a partir do indivíduo. E, assim, cada sujeito diaspórico
abarca dentro de si essas tensões entre individualidade e coletividade, inovação
e tradição, o eu, o outro e o nós.
Em Metade cara, metade máscara (2018), Potiguara (2018) apresenta,
logo no início, o casal de personagens Jurupiranga e Cunhataí. Nesta obra
híbrida, sua história é misturada a poesias e textos diversos sobre o Instituto
Grumin e algumas das experiências da autora. Ainda sobre o casal apaixo-
nado, Potiguara (2018) afirma que irá contar a história de sobrevivência à
colonização, destacando seus dramas, conquistas e demais vivências. Neste
percurso, a autora acaba por abordar mais do que a história de Jurupiranga
e Cunhataí, discorrendo sobre os dramas vivenciados pelas famílias expulsas
de suas terras ancestrais e, ainda, apresentando passagens que se misturam à
sua própria experiência de migração forçada. Nota-se que a sua dor, a dor de
Cunhataí e a dor de seu povo se interpenetram e, por vezes, se confundem.
Vale destacar, também, que, por diversas vezes, Potiguara (2018) cha-
ma a atenção para a proximidade entre a situação das populações indígenas
e negras. Referenciando a autores como Fanon e Amílcar Cabral, a escritora
discorre sobre sistemas de opressão e dominação frutos deste modelo socioe-
conômico.

Esse processo desestabiliza o contexto cultural e espiri-


tual; enfim, a cosmovisão de cada um de nós, indígenas,
negros ou demais pertencentes a segmentos oprimidos, o
que traz à tona um lamentável estado psicológico de an-
gústia e insatisfação, prejudicando todos os aspectos das
relações humanas. (POTIGUARA, 2018, p. 90.)

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 215


Em Um Exu em Nova York (2020), percebemos que a ideia de perten-
cimento é agenciada tanto pela religião compartilhada – representada pelos ri-
tuais de candomblé, bem como pela referência recorrente aos orixás -, quanto
pela identificação dos cabelos com dreads, presente em diferentes contos. De
certo modo, tais aspectos parecem transmitir uma sensação de reconhecimen-
to e de familiaridade. Como explica Silva (2020) em um dos seus contos,

Dreads criam certa irmandade mundo afora entre pesso-


as negras que partilham o sentido de raízes que crescem
para o alto e para fora, derramam-se pelos ombros e cos-
tas, totalmente expostas ao sol.( SILVA, 2020, n.p.).

A ancestralidade está, intimamente, relacionada a esta ideia de perten-


cimento. Mesmo diante de tantas transformações, aqueles que se reconhecem
enquanto pertencentes às culturas indígenas e afro-descendentes encontra-
ram na ancestralidade seu principal elo com seus passados silenciados e foram
capazes de reconstruir suas identidades a partir disso. Neste ponto, a ances-
tralidade permitiu que os mesmos não só revisitassem seu passado, reescre-
vendo-o, como também reinventassem seus presentes e reivindicassem novas
possibilidades de futuro.
Como ferramenta política, a ancestralidade desafia o modelo euro-
cêntrico. Ela dá voz a coletividades silenciadas, chamando a atenção para suas
existências. Deste modo, sinaliza para outros caminhos possíveis. Demonstra
que existem outros mundos, além daqueles que estamos familiarizados. Mais
do que isso, permite que estas outras possibilidades sejam acessadas. Destaca
que muitos dos vestígios desses outros mundos se encontram dentro de nós
mesmos, tão acostumados a ignorar os traços afro-indígenas que nos consti-
tuem. Desestrutura a linearidade que demarca as noções de passado, presente
e futuro, salientando seus pés de barro. E é, assim, que vejo mais fortemente
a relação entre a ancestralidade e o feminismo decolonial: se o projeto de-
colonial tem na sua ordem do dia problematizar os modelos hegemônicos,
deslocando olhares para outras formas de existência, talvez os saberes ances-
trais sejam o principal elemento de resistência para fomentar a construção
de paradigmas alternativos, na medida em que mantém vivos os modelos de
organização da vida que estruturam essas culturas subalternizadas.

216 Saberes decoloniais


O povo indígena sobrevive há séculos de opressão porque
tem como maior referencial a tocha da ancestralidade, do
perceber intuitivo, da leitura e da percepção dos sonhos, do
exercício da dança como expressão máxima da espiritualida-
de e da valorização da cultura, das tradições, da cosmovisão
personificada na figura dos mais velhos e das mais velhas, os
idosos planetários. (POTIGUARA, 2018, p. 97.)

Se adotarmos a lógica de que “toda ação é fundamentada em interpre-


tações do mundo, que por sua vez prescrevem o mundo” (MIÑOSO, 2020,
p. 97)., o que essas escritoras afro-indigenas estão fazendo é deslocar, politica-
mente, o que se tem considerado como bases para a construção da experiência
feminista. Mais do que a pluralidade que elas trazem à tona ao descrever essas
experiências, suas narrativas dão corpo a uma fundamentação crítica da “razão
feminista moderna eurocêntrica” (MIÑOSO, 2020, p. 98.). Elas desenvol-
vem uma contra-memória e, com isso, mostram-se mais atentas às práticas
que nos tornam quem somos do que a série de discursos homogeneizantes que
delineiam as especificidades do feminismo.

É preciso estar atenta ao trazer as palavras as histórias que


foram deixadas sobre nós e saber diferenciá-las das histó-
rias que narramos sobre nós mesmas (NASCIMENTO,
2020, online.).

Aprendo a circular pelas encruzilhadas, a decantar dores,


a absorver marcas e a me absolver, sem remorso. Sobretu-
do, celebro as alegrias e invento meu lugar de existência
ao afrografar a memória e re(encantar) mitopoéticas.(
SILVA, 2020, n.p.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste artigo, tentei realizar alguns apontamentos sobre os


saberes ancestrais em duas obras literárias consideradas por muitos - e prova-
velmente pelas próprias autoras - como decoloniais. Sendo um investimento
ainda inicial na temática abordada, mobilizei conhecimentos circunscritos na
área da filosofia da ancestralidade, no campo literário, nos estudos de gênero e
nos feminismos decoloniais, no intuito de destacar a ancestralidade enquanto

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 217


um elemento imanente ao projeto feminista decolonial. Na medida em que o
resgate dos saberes ancestrais possibilita a construção e a visibilização de mo-
delos alternativos ao padrão eurocêntrico, a ancestralidade é utilizada como
uma estratégia de resistência dos sujeitos subalternizados.

REFERÊNCIAS

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sileira de Ciência Política, nº11. Brasília, maio - agosto de 2013, pp.
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MACHADO, Adilbênia Freire. Filosofia Africana e Saberes Ancestrais Femi-
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<https://diplomatique.org.br/filosofia-africana-e-sabere s-ancestrais-
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218 Saberes decoloniais


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OLIVEIRA. “A epistemologia da ancestralidade.” Revista Entrelugares – Revis-
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entrelugares.ufc.br/phocadownload/eduardo-resumo.pdf, acesso em
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______________________. A ancestralidade na encruzilhada. Curitiba: Edi-
tora Gráfica Popular, 2021. E-book. 343 p.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na
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POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro: Grumin,
2018.
SILVA, Cidinha da. Um Exu em Nova York. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
E-book.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 219


MULHERES E O TRADICIONALISMO GAÚCHO
Márcia Esteves de Calazans1
Marjuliê Angonese 2
Cristina Bartholomay Oliveira3
Luiza Vasselai da Veiga4

INTRODUÇÃO

Inicialmente, faremos uma contextualização conceitual sobre o signi-


ficado e origens da palavra Prenda. Da relação do seu significado como este
conceito é transportado para dentro do Movimento Tradicionalista Gaúcho e
passa a relacionar-se, a associar-se à identificação de mulheres que participam
da comunidade tradicionalista.
Prenda. No dicionário Michaelis5, a palavra é tratada como substan-
1 Pós doutorado em Educação e Interculturalidade pela UFRGS; Professora na equipe docente do
Centro Latino-Americano de Ciências Sociais, UFRGS. marcia_calazans@hotmail.com
2 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Comunicação da UFRGS. marjulieamartini@
gmail.com
3 Graduada em jornalismo, é especialista em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM). Coordenadora de comunicação do Gabinete de Reforma Agrária do Governo
do Estado do Rio Grande do Sul. cris.bartho@gmail.com
4 Mestranda em Docência da Língua Francesa no Departamento de Linguística da Universidade
Aix-Marseille na Provença, França. luizavasselai@gmail.com
5 Disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=prenda Acesso em
tivo feminino que, primeiramente, significa objeto que se dá como brinde,
dádiva, lembrança, mimo. Em segundo lugar, é sinônimo de qualidade apre-
ciável, mérito ou dom natural. Por terceiro, o verbete é definido como objeto
dado em penhor por aquele que perde um jogo. Na evolução e atualização do
verbete, encontramos como quarto possível uso, a designação de mulher na
flor da idade, moça – um regionalismo do Rio Grande do Sul.
Integrar a comunidade tradicionalista possibilita às mulheres concor-
rerem ao título de 1ª prenda, mais alto posto destinado àquelas que fazem
parte de Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Para isso, conforme é des-
crito no regulamento da Ciranda Cultural de Prendas (que será abordado de
forma mais detalhada na seção “Tornar-se Prenda” deste artigo), a mulher
deve representar as virtudes, a dignidade, a graça, a cultura, os dotes artísticos,
a beleza, a desenvoltura e a expressão das gaúchas. E observaremos que a cons-
trução deste conceito se dá em oposição ao conceito de “chinoca” – substan-
tivo feminino, china (índia, ‘cabocla) moça ou menina; caboclinha, chininha;
china (prostituta) jovem; chininha, piguancha.
Qual a experiência-mundo para as mulheres que participam destes
espaços?
Que lugares lhes são destinados?
Assim, o presente artigo discute o padrão de poder, que é, conforme
Quijano (2005), a classificação social da população mundial (1) de acordo
com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência bá-
sica da dominação colonial e que, desde então, permeia as dimensões mais
importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica: o eu-
rocentrismo.
Reconhecemos nesse marco introduzido por Aníbal Quijano o con-
ceito de colonialidade do poder, que é central para compreensão da coloniali-
dade do saber, do ser. E, sobretudo, em Maria Lugones (2008), que entrelaçou
essa compreensão a qual possibilita chegar ao que a autora chamou de (2) “el
sistema moderno-colonial de género”.
Portanto, supomos que há alcances e consequências desse sistema
mundo moderno-colonial de “gênero e raça” que impõem determinados atri-
butos para a Prenda dentro do Movimento Tradicionalista gaúcho.
julho de 2019.

222 Saberes decoloniais


O MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO

Aqui, apresentaremos uma revisão bibliográfica sobre o Movimen-


to Tradicionalista Gaúcho e como alguns documentos do MTG prescrevem
como é ser uma prenda. Utilizaremos, para tanto, a principal referência da
produção bibliográfica e de documentos normativos, norteadores sobre o tra-
dicionalismo gaúcho: Barbosa Lessa.
O autor escreveu cerca de 61 obras, entre contos, músicas e romances.
Participou intensivamente do processo de construção desse Movimento, que
registrou e difundiu a cultura gaúcha do homem do campo. Em 1948, aos 19
anos de idade, junto com um grupo de colegas do ensino secundário, criou o
Movimento Tradicionalista Gaúcho e o primeiro CTG (Centro de Tradições
Gaúchas) da história, definindo as características do que hoje é considerado o
tipo “Gaúcho”, e dedicou-se a implantação do tradicionalismo.
Conforme Lessa (1954), o Movimento Tradicionalista Gaúcho se de-
senvolve desde 1947 em uma tentativa de reforçar o núcleo da cultura rio-gran-
dense, “tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo e sem apoio dentro do
caos de nossa época” (referindo-se à primeira metade do século XX). Para ele,
através dos Centros de Tradições Gaúchas, os CTGs, o “Tradicionalismo pro-
cura entregar ao indivíduo uma agremiação com as mesmas características do
‘grupo local’ que ele perdeu ou teme perder: o ‘pago’. Mais que o seu ‘pago’, o
pago das gerações que o precederam” (LESSA, 1954, p. 04). O “pago” ao qual
Lessa se refere são as estâncias, fazendas e sítios, ameaçados pela industrialização
e consequente urbanização das cidades. Mas, à qual cultura rio-grandense ele
se refere? À cultura dos povos originários do Rio Grande do Sul (caingangues,
charruas, guaranis, minuanos)? A dos alemães que vieram ao país para cultivar as
planícies ainda sem plantio? A dos imigrantes italianos que chegaram ao Estado
para o povoamento de áreas não cultivadas ou de difícil acesso – e responsáveis
por ocupar, entre outras áreas, o denominado “Campo dos Bugres” (o bugre era
a forma generalista pela qual os nativos eram chamados pelos descendentes de
portugueses e espanhóis já estabelecidos no Brasil)?
Hoerhann (2012) afirma que, ainda em 1879, foi instituída a função
de bugreiro – pessoas experientes especializadas em caçar e dizimar indígenas

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 223


a serviço de fazendeiros locais ou contratados pelas empresas colonizadoras.
Conforme ele, o surgimento dessas milícias foi, na realidade, uma retomada
da ofensiva portuguesa colonialista iniciada no século XVI.

Os portugueses quando aqui chegaram, no século XVI,


se aliaram a alguns povos indígenas para subjugar co-
munidades rivais. Estas últimas sofreram perseguições,
escravismo e extermínio. O extermínio em Santa Catari-
na foi reiniciado no século XIX a fim de que imigrantes
estrangeiros ocupassem as terras destinadas à colonização
(HOERHANN, 2012, p. 48).

A tese de Barbosa Lessa poderia justificar a empreitada colonial sobre


os povos originários, dizendo que sua cultura sucumbiu não em virtude do
genocídio indígena provocado pelas empresas colonizadoras e mesmo pelas
milícias contratadas, mas porque não seria forte o suficiente para sobreviver e
se tornar hegemônica.

Quando a cultura de determinado povo é invadida por


novos hábitos e novas ideias, duas coisas podem ocor-
rer: se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente
e forte, a sociedade só tem a lucrar com o referido con-
tato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seio aque-
les traços culturais novos que, dentre muitos, realmente
sejam benéficos à coletividade; se, porém, a cultura in-
vadida não é predominante e forte, a confusão social é
inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo
cultural, desnorteando os indivíduos, e fazendo-os titu-
bear entre as crenças e valores mais antagônicos (LESSA,
1954, p. 02).

Esse documento escrito por Barbosa Lessa é apresentado, ainda na-


quele primeiro congresso do movimento, como a orientação moral do MTG.
Ela parte do pressuposto que a cultura e as tradições do povo gaúcho são
aquelas do homem rural – e não englobam as aldeias indígenas, grupos nôma-
des, quilombos ou vilas de imigrantes. Conforme Luvizotto (2009), a cultura
gauchesca criada por Barbosa Lessa tem por base majoritariamente elementos
colonialistas, e não provenientes de imigrantes ou povos nativos. Luvizotto
cita como exemplos de influência indígena o mate e a expressão “tchê” – que

224 Saberes decoloniais


vem do guarani. Por outro lado, no livro Manual de Danças Gaúchas (1955),
Paixão Cortes e Barbosa Lessa relatam a origem de cada uma das principais
coreografias que, mais tarde, se tornam danças obrigatórias das chamadas
“invernadas” – grupos de baile que se apresentam em competições – e um
dos principais atrativos para reuniões nos CTGs. Ao explicar como dançar o
Pezinho e a Chimarrita Balão, por exemplo, eles apontam que as danças são
originárias de Portugal. O Rilo – aportuguesamento de Reel – é da Inglaterra;
os Chotes, da Escócia (CORTES; LESSA, 1955).
Cortes e Lessa ainda dão conta, quando explicam a origem da dança
da Chula, também portuguesa, que o termo “gaúcho” era pejorativo no início
do século XIX e referia-se a um “cavaleiro nômade, fruto de forte mestiçagem
indígena, homem sem lar e sem querência - bem distinto do campeiro das
estâncias” (CORTES; LESSA, 1955, p. 121). Ainda, eles ressaltam que essa
era uma sociedade sem mulheres – o que explicaria a solitária dança da chula
–, cujos homens manifestavam, inclusive, pouca atração por elas.
Mas a ocultação das mulheres não é assentada apenas às mulheres
negras e indígenas. Na Nota de Instrução nº 03 (VICE-PRESIDÊNCIA DE
CULTURA DO MTG, 2018) referente à indumentária da prenda para ati-
vidades culturais e sociais, estão proibidas cores berrantes ou fluorescentes e
vetados enfeites dourados, prateados ou com purpurina. A maquiagem deve
ser discreta. As joias devem estar de acordo com classe social, idade e evento;
pedras são permitidas, desde que discretas. Vetos semelhantes são descritos
para prendas mirins (crianças) e juvenis (adolescentes).
Vale destacar a origem e o que representa a vestimenta oficial da prenda:
vestido longo e rodado, sem decotes ou recortes que exibam a região dos seios da
mulher. A definição do recato como intrínseco à indumentária da mulher gaú-
cha não é à toa. Ao estruturar o documento que baseia os princípios morais do
MTG, Barbosa Lessa (1954, p. 04) delimitou que “através da atividade artística,
literária, recreativa ou esportiva, que o caracteriza – sempre realçando os moti-
vos tradicionais do Rio Grande do Sul – o Tradicionalismo procura, mais que
tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-grandense, tendo em vista o indivíduo
que tateia sem rumo e sem apoio dentro do caos de nossa época”. Por isso, a im-
portância dos Centros de Tradições Gaúchas, os CTGs, para o MTG, centrados
na figura do homem como símbolo da pujança do Estado, com a prenda sendo

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 225


sua discreta, elegante e doméstica companheira. “À medida que surgem novos
Centros, em todos os municípios do Rio Grande do Sul, vai o Tradicionalismo
confundindo-se com o Regionalismo, pois opera para que todos os indivíduos
que compõem a Região sintam os mesmos interesses, os mesmos afetos” (LES-
SA, 1954, p. 04). A intenção do Movimento, a partir da eleição da mencionada
tese como sua base de princípios, é se transformar em uma força política do Rio
Grande do Sul, ou “na maior força a auxiliar o Estado na resolução dos proble-
mas cruciais da coletividade” (LESSA, 1954, p. 05).
Assim, com base no apagamento da cultura negra e indígena da for-
mação identitária, a imagem propagada pelo MTG da prenda é alicerçada em
construções heteronormativas, reforçadas na própria narrativa de Barbosa Les-
sa. A prenda é construída, a partir dos artefatos culturais, como sinônima para
a mulher bela, recatada e do lar – além de branca, heterossexual, monogâmica,
e cujo intelecto é de pouca importância.

TORNAR-SE PRENDA

No que se refere à linguagem empregada por Barbosa Lessa (1954)


em seus manuais tradicionalistas, nota-se, mesmo sem muito esforço, a divi-
são temática do que cabe às descrições dos papéis de gênero. O homem tem
posição deliberadamente privilegiada na narrativa, por ser guiado por padrões
de honra e caráter, podendo desenvolver sua personalidade à volta disto. Já à
mulher, para que seja prenda, são necessárias condutas de comportamento que
vão para além do caráter. E esta é construída em oposição a ideia de chinoca.
Mínimos critérios são impostos quanto à sua delicadeza, tamanho e figurino.
Não havendo espaço para a expressão individual, as prendas não obtêm algum
poder político de decisão e acabam por ser objetificadas tão frequentemente
quanto mencionadas. Segato (2012) lembra Arlette Gautier (2005) quando
deixa clara a intenção de eficácia colonizadora em concentrar o poder de Es-
tado no masculino “domesticando” as mulheres, já reclusas na “vida privada”,
buscando seguir a orientação colonizadora europeia.

A colonização carrega consigo uma perda radical do po-


der político das mulheres, ali onde existia, enquanto os
colonizadores negociaram com certas estruturas mascu-

226 Saberes decoloniais


linas ou as inventaram, com o fim de conseguir aliados e
promoveram a “domesticação” das mulheres e sua maior
distância e sujeição para facilitar a empreitada colonial
(GAUTIER, 2005 apud SEGATO, 2012, p. 119).

Entre as diversas práticas, eventos e atividades que afirmam a repre-


sentação da Prenda dentro do Movimento Tradicionalista Gaúcho, existe a
Ciranda Cultural de Prendas, criada no ano de 1970. Com 50 anos de histó-
ria, reúne anualmente tradicionalistas das 30 Regiões Tradicionalistas do Rio
Grande do Sul para a escolha das representantes da juventude tradicionalista e
da figura da mulher gaúcha nas categorias Mirim, Juvenil e Adulta.
Ao ler o regulamento da Ciranda Cultural de Prendas (86ª CON-
VENÇÃO TRADICIONALISTA GAÚCHA EXTRAORDINÁRIA, 2018),
observamos que a pontuação da “Avaliação Oral”, seção de peso eliminatório
e que tem duração máxima de 25 minutos, é a segunda etapa depois da prova
escrita. Esta fase do concurso é avaliada de acordo com quatro fatores: “Na-
turalidade e fluência na fala” (05 pontos), “Desenvoltura na fala (ausência de
gírias e tiques)” (05 pontos), “Gestualidade e expressão corporal” (02 pontos),
para, então, na quarta linha da seção, avaliar, de fato, o “Conteúdo exposto”,
que tem o valor de cinco pontos. Ainda em outro tópico da avaliação, os
jurados dispõem de dez pontos para graduar as participantes pelos seus “Ca-
racteres Pessoais”, onde podem avaliar “as boas maneiras, a elegância, a desen-
voltura, a simpatia, a beleza e a indumentária de acordo com as Diretrizes do
MTG” - conforme descrito no Artigo 27 do regulamento. Estes parâmetros
são observados ao longo de todas as etapas e são divididos em:

§ 1º - Para avaliação dos caracteres pessoais, serão consi-


derados os seguintes itens: a) simpatia;
b) boas maneiras.
§ 2º - O uso da indumentária da prenda e de quem par-
ticipar de sua apresentação que estiver em desacordo
com as diretrizes do MTG acarretará na perda de até 0,5
(meio) pontos na nota final. Referência?

Essa etapa tem o intuito avaliar a expressão oral das candidatas. Res-
salta-se que, na competição para tornar-se a Primeira Prenda do Estado do Rio
Grande do Sul, a eleição do júri é extraída da grande lista de Conselheiros do
Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 227
MTG (MTG, 2020), composta por 118 conselheiros, entre titulares, suplen-
tes, beneméritos e vaqueanos, sendo que, dentre estes, localizamos apenas os
nomes de 12 mulheres. Isso significa que, mesmo obtendo todo o conheci-
mento necessário para a produção de um conteúdo coerente e que condiz com
o esperado do Tradicionalismo Gaúcho, e assim, obtendo pontuação máxima
no quesito “Conteúdo exposto”, uma candidata poderia ser facilmente des-
qualificada por não adequar a sua linguagem ao esperado por juízes, em sua
enorme maioria homens e com expectativas masculinas e pré-determinadas
de como estas mesmas candidatas deveriam se comunicar, e portanto, pensar.
As mulheres só passaram a fazer parte do Movimento Tradicionalista
Gaúcho em 1949, alguns anos após sua fundação. Sua inclusão se deu através
da dança, culinária ou decoração, tarefas tidas pelo movimento como coeren-
tes com o universo feminino. Assim nasceu a prenda, segundo Dutra (2002),
termo escolhido para representar a companheira do gaúcho heroico, restrito
às mães, filhas e esposas e em oposição às “chinas”:

A participação feminina no “galpão simbólico” exigia


uma denominação para elas: como iriam chamar-se as
mulheres tradicionalistas? A busca de elementos do pas-
sado não apontava uma solução, porque as mulheres dos
gaúchos na época de ocupação e demarcação territorial
eram as “chinas” (mulheres brancas, negras ou índias),
que na representação mítica, expressa através dos textos
gauchescos, homogeneizou como “índias roubadas e le-
vadas à garupa de seus cavalos” (DUTRA, 2002, p. 59).

Ainda, o regulamento da Ciranda Cultural de Prendas, destinada a


eleger a 1ª prenda Mirim, Juvenil e Adulta, evidencia, especialmente no seu
artigo 2º, que a influência deste modelo de gênero, de origem colonial, per-
manece inalterada, compondo quesitos necessários às candidatas. Segundo o
regulamento:

Art. 2º - A Ciranda tem como finalidades:


IV - Escolher, anualmente, dentre as candidatas, aquelas
que melhor representem as virtudes, a dignidade, a gra-
ça, a cultura, os dotes artísticos, a beleza, a desenvoltura
e a expressão da mulher gaúcha.

228 Saberes decoloniais


Em artigo publicado no site tradicionalista Estância Virtual em janei-
ro de 2019, a historiadora Tainá Severo Valenzuela, que foi 1ª Prenda da 13ª
Região Tradicionalista e Patrona do Departamento Tradicionalista Gaúcho
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), utiliza sua experiência para
demonstrar como o MTG separa homens e mulheres em uma imaginária es-
cala de capacidades. “Enquanto Prenda, eu já sentia desconfortos, mas ainda
sem maturidade suficiente pra saber o quanto isso tava errado. ‘Não fale
sobre tal assunto’, ‘apenas cumprimente as pessoas’, ‘evite dar sua opinião’, ‘eles vão
te ferrar no Estadual se tu falar demais’, ‘não discorde’” (VALENZUELA, 2019).
Em 2008, o MTG escolheu como primeira prenda, de forma inédi-
ta na história de sua existência, uma mulher negra. No Livro das Gerações
(FALEIRO, 2016), compilação virtual de depoimentos realizada em 2016
em comemoração aos 50 anos da instituição, Gabrielli da Silva Pio, a pri-
meira prenda negra do RS, constatou: “sobre o Movimento Tradicionalista
Gaúcho, entendo que, apesar da organização e da militância engajada, ainda
temos muito que evoluir no que se refere ao papel das mulheres nos espaços
de culto à tradição” (FALEIRO, 2016). Gabrielli da Silva Pio lembrou que
as mulheres ainda não ocupam os espaços de liderança com igualdade dentro
do movimento. Sobre as posturas morais, valores doutrinários e influência
positivista do MTG, disse: “penso que há uma grande necessidade de discus-
são da doutrina, com esclarecimentos acerca dos conceitos que a constituem,
favorecendo assim o debate e até mesmo modificações de alguns princípios
que compõe o tradicionalismo atual” (FALEIRO, 2016).
Ela ainda reforçou:

[...] para que o Movimento Tradicionalista Gaúcho co-


memore mais 50 anos de história, devemos intensificar
os espaços de estudo, valorizando o legado histórico,
reconhecendo os diferentes posicionamentos políticos
e sociais que auxiliaram na construção daquilo o que
cultuamos hoje. Diria que devemos conhecer melhor o
passado para verificar o que de fato se aplica ao presen-
te. Afinal, a sociedade de 2016 é distinta da sociedade
de 1947. (...) Que venham mais cinquenta, com novas
prendas e peões, novas realizações e novas reflexões (FA-
LEIRO, 2016, p.30-31).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 229


Segundo Dutra (2002), a prenda não apenas define um perfil fe-
minino, da mulher submissa, comportada e sociável estabelecido como
memória oficial, como também se sobrepõe à figura da china (memória
recalcada), que embora apareça nos textos tradicionalistas, nos relatos do
passado e nos versos das canções, não é referendada como “mulher gaú-
cha”. Essa “mulher gaúcha” é a prenda, figura normatizada e moldada para
ser cultuada e se tornar exemplo. Ao criarem os pilares do tradicionalismo,
os fundadores do movimento reescreveram e higienizaram a história do Rio
Grande do Sul, estabelecendo para a sociedade um conjunto de valores e re-
gras, onde a prenda/mulher, identificada por sua delicadeza e recato, é pilar
fundamental a sua manutenção e reprodução.
Outro marco importante foi a eleição, desta vez em caráter regional,
e não estadual, da primeira prenda transexual. No cinquentenário da Ciranda
de Prendas, Gabriella Meindrad Santos de Souza, 32 anos, foi a primeira mu-
lher transexual a ser homenageada como prenda. O evento ocorreu no CTG
Cancela da Tradição, pertencente à 10ª Região Tradicionalista, no município
de Mata. Em entrevista ao Diário de Santa Maria, o presidente do MTG em
2019, Nairo Callegaro, afirmou ser essa “uma questão social, que hoje ou
amanhã aconteceria. Não podemos ignorar o direito de cada um em exercer
sua liberdade. E que isso não vire uma bandeira de confronto. Esperamos que
as pessoas do Estado também entendam, pois tudo foi tratado com respeito”
(MATGE, 2019).
Apesar da iniciativa, conforme divulgado no blog Estância Virtual,
houve muitos ataques à Gabriella de Souza e ao próprio MTG (as grafias dos
comentários foram mantidas conforme originalmente escritas). Um deles diz:
“tá mais que na hora de fundar um novo movimento, reformular tudo, voltar
o que representa realmente o Rio Grande antigo #prendadeticonãoéprenda”
(MATGE, 2019). Outro comentário, proveniente de uma mulher, reforça:
“olha é algo que vai da muita discussão, e confesso que fiquei boquiaberta
com isso, não sou preconceituosa, mas MTG, por favor! Tantas coisas, regras
cobradas e impostas, agora isso?” (MATGE, 2019). Um terceiro, critica: “sem
dúvidas, meu CTG é outro” (MATGE, 2019). Por fim, destaque ao seguinte
comentário:

230 Saberes decoloniais


Ao permitir que um homem travestido de mulher, se au-
toproclame prenda e assim seja homenageado oficialmente
pelo MTG, está se deturpando as bases e da tradição sim.
Pois a tradição é pautada nos peões e prendas, mudando
quem é quem, aos poucos tudo passa a ser permitido. Não
tenho nada contra a opção da pessoa, ela seja feliz como
quiser, porém não cabe no meio tradicionalista um caso
como esse. Assim como não cabe um homem usando ves-
tido de prenda, não cabe até quiçá um barbado de brinco
lançando ou dançando (MATGE, 2019).

Para ser Primeira Prenda do Rio Grande do Sul, as mulheres partici-


pam de um concurso em que vencem aquelas que mais obedecem a critérios
estéticos, de etiqueta e elegância – todos eles regulamentados a partir de uma
ótica colonialista e que pouco leva em conta o intelecto das candidatas. Mais:
exclui aquelas compreendidas como “chinas” ou “chinocas”, inicialmente uma
designação para índias prostitutas, depois, adjetivo aderente a condutas re-
prováveis pela moral tradicionalista. Note-se que não existe uma palavra mas-
culina relacionada à “china”; em seu dicionário gaúcho brasileiro, BOSSLE
(2003) não lista o verbete “chino”. Em compensação, “china”, “chinoca” e
“chinaredo” são vocábulos presentes – este último é sinônimo de bordel. Mes-
mo depois da transferência de sentido da palavra para designar qualquer mu-
lher gaúcha, até mesmo carinhosamente, a expressão carrega em si o estigma
do racismo e do machismo.
Ainda, a exigência da Ciranda Cultural de Prendas de que as concor-
rentes não sejam casadas e não tenham filhos.

REFLEXÕES ANALÍTICAS TEÓRICO-EMPÍRICAS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos o presente artigo questionando: Qual a experiência-mundo


para as mulheres que participam do Movimento Tradicionalista Gaúcho? Que
lugares lhes destinam?
Considerando o anteriormente exposto, a partir da revisão bibliográ-
fica, depoimentos de prendas eleitas nas Cirandas e documentos que pres-
crevem como deve ser uma Prenda, podemos afirmar que existe um aparato
classificatório que corresponde/responde ao sistema mundo, moderno-colo-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 231


nial de “gênero e raça”, qual impõe determinados atributos para a mulher,
Prenda, dentro do Movimento Tradicionalista gaúcho. Acreditamos que os
pressupostos que norteiam o presente artigo, nos auxiliam com possibilidades
de perceber a lógica destes eixos estruturais, de forma a entender os processos
de entrelaçamento da produção de raça e gênero dentro do Movimento Tradi-
cionalista Gaúcho. O qual constrói-se a partir do binarismo prenda-chinoca.
Nesse sentido, o pensamento de Lugones (2008) nos ajuda a perceber
como a colonialidade é um pacote completo que inclui a dominação patriar-
cal – e, como a manutenção da raça branca (prenda) em oposição a raça negra
(chinoca), a suposta e socialmente construída fraqueza do corpo e da mente
feminina, cumpre um importante papel na redução e reclusão das mulheres
brancas. Para Lugones o sistema de gênero é heterossexual, o que provoca
significativa violação dos seus poderes e direitos. E geralmente se constrói em
oposição (2008, p. 98).
Até 2008, as Primeiras Prendas sempre foram mulheres brancas, e o
registro conta que até então 2020 tivemos somente uma mulher negra eleita
como Primeira Prenda do Movimento Tradicionalista Gaúcho. A oposição
prenda-chinoca guarda em si a classificação de mulher, branca, de bom com-
portamento, que sabe falar com bons modos, para casar e a mulher negra,
“bugra, “índia”, “sem qualificações”, a qual serve para deitar-se. A forma como
o dispositivo constituidor de mulher em prenda enlaça-se em uma série de
artefatos culturais, que ditam como é ser uma prenda e o que é necessário pos-
suir, enquanto atributos, para receber tal titulação, apontam o binarismo para
atributos como “parecer” e “dizer”. A importância dada à maneira de como é
expressa a realidade em que vivem, em oposição ao que de fato é dito, mostra
a fronteira muito distinta que essas meninas e mulheres devem respeitar en-
quanto prendas.
Com isso, os mecanismos presentes no MTG buscam subalternizar
seus pensamentos, criando categorias adjetificadoras de “boa prenda” e “china”
(aquela que não se encaixa nos padrões colonizadores). Por que, por exemplo,
seria necessário avaliar a ausência de gírias na fala de uma candidata, já que
estas são exatamente expressões que apareceram com a renovação de seus vo-
cabulários?

232 Saberes decoloniais


Percebemos assim que os costumes de um povo são sub-
metidos a escrutínio e deliberação permanente e, em
consequência, modificam-se, pois a permanência desse
povo não depende da repetição de suas práticas, nem da
imutabilidade de suas ideias (SEGATO, 2012, p. 111).

Neste sentido, pensar o Movimento Tradicionalista Gaúcho, que nas-


ce e ainda hoje tem uma forte ligação com o campo e a pecuária, leva-nos a
Curiel (2013): o movimento de branqueamento da raça ocultou as mulheres
negras e indígenas, relegando a elas o “descanso do guerreiro”, enquanto, às
brancas, estava destinada a perpetuação da cor da elite. “Como idea nacio-
nalista y racista, esta ideología significó la negación de grandes poblaciones
negras e indígenas y el ocultamiento del racismo del que eran víctimas, en
defensa de la supuesta democracia racial como matriz civilizadora de las nacio-
nes latinoamericanas” (CURIEL, 2013, p. 146). A intenção de manutenção
do status quo e a necessidade de evitar a miscigenação se vê presente na tese de
Barbosa Lessa, que afirma que “devido ao surto surpreendente do maquinis-
mo em nossos dias, bem como da facilidade de intercâmbio cultural entre os
mais diversos povos, observa-se que o núcleo das culturas locais ou regionais
vai se reduzindo gradativamente”. Ele aponta, inclusive, que a cultura gaúcha,
à época da criação do MTG, estava sufocada pelo que chamou de “zona das
Alternativas”.
Em que pese tais tentativas, a fluidez se acentua, à medida que as
sociedades mantêm novos contatos com traços culturais diferentes ou anta-
gônicos, introduzidos por viajantes ou imigrantes, ou difundidos por livros,
imprensa, cinema etc. Nossa civilização, antes alicerçada em um núcleo sólido
e coerente, transformou-se numa variedade de alternativas, entre as quais o
indivíduo tem que escolher. Sem ampla comunidade de hábitos e de ideias,
porém, os indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem po-
dem cooperar eficientemente (LESSA, 1954).
Portanto, apesar de sua rigidez e de suas normativas, pelas suas fissuras
e transformações sociais, a diversidade busca impor-se de alguma maneira,
como eleger a 1ª prenda negra, e uma mulher trans.
Contudo, a principal referência dos estudos tradicionalistas, sobre a
campanha contra a miscigenação cultural, aponta que os jovens discordam

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 233


dos padrões culturais antigos – coloniais – em virtude do “afluxo de Alter-
nativas” e que a sociedade mais ampla (a urbana, da qual fala a imprensa e o
cinema, por exemplo) “não teria padrões coerentes de vida para oferecer-lhes”
(LESSA, 1954, p. 02). A tese, portanto, ressalta a necessidade de blindar a
juventude rural de todas as influências provenientes dos centros urbanos e
manter a brancura da elite do campo.
Ele pontua que a função do tradicionalismo seria convencer o campe-
sino da dignidade e importância do seu status, que entendemos ser conferido
pelo sistema moderno colonial de gênero, fortemente marcado pelo binaris-
mo. Segato (2012) pontua que a diferenciação biológica e social entre homens
e mulheres é uma instituição colonial.
Desta forma, nos alinhamos ao pensamento de Lugones (2008) quan-
do ela afirma que o gênero é delineado a partir de discursos que definem
categoricamente o que é cada um dos sexos, sendo esta definição absoluta e
anterior à biológica, considerando que a separação dicotômica entre homem e
mulher, tomada como natural, é, em si fruto da modernidade. Esse binarismo
colonialista moderno vai, para Lugones (2008), além da oposição entre os
gêneros, sendo eurocentrado, constituído e constitutivo da colonialidade do
poder. Essa oposição entrelaça a hierarquização de um povo de acordo com
gênero, raça e, também, classe social.
Estudando essas relações intrínsecas à matriz da cultura tradicionalista
gaúcha, por ser fruto direto do colonialismo eurocêntrico, percebemos que
não somente há dicotomia racial entre os gaúchos brancos e burgueses e a
população indígena, mas há dicotomia entre homens brancos colonizados e
mulheres brancas colonizadas, e há dicotomia entre mulheres brancas e mu-
lheres indígenas e miscigenadas.

No es necesario que las relaciones sociales estén organi-


zadas en términos de género, ni siquiera las relaciones
que se consideren sexuales. Pero la organización social en
términos de género no tiene por qué ser heterosexual o
patriarcal. El que no tiene por qué serlo es una cuestión
histórica. Entender los rasgos históricamente específicos
de la organización del género en el sistema moderno/co-
lonial de género (dimorfismo biológico, la organización
patriarcal y heterosexual de las relaciones sociales) es cen-

234 Saberes decoloniais


tral a una comprensión de la organización diferencial del
género en términos raciales (LUGONES, 2008, p. 78).

O que é esperado das mulheres participantes de concursos como o


de Primeira Prenda não é exigido, nem tolerado, de mulheres não-brancas
provenientes da mesma terra. As chamadas “chinas”, notoriamente sinônimo
de prostituta, também podiam ser esposas de peões ou de índios. Esse nome
pejorativo remonta à Guerra dos Farrapos (1835-1845), em que homens eram
acompanhados por mulheres nos campos de batalha, quando mantinham com
elas relações. “Chinoca” ainda é um termo muito utilizado no Rio Grande do
Sul, em especial pelos gaúchos que moram em cidades da fronteira. Já teria
tomado sentido geral para denominar o gênero mulher, e até mesmo sentido
carinhoso, estando presente em músicas e poemas tradicionalistas.
As características listadas pelo Movimento Tradicionalista como ne-
cessárias à prenda reforçam o papel da mulher no sistema patriarcal e o próprio
conceito do gênero imposto globalmente pelo modelo capitalista europeu:
corporalmente e mentalmente frágeis, restritas ao espaço privado e sexual-
mente passivas. Isto posto, foram fundamentais como reprodutoras da classe
e da posição racial e colonial do homem branco burguês (LUGONES, 2008).
Ao pensarmos a interseccionalidade entre raça, gênero e sexo, tão mar-
cados nas normativas prescritas e ações do MTG, Lugones nos auxilia com
uma lente ampliada para enxergar lado oculto do sistema de gênero e demons-
trar a exclusão da mulher não-branca do conceito de “mulher” e como estas
mulheres racializadas foram duplamente vitimizadas, uma vez que ficaram
abaixo da categoria de gênero e de raça.

El lado oculto/oscuro del sistema de género fue y es com-


pletamente violento. Hemos empezado a entender la re-
ducción profunda de los anamachos, las anahembras, y
la gente del “tercer gênero”. De su participación ubicua
en rituales, en procesos de toma, de decisiones, y en la
economía precoloniales fueron reducidos a la animali-
dad, al sexo forzado con los colonizadores blancos, y a
una explotación laboral tan profunda que, a menudo, los
llevó a trabajar hasta la muerte. Quijano nos dice que el
vasto genocidio de indios durante las primeras décadas
de la colonización no fue causado, en principio, por la

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 235


violencia de la conquista, ni tampoco por las enfermeda-
des que los conquistadores trajeron. Lo que sucedió, en
cambio, es que fue provocado por el hecho que los indios
hayan sido utilizados como fuerza de trabajo descartab-
le, y sometidos a trabajar hasta la muerte (QUIJANO,
2000a apud LUGONES, 2008, p. 99).

Cabe ressaltar que, com o objetivo de reforçar a cultura rio-grandense,


o MTG importa dos países europeus não só danças, ritmos e vestimentas, mas
um conjunto de comportamentos que são estruturantes do modelo eurocen-
trado e patriarcal de civilização, contribuindo para o apagamento e invisibili-
dade dos povos originários brasileiros, sobretudo da fronteira do sul do país.
Ao estabelecer a graça, a cultura, os dotes artísticos, a beleza e a de-
senvoltura entre as virtudes necessárias àquelas que almejam destacarem-se
entre as prendas, o movimento renova padrões do sistema moderno colonial
de colonial moderno. Neste contexto, a mulher/prenda, que tem entre suas
funções a manutenção desta cultura importada, contribui e reforça a dupla
opressão das mulheres nativas e escravas (índias e negras), uma vez que suas
características, seus costumes e comportamentos a constituem e integram o
conjunto de atributos necessários neste modelo.
Portanto, o tradicionalismo gaúcho criou a prenda inspirado no mo-
delo feminino que foi assentado pela sociedade patriarcal e reforçado pela
forte influência do positivismo no Rio Grande do Sul e da doutrina religiosa
cristã. Neste contexto, os tradicionalistas contribuíram para a consolidação
no Estado de outra imposição do sistema de poder colonial capitalista e eu-
rocentrado: a heterossexualidade, necessária à manutenção desse processo de
dominação e controle dos povos.
Sendo a família a base da estruturação dessa cultura inventada por
um grupo de homens gaúchos, com forte influência religiosa cristã, a união
conjugal está associada à maternidade, o sexo para a mulher/prenda significa
reprodução e a virgindade é mantida como um valor.
Desta forma, observamos que a heterossexualidade, assim como o bi-
formismo biológico, a dicotomia homem/mulher e o patriarcado são pilares
do sistema de gênero colonial. De acordo com Lugones (2008), a imposição
da heterossexualidade pelo colonialismo e como eixo de sustentação do pa-

236 Saberes decoloniais


triarcado foi duplamente perversa, pois converteu as mulheres não-brancas
em animais e as brancas em reprodutoras da raça (branca) e da classe (bur-
guesa). Os estatutos, normas e concursos buscam “perfilar mulheres” que es-
tejam “aptas para o casamento” e, consequentemente, para a manutenção da
branquitude como característica do povo gaúcho, da família nuclear hetero-
normativa, bem como dos padrões morais, definidos por Barbosa Lessa como
basilares para o MTG.

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randa%20-%20Colet%C3 %A2nea%202018.pdf. Acesso em junho
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238 Saberes decoloniais


DESENCONTROS ENTRE COSMOVISÕES
AFRICANAS (ETNIAS YORUBÁ E IGBO) E
FEMINISMOS OCIDENTAIS: NOTAS A PARTIR
DE IFI AMADIUME E OYÈRÓNKE OYÉWÙMI

Mary Garcia Castro1

Sem dúvida, o discurso sobre a família está em toda


parte. Mas a questão que é frequentemente deixada de
lado, é: de que família, família de quem estamos falan-
do? Nitidamente, é a família nuclear Euro-Americana
que é privilegiada, às custas de outras formas de família.
(OYÉWÙMÍ, 2000)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo é parte de um projeto intelectual em andamento sobre


gênero e reprodução social, considerando, especificamente, o lugar da ma-
ternidade em tal processo e sua representação em distintos autores feministas
e culturas. É também parte hoje de um projeto de vida, que se norteia por
1 PhD em Sociologia; Pesquisadora visitante emérita UERJ/PPCIS/NUDERG/Bolsista da
FAPERJ; e pesquisadora na FLACSO-Brasil; ORCID-https://Orcid.org/0000-0002-4774-3130;
http://lattes.cnpq.br/5471996580293552; castromg@uol.com.br
“decolonizar saberes”, mais conhecer sobre a mãe África, a ancestralidade co-
mum, e, de alguma forma, lidar criticamente com a minha branquitude.
Decolonizar saberes é uma dimensão básica do pensamento crítico so-
bre colonialidade do poder -expressão de Aníbal Quijano (1991) e se orienta
por crítica e projeto de transformação das formas de modelar conhecimen-
tos, em especial, na universidade. Conhecimentos que na dialética saber/po-
der se orientam pela reprodução de legados impostos pelos colonizadores e
atualizados por poderes imperiais, com marcas eurocêntricas e modelagem de
modernidade assim construída, marginalizando saberes de povos originais, es-
cravizados e subalternizados-lado perverso da ideologia na reprodução social.
A decolonialidade é um movimento de resistência política e epistêmi-
ca visando um “giro decolonial ou projeto decolonial”, segundo Bernardino-
-Costa, Maldonato-Torres e Grosfoquel (2018, p 9). Destaca-se que se gira da
concepção de que a modernidade chega às Américas e África com os coloniza-
dores para discutir como a modernização é um produto da ocupação colonial
e que que para tal giro urge exploração das formas de saber e de “re-existencia
da população afro-diaspórica”, segundo Bernardino Costa et al (Op.cit, p 9).
Re-existencia significa olhar o futuro, ativando-se os/as comuns para tanto, de
acordo com Segato (2016).
Defendo, no plano de pesquisa em curso, a importância da materni-
dade na reprodução da vida quer em termos moleculares, a nível das famílias,
quer em plano molar, a nível da reprodução da sociedade, o que pede acessar
questões relacionadas à socialização, afetos, cuidados, reprodução da força de
trabalho, reprodução intergeneracional de valores, enfim a produção da vida
em tempos históricos e espaços sociais diversos. Ver aportes feministas con-
temporâneos sobre reprodução social, em especial sua ampliação teórico-con-
ceitual, abarcando dimensões mencionadas, ênfase no trabalho não pago das
mulheres e crítica a formulações originais em Marx, entre outros, os trabalhos
de Federici (2018 e 2019), Arruzza (2019) e Bhattacharya (2017 e 2019).
Contudo, comparto com outras feministas latino-americanas, euro-
peias e americanas, a ideia de que há contradições, culpas e dominações que
antagonizam o ser mãe e o ser mulher (CASTRO, 2014) o que pede mais
atenção ao sistema de sexo/gênero patriarcal (Saffioti, 2004) e construções
sociais da maternidade em diferentes tempos históricos -ver entre outras Ba-

240 Saberes decoloniais


dinter (1985 e 2011) e Chodorow (1978-2002) e, acrescento, hoje, espaços
socioculturais e cosmopercepções. Valem nossas ‘verdades’ para todos os tem-
pos e culturas?
Há que cuidar de conceitos genéricos, como gênero e patriarcado, e
considerar que em muitas culturas e formas de conceber o que seria vida, im-
porta perspectiva espiritual, modelações de sentidos da maternidade além do
sexo biológico em que se preza a correspondência entre mãe e mulher, ou que
não se estrutura gênero somente por paradigmas duais, como um processo de
relações sociais entre homens e mulheres, ou uma forma de construção social
do ser mulher, desfavorável a essa, pelo poder do pai/homem/lei, ou seja devi-
do a um sistema patriarcal, também tido como onipotente.
Em suma, estudos comparativos entre culturas colaboram para mais
entender e ponderar sobre limites da matriz europeia/americana, consideran-
do construtos que a informam, acessando debates, outros olhares, culturas,
filosofias e cosmovisões. Mas por que recorro a autoras africanas?
Em cosmopercepções como das etnias africanas Yorùbá e Igbo, se a
referência histórica são períodos pré-coloniais, a interseccionalidade matriz é
entre ancestralidade, senioridade e poder da mãe, Essas são dimensões político
culturais básicas, em conhecimentos/vivencias que não privilegiam a aparên-
cia, o biológico, uma equivalência entre mãe e mulher e um sistema patriarcal
absoluto que marginalize poderes femininos.
Afastam-se naquelas referencias étnicas, segundo as autoras focaliza-
das em seções seguintes – Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyéwùmí -, de prin-
cípios caros que informam razoes ocidentais sobre família e gênero, como
os da propriedade privada de coisas e seres, da família nuclear, da redução
da mulher à esposa2, da razão dicotômica em pensar poderes e a separação
2 “Não é de se surpreender que a mulher que emerge do feminismo euro-americano é definida
como uma esposa. De acordo com Miriam Johnson, ‘a relação solidária adulta tende a ser a base no
relacionamento conjugal ocidental e, como tal, faz com que a própria definição de mulher se torne
a de esposa’ (1988, 40). Porque raça e classe não são geralmente variáveis dentro de uma família, o
feminismo branco que está preso à família nuclear não reconhece raça ou diferença de classe. Me-
todologicamente, a unidade de análise é a família nuclear, que interpreta as mulheres (brancas de
classe-média) como esposas, porque esta é a única maneira que elas aparecem dentro da instituição.
A extensão do universo feminista que aparece como tema, então, é a casa. O conceito de ‘solipsis-
mo branco’ – ‘a tendência de pensar, imaginar, e falar como se a brancura descrevesse o mundo’
(Spelman 1988, 116) – tem sido oferecido como uma explicação para a falta de atenção à raça em
muitas pesquisas feministas. No entanto, o problema também é uma percepção estruturada pela

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 241


entre razão logica e espiritual/ mágica. Em cosmovisões Yorùbá e Igbo se
faz referência a sistema, negado em feminismos ocidentais brancos, como o
matriarcado e a possibilidade de uma “matripotencia”, conceito proposto por
Oyéwùmí(2015), a ser mais explorado neste texto, sugerindo poder simbó-
lico, material e espiritual, das mães, o que pede sair de uma razão objetiva,
individualizada e transitar por razões, em especial espiritual/mágica, conside-
rando marcos de transcendência, mães não biológicas, não necessariamente
mulheres, e referidas à coletividade.
Ironicamente tanto se esgrima em saberes feministas ocidentais, sobre
a importância do empoderamento das mulheres, mas a modelação de gênero,
via o biológico, o material, restrito à relação homem e mulher, e ligado ao
poder do pai-patriarcal, a meu ver, teria um efeito reverso, anunciando deter-
minismo e impotências do feminino.
Ao enfatizar representações que priorizam processos que entrelaçam
o sagrado e o secular e ao desassociar gênero de sexo biológico, filosofias de
vida como a Yorùbá e a Igbo, de regiões africanas, informam outras perspec-
tivas sobre maternidade que sugerem sua força para a reprodução social, em
especial a que decola da socialização em valores e se orienta para coletivida-
des. Insiste-se, que maternidade é referida a outros construtos básicos de tais
culturas, como ancestralidade, senioridade e uma cosmovisão que vai além do
aparente.
Claro que não se marginaliza vigências de poderes patriarcais, em
especial em tempos históricos colonial e pós-colonial, que têm o Estado, e
logicas individualizadas, competitivas e o poder do macho como princípios.
A hipótese implícita, a mais desenvolver por outros estudos, já que este texto
tem mais o estatuto de notas, é de que a maternidade, e o doméstico, em dife-
rentes organizações socio culturais e tempos/espaços, sempre tiveram impor-
tante papel para a reprodução social e cultural, mentalizada além da dita razão
pragmática, independente de idiossincrasias históricas. Mas que essas, em sua
materialidade, são básicas para o reconhecimento ou apagamento de tal papel,
a exemplo da sua marginalização no tempo/espaço colonização e pós coloni-
zação, por imposição de poderes de conquista, necessariamente pautados em

incapacidade de ver mesmo a casa como um lugar compelido e limitado, um entre muitos pontos a
partir do qual apreciamos o mundo”. (Oyéwùmí, 2000, p 1095.)

242 Saberes decoloniais


valores patriarcais-e-capitalistas: a força, a conquista, a violência, a desumani-
zação do outro racializado, engendrado no gênero, raça e classe.
Mas em que pese apelar para trabalhos de Oyèwùmí (2000, 2005 e
2015) nesta peça, não me identifico necessariamente com a tese de uma das
perspectivas de feminismo decolonial, que lhe tem como fonte antropológica,
a desenvolvida por Lugones (2011) que advoga que o patriarcado foi intro-
duzido pelos colonizadores. Tese refutada por Segato (2011 e 2016), mas que
não está nos horizontes deste texto explorar: Por lo tanto, contrariamente lo que
han afirmado otras autoras también críticas de la colonialidad (Lugones, 1997;
Oyéwùmí , 2007, entre otras), el género me parece existir em sociedades pre-colo-
niales, pero lo hace de uma forma diferente que en la modernidade. (SEGATO,
2016, p 69)
Conhecer o outro, no caso, culturas africanas e ai a modelação da
maternidade, além de melhor explorar potencialidades do materno, traduz-se
em um movimento de decolonização de saberes, reconhecer perdas e culpas
com a colonização e aprender com a história, resistências em decolonialidades
singulares, em etnicidades que por sua vez desmistificam a ideia de uma Africa
homogeneizada.
Até aqui um pouco sobre porque me interesso, sem ser especialista,
em como autoras feministas africanas, antropólogas, sociólogas, historiadoras
e romancistas questionam formulações de perspectivas brancas ocidentais so-
bre gênero e maternidade, ou seja, mais relativizam a universalidade da cons-
trução e dinâmica de tais conceitos.
Meu treinamento acadêmico e ativista é com/em feminismos ociden-
tais brancos. Mas nesta peça, repito, o outro, as outras se apresentam e mais
me disciplino, buscando como essas autoras podem vir a aportar criticamente
à minha tese fundante de pesquisa, qual seja, repito, a importância da ma-
ternidade e o trabalho doméstico para a reprodução social e cultural, mas,
também insisto, por crítica ao debate feminista anglo-europeu, sobre gênero,
ou seja às minhas verdades.
Nas seções seguintes considero, após breves referências às etnias Igbo
e Yorùbá e às autora nigerianas aqui focalizadas, artigo de Amaudime (2005),
mais referido à cultura Igbo e publicações de Oyéwùmi (2000, 2005 e 2015)
que decolam da filosofia de vida da cultura Yorùbá, destacando críticas dessas

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 243


autoras a formulações feministas ocidentais sobre gênero e como formatam a
maternidade.
A seleção de duas importantes etnias que entre outras regiões, teriam
sido significativas na Nigéria é um primeiro movimento contra a redução im-
perial do continente africano aos estados nações impostas pelo poder colonial,
e reconhecimento da diversidade e riqueza cultural do que simplificadamente
no ocidente se chama de África.

ALGO SOBRE A FILOSOFIA IGBO E YORÙBÁ

Seguem dados genéricos, segundo fontes acessadas pela internet, por-


tanto pedindo mais investigação, no futuro.

REPRESENTAÇÕES SOBRE OS IGBOS

Considera-se que os Igbos são um dos mais conhecidos, grandes e


extensos grupos étnicos africanos. Estão no leste, sul e sudeste da Nigéria,
em Camarões e na Guiné Equatorial e falam a língua igbo. Foram um dos
povos mais atingidos pelo comércio transatlântico de escravos. Também existem
populações significativas nos Estados Unidos e em Trinidad e Tobago3. Vivendo
dispersos, em comunidades autônomas, a partir de meados do século XX,
teriam se unificado na região leste da Nigéria, sendo uma das etnias que mais
se rebelou contra os colonizadores ingleses, inclusive comandado a celebre re-
volta de 1987 que criou a nação independente de Biafra, chegando ao século
XXI a perfazer cerca de 21 milhões de pessoas4 .
É célebre na história das lutas pela independência, a revolta coman-
dada por mulheres Igbo, em 1929, conhecida como ‘a guerra das mulheres’
- “Ogu Umunwanyi” em Igbo e “Ekong Iban” em Ibibio, pelas mulheres locais-
estopim para outras revoltas que se sucederam em várias regiões africanas.

A Guerra das mulheres ou Aba Women’s Riots [denomi-


nação dos colonizadores] foi uma insurreição na Nigéria

3 In https://pt.wikipedia.org/wiki/Igbos .Consultado em 20.09.2020.


4 Ver sobre a heroica luta do povo Igbo pela independência e a formação de Biafra, em CHIMA-
MANDA, 2008.

244 Saberes decoloniais


britânica que ocorreu em novembro de 1929. A revol-
ta começou quando milhares de mulheres Igbo do dis-
trito de Bende, Umuahia e outros lugares no leste da
Nigéria viajaram para a cidade de Oloko para protestar
contra o chefe de mandado, a quem acusavam de res-
tringir o papel das mulheres no governo. O Aba Women’s
Riots de 1929, como foi nomeado em registros coloniais
britânicos, é considerado uma revolta anticolonial es-
trategicamente executada e organizada pelas mulheres
para corrigir as questões sociais, políticas, e problemas
econômicos. O protesto abrangeu mulheres de seis gru-
pos étnicos (Ibibio, Andoni, Orgoni, Bonny, Opobo e
Igbo). Foram organizados e liderados pelas mulheres ru-
rais das províncias Owerri e Calabar. Durante os eventos,
muitos chefes de mandado foram forçados a renunciar e
dezesseis tribunais nativos foram atacados, a maioria dos
quais foram destruídos.5

Segundo a cosmopercepção Igbo os antepassados protegem seus des-


cendentes vivos e são responsáveis pela chuva, colheita, saúde e o ter ou não
filhos. A figura feminina por seu simbolismo com a vida é destacada entre as
deidades:

A proteção de vidas menores é fundamental para uma boa


existência na Terra. Abate indiscriminado de animais ou
morte de seres humanos é uma abominação da mais alta
ordem. Matar um ser do sexo feminino é ainda mais atroz,
porque ela garante a continuidade e preservação da espé-
cie. [Tendem] a uma abordagem pacifista. Para Ani, a di-
vindade da Terra ou a chamada ‘Mae Terra’ [...]também é
Alusi, a divindade que fez a evolução do homem moderno
possível. Seu componente espiritual do núcleo é Ikejiani
(‘a força que mantem a Terra’, ou a força da gravidade)6

Originalmente na religião Igbo haveria um deus criador (Chukwu ou


Chineke), e uma deusa terrena (Ala), e numerosas deidades e espíritos que com
os ancestrais formariam o plano transcendente, comunicando-se com os des-
cendentes por revelações através de adivinhações e oráculos. Considera-se que

5 In https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_das_mulheres_Igbo. Acessado em 20.09.2020.


6 In https://igboupf14.blogspot.com/p/a-religiao.html. Consultado em 20.09.2020.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 245


com a colonização muitos Igbo foram convertidos ao cristianismo, assim como
muitos praticariam versões sincréticas desse com cosmovisões originais7.

ALGUMAS REPRESENTAÇÕES SOBRE A CULTURA YORÙBÁ

Os iorubás ou iorubas (em iorubá: Yorùbá), também conhecidos


como Yorùbá, são considerados um dos maiores grupo etnolinguístico ou
grupo étnico na África Ocidental, composto por cerca de 30 milhões de pes-
soas em toda a região. Afirmam os historiadores que os domínios iorubás se
desenvolveram ao longo da margem sul do rio Níger. Por volta do século VI
estabeleceram-se na cidade de Ifé, na atual Nigéria. No século XV, eles eram
um poderoso império, cujos domínios se espalharam pela Africa. (Dados des-
te parágrafo e seguintes sobre os Yorùbá, em fonte especificada na nota 7.)
Constituem hoje o segundo maior grupo étnico na Nigéria, com
aproximadamente 21% da sua população total. A maioria dos Yorùbá vivem
em grande parte no sudoeste da Nigéria; também há comunidades de Yorùbás
significativas no Benin, Togo, Serra Leoa, Cuba e Brasil.
No continente americano, o iorubá também é falado, sobretudo em
ritos religiosos, como os afro-brasileiros, onde é chamado de nagô, e nos afro-
-cubanos de Cuba (e em certas partes dos Estados Unidos entre pessoas de
origem cubana), onde é conhecido também por lucumí).
Devido ao tráfico de escravos, bastante ativo na área entre os séculos
XV e XIX, muitos traços da cultura, língua, música e demais costumes foram
disseminados por extensas regiões do continente americano. Boa parte da po-
pulação negra no Brasil veio de terras Yorùbá. A maior parte das áreas Yorùbá
foram oficialmente colonizadas pelos britânicos a partir de 1901.
Na Nigéria atual, os Yorùbá se mantem como uma importante etnia,
representando cerca de um sexto da população. São na sua maioria católicos,
mas uma parte segue também o islamismo, ficando o culto tradicional em
terceiro lugar. Cerca de 75% dos homens são agricultores que vivem do que
cultivam. As mulheres geralmente são encarregadas de vender parte do exce-
dente nos mercados populares das cidades.

7 MCKENNA, Amy (revisão) e editores da Enciclopédia Britânica, “The Igbo people”. In https://
www.britannica.com/topic/Igbo. Acessado em 20.09.2020.

246 Saberes decoloniais


Segundo Diego Bargas8, a “mitologia Yorùbá que inspirou o candom-
blé é baseado na vida em harmonia e em comunidade” e destaca:

Esse conjunto de crenças que inspirou o candomblé é


baseado na vida em harmonia e em comunidade. Não há
separação entre homens e animais, que inclusive agem
como humanos. A solidariedade e a prosperidade vêm
do trabalho no campo. Também é importante o culto
à ancestralidade, por isso louva-se a continuidade da
vida, por meio da figura feminina. Humanos e divin-
dades são igualmente suscetíveis às incertezas (mais ou
menos como na mitologia grega). Não há o ‘mal’, mas há
consequências para as ações que não contribuem com o
equilíbrio pessoal e do todo. (Eu destaco.)

A importância do matriarcado na cosmovisão Yorùbá é discutida nos


trabalhos de Oyéwùmi (2000, 2005 e 2015) que se acessa em outra parte
deste artigo, e ressaltada por distintos estudiosos, sendo que há os que mais se
referem ao patriarcado:

A cosmogonia ioruba compreende uma divisão básica


entre céu (Orum/sol/mundo divino) e terra (Aye/mun-
do dos vivos). Seu deus supremo, Olorum (o senhor do
céu) está no mundo de cima; os heróis/deuses civiliza-
dores são quase todos masculinos, embora o patriarca-
do ioruba seja mitologicamente ameaçado pela fúria de
poderosas matriarcas como Nanã e Olokun (que é mas-
culina em Benin e feminina em Ifé). Sua concepção de
energia/força sagrada se define pela constituição do Axé,
que é relacionado ao número três e às cores vermelho,
preto e branco. Conforme a crença ioruba, Olorum, o
Ser Supremo, serve-se de auxiliares para criar, manter e
transformar o mundo. (PITTA, 2010)9

Através da oralidade, o poder das tradições iorubás, se mantém ao lon-


go dos séculos, pelos Poemas Sagrados de Ifá, inclusive no Brasil e em Cuba.10
8 In https://super.abril.com.br/mundo-e stranho/como-e-a-mitologia-ioruba/.
Acessado em25.09.2020.
9 In PITTA, Walter -http://civilizacoesafricanas.blogspot.com/2010/09/t radicao-ioruba.html.
Acessado em 25.09.2020.
10 Sites consultados: https://civilizacoesafrica nas.blogspot.com/2009 /10/civilizacao-ioruba.html;

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 247


ALGO SOBRE AMADIUME E OYÉWÙMÍ

Segundo a crítica literária Marie Umeh (2001)11, sobre Ifi Amadiume,


nascida de pais da cultura Igbo (em Kaduna, Nigéria): seu trabalho fez contri-
buições importantes para novas formas de pensar sobre sexo e gênero, a questão do
poder e o lugar das mulheres na história e cultura.
Ifi Amadiume se formou pela School of Oriental and African Stu-
dies, University of London- BA (1978) e PhD (1983)- em antropologia social12:

Fez trabalho de campo na Africa, produzindo duas mo-


nografias etnográficas sobre a etnia Igbo: African Ma-
triarchal Foundations (1987), e a premiada Male Dau-
ghters, Female Husband (1987). Esse é considerado um
trabalho canônico, já que quase uma década antes dos
debates sobre teoria queer, focalizava a tese de que o con-
ceito de gênero, como articulado em discursos feministas
ocidentais não teria validade na Africa antes da imposi-
ção colonial de discursos sobre dicotomias e diferenças
sexuais. Seu livro com ensaios teóricos Reinventing Afri-
ca, foi publicado em 1998. Extratos de seu trabalho estão
na antologia Daughters of Africa (1992).

Oyèrónké Oyéwùmí13 é professora associada de sociologia e chefe do


http://ospiti.peacelink.it/zumbi/ne ws/semfro/249/sf249p21.html; https://www.infoescola.co m/
africa/cultura-ioruba/; https://super.abril.com.br/mundo-estranh o/como-e-a-mitologia-ioruba/;
http://civil izacoesafricana s.blogspot.com/2010/09/trad icao-ioruba.html. Acesso em 25.09,2020.
11 In “Amadiume, Ifi”, in Jane Eldridge Miller (ed.), Who’s Who in Contemporary Women’s Writing,
Routledge, 2001.
12 Trabalhos antropológicos: African Matriarchal Foundations: The Igbo Case, London: Karnak
House, 1987; Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society, Lon-
don: Zed Press, 1987, St. Martin’s Press, 1990; Re-inventing Africa: Matriarchy, Religion and Cul-
ture, Interlink Publishing Group, 1997; The Politics of Memory: Truth, Healing, and Social Jus-
tice (edited, with Abdullahi A. An-Na’im), London: Zed Books, 2000; Daughters of the Goddess,
Daughters of Imperialism: African Women Struggle for Culture, Power and Democracy, London:
Zed Books, 2000. In https://en.wikipedia.org/wiki/Ifi_Amadiume. Acessado em 18.09.2020.
13 Algumas publicações: What Gender is Motherhood? Changing Yorùbá Ideals of Power, Procre-
ation, and Identity in the Age of Modernity. New York: Palgrave, 2016; Gender Epistemologies in
Africa: Gendering Traditions, Spaces, Social Institutions and Identities. New York: Palgrave, 2011;
African Gender Studies: A Reader. New York: Palgrave, 2005; African Women and Feminism: Re-
flecting on the Politics of Sisterhood. Trenton (New Jersey): Africa World Press, 2003; The Inven-
tion of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University
of Minnesota Press, 1997.

248 Saberes decoloniais


departamento de Women’s Studies na Universidade Stony Brook. Frequentou
a Universidade de Ibadan e a Universidade da Califórnia em Berkeley. Ela vem
sendo destacada por autores do debate feminista decolonial como importante
teórica, aparecendo seus trabalhos em várias publicações com tal perspectiva
(ver entre outros, em português, em Hollanda 2020 e Bernardino Costa et al,
2018), e citada por suas pesquisas sobre representações linguísticas de povos
Yorùbás na África, pela filosofa feminista decolonial Maria Lugones, como
defensora da tese de que o patriarcado seria um produto do colonialismo, já
que para ela no período pré-colonial em regiões africanas, a combinação ma-
triarcado e senioridade seria a norma. Tese que colabora para as elaborações de
Lugones sobre o conceito de “colonialidade de gênero” (LUGONES, 2011).
Embora não se debata, neste texto, tal conceito e tese, adverte-se que
há controvérsias sobre a associação entre surgimento do patriarcado como
norma em relações de gênero e a implantação do colonialismo tanto na África
como na América Latina. Por exemplo a antropóloga Rita Segato, estudiosa
da cultura Yorùbá no Brasil, e autora de vários estudos etnográficos e linguísti-
cos em distintas regiões da América Latina e Africa, refuta tal tese, se referindo
a um “patriarcado de baixa intensidade” em períodos pré-coloniais e um “pa-
triarcado de alta intensidade” que se instalaria com as invasões coloniais e até
hoje vigente (SEGATO, 2011 E 2016).
O livro de Oyéwùmí, A Invenção das Mulheres: Construindo um sen-
tido africano para os discursos ocidentais de gênero, publicado em 1997 ganhou
o prêmio da American Sociological Association de 1998 por distinção na cate-
goria de gênero e sexualidade.14

IFI AMADIUME E A PROPRIEDADE DO CONCEITO DE MATRIARCADO,


CONSIDERANDO A FILOSOFIA IGBO

Em Theorizing Matriarchy in Africa: Kinship Ideologies and Systems in


Africa and Europe, Amadiume (2005) adverte que o matriarcado não pode ser
concebido como um sistema ‘totalizante’, mas sim estrutural e que se combina
com outros e que pede referência a sistemas de parentescos próprios da cultura

14 In https://pt.wikipedia.org/wiki/Oy%C3%A8r%C3%B3nk%E1%BA%B9_Oy%C4%9B-
w%C3%B9m%C3%AD. Acessado em 19.09.2020.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 249


que focaliza, Igbo. Critica o debate eurocêntrico sobre parentesco que no
século XIX, auge do período colonial, se orientaria por uma perspectiva dua-
lista, opondo matriarcado e patriarcado, como sistemas que determinariam
a estrutura social, de forma sucessiva. Assim o sistema de matriarcado na
Africa, segundo visão europeia, teria sido substituído pelo sistema patriarcal,
perspectiva que decolaria de estudos de jurisprudência e não por pesquisas
históricas e antropológicas e análise de vida factual. Por aquela metodologia,
se negaria a importância do poder materno (‘motherhood’) nas relações de
parentesco e na vida comunitária.
Tal poder, no período pré-colonial, configuraria destaque ao feminino
na determinação de normas; transmissão de propriedade; reconhecimento de
descendência; ordenação do lugar do homem nas relações sexuais e de ca-
samento. Dimensões que segundo Diop (destacado historiador Africanista),
passariam por várias mudanças com as invasões árabes-islâmicas e drásticas,
baixo o ‘imperialismo europeu’ (Diop, 1989 cit. AMADIUME, 2005).
Cheikh Anta Diop foi um historiador senegalês, com especialidade
em história da África, considerado precursor da tese que de que o matriarcado,
bem como o poder das mulheres caracterizaria as sociedades africanas antigas,
o que diferenciaria do ocorrido nas sociedades europeias, em que o patriarca-
do seria a norma.

[Na publicação] “Unidade Cultural da África Negra”


(“L’unité culturelle de l’Afrique noire”) em 1959 [...] logo
na introdução, Anta Diop deixa claro as intenções polí-
ticas da obra: ‘libertar a profunda unidade cultural que
permaneceu vivaz sob ilusórias aparências de heteroge-
neidade’ (DIOP, 1982, p. 9). O autor diz que continua
a buscar em seus trabalhos as condições materiais para
‘explicar os traços culturais comuns a todos os africanos,
desde a vida doméstica à da nação, passando pela supe-
restrutura ideológica, os sucessos, os fracassos e as regres-
sões técnicas (DIOP, 1982, p. 9 in Scholl 2018, p 177).

Amadiume (op cit.) considera o debate sobre o matriarcado relevante


para melhor compreender a África pós-colonial, apelando para o materialismo
histórico:

250 Saberes decoloniais


A relevância do materialismo histórico está precisamente
em permitir olhar continuidades, reversibilidade, siste-
mas transitórios, agregados, tendo tais como referências
para a compreensão de processos atuais de negociação
e novas formações: mais importante, permitiria situar
casos de imperialismos culturais relacionados a inva-
sões estrangeiras [...] Normas coloniais são imposições
violentas e são mantidas pela violência. (AMADIUME,
2005, p 86.)

Amadiume defende que um dos problemas de algumas teorias sobre


parentesco seria ter a mulher como objeto, uma propriedade individualizada
que poderia ser manipulada, o que seria próprio da concepção europeia, e
menciona a teoria do incesto que em Levy Strauss se basearia no rapto das
mulheres. Tal cosmovisão, segundo ela, iria contra uma orientação coletivista
sobre a mãe, própria do desenho africano, que passa inclusive pelo uso fruto
do acesso à terra e o eixo matriarcal tripartite: mãe, filha e filho. A autora ad-
verte que inclusive se o incesto fosse permitido, como no antigo Egito e em
Burundi, entre outros lugares, as crianças seriam descendentes de filhas/irmãs,
permanecendo em casa. Se não permitido, as crianças continuariam a vir de
filhas/irmãs em um sistema matrilinear, em práticas conhecidas como casa-
mento “mulher-e-mulher” ou instituições de “filhas machos”. A reprodução
não precisaria apelar para o desmantelamento do sistema matrilinear. E o tabu
do incesto seria mais apropriado para explicar o sistema patriarcado de trocas
e propriedade das mulheres. A autora enfatiza que dados sobre a sociedade pré
colonial africa indicam que a unidade matricêntrica seria tanto uma unidade
de produção como um constructo ideológico:

A estrutura matriarcal de parentesco, ou o triangulo


matriarcal de poder foi reproduzido em reinos africanos
como sistema tripartido de compartimento de poder. Os
nomes das rainhas eram aclamados juntamente com os
dos reis, na ocupação dos tronos. Diop se refere ao teste-
munho de Ibn Battuta sobre o Mali do século XIV quan-
do os homens não recebiam o sobrenome do pai; mas
tinham sua genealogia traçada através do tio materno; e
a herança passada para os filhos da irmã, em detrimento
dos filhos próprios (AMADIUME, 2005, p 87).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 251


Em que pese a apreciação pelos trabalhos de Diop, Amadiume critica
que o historiador mais se tenha fixado na história de reis e rainhas e não em
estudos de casos sobre vivencias do povo. Pode-se dizer que Amadiume também
critica a teoria de Diop a respeito dos berços do matriarcado e do patriarcado,
os quais, para ele, formam dois sistemas irredutíveis, orgânicos e coexistentes.
A autora defende que a visão de Diop sugere uma imagem estática que não
leva em consideração alguma dinamicidade social. Ela advoga, insiste-se, que os
princípios do matriarcado e do patriarcado sempre conviveram e são sistemas
que coexistem. Porém, assegura a irredutibilidade de uma “unidade matricên-
trica” como um fato social que é presente nas sociedades africanas. Amadiume
se inclina pela tese de sistemas coexistentes, mesmo em períodos coloniais, de
mudanças em regimes de parentesco, questionando uma rígida e antagônica
separação entre uma formatação matriarcal e uma formatação patriarcal. Assim
como Diop, a autora insiste que as mudanças em tais regimes mais que por
conta de raça teriam sido causadas por pressões das condições materiais de vida.
Contudo é crítica da tese de orientação materialista histórica de En-
gels que associaria a hegemonia do patriarcado ao princípio de propriedade
e controle da linhagem dos herdeiros, básicas ao nascente capitalismo, bem
como o não valor do trabalho doméstico. Amadiume considera que tais teses
devem ser matizadas para casos, em várias regiões africanas, em que o sistema
matrilinear persistiria historicamente. Sistema entendido como estruturado
por poder focado na “mãe/irmã” e em instituições econômicas, políticas, so-
ciais e religiosas. Modelação estranha aos europeus, mais centrada na figura
homem/pai, legitimando tão somente a família patrifocal.

Diferentemente dos europeus, Diop como africano, não


teve nenhuma dificuldade em se referir a um ‘regime ma-
triarcal’, Wendy James [antropóloga britânica], ao con-
trário, rejeitou a referência ao matriarcado, sugerindo
uma visão alternativa, a matrilinearidade, mais focalizan-
do cidadania, identidade, autoridade, status e laços de
lealdade, em lugar de destacar estruturas de poder e por
ai contradições e conflitos. Seguindo Evans Pritchard, ela
concluiu que quando a referência é o status da mulher,
se estaria lidando com uma ‘questão moral’. (AMADIU-
ME, 2005, p 91.)

252 Saberes decoloniais


Amadiume, dialogando com textos de James, frisa que seria importan-
te reter o simbolismo do útero, no debate sobre matrifocalidade, destacando
o “amor coletivo, nutrição e proteção”, figuras, segundo ela, presentes nas
relações sociais molares na Africa, quer em sociedades patrilineares ou matrili-
neares: “há um nível mais profundo e histórico, referido à capacidade e natu-
reza das mulheres que há que ser priorizado, qual seja a definição da própria
condição humana” (James, 1978, p 160, cit. in Amadiume, 2005, 92).
Vários estudos etnográficos por diferentes antropólogos e em diferen-
tes regiões na Africa são apresentados no artigo de Amadiume (2005) para
fundamentar seus argumentos sobre “o reconhecimento cultural do paradig-
ma do poder materno (‘motherhood’), via a autonomia dessa unidade” (p 93);
que tanto tal paradigma como o do patriarcado seriam construções socio-
culturais, não havendo base para considerar tão somente o patriarcado como
o paradigma dominante em todos os tempos; e que a maior visibilidade e
vigência do patriarcado se daria em tempos coloniais e pós coloniais.
A casa, em tal diapasão, seria uma “unidade matricêntrica, e a família,
uma construção mais ampla, envolvendo o chefe de uma ou várias unidades
domésticas matricêntricas” (Amadiume, 2005, p 93). Por outro lado, o chefe
de família não seria necessariamente um homem.
Entre os estudos etnográficos que dariam base a tais teses, ela cita um
“micro estudo” que conduziu na vila rural Igbo de Nnobi na Nigéria contem-
porânea-Amadiume, 1987-. Nessa região, a economia dependeria do merca-
do local para venda de produtos agrícolas produzidos pela unidade familiar,
sendo que homens e mulheres teriam papeis próprios. Identificar-se-ia nessa
sociedade, uma ideologia em que o masculino se modelaria por valoração
patriarcal (“paternidade comum”), prestigiando-se a força da lei; a competi-
tividade; a virilidade; a força física e a violência. Tal ideologia conviveria com
uma de orientação matriarcal (“poder materno – ‘motherhood’ - comum”),
reconhecendo-se a importância da força moral, do coletivismo e ideais de
compaixão, amor e paz (Amadiume, 1987, cit. in Amadiume, 2005, p 94).
Entre os Igbo, a ancestralidade da família seria masculina, mas o com-
posto mãe e filho matricentrado, ou seja, a unidade doméstica seria feminina.
A complexidade e especificidade do caso pede citação extensa:

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 253


O matriarcado em Nnobi seria uma superestrutura
ideológica, havendo uma dialética entre a produção da
unidade matricêntrica e as relações de produção. Assim
aqueles que comem da mesma panela estariam ligados
no espírito do poder da mãe (‘motherhood’) comum. Esta
superestrutura ideológica básica foi reproduzida em am-
plos níveis da organização social na ordem política. Em
tal abrangente matriarcado, todos em Nnobi estariam
ligados, como crianças de uma mãe comum, à deusa Ide-
mili, a divindade adorada por todos de Nnobi.
A ideologia matriarcal assim forneceu a lógica da admi-
nistração total. Haviam quatro nomes para os dias da sema-
na, cada um deles referido a um dia de mercado, e nome-
ados de acordo com a deusa para a qual se honrava, onde
o mercado tinha lugar. Com tais nomes -Oye, Afo, Nkwo e
Eke- os Igbo alcançavam uma configuração própria de um
espaço/lugar, um tempo/dia e uma deusa. A maioria dos
festivais que compunham o calendário anual da vila se en-
quadrava em um ritmo sazonal que celebrava atividades de
ciclo de vida e produtividade, associados às deusas.
No sistema político de sexo-dual, as mulheres consagra-
das eram centrais para as consensuais tomadas de deci-
sões e controle dos mercados. Em Nnobi as mulheres
consagradas como Ekewe, representação terrena da deu-
sa Idemili, controlavam o Conselho de Mulheres da vila e
tinham direito de veto nas assembleias da vila. O sistema
Ekwe pode, portanto, ser visto como um sistema político
matriarcal, que estaria, entretanto, em relação dialética
com o sistema umunna [ideologia patriarcal-paterni-
dade comum], com o qual manteria diálogo. O meio
termo seria um terceiro sistema classificatório: uma hu-
manidade coletiva sem gênero (‘nongendered’): Nmadu,
pessoa que estaria baseada também em um matriarcado
coletivista não discriminatório, como um código moral
unificador, gerador de relações afetivas oposto a cultura
política do patriarcado, do imperialismo e da violência.
(AMADIUME 2005, p 94).

Enfatiza a autora que “ideologias de gênero” estruturaram em Nnobi


as relações econômicas e que haveria uma “relação dialética” entre o sistema
de base matriarcal e aquele patriarcal, tensionados e equilibrados por aquela
ideologia:

254 Saberes decoloniais


Segundo a autora [Amadiume], a base desta ‘ideologia de
gênero’ está na oposição binária entre o sistema mkpuke e
obi. O primeiro representa uma ‘unidade matricêntrica’,
ao qual o foco das relações gira em torno da mulher-mãe
e o segundo representa a casa ancestral, focada no ho-
mem. A autora defende que a estrutura de relação entre
estes dois sistemas ou estruturas de gênero são refleti-
das em âmbitos mais amplos, como a organização social
e a política. Junto a isso, a autora também argumenta
que a convivência entre estes dois sistemas forma dife-
rentes conjuntos de valores que coexistem: o ummume,
ligado diretamente à prática da ‘maternidade comparti-
lhada’ que expressa valores de compaixão/amor/paz em
contraste com o umunna, valores da paternidade, que se
expressam pela competitividade/valor/força/violência.
(SCHOLL, 2018, p 183.)

Termina Amadiume (2005) seu artigo defendendo análises voltadas


aos mitos originais, às cosmovisões vigentes antes da chegada dos colonizado-
res, um resgate de memória e identidade ancestral, importantes aos coloniza-
dos frente a identidades impostas. Daí sua insistência em discutir sistemas de
parentesco considerando primeiros significados, os originais, antes das mu-
danças, inclusive para melhor entender essas.
Os trabalhos de Amadiume, defendendo o matriarcado tanto como
marca original de civilizações africanas, como uma dimensão de decoloniali-
dade, ou seja, básico para uma filosofia própria de resistência ao colonialismo,
são muito citados e se a considera uma das autoras básicas de perspectiva que
se expande em países africanos, sobre valores associados à mãe, ao feminino,
ao empoderamento da mulher, conhecida como “mulherisma africana”:

Mulherisma Africana é um conceito que tem sido mol-


dado pelo trabalho de mulheres como Clenora Hudson-
-Weems, Ifi Amadiume, Mary E. Modupe Kolawole,
e outras. O Mulherisma Africana pode ser visto como
fundamental para o contínuo desenvolvimento da te-
oria Afrocêntrica. Mulherisma Africana traz à tona o
papel das Mães Africanas como líderes na luta para
recuperar, reconstruir e criar uma integridade cultu-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 255


ral que defenda os antigos princípios Maáticos15 de
reciprocidade, equilíbrio, harmonia, justiça, verdade,
justiça, ordem e assim por diante. Nesse sentido, creio
que expressar Maat possa ser um termo que desenvolverá
ainda mais a teoria Afrocêntrica (Dove 1998, p 523).
(Eu destaco.)

OYÈRÓNKÉ OYÈWÙMÍ E A PROPRIEDADE DO CONCEITO DE


‘MATRIPOTENCIA’, CONSIDERANDO A FILOSOFIA YORÙBÁ

Oyèwùmí (2000, 2005, 2015) esclarece sobre singular sentidos de


termos em Yorùbá cuja tradução literal pode produzir impropriedades. Por
exemplo, “oko”, categoria Yorùbá traduzida como marido em inglês, não seria
de um gênero específico, englobando tanto o masculino como o feminino.
Ela adverte que as mulheres podem assumir o papel de marido; assim pode
ocorrer que quando se traduz o termo “oko” por ‘marido’, no texto original a
referência pode ser a uma mulher.

Há pouca compreensão de que os arranjos sociais africa-


nos, relacionados a famílias e a outras formas, derivam de
uma base conceitual diferente. Em grande parte da Áfri-
ca, ‘esposa’ é apenas uma palavra de seis letras. Embora
não seja um termo comum em si, iyawo (por exemplo) é
essencialmente uma categoria que indica subordinação.
[...] Ser esposa tende a funcionar mais como um papel,
que como uma identidade assumida. Em toda a África,
a categoria geralmente traduzida como esposa não diz
respeito a um gênero específico, mas simboliza relações
de subordinação entre quaisquer duas pessoas. Conse-
quentemente, no esquema conceitual africano é difícil
confundir mulher e esposa e articulá-las como uma cate-
goria. (OYÈWÚMÍ 2000, p 1095.)

Mãe mais do que esposa significaria status, posição desejada e social-


mente apreciada, o que seria reforçado pelo fato de que, segundo aquela Au-

15 Maat -para alguns autores uma deusa egípcia, para outros, um princípio, o da verdade, da justi-
ça, da retidão e da ordem. Para alguns deusa responsável pela manutenção da ordem cósmica e social
“Maat é a concepção egípcia de ordenação e da relação que evidencia e governa todos os aspectos da exis-
tência, semelhante à noção ocidental de lei natural. Estende-se desde os elementos da natureza (o mundo
dos deuses) até o comportamento moral e social da humanidade.” (ALLEN, James, 1998, p. 26).

256 Saberes decoloniais


tora, o princípio predominante organizador das famílias africanas seja o con-
sanguíneo e não o conjugal, tanto que seria comum a coabitação de irmãos,
irmãs, suas respectivas esposas e filhos, formando um núcleo familiar. Seria
difícil comparações entre culturas, considerando a singularidade dos arranjos
parentais africanos: A família africana não existe como uma entidade espacial-
mente delimitada coincidente com a casa. As esposas formam um grupo pertencen-
te às suas famílias de nascimento, embora elas não necessariamente residam com os
seus grupos de parentesco (OYÈWÚMI, 2000, p 1096).
A Autora frisa que os laços socioculturais mais importantes, em socie-
dades africanas, dar-se-iam no fluxo da família da mãe, independentemente
das normas de residência do casamento. São laços que ligariam a mãe aos/as
filhos/as e conectariam todos os filhos da mesma mãe, em “vínculos que são
concebidos como naturais e inquebráveis”.
Embora o status de mãe seja altamente apreciado, correspondendo a
uma instituição com poder e sendo nomeação que reivindicam as mulheres,
maternidade e paternidade não seriam construções associadas. Tal formatação
social e valor individualmente caro, não teria paralelo com as elaborações de
feministas norte americanas e europeias.
Oyèwùmí exemplifica tais elaborações por sua leitura da socióloga,
psicanalista e feminista norte americana Nancy Chodorow (1978). Para Oyé-
wùmí, Chodorow discutiria maternidade, tendo na composição familiar, a
mãe como identidade primária, sexualizada e codificada como a esposa do pa-
triarca, sendo que as relações sexuais da mãe com seu marido são privilegiadas
sobre as relações com seus filhos; ela não é tanto uma mulher como ela é uma esposa
(OYÈWÙMÍ 2000 p 1095.)
Ainda sobre Chodorow, ela ressalta que apenas no contexto de uma
família nuclear isolada, faria sentido os argumentos de Chodorow sobre a
identificação de gênero da criança com a mãe—a tese básica de Chodorow é
que a relação filha com a mãe tem potencialidades emancipatórias quer para
as filhas quer para as mães. Potencialidade abortada pelo papel subalterno de
esposa o que adquire significado de socialização para a subordinação no caso
da filha (CASTRO 2014).
Oyéwùmí (2000, p 1095) reflete que tal processo e simbolismo não
teria lugar em sociedades africanas: Em uma situação como o arranjo familiar

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 257


africano, onde há muitas mães, muitos pais, muitos ‘maridos’ de ambos os sexos, é
impossível apresentar a relação entre mãe e filho nesses termos.
As teses da Autora, baseadas em diversos estudos seus de orientação
socioantropológica e linguística com foco na cultura que mais interessam para
este artigo são as de que: gênero seria nas sociedades Yorùbás uma categoria his-
tórica recente, emergente com a colonização; previamente aos tempos coloniais,
as hierarquias seriam baseadas mais em relação a idade, por ai senioridade que
a gênero; o conceito de patriarcado seria portanto uma categoria colonial; a
instituição de Ìyá (divindade/princípio com poder materno-motherhood) seria uma
das categorias com mais força histórica em termos organizacionais, quer do ponto
de vista social, político e espiritual (OYÉWUMI 2015, p 2)
Ela defende que Ìyá não seria originalmente uma categoria do léxico
de gênero e apresenta o conceito de “matripotencia ”-supremacia da materni-
dade- como central na epistemologia Yorùbá, já que teria um construção cul-
tural própria que se afasta do parâmetro do conhecimento e poder impostos
por europeus, e de processos próprios do individualismo, do cristianismo, da
islamização da cultura e da globalização.
Recorre para tanto a conceito da perspectiva decolonial, cunhada pelo
sociólogo Aníbal Quijano, “colonialidade do poder” (Quijano, 1991), pelo
qual se enfatiza o construto raça-e-gênero para a inauguração da modernidade
ocidental e racionalidade colonizadora, racializada, que entre outras violên-
cias operaria por epistemicidios de cosmovisões originais o que pediria in-
vestimentos em “decolonialidades do saber” (Segato 2016, citando Mignolo,
2003), resgate de histórias silenciadas, como formas de resistência:

A repressão se abateu sobre os modos de conhecimen-


to, de produção de saberes, de produção de perspectivas,
imagens e sistema imagético, símbolos e modos de sig-
nificação, sobre os recursos, padrões, e instrumentos de
expressão formalizados e objetivos, intelectuais e visuais.
Seguiu-se a ordem dos colonizadores, a imposição dos
seus modos de ver e interpretar o mundo, de se expres-
sar, de conceber crenças e representações por imagens do
sobrenatural [...]. Os colonizadores impuseram imagens
mistificadas dos seus próprios padrões de produzir co-
nhecimentos e sentidos (OYÉWÙMÍ 2015, p 213.)

258 Saberes decoloniais


Considerando gênero uma categoria colonial, Oyéwùmi (2015) ques-
tiona sua universalidade e caráter de natural a todos os tempos e lugares, frisan-
do, inclusive, que tal assertiva seria ironicamente contraditória a um princípio
do feminismo hegemônico, pelo qual gênero seria uma construção social. Con-
tudo organizou uma coletânea em que se refere a estudos de gênero na Africa,
legitimando-os se com embasamentos próprios (OYÉWÙMÍ 2005).
Recorre a outro autor da perspectiva decolonial latino-americana, à fi-
losofa Maria Lugones (2011) quem inaugura o conceito de “colonialidade de
gênero” para melhor entender como a ocupação colonial impôs um sistema de
gênero diferente daquele em uso na Europa, em que não se limitaria a diferen-
ciações e hierarquias entre homens e mulheres brancos, mas também por marcas
da combinação raça e gênero, desumanizaria os e as não brancos/as.
Tais processos de classificação e opressão seriam estranhos na cultura
Yorùbá anterior à ocupação colonial. Tendo tal tempo como referência, Oyéwùmí
(2015) esclarece sobre como na cultura Yorùbá, senioridade e maternidade orde-
nariam atributos sociais e morais, a dinâmica de estruturas locais, independentes
de referências biológicas-anatomia e genitália. Alerta, insisto, de que há proble-
mas de traduções literais da linguagem Yorùbá quanto a sentidos. Por exemplo,
as categorias okùrin e obinrin- comumente traduzidas como, respectivamente ho-
mem/o jovem/o menino e mulher/a jovem/a menina não indicariam hierarquias
por gênero. Não haveria vocábulos para filho e filha em Yorùbá, em seu sistema de
cosmovisão/adivinhações – o Ifá16, consolidado por tradição oral, ponderando a
importância desse referencial para o debate sobre a ordenação da cultura/socieda-
de em certo período histórico e as mudanças que lhe são introduzidas, inclusive
com a colonização, como perspectiva de gênero e hierarquias: Porquê o corpus do
Ifá é produto da sociedade Yorúbà, é parte integrante da cultura e, assim seu conteúdo
reflete o ethos Yorúbà, sendo importante fonte de saber sobre questões do cotidiano das
pessoas e seus valores. É também importante fonte histórica, pois reflete marcos de
referência de uma sociedade em distintos tempos (OYÉWÙMÍ 2015, p 32)
A autora comenta no livro citado (OYÉWÙMÍ 2015), vários traba-
lhos de africanistas que segundo ela impuseram enfoques de gênero por lei-

16 Sugere-se consulta da publicação que estamos focalizando-Oyéwùmí (2015) -para detalhamen-


to sobre a riqueza do Ifá, seus construtos e sentidos. Neste texto mais focalizo e de forma simplifi-
cada a construção da maternidade em tal cosmopercepção.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 259


turas próprias do Ifá, que ela considera questionáveis. Enfatiza que no Ifá, a
divindade Òsun seria a única fonte de poder sobre a terra porque é a Origem,
por ser Ìyá-, o procriador, com estatuto de senioridade em relação a outras
deidades:

Quando as 17 Irúnmolè (divindades primordiais) vieram


à terra, a diferença entre Òsun, a decima sete e o grupo
das 16 é a mesma distinção entre Ìya e seus filhos [...]
A singularidade de Òsun no grupo é que Òsun é Ìyá, o
procriador [...] O grupo dos 16 aclamaram Òsun como a
‘Mãe’ [...] O poder do sol se funda no papel da divindade
na procriação e como Ìyá. Òsun é a primordial Iyá [...]
Òsun era superior não só relativamente (pela idade) mas
qualitativamente porque a divindade teria dado à luz a
eles[...] todos eles eram filhos de Òsun, a Ìyá primordial.
(OYÉWÙMÍ 2015, p 51.)

Assim Oyéwùmí (2015) chega ao conceito de “matripotencia”, que


tem como referência tanto o poder espiritual como outros, poderes que se
derivam do papel procriativo de Ìyá, um papel primordial espiritualmente
configurado, portanto não necessariamente com correspondente biológico.
“Matripotencia” x “materfobia”
Insiste Oyéwùmí (2015) que a modelação do princípio de poder de
Ìyá, como fonte de matripotência, segundo a epistemologia Yorùbá, afasta-se
de um paradigma de gênero ocidental, embora seja comum traduzir Ìyá como
mãe, a partir de tal paradigma, o que supõe subordinação, em tempos colo-
niais e pos coloniais. A potência de Ìyá estaria em dar à luz aos filhos e por sua
senioridade em relação a esses: Uma vez que todos os humanos têm uma Ìyá, de
que todos nascemos de uma Ìyá, ninguém é mais velho, sênior ou maior em relação
a Ìyá (p35)
Oyéwùmí frisa que no sentido de mundo Yorùbá se estrutura seniori-
dade sobre um etos matripotente e por estudos antropológicos seus e de ou-
tros autores africanos (OYÉWÙMÍ 2005 e 2015) advoga que na sociedade
pelo trabalho da mulher no mercado, em vendas, nas plantações, no domésti-
co, e para a coesão comunitária, além do discutido em termos de cosmovisão,
o reconhecimento do poder da mãe para o bem estar dos seus filhos e da

260 Saberes decoloniais


comunidade combinaria o metafisico, o emocional e o prático (2015, p 73) .
Observa que ideias similares às observadas em sociedades Yorùbás, como a da
mãe ser uma figura suprema, fariam parte de outras etno-culturas africanas,
como a Asante e Igbo (p 213)
Outros autores também ressaltam que o debate sobre matriarcado e
patriarcado é nuclear para distinguir formas culturais e políticas “conflitivas”
entre Africa e Europa, o que se alinharia a outras dimensões além da cosmo-
visão e normativa espiritual mais referida aqui. Inclusive apelando-se para his-
tórias político e econômicas, organizações materializadas em cotidianidades e
como homem e mulher seriam reconhecidos e se relacionariam, portanto por
uma concepção autóctone sobre gênero, se ressaltado seu papel de construção
sociocultural. Segundo Dove (1998: 523), recorrendo ao historiador Africa-
nista, Diop:

Para desenvolver o conceito de conflito de culturas, eu


uso o Teoria do Berço (de 1959/1990) de Diop. Ele ar-
gumenta que dois berços distintos de civilização – o ber-
ço sul é a África, e o berço do norte é a Europa- criaram
os modos de estruturas sociais quase antitéticas entre si.
África, onde a humanidade se iniciou, produziu so-
ciedades matriarcais. Com o tempo, a migração dos
povos para o clima do norte produziu sociedades pa-
triarcais centradas no sexo masculino. Diop desafia
teorias europeias evolucionistas que afirmam que o
matriarcado é um estágio inferior no desenvolvimen-
to humano e na organização social. Muito simples-
mente, ele atribui matriarcado para um estilo de vida
agrária em um clima de abundância e patriarcado às
tradições nómades decorrentes de ambientes agressivos.
O conceito de matriarcado destaca o aspecto da com-
plementaridade na relação feminino-masculino ou a
natureza do feminino e masculino em todas as formas
de vida, que é entendida como não hierárquica. Tanto
a mulher e o homem trabalham juntos em todas as
áreas de organização social. A mulher é reverencia-
da em seu papel como a mãe, quem é a portadora da
vida, a condutora para a regeneração espiritual dos
antepassados, a portadora da cultura, e o centro da
organização social. (Eu destaco.)

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 261


Oyéwùmí (2015) adverte que com a colonização a maternidade sofre
transformações na sociedade Yorùbá, muitas de forma negativa. Chama aten-
ção para a demonização de Ìyá a partir do avanço de outras religiões e valores;
para a troca de nomes por muitos pelo estigma de que os de origem Yorùbá
seriam pagãos; e o aumento de casos de violências de corte patriarcal. Docu-
menta aumento das taxas de mortalidade materna e infantil por abandono de
práticas de cuidado tradicionais e o mau prenuncio desses fatos na cosmovisão
Yorùbá. Documenta a vigência de princípios europeus como se privilegiar os
laços de casamento e a família nuclear e por aí, a dominação masculina- o que
considera uma imposição imperial (p 213). Em especial alerta para sentidos de
algumas perdas de poder da mãe e de seu reconhecimento social.
Contudo reflete que em tempos pós-coloniais, muito ainda permane-
ce da valoração social da maternidade, e mãe seria um termo que muitas mu-
lheres usam se referindo, inclusive, de forma orgulhosa, a si mesma e que viria
sendo mobilizado para ativismos em favor de causas comunitárias, públicas
(OYÈWÙMI, 2115, p 216).
Dove (1998: 527) sublinha tal papel público da maternidade, ou seja,
para uma cultura de resistência e marca identitária africana, associando-se o
título de mãe a cuidados comunitários e com a nação:

O papel da maternidade ou dos cuidados maternais não


se limita às mães ou mulheres, mesmo nas condições
contemporâneas. Como Tedla (1995) explica, o concei-
to de mãe transcende as relações de gênero e de sangue.
Um membro da família ou amiga que tenha sido gentil
e carinhoso pode ser dita ser uma mãe. É uma honra
se ter esse título conferido (p. 61). Os valores dessa na-
tureza têm sido fundamentais para a sobrevivência dos
povos Africanos durante o prolongado e contínuo ho-
locausto. A maternidade, portanto, descreve a natureza
das responsabilidades comunitárias envolvidas na criação
dos filhos e no cuidar dos outros. No entanto, embora o
papel da mulher e dos cuidados maternais no processo de
reprodução sejam fundamentais para a continuação de
qualquer sociedade e cultura, em uma sociedade patriar-
cal, este papel não é atribuído com o valor que ele traz
em uma sociedade matriarcal.

262 Saberes decoloniais


Oyèwùmí (2015) advoga que não se teria chegado em países africa-
no ao que testemunha como presente em sociedades anglo europeias, o que
cunha como “materfobia”. Tal fenômeno segundo Adrienne Rich seria en-
contrado em ambiências de mulheres brancas, em especial nos EE.UU., hoje,
e significaria não o medo da mãe ou do seu poder, mas o “medo de vir a ser
igual à sua mãe” (Rich cit. in Oyéwùmí 2015, p 213) o que se relacionaria a
codificações que oprimem às mulheres pelo patriarcado, por culpas e subordi-
nações: A mãe é vitimizada, é uma mulher não livre, uma mártir. Nossas perso-
nalidades são sufocadas por nossas mães e em um desesperado esforço por identificar
onde termina a mãe e se realiza a filha, temos que proceder a uma cirurgia radical
(Rich, cit. in Oyéwùmí, 2015, p 213).

REFLEXÕES FINAIS

A explorações, em forma de notas, nesta peça, de alguns textos das au-


toras africanas Amadiume e Oyèwùmí sobre como historicamente se dariam
formatações do matriarcado, do patriarcado e do valor dado à maternidade
entendida como poder da mãe, decolando de cosmovisões das etnias africanas
Igbo e Yorùbá em muito deve orientar minhas futuras elaborações sobre re-
produção social, além de parâmetros comumente explorados em logica liberal
mais calcada na produção de riquezas e mercado.
A ênfase daquelas autoras na importância da intersecção senioridade,
idade e maternidade como construtos sociais básicos para sistemas de reco-
nhecimento de indivíduos mas referidos a coletividades, e no se fazer nação,
bem como sua comum metodologia pela qual o social, a história se realiza
considerando entrelace entre razão simbólica, espiritual e material, orientada
para cotidianidades comunitárias, ou seja, insiste-se por agencias coletivas de
comuns, de valores, cosmovisões compartidas colaboram para debates que
pretendo mais explorar sobre reprodução social e neste como entram o do-
méstico e a maternidade, nas pegadas de perspectiva decolonial, como as su-
geridas por Federici (2018 e 2019), Arruzza (2019) e Bhattacharya (2017).
Amadiume (2005) e Oyéwùmí (2005 e 2015), enfatizo, bem indicam o lugar
da cultura, do espiritual na escrita material das sociedades relacionadas às et-
nias que focalizam, ou seja, na reprodução social dessas.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 263


Fica evidente que as comparações interculturais sobre gênero e mater-
nidade, tropeçam com singularidades de cosmovisões africanas, a serem mais
consideradas em especial para o questionamento de concepções universalistas
sobre gênero, família e maternidade como para ajuizamentos da socialização
em valores e organização de cada cultura.
Reflexão que leva, entretanto, a relativizar a propriedade de codificar
como ‘materfobia’, muitas das críticas de feministas ocidentais à maternidade já
que o gênero a que se referem, ou suas construções sociais, têm como portos de
decolagem, sociedades alimentadas no capitalismo/imperialismo e no patriarca-
do. Tal temática e crítica é abordada por uma vasta literatura (ver entre outros,
Badinter 2011, 1985; Chodorow 2002, Chodorow e Contrato, 1982 e Castro,
2014) mas não cabe no plano desta peça17. Esta é mais voltada a conhecer,
aprender, e apresentar via escritos de Amadiume e Oyèwùmí como a modelação
da maternidade por outros parâmetros que não os das sociedades ocidentais,
que mais informam nossos feminismos brancos, que chegam dos EE. UU e Eu-
ropa, colaboram para, repete-se, discutir maternidade e processos de reprodução
social. De fato, o conceito de Oyèwùmí de matripotencia pede singular men-
talidade sobre o social, em que logicas materialista e espiritual se combinem:

Matripotencia emerge da logica espiritual da sociedade


Yoruba. Assim a materfobia das feministas brancas que
apelam para a desidentificação com a mãe, não tem lugar
no ethos materpotente, considerando que o ori (destino)
das mães e aquele de seus filhos, independentemente da
anatomia, são percebidos como espiritualmente conecta-
dos. (OYÉWÙMÍ, 2015, p 215.)

A matripotencia que sugere Oyèwùmí é uma potencialidade. O que é


destacado no final de seu livro (2015, p 220), quando lembra que essa requer

17 “A questão é que são tênues as fronteiras entre instituição, legitimidade social desta e imposição
de uma ideologia, assim como a desidentificação de socialistas e feministas com a crítica a um tipo
histórico e social especifico de família- a família nuclear ou extensa baseada na autoridade do pai-
-marido e na divisão sexual do trabalho, do poder e do prazer. A crítica feminista a tal tipo de família
foi confundida com uma palavra de ordem genérica: “morte à família”. Tal simplificação é rejeitada
por diversos autores. Por exemplo, Chodorow e Contratto (1982) em artigo crítico a correntes fe-
ministas, negam a propriedade de posturas que consideram a mãe como toda poderosa, assim como
aquelas que reduzem a mãe e a mulher a vítimas passivas.” (CASTRO, 2014, p 23.)

264 Saberes decoloniais


referências orientadas para a comunidade, destacando que ao se apelar para
uma lógica em que a maternidade não seria uma categoria, mas, empreendi-
mento coletivo, por estar relacionada a mitos fundantes compartidos, já que
todos nasceram de Ìyá.
O que estaria em pauta, leitura própria, seria um projeto de re-exis-
tencia (uma existência por vir) - conceito sugerido por Segato (2016), uma
concepção de reprodução social unificada, insisto, espiritual e materialista, e
tendo matripotencia, uma ideologia maternal, sobre o dar a vida, o sustentar a
vida, o preservar a vida, sugerindo fundamentos para ações políticas necessárias
para uma transformação social. (OYÉWÙMÍ, 2015, p 220)

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Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 265


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Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 267


LITERATURA E “NARRATIVAS DE
LIBERTAÇÃO”: MAYA ANGELOU
E BELL HOOKS
Susana de Castro1

“Se crescer é doloroso para a garota


Negra do sul, estar ciente do seu não
pertencimento é a ferrugem da navalha
que a ameaça a garganta. É um insulto
desnecessário.”
Maya Angelou

Filha de um advogado e de uma assistente social cearenses, cresci em


ambiente privilegiado da classe média carioca. Moradora da zona sul, sempre
estudamos, meus irmãos e eu, em escolas privadas. Meus privilégios sociais,
de raça e de classe, não me impediram, entretanto, de ter consciência crítica e
política. Tanto meus pais, quantos meus professores me ensinaram a não na-
turalizar ou a criminalizar a pobreza. Com a separação dos meus pais, quando
tinha 11 anos, passei a entender os mecanismos perversos do machismo, me

1 Professora de filosofia do departamento de Filosofia da UFRJ. Email: susanadec@gmail.com


tornando uma feminista mirim. Me lembro de que quando fui visitar minha
prima em Manaus aos 15 anos e lhe disse que considerava o casamento uma
instituição falida. Assim, na condição de mulher brasileira, terceiro mundista,
branca para os padrões locais, e latina, não branca, para os padrões americanos
escrevo este texto sobre a narrativa de libertação da escritora americana Maya
Angelou e a importância da autodefinição para todos os oprimidos.
Como nos ensina o educador brasileiro Paulo Freire, para lutar contra
a opressão precisamos deixar de ser objetos, não deixar que o opressor fale
quem nós somos, e nos colocarmos como sujeitos, como pessoas que deter-
minam como querem ser chamadas, descritas. Esse ‘colocar-se como sujeito’
é o princípio de toda a luta. A voz que narra a sua história é a voz que conta
a história de toda uma geração, de toda uma cultura. Ao narrar a sua história,
Maya deu vida a milhares de pessoas ‘esquecidas’ pela história, as famílias ne-
gras segregadas do Sul dos EUA.
Em uma sociedade racista e patriarcal, como a brasileira e a norte ame-
ricana, sociedades em que há uma hierarquia entre as raças e entre os gêneros de
tal maneira que as instituições privilegiam uma raça em detrimento de outras e
um gênero em detrimento dos outros, é preciso a hegemonia de discursos, valo-
res, ideias que ajudem a naturalizar as diferenças entre gêneros e raças, para fazer
com que as pessoas achem que essa é a realidade última das coisas.
Se no período da escravidão, a desigualdade racial era justificada pela
desumanização do corpo negro e índio, sua equiparação ao animal, e a de-
sigualdade de poder e direitos entre homens e mulheres era justificada pela
diferença biológica entre os sexos, no período pós escravidão, e até os dias de
hoje, a ‘naturalização’ das diferenças, se dá através dos meios de comunicação
de massa, escola, universidade, família, enfim, pela cultura hegemônica de
maneira geral, que reproduz subliminarmente a visão colonizadora, de supe-
rioridade natural de uma raça e de um gênero sobre o outro.
Quando se vive em uma sociedade na qual os paradigmas de beleza,
inteligência, moralidade são majoritariamente ocupados por uma única raça
e um único gênero, enquanto as imagens e discursos acerca dos membros das
outras raças e gêneros são sempre eivados de preconceitos, de desvalorização,
é, de certa forma, esperado que homens e mulheres não brancos acabem in-
trojetando uma imagem depreciativa de si mesmo.

270 Saberes decoloniais


Contra essa naturalização da desigualdade se insurgem as vozes dissi-
dentes de autores não brancos, não canônicos, não eurocêntricos, que dispu-
tam a narrativa sobre o real e assumem uma posição de sujeitos. É assim, por
exemplo, que a escritora feminista, bell hooks resolve escrever sobre a mulher
negra no período da escravidão norte americana, para se contrapor à narrativa
hegemônica sobre esse período, escrita majoritariamente por homens brancos.
Seu primeiro livro E eu não sou uma mulher? surge de sua demanda por achar
a sua voz em meio a um ambiente majoritariamente branco e machista como
o da Universidade de Standford, California, onde estava depois de ter ganho
uma bolsa para estudar. Tendo nascido e crescido no ambiente racialmente
segregado do Sul dos EUA, sentiu-se isolada e perdida no ambiente hostil
da universidade americana. A solução de bell hooks para se recompor e se
autorrecuperar, recuperar a integridade e a dignidade perdida no confronto
com o olhar do opressor, que a objetificava, foi se conectar com a sua história,
seus ancestrais, ao recontar a história do papel das mulheres negras na luta e
resistência contra a escravidão e o patriarcado.
O que se está em jogo aqui é a disputa sobre a narrativa sobre o real.
Quem pode contar a história? Até bem pouco tempo a história era uma ver-
são da perspectiva do colonizador, do opressor, do homem branco. Com o
surgimento do movimento feminista, mais mulheres passaram a disputar a
narrativa sobre o real, mas eram majoritariamente mulheres brancas. É, por
isso, tão mais extraordinário, que Maya Angelou tenha lançado seu romance
autobiográfico, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, em 1969. O livro narra
a sua infância no Sul racialmente segregado da época da depressão norte ame-
ricana ao lado de sua avó, dona do principal mercado da parte negra da cidade
de Stamps no Arkansas, de seu tio e de seu irmão. Como diz Angelou em uma
entrevista sua com bell hooks para o jornal budista Lions’s Roar: “Eu quero
contar a verdade. (...) Eu posso não contar os fatos; fatos podem obscurecer a
verdade. (..) Assim, eu quero contar a verdade como eu a vejo, como a vivi.”
(MCLEOD, 1998) Angelou, não omite fatos traumáticos da sua história, mas
tão pouco deixa de contar e descrever os atos corajosos de sua avó e de sua
mãe. Ambas, mãe e avó, são descritas com todas as suas falhas e acertos. Pois,
como diz bell hooks nessa mesma entrevista, não se trata de dividir as pessoas
em opressores e oprimidos, mas de mostrar o potencial que cada um de nós

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 271


possui para ocupar esses dois lugares. Para Angelou, a vida é mais complexa
do que o pensamento binário ocidental nos faz pensar. O mundo não é divi-
dido em pessoas absolutamente boas e pessoas absolutamente más. Todos nós
somos passiveis de cometermos erros e de ferirmos alguém, o que importa é
saber se o amor é mais forte e capaz de perdoar, e se somos capazes de sentir
compaixão.
Mesmo tendo vivido em uma época em que o linchamento dos ho-
mens negros era comum e, portanto, mesmo tendo razões para odiar todas as
pessoas brancas, Angelou conta na entrevista que jamais, entretanto, deixou
de ler a literatura escrita por homens brancos. Em seus cursos de literatura
sempre indicou livros de autores negros e brancos. Ambas, hooks e Angelou
concordam que é um absurdo achar que por ser negro ou negra a pessoas não
pode ler autores brancos, ou vice-versa. Ambas reconhecem, por exemplo, a
importância que a leitura de O morro dos ventos uivantes de Emily Brontë teve
em suas vidas. Assim, podemos dizer que é fundamental no entendimento
delas o papel da literatura na criação de pontes de empatia que façam com que
os grupos oprimidos percebam que há entre os opressores pessoas igualmente
oprimidas. Trata-se afinal de afirmar aquilo que torna a todos humanos, como
disse o dramaturgo Publiu Terantius, um escravo africano que depois se tor-
nou senador romano. Angelou gostava de citar em suas aulas sua frase: “eu sou
um ser humano. Nada humano pode ser estranho a mim”.
A introdução do romance já indica na forma de metáfora, o seu tema.
Nela a pequena Maya esquece a letra da música que tem que cantar na igreja.
Ridicularizada, pede para ir ao banheiro, no caminho as crianças tentam der-
rubá-la, e ela depois acaba não aguentando e faz xixi nas calças. A sua reflexão
sobre o episódio diz bem do que o livro trata. A pequena Maya tinha medo
de que sua cabeça fosse estourar se não fosse ao banheiro. Depois que não
mais consegue segurar o mijo, sai correndo aliviada, feliz por saber que não
morreria com a cabeça estourada de tanto segurar a água e feliz por estar livre
da ‘igreja boba’.
Ao contar sua história, a escritora Maya exorciza seus demônios atra-
vés de uma narrativa de libertação e redenção. Na infância, foi a retidão e
dedicação da sua avó que lhe ensinaram a valorizar suas raízes negras, assim
como na adolescência, descobre a profundidade do perdão ao aceitar o amor

272 Saberes decoloniais


materno. Como diz a apresentadora Ophra Winfrey, que também foi vítima
de estupro na infância e que também foi criada pela avó sulista, no seu prefá-
cio ao romance:

Maya Angelou era o que escrevia. Ela entendia que com-


partilhar sua verdade a conectava às maiores verdades
humanas – saudade, abandono, segurança, esperança,
surpresa, preconceito, mistério e, finalmente, autodesco-
berta: a percepção de quem você realmente é e a libera-
ção que o amor traz. (WINFREY, 2018)

Abandonada pela mãe na infância, Maya relata tudo o que ela fez para
reconectar-se com a filha (2018).2Ao longo do livro, também fica patente seu
profundo amor pelo irmão um ano mais velho, Bailey, a quem não só recorria
em busca de proteção, mas também de conselho, e por sua austera avó pater-
na, que lhes em ensinou as bases do autorrespeito e cuidado com os outros.
Para a socióloga americana Patricia Hill Collins, Eu sei por que o pássa-
ro canta na gaiola, exemplifica a capacidade de autoavaliação e autoconfiança
(self-valuation of self-reliance) das mulheres negras (Collins, 2000, p. 116).
Para Collins, as mulheres negras sempre resistiram às imagens de controle
produzidas pela sociedade patriarcal racista norte-americana – imagens que as
estereotipavam ou como matriarcas fortes e autoritárias ou como babás cari-
nhosas, ou como mulheres hipersexualizadas. Uma das principais estratégias
de resistência à opressão é não deixar que o outro diga o que você é, mas, sim,
se autodefinir contando a história de sua vida, seus percalços, sofrimentos e
lutas (Collins, 2000, p. 112 e seg.) A autodefinição, isto é, a capacidade crítica
de não se ver como o opressor ou a opressora quer que você se veja, é, na visão
de Collins, uma estratégia decisiva para a saúde mental e sobrevivência dos
oprimidos.
No prefácio à edição brasileira do livro de Maya Angelou, a filósofa
brasileira, Djamila Ribeiro nomeia de ‘narrativa de libertação’ à jornada de
autodefinição empreendida por Angelou em seu romance. Trata-se de uma
narrativa acerca do modo como a autora foi ao longo de sua vida superando
as barreiras e traumas que a vida foi lhe colocando.
2 No livro Mamãe & Eu & Mamãe (2018), Maya relata com mais pormenores a sua relação com a
mãe, o quanto se tornaram amigas e se apoiaram.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 273


O livro de Angelou é, a meu ver, marcado por dois grandes traumas
vividos pela autora, a sua separação dos pais, quando aos três anos de vida foi
enviada junto com seu irmão para viver com a avó paterna em Stamps, no
Arkansas; e quando, logo após ter voltado a viver com a mãe, é estrupada pelo
padrasto, com apenas oito anos de idade. Esse segundo trauma tem ainda um
desfecho trágico, porque Maya sentiu-se culpada pela morte do estuprador,
quando no julgamento omitiu que ele há havia assediado antes. Solto, ele foi
morto, ao que tudo indica por capangas a mando de sua família. Assustada,
desde esse dia em diante a pequena Maya resolve como forma de punição não
falar mais, pois acredita que sua confissão do estupro foi a responsável pela
morte do padrasto, e é mandada de volta para viver com sua avó paterna.
De volta a Stamps, conhece sra Flawers que lhe mostra que não basta
ler muito, é preciso que dar voz humanas as palavras lidas: “É preciso voz hu-
mana para dar a elas as nuances dos significados mais profundo.” Se permane-
cesse muda, acuada, com medo de falar, Maya não só não teria nos brindado
com sua poesia, mas também teria deixado de mostrar a realidade da vida no
Sul segregado desde a sua perspectiva. Para bell hooks, a experiência da vida
no Sul segregado é uma experiência decisiva para ambas, ela e Angelou. Tanto
a experiência de vida em Hopkinsville, cidade segregada do Kentucky, onde
hooks nasceu, quando a vida em Stamps de Angelou, lhes mostrou uma dinâ-
mica de vida diferente da que ambas foram depois encontrar na vida adulta.
Um modo de vida em que o sentido de comunidade era muito mais forte.
No caso de Angelou, sua avó era dona do mercado no qual todos os
trabalhadores negros compravam. O mercado era o centro da vida da cidade e
a avó de Angelou era, como ela mesma diz na entrevista com hooks, uma mãe
para todos. Esse sentido de coletividade e comunidade está presente em toda
narrativa do livro de Angelou.
Para hooks (2019) a vida em uma cidade segregada tinha a enorme
vantagem de manter um modelo de solidariedade e comunitarismo imper-
meável ao individualismo da sociedade norte americana supremacista branca.
Segundo ela, é graças a adesão a esse modelo contra hegemônico que ela pode
se manter irredutível às seduções da expectativa de sua assimilação ao modelo
classista embutido em sua ascensão social como professora universitária, sen-
do filha de mãe dona de casa e pai zelador. Para ela, ser professora de Yale, ao

274 Saberes decoloniais


contrário do que pensavam seus colegas professores negros, não a colocava
em um patamar social superior ao de seus estudantes negros ou a dos outros
trabalhadores negros da universidade ou da cidade.
Quando a poeta Audre Lorde (2019) enunciou “a ferramenta do se-
nhor jamais desmantelará a casa do senhor”, estava nos alertando sobre o
perigo de em uma cultura hegemônica de dominação, em que as relações são
competitivas e individualistas, como a americana, o oprimido ser seduzido
pelo sucesso e pelo status. Todos os membros dos grupos minoritários correm
o risco de serem cooptados pelo sistema, perdendo assim a dimensão revolu-
cionária de sua luta contra os opressores. Nesse sentido, no exemplo acima, os
professores negros de Yale, no relato de hooks, não atuavam como incentiva-
dores dos alunos negros, ao contrário, desestimulavam qualquer iniciativa de
estudo não convencional, não eurocentrado quando esses lhes procuravam em
busca de orientação. As universidades norte americanas não são lugares propí-
cios ao desenvolvimento de uma pedagogia libertadora, de uma educação para
auto recuperação e para a consciência crítica.

Quase sempre se assume que aqueles que possuem o pri-


vilégio da educação universitária não precisam de uma
educação para a consciência crítica. Isso é um grave erro.
Nenhuma mudança radical, nenhuma transformação
revolucionária poderá ocorrer nesta sociedade – nesta
cultura de dominação – se nos recusarmos a reconhecer
a necessidade de radicalizar a consciência em conjunto
com a resistência política coletiva. (hooks, 2019, p.79)

A intelectual radical comprometida com a transformação da socieda-


de, com a ampliação do campo das narrativas sobre o real, sua ocupação por
vozes dissidentes, precisa, diz hooks, estar atenta ao alcance da sua voz, de seus
escritos. Para muitos intelectuais acadêmicos, ser uma escritora popular é sinal
de baixa qualidade ou densidade teórica. Para hooks, ao contrário, apesar de
todos os escritos terem a mesma lógica abstrata, nem toda teoria precisa ser
necessariamente hermética, inacessível para o público leigo no assunto. No
seu entendimento, o papel do intelectual crítico é comunicar-se de tal manei-
ra que todos possam entender sua fala. Essa é uma perspectiva que Angelou
também compartilha.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 275


Na entrevista com hooks, Angelou (2018) reproduz uma frase do es-
critor Nathaniel Hawthorne. Para ele “facilidade de leitura significa um traba-
lho duro de escrita” [“Easy Reading is damn hard writing”]. Contrária a um
crítico que teria dito que ela seria uma ‘escritora natural’, afirma que ser uma
escritora natural seria como ser um cirurgião cardíaco natural. No fundo, a
profissão de escritora depende de tanto estudo, leitura e dedicação quanto
qualquer outra de alto nível de complexidade, como a de cirurgião cardíaco.
Angelou relata que trabalha de dois a três dias em um parágrafo para mantê-lo
simples. Ela, por um lado, fica feliz em saber que seus livros são acessíveis e
que as pessoas leem trinta páginas sem se dar conta do esforço ou do tempo;
um livro que ela levou um ano para escrever, um leitor consegue ler na fila,
enquanto espera pelo seu autógrafo.
Além de buscar utilizar uma linguagem clara, a teórica que quer atin-
gir a consciência crítica de seu público leitor, precisa, acredita hooks, mesclar
a teoria com depoimento pessoal. Essa estratégica além de dar veracidade e
autenticidade ao texto, aproxima a escritora de leitores não universitários, para
quem a tradição oral de relatos de vida é muito mais atraente do que teorias
abstratas. Assim, os livros de hooks seguem à risca a máxima de Lorde de
buscar criar novas ferramentas para desmantelar a casa do senhor (a cultura
de dominação supremacista patriarcal capitalista norte americana). Além de
perseguir a clareza, seus textos são marcados pela coragem com a qual expõe
fatos biográficos. Como ela disse na entrevista com Maya Angelou, não acre-
dita que os opressores e os oprimidos sejam grupos homogêneos e separados,
pelo contrário são posições que se intercambiam.
Nos relatos autobiográficos de Maya Angelou e bell hooks encontra-
mos um mesmo apreço pela educação e pelos livros. Ambas as escritoras, fo-
ram na infância estimulada por seus parentes a ler. A leitura foi a forma pela
qual desenvolveram tanto uma capacidade critica quanto uma capacidade de
empatia. Mas as capacidades de compaixão e perdão, necessárias a uma ética
humanizadora, foram adquiridas na convivência comunitária nas cidades ra-
cialmente segregadas do Sul em que viveram.
O título do livro de Angelou foi retirado do poema “Compaixão”
de Paul Laurence Dunbar, poeta americano do século XIX, filho de pais que
haviam sido escravizados. No poema Dunbar narra em três estrofes a situação

276 Saberes decoloniais


de um pássaro preso. Mesmo enjaulado ele canta, não de contentamento, mas
como uma forma de apelo e de oração:

[…]
I know why the caged bird sings, ah me,
When his wing is bruised and his bosom sore, –
When he beats his bars and he would be free;
It is not a carol of joy or glee,
But a prayer that he sends from his heart’s deep core,
But a plea, that upward to Heaven he flings –
I know why the caged bird sings!3

REFERÊNCIAS

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Winarski. São Paulo: Astral Cultural, 2018.
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Autêntica Editora, 2019.
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Maya Angelou in conversation. In Lion’s Roar. January 1, 1998.
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18/08/2022.
RIBEIRO, Djamila. “Apresentação”. Angelou, Maya. Eu sei por que o pássaro
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2018.
WINFREY, Oprah. “Prefácio”. In Angelou, Maya. Eu sei por que o pássaro
canta na gaiola. Trad. Regiane Winarski. São Paulo: Astral Cultural,
2018.
3 Eu sei porque o pássaro enjaulado canta, ah, eu, // Quando sua asa está machucada e seu peito dolori-
do, Quando ele bate nas barras e para ficar livre;//Esta não é uma canção de contentamento ou alegria,
// Mas uma oração que ele envia do fundo do coração,//Mas um apelo, que aos céus ele lança – Eu sei
porque o pássaro enjaulado canta! Trad. Nota de terapia (https://notaterapia.com.br/2020/06/02/co-
nheca-o-poe ma-que-inspirou-o-titulo-do-livro-eu-sei-porque-o-passaro-canta-na-gai ola-de-maya-
-angelou/; acessado em 18/08/2022.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 277


DAS MARGENS DA LITERATURA À CRÍTICA
SOCIAL: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DE
CAROLINA MARIA DE JESUS EM DIÁRIO DE
BITITA
Rayron Lennon Costa Sousa1
Claudia Letícia Gonçalves Moraes2

INTRODUÇÃO

Nos meandros de um trabalho de revisão do cânone literário, noto-


riamente conhecido pela supremacia de escritos de determinado grupo, vale
dizer: homens cisgêneros, brancos, heterossexuais e pertencentes à elite bra-
sileira, atualmente se propõe um movimento de inclusão que põe em relevo
vozes outrora desconsideradas por esse cânone, promovendo uma revisão da
literatura constituída por grupos elitizados. Desse modo, sujeitos considera-
dos socialmente à margem se deslocam, agora, para o centro da narrativa bra-
sileira contemporânea, num movimento de revisão desse espaço secularmente
cristalizado, na busca de autonomia literária.
Nesta direção, com as marginalizações no campo da história, da cultura
e das contribuições das populações negras, das mulheres, dos não-heterosse-
1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Literatura pela
Universidade Federal do Piauí- UFPI (Bolsista de doutorado FAPEMA). Mestre em Letras – Teoria
Literária pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Professor do Curso de Linguagens e
Códigos – Língua Portuguesa da Universidade Federal do Maranhão - UFMA/Campus São Ber-
nardo. Integrante do Grupo de Pesquisa Literatura, Leitura e Ensino vinculado à Universidade
Estadual do Piauí – UESPI e Vice-Coordenador do Grupo de Pesquisa em Literatura, Alteridade
e Decolonialidade – GPLADE/UFMA. rayron.sousa@ufma.br Colocar aqui apenas titulação e
instituição. O restante detalhado fica em sobre o autor. No máximo 3 linhas.
2 Doutora em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília. Mestra em Cultura e Sociedade
pela Universidade Federal do Maranhão. Graduada em Letras - Licenciatura pela Universidade Federal
do Maranhão. Professora Adjunta do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Linguagens e Códigos
– Língua Portuguesa. Líder do Grupo de Pesquisa Literatura, Alteridade e Decolonialidade (UFMA).
Integrante dos Grupos de Pesquisa Historiografia, cânone e ensino (UnB) e Estudos de Paisagem nas
Literaturas de Língua Portuguesa (UFF-UFMA). Email. Colocar aqui apenas titulação e instituição. O
restante detalhado fica em sobre o autor. No máximo 3 linhas.. claudia.moraes@ufma.br
xuais, dos nordestinos e campesinos entre outros grupos sociais marginalizados,
a literatura oficial do Brasil, entendida como literatura canônica, abdicou par-
cialmente das produções oriundas desses grupos sociais justificando não per-
tencerem às ‘ditas’ elites ou por apresentarem uma literatura menor - de valor
estético inferior de acordo com os critérios estabelecidos por seu juízo de valores.
São nesses espaços marginais, que se abrem em temporalidades diversas,
que autoras como Maria Firmina dos Reis, Ruth Guimarães, Anajá Caetano,
Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Lívia Natália, Cris-
tiane Sobral, Ana Maria Gonçalves, entre outras vozes ecoantes, escreveram e
continuam produzindo uma literatura que representa contranarrativas que vão
de encontro à ideologia do apagamento de suas existências, tanto de seus cor-
pos quanto de suas produções artístico-culturais, em proveito de um discurso
homogeneizante influenciado, também, pelos interesses e contratos do mercado
editorial que, via de regra, se tornou um mecanismo de seleção e poder no que
compete ao aceite, publicação e publicização desta literatura marginal.
Carolina Maria de Jesus nos foi apresentada no episódio do lança-
mento de seu livro, em 1960, Quarto de despejo: diário de uma favelada, como
fruto de uma fase literária, envolvida numa espécie de jornalismo denunciati-
vo e regada de episódios que questionavam esse lugar que Carolina passava a
ocupar em virtude da publicação de seus diários. Nascida aos 14 de março de
1914, filha de João Candido Veloso e Maria Catarina de Jesus, na interiorana
cidade mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus percorreu Minas, mas
foi em São Paulo que descansou da vivência periférica, em 13 de fevereiro de
1977, aos 63 anos.
É a partir de uma narrativa autobiográfica que Diário de Bitita (1986),
publicação póstuma da escritora, nos apresenta a trajetória do interior de Minas
à São Paulo em busca de uma vida minimamente digna: casa, comida e saúde;
elementos enfatizados várias vezes e que tematizam suas obras. Nesse bojo, a
autora critica a sociedade quando pontua as tensões entre pares opositivos que,
dialeticamente, se confrontam: a mulher e o homem, o rico e o miserável, o
branco e o negro – este último, ao ver um policial, deveria ser esconder para não
ser preso apenas por sua identidade étnico-racial –, preconceito revelado nas
tensões de base exclusivamente fenotípicas e denunciados pela autora tanto em
Quarto de despejo: diário de uma favelada quanto em Diário de Bitita.

280 Saberes decoloniais


Na busca por compreender seu projeto literário e sua guinada autoral,
a literatura caroliniana é desvelada, inicialmente, em Quarto de despejo: diário
de uma favelada (1960), seguida por Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favela-
da (1961), Diário de Bitita (1986), Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963),
Antologia Pessoal (1996), entre outras produções que se estendem por diários,
romance, poesias e provérbios, nos quais a escritora atua como precursora na
literatura-denúncia, tanto dos problemas sociais, principalmente os étnico-ra-
ciais e de classe quanto nos de gênero, interseccionalizando-os, uma vez que tais
problemas já existiam à época da autora e perduram até os dias de hoje, o que se
apresenta como campo bastante fértil para discussão, análise e crítica.
O teor autobiográfico e testemunhal na escrita de Carolina Maria de
Jesus é uma característica que se destaca, já que suas temáticas, pretagonistas,
enredos etc., além de alimentar o imaginário social do século XX, por exten-
são, parte do olhar de quem viveu o extremo da pobreza material, a exclusão,
o racismo, o sexismo e o patriarcalismo enquanto categorias de extermínio
sobrepostas umas às outras, quando se considera a relação entre vida e obra. É
sobre esta escrita do eu, percorrendo os diversos abandonos e as vivências nas
casas de brancos e nos contextos dominados por esses, que debruçaremo-nos
a fim de percebermos, por meio da estética caroliniana, seu projeto literário,
entre a denúncia da condição da mulher negra periférica no Brasil e a efetiva-
ção da literatura periférica como contra-campo literário.

LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: A INSURGÊNCIA DAS VOZES


MARGINAIS SILENCIADAS

Ao considerar as profundas transformações que abalaram o contur-


bado século XX, podemos destacar especificamente, no caso do recorte aqui
feito, as transformações de tipo cultural3, que inclusive hoje criminalizam o
racismo, e, por extensão, denuncia a falta de representatividade das minorias
dos diversos segmentos sociais que compõe o extenso panorama cultural bra-

3 Aqui compreendida a partir das definições do sociólogo jamaicano Stuart Hall, que apresenta ao
leitor suas principais ideias no que tange, principalmente, à noção de cultura – o que, em termos
simples e em colocação própria, diz respeito a “significados compartilhados”. Esse conceito, portan-
to, visa dar à linguagem um papel fundamental, já que atua como um “repositório-chave de valores
e significados culturais” (2016).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 281


sileiro. Podemos considerar, portanto, que a literatura, enquanto parte funda-
mental de expressão de cultura de um determinado povo ou de determinado
segmento da população, está também sujeita a mudanças históricas e suas
compreensões se alteram conforme a ótica que os grupos se utilizam para
pensá-la, como é o caso, contemporaneamente, das perspectivas oriundas dos
movimentos feministas, das questões étnico-raciais, bem como da decoloniali-
dade enquanto guinada subjetiva capaz de refletir sobre essas realidades e suas
relações com os meios de produção, validação e socialização.
Quando analisamos a definição de Literatura Brasileira Contempo-
rânea, fica evidente uma lacuna que historicamente constituiu nosso país: os
estratos mais baixos, as camadas mais populares, de uma maneira geral, são
representadas artisticamente de forma preconceituosa, reforçando estereóti-
pos de raça, classe e gênero sobrepostos de forma interseccional. Em outra
perspectiva, podemos perceber que o problema da autoapresentação4 é ainda
latente: apesar de já haver maior autoapresentação no século XXI, este é um
ponto que suscita bastante discussão se colocarmos em revisão os séculos an-
teriores. É partindo desses “incômodos” que a questão da representação da(s)
periferia(s) na Literatura Brasileira Contemporânea se apresenta como central
nos debates atuais que teorizam as escritas de si, autobiográficas ou de teste-
munho. Nesse tensionamento, Regina Dalcastagnè, em Literatura Brasileira
Contemporânea: um território contestado (2012, p. 13), discorre que:

Desde os tempos em que era entendida como instru-


mento de afirmação da identidade nacional até agora,
quando diferentes grupos sociais procuram se apropriar
4 Trata-se de um conceito criado pela autora Conceição Evaristo que, problematizando a literatura
brasileira como um discurso que insiste em instituir uma diferença negativa para a mulher negra,
geralmente ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto
de prazer do macho senhor, propõe uma guinada ao utilizar a autoapresentação. Segundo a autora
(2005, p. 54): “Se há uma literatura que nos invibiliza ou nos ficcionaliza a partir de estereótipos
vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da
mulher negra na literatura. Assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder falo-cêntri-
co branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma au-
to-representação. Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo
do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve,
a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira.
Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca se-
mantizar um outro movimento, ou melhor, se inscreve no movimento a que abriga todas as nossas
lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida.

282 Saberes decoloniais


de seus recursos, a literatura brasileira é um território
contestado. Muito além de estilos ou escolhas reperto-
riais, o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre
si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele. Hoje,
cada vez mais, autores e críticos se movimentam na cena
literária em busca de espaço – e de poder, o poder de fa-
lar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala. Daí
os ruídos e o desconforto causados pela presença de no-
vas vozes, vozes “não autorizadas”; pela abertura de novas
abordagens e enquadramentos para se pensar a literatura;
ou, ainda, pelo debate da especificidade do literário, em
relação a outros modos de discurso, e das questões éticas
suscitadas por esta especificidade.

Isto posto, é interessante observar de forma crítica este espaço em


disputa e as implicações que ele traz para o fazer literário, o que não se res-
tringe aos dias atuais, ampliando-se ao longo do século XX. Dessa forma, a
literatura brasileira produzida nas últimas décadas do século XX e no início do
século XXI possibilita uma expansão de perspectivas em relação à produção e
à recepção de novos(as) autores(as) e de novas obras literárias, bem como do
processo de resgate de uma produção literária que não compôs o cânone. Este
olhar, que no contexto atual se apresenta mais atento e mais plural, abre a pos-
sibilidade, para leitores e críticos, de uma leitura apurada tanto do momento
contemporâneo quanto das décadas anteriores englobadas nos meandros do
século XX que já apontavam para produções mais plurais, mesmo que não
tivessem alcançado visibilidade no momento de sua produção, conforme já
mencionado anteriormente.
Nesse intento, estudar hoje obras de uma autora do quilate de Caroli-
na Maria de Jesus, que teve o auge de sua produção na década de 60 do século
passado, é efetivamente dar voz a um determinado tipo de autoria que tem
ganhado cada vez mais notoriedade mediante a emergência de vozes sociais
até então desconsideradas no âmbito acadêmico, seja na seara das Ciências So-
ciais, da História ou da Literatura. Essa escritora não só inaugura a literatura
periférica mas materializa, de forma poética através da dureza da vivência na
favela do Canindé e no percurso de Minas-Gerais à São Paulo, mecanismos
modernos de opressão, como a colonialidade de gênero, por exemplo, que por
tanto tempo afastou as mulheres da cena literária.
Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 283
Para compreender como uma autora como Carolina Maria de Jesus foi
silenciada durante tanto tempo, sendo só agora no início do século XXI mais
extensamente pesquisada, é necessário observar que a base de nossa formação
mestiça sempre foi negada, negação esta que atuou para que os protagonismos
no transcorrer da História fossem questionados e contingenciados, quando não
era branqueados de forma automática, como ocorreu com Machado de Assis e
Lima Barreto. Hoje, ao voltarmos os olhares para a historiografia literária, percebe-
mos que os protagonismos relegados ao esquecimento são justamente de negros,
mulheres, não-heterossexuais e outras minorias de representação política (SILVA,
2008). Corroborando com essa assertiva, Dalcastagnè, em Espaço e Gênero na Li-
teratura Brasileira Contemporânea (2015), discorre que essas minorias são “[...]
aquilo que não se quer ali – aqueles que habitam seus desvios, que ameaçam seus
muros, os que foram jogados, desde sempre, para o lado de fora. [...]”.
Carolina, autora negra, favelada, oriunda de família negra, miserável e
de baixa escolaridade, produz uma obra que vai de encontro à produção literária
de sua época, sendo uma representante da memória da contracultura no país e
alcançando, àquele momento, meteórico sucesso. É nesse contexto de produção
e ao mesmo tempo de “apagamento” de sua obra que Carolina é resvalada para
a posição de esquecimento por parte da crítica. A autora, inovadora no cenário
literário brasileiro com Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em
1960, abre espaço para uma literatura negro-feminina com forte teor de denúncia,
deixando clara em sua escrita seu percurso incerto enquanto mulher negra, mãe,
marginalizada e representante dos estratos mais carentes da população brasileira.
É a partir deste revés do cânone literário que Carolina Maria de Jesus
tece suas narrativas, testemunhando em Diário de Bitita, via de regra, o lugar
destinado aos invisíveis, ou seja, os não-lugares, seguindo a assertiva de Frantz
Fanon, em Peles negras, máscaras brancas (2008)5. Nesta acepção, consideran-
do a contemporaneidade como momento em que temos conhecimento dessas
escritas insubmissas paralelamente ao (re)fundamento das noções historica-
mente tidas como universais, a crítica e escritora Conceição Evaristo, em Da
grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita
(2007, p. 21) acrescenta:

5 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA,
2008.

284 Saberes decoloniais


Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da
escrita, proporcionando-lhe a sua autoinscrição no inte-
rior do mundo. E, em se tratando de um ato empreen-
dido por mulheres negras, que historicamente transitam
por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados
pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de
insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar,
muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cul-
tas” da língua, caso exemplar de Carolina Maria de Jesus,
como também pela escolha da matéria narrada. [...]

Observamos, seguindo o que discorre Evaristo, como a escrita negro-


-feminina está condicionada à experiência intersubjetiva de mundo, o que
acabou estabelecendo, segundo nosso delineamento, as relações entre os sujei-
tos que historicamente transitaram por espaços racialmente demarcados. Tal
assertiva responde pelas “justificativas” apresentadas pela Colonialidade para
o apagamento da presença desses(as) autores(as) na cena literária e em outras
ciências; entre as justificativas utilizadas no âmbito literário está o “desacordo”
com a norma padrão, questão norteadora para referendar o cânone literário
ocidental, pois segundo Carolina Maria de Jesus: “A poesia tem êrros gramati-
cais. Não há possibilidade de correção. É uma advertência social”.
Outro ponto importante a ser abordado são as relações construídas e
estabelecidas a partir da noção de contemporaneidade e suas implicações no
literário, além do horizonte de expectativas dos leitores que dialoga diretamen-
te com o mercado editorial. Para isto, recorremos ao filósofo italiano Giorgio
Agamben, em O que é contemporêneo? e outros Ensaios (2009), para compreender
a gênese da contemporaneidade para com as discussões sociais, o que implica:

[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar


em seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o
escuro. Todos os tempos são, para quem dele experi-
menta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo
é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que
é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente. (AGAMBEN, 2009, p. 63, grifos nossos)

Esta capacidade de perceber, dentro de seu próprio tempo, as possíveis


obscuridades e de iluminar o tempo em que vive é uma exortação para analisar a

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 285


necessidade que temos de pensar o nosso momento histórico, bem como refletir
sobre os problemas que ultrapassaram o passado e se mantêm operantes no presen-
te. Agamben nos coloca a refletir sobre a contemporaneidade como um momento
de posicionamento lúcido, assinalando, ainda, que estamos presos à nossa época
e temos uma obrigação ética e crítica de analisá-la. Tal assertiva dialoga com a
crítica aqui construída pela poética de Carolina Maria de Jesus na medida em que
percebemos que no momento do lançamento de suas produções literárias, apesar
da rápida ascensão e derrocada, a autora nunca foi analisada pela crítica literária
especializada como deveria. Coube, portanto, à crítica, 50 anos depois, o papel de
investigar e de problematizar cada aspecto de suas obras e de sua história enquanto
autora negra brasileira na periferia da sociedade e da literatura produzida à época.
Ainda citando Conceição Evaristo como grande representante da lite-
ratura negro-brasileira feminina na contemporaneidade, temos uma observação
interessante que interrelaciona literatura e sociedade a partir da escrita de si:
“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa-
-grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos [...]” (EVARISTO,
2007). Dessa maneira, tomando como base esse fragmento, percebemos que
essas autoras buscam, para além da estética literária, dar visibilidade àquilo que
está sendo produzido às margens do cânone e romper com o processo de silen-
ciamento histórico de mulheres e negros que, contemporaneamente, assumem
seus lugares de fala, tal como discorre Gayatri Spiva (2010)6. Tal ruptura deve
acontecer independente do espaço estético; isto é, seja de dentro da periferia,
seja de uma aldeia, sem subterfúgios e conscientes de suas contribuições para o
empoderamento de outros grupos que ainda permanecem do lado de fora.

O LUGAR DA CRÍTICA SOCIAL E DA DENÚNCIA EM DIÁRIO DE BITITA

Carolina Maria de Jesus constrói em Diário de Bitita (2014 [1986])


uma narrativa realista, condizente com a condição afrodescendente nas pri-
meiras décadas do século XX. Inicia a obra com os questionamentos infantis
sobre o mundo e suas relações simbólicas, questionando os mais velhos so-

6 SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa;
André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. Como comentado acima, não precisa estar
aqui a referência somente no final do texto e o autor e no corpo do texto. Alterar em todo o texto.

286 Saberes decoloniais


bre os ‘porquês’ de todas as opressões, que de forma interseccional acomete
negros e negras. De origem humilde, de uma família vinda da escravidão,
“[...] então há apenas 26 anos abolida no país, analfabeta e pobre [...]” (AL-
VES, 2014, p. 07).
A autora do best-seller Quarto de Despejo: diário de uma favelada
(1960) descreve sua história e a história dos seus, comparando-os a “[...] folhas
espalhadas pelo vento. Eles tinham inveja das árvores, que nasciam, cresciam e
morriam no mesmo lugar [...]” (JESUS, 2014, p 58). A liberdade era um tema
corriqueiro em diversas passagens de sua poética, tal como podemos denotar
no fragmento anterior e analisar no episódio do encarceramento de sua mãe:

[...] Um dia, minha mãe estava lavando roupa. Pretendia


lavá-la depressa para arranjar dinheiro e comprar comida
para nós. Os policiais prenderam-na.
Fiquei nervosa. Mas não podia dizer nada. Se reclamasse,
o soldado me batia com um chicote de borracha.
E a notícia circulou.
- A Cota foi presa.
- Por quê?
Quando o meu irmão soube que mamãe estava presa co-
meçou a chorar. Andávamos ao redor da cadeia choran-
do. À meia-noite resolveram soltá-la. [....]
Eu pensava: “Só as pretas que vão presas”. Quando o se-
nhor Manoel Nogueira soube, ficou penalizado:
- Coitada da Cota. Não faz mal a ninguém. [...] (JESUS,
2014, p. 31).

A liberdade é física, mas também subjetiva, já que Carolina faz de


sua poética um movimento de insubmissão, questionando a “liberdade” que
deveria ter vindo como resultado da abolição da escravatura, ao mesmo tempo
em que denuncia os maus-tratos e a falta de políticas públicas como uma das
formas operantes de aprisionamento, interdição e subalternidade, dialogando
diretamente com a construção de um espaço reservado de intervenção social,
do ponto de vista das políticas do cotidiano, seguindo o pensamento de bell
hooks (1995), colocando em vias práticas a denúncia para além da questão
intelectual, e é isso que se materializa, via de regra, na literatura negro-brasi-
leira combativa, através dos contradiscursos, cujos lugares de enunciação são

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 287


utilizados para amplificar as diversas atrocidades que recaem sobre os corpos
negros em situação de vulnerabilidade.
A partir desses tensionamentos, corroborando com as discussões de
Antônio Candido, em Democracia e Preconceito (1999), de que a literatura
se constrói como resultado da experiência íntima, Carolina inicia o capítulo
Infância denunciando a falta de água e a trajetória que, assim como os nordes-
tinos, os negros faziam para encontrar e carregar água, acrescentando a esse
primeiro entrave social a descrição das casas: “A nossa casinha era recoberta
de sapé. As paredes eram de adobe cobertas com capim. [...] O chão era soa-
lhado, era de terra dura, condensada de tanto pisar”. (JESUS, 2014, p. 13).
A partir do fragmento observamos que, com o advento da Abolição, fruto da
Lei Áurea em 1888, negros e negras ficaram à mercê do governo então vigente,
sem trabalho e sem direitos, buscando entulhos materiais para a construção
de suas casas, como deixa claro Bitita no capítulo Ser pobre, ao descrever com
detalhes a casa do avô:

[...] Era uma choça quatro águas coberta com capim. Se-
melhante às ocas dos índios que eu via nos livros. A casa
do vovô era tão pobre! Ele catou quatro forquilhas e enter-
rou-as no chão. Pôs dois travessões e as tábuas. Era a cama
com um colchão de saco de estopa cheio de palha. Uma
coberta tecida no tear, um pilão, uma roda de fiar o algodão,
uma gamela para lavar os pés e duas panelas de ferro. Não
tinham pratos, comiam na cuia. (JESUS, 2014, p. 29).

O fragmento nos apresenta o abandono social que os marginalizados


vivenciavam àquela época, encontrando no lixo da cidade o início de uma
vida supostamente ‘digna’, dadas as condições em que viviam. O contexto do
período posterior à abolição também explica como se engendrou o processo
de marginalização e, consequentemente, seu caráter de invisibilidade na me-
mória social, tanto individual como coletiva. Tal invisibilidade se dá ao passo
que é naturalizado o lugar do outro na miséria – as minorias étnicas, geral-
mente –, tratando como normal o fosso da separação de classes.
Para justificar essa discussão, a escritora faz os contrapontos: quanto
aos brancos “[...] as refeições eram servidas assim: primeiro uma sopa; após a
sopa, servia-se arroz, feijão, carne, salada. Quando serviam peixes, usavam-se

288 Saberes decoloniais


outros pratos e outros talheres. Por fim, a sobremesa e o café” (2014, p. 36);
quanto aos negros, principalmente as mulheres:

[...] Entravam no trabalho às seis da manhã [...] deixa-


vam o trabalho às onze da noite. [...] A comida que so-
brava, elas podiam levar para as suas casas. E nas suas
casas, os seus filhos, que elas chamavam de negrinhos,
ficavam acordados esperando mamãe chegar com a co-
mida [...] das casas ricas [...] (JESUS, 2014, p. 37).

A condição feminina e as relações de trabalho estabelecidas entre


empregados e patrões só privilegiavam um dos lados, considerando o par de
tensão social descrita pela autora. Hoje, em pleno século XXI, com a consoli-
dação dos direitos trabalhistas, o engajamento de movimentos sociais e sindi-
catos, não se naturalizam mais trabalhos com carga horária das seis da manhã
até às onze da noite, como normal ou aceitável.
O processo denunciativo circunscrito por Carolina em meados da
década de 1960 anunciam seu viés autobiográfico, uma vez que a ferida, o
lamento, o silêncio e a conjugação do eu e do nós são como formas elemen-
tares para se pensar essa escrita de escrevivências, bem como as dificuldades
e os processos de separação entre personagens, narradores(as) e escritoras. A
autoria se utiliza, num processo de validação, do expediente de novas catego-
rias teóricas, como a autobiografia e a autoficção, por exemplo, cujas vozes se
confundem. Ilustrando a utilização dessas categorias na composição do texto
literário de autoria feminina, para Eurídice Figueiredo, em Mulheres ao espe-
lho: autobiografia, ficção e autoficção (2013, p. 24)7, “[...] a escrita autobio-
gráfica tem seu correspondente na pintura através do autorretrato. [...]”. Para
Lejeune (2008), é próprio de toda obra autobiográfica começar pelo relato
da infância, buscando no passado razões que justifiquem ou não o presente.
Ainda seguindo o pensamento desse autor, inferindo acerca das características
da escrita autobiográfica, acrescenta que:

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e


publica. Inscrito, a um só tempo, no texto e no extratex-
to, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define
7 FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2013.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 289


como sendo simultaneamente uma pessoa real social-
mente responsável e produtor do discurso. (LEJEUNE,
2008, p. 23)

É esse o papel assumido por Carolina Maria de Jesus, que demonstra


claramente estar sempre nesse entrelugar, nas zonas fronteiriças entre texto e
extratexto enquanto linha de contato que faz com que o extratextual possa se
transformar em textual, ou seja, em literatura. Seguindo essa acepção a assertiva
de uma coletividade política composta por agentes questionadores, cabe desta-
car o lugar de um corpo político, ativo e em zona de fronteira, nesta discussão,
a partir do coletivo de mulheres negras. Maldonado-Torres (2019, p. 47)8 en-
tende esse corpo como algo aberto, “[...] como uma zona de contato, como
uma ponte e zona de fronteira que, segundo Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa,
aproximam um amplo número de mulheres negras que avançam em várias for-
mas do que poderiam ser considerados feminismos decoloniais. [...].”
Nesse jogo de tensões e insubmissão, entendendo seu projeto literá-
rio enquanto resultado de uma posição e seu pensamento resultante de uma
pertença ao feminismo negro, Carolina enquanto produtora de discurso é
tão avançada para sua época que acaba atuando em duas perspectivas: cativa
e impressiona a um primeiro momento, por isso sua ascensão meteórica ao
mundo das letras, mas por outro lado se apaga tão logo a curiosidade sobre
sua vida “exótica de favelada” é saciada. Esses episódios considerados a priori
tão extravagantes para o público leitor de Carolina partiam, sobretudo, de sua
experiência enquanto negra em um país com abolição recente e tão racista
quanto o Brasil.
Os negros não podiam transitar livremente pelas ruas e quando de
encontro com a polícia deveriam explicar o ‘por que’ de estarem nas ruas e
não no trabalho. Considerando esta especificidade, a autora reflete sobre esse
trânsito vigiado no capítulo Os Negros:

Quando os pretos falavam: - Nós agora estamos em liber-


dade, - Eu pensava: “Mas que liberdade é essa se eles têm
que correr das autoridades como se fossem culpados de
crimes? Então o mundo já foi pior para os negros? Então
8 BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. Decolonialida-
de e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

290 Saberes decoloniais


o mundo é negro para o negro, e branco para o branco!”
(JESUS, 2014, p. 59).

A memória traumática narrada, segundo Germana Henriques de


Sousa (2012, p. 15), era para ela uma forma de encontrar no passado uma res-
posta para a razão de seu sucesso, em virtude, posteriormente, do lançamento
e aceitação de Quarto de despejo, que representou uma ascensão das margens
da sociedade, lugar incômodo em que a autora viveu e, contemporaneamente,
tem se tornado sinônimo quando se pensa na literatura produzida nos desvios
da cidade. Carolina, além de ter seu destino traçado pela e através da escrita,
foi objeto de inúmeras injúrias raciais, depreciações fenotípicas, entre outras
agressões, como podemos analisar no capítulo A Escola, ao descrever a reação
de seus colegas: “[...] - Que negrinha feia!/ Ninguém quer ser feio./ - Que
olhos grandes, parece sapo. [...]” (JESUS, 2014, p. 125).
No teor das discussões políticas e entendendo sua poética como uma
crítica, Carolina Maria de Jesus registra algumas situações como, por exemplo,
a oposição ao presidente Artur Bernardes que prometeu melhorias para o país,
mas que foi impedido de realizá-las. Acentua, também, a persistência do povo
na busca de figuras públicas e governos que chegassem a governar tão bem
como fez Ruy Barbosa, que na sua perspectiva era um governante que pensava
o povo e projetada na educação o futuro para o país. Na mesma direção de
Ruy Barbosa, para Carolina Artur Bernardes era exemplo a ser seguido: “O
povo dizia que o senhor Artur Bernardes, antes de nascer, havia feito um curso
diplomático no ventre de sua mãe. Ele venceu seus opositores com uma arma
poderosíssima: a educação. [...]”. (JESUS, 2014, p. 42)
Dentre episódios históricos e diversas denúncias, a escritora em vários
capítulos discorre sobre a educação e as experiências que teve nos poucos anos
que frequentou a escola. Denunciou, ainda, que “No ano de 1925, as escolas
admitiam alunas negras. Mas quando as alunas negras voltavam das escolas,
estavam chorando. Dizendo que não queriam voltar à escola porque os brancos
falavam que os negros eram fedidos”. (JESUS, 2014, p. 42). Compreendendo,
sobretudo, o caráter social e inclusivo que a escola deveria ter como um espaço
de equidade, nas descrições de Carolina a vemos sob uma outra finalidade, ou
seja, como um espaço de repressão étnica, de perpetuação de estereótipos e alta-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 291


mente racista, reforçando a interdição que negros e negras sofriam em todos os
espaços, num processo de inferiorização de suas identidades.
Ademais, menciona que as professoras não respondiam quando os
pais das crianças negras reclamavam, mas falavam entre si: “Os abolicionistas,
veja o que fizeram! Essa gente pensa que pode falar de igual para igual. Eu,
na época da abolição, tinha mandado toda essa gente repugnante de volta pra
África” (JESUS, 2014, p. 43). Nessa assertiva, entendo o lugar de enunciação
de Carolina como um lugar de fala e, no tocante às vozes que compõem as
narrativas e que movimentam os leitores através de vários deslocamentos, essas
possibilitam suas (re)construções, provando seus leitores em inúmeras dire-
ções de significação. Evaristo, em Literatura negra: uma voz quilombola na lite-
ratura brasileira (2010, p. 139)9, acrescenta que essa literatura é resultado de
um ponto de vista adotado, ou seja, um posicionamento contra-hegemônico:

[...] O Movimento de Negritude, no Brasil, tardiamen-


te chegado, vem misturado aos discursos de Lumumba,
Black Panter, Luther King, Malcon X, Angela Davis e
das Guerras de Independência das colônias portuguesas.
Esse discurso é orientado por uma postura ideológica
que levará a uma produção literária marcada por uma
fala enfática, denunciadora da condição do negro no
Brasil, mas igualmente valorativa, afirmativa do mundo
e das coisas negras, fugindo do discurso produzido nas
décadas anteriores carregado de lamentos, mágoa e im-
potência. (2010, p. 139).

A experiência vivida pelos corpos negros transposta para as narrativas ne-


gro-brasileiras, através de provocações que vão desde a autoidentificação à crítica
aos contextos sociais, possibilita que através da representação o leitor comece a
se perceber e a fortalecer sua identidade étnica, racial e negro-feminina, no caso
de leitoras. Nesse interim, no tocante às discussões sobre esse corpo abjeto pelos
meios que a colonialidade se utiliza para permanecer operante, Judith Butler,
em Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”, pontua que “[...] há

9 EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. In: PE-
REIRA, Edimilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas
sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.

292 Saberes decoloniais


corpos que importam mais que outros (BUTLER, 2002, p. 49)10. A partir da
afirmativa de que existem corpos que importam e valem mais do que outros,
a literatura atua no sentido de desconstruir esses parâmetros, reestruturando as
noções que foram secularmente pensadas e colocadas em prática a partir de uma
crítica da totalidade, que, historicamente, implicou em violência, assassinatos,
cujas justificativas residiam/em na supremacia de uns sobre os outros.
Conjugando vida e obra, a pesquisadora Elzira Divina Perpétua (2014,
p. 23) constrói um panorama do início da vida da autora:

Carolina de Jesus – mulher, negra, dois anos incompletos


de escola, moradora em favela, mão solteira de três filhos
de diferentes relacionamentos – surgiu no clamor das rei-
vindicações sociais das minorias, num momento especial
da vida brasileira, em que às lutas populares pela mu-
dança do modelo econômico aliava-se a busca dos inte-
lectuais pela valorização das raízes nacionais. O texto de
Carolina revela um ambiente urbano pouco conhecido
então – a favela. Escrito por quem testemunha a miséria
dia após dia e é capaz de torná-la objeto de uma narrativa
sob um ângulo novo, o diário apresenta o modo de vida
da população excluída socialmente.

É essa perspectiva de relatar aquilo que anteriormente foi tão parca-


mente discutido que a autora traz, pondo à nu as relações sociais/raciais bra-
sileiras por meio dos escritos de seu diário. Nesse bojo, segundo a análise de
Sousa (2012, p. 31), Carolina incorporou à sua obra elementos de um sistema
que não é o “oficial”, escrevendo para ser ouvida, também, por alguém que
não está na sua esfera social, mas na classe dominante. Visualizamos o caráter
emancipatório de sua narrativa, objetivando denunciar a quem à priori opri-
me, direta ou indiretamente, partindo de um sistema social que, via de regra,
é traçado sob uma única matriz cultural: ocidentocêntrica, cisheteropatriarcal
e, por conseguinte, branca.
Portanto, Carolina Maria de Jesus dá visibilidade, nos escritos produ-
zidos nas suas primeiras décadas de vida, a uma temática - a escrita periférica

10 BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo” In: LOURO, Guacira
Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 293


como quarto de despejo da sociedade, olhando, como bem descreve Regine
Dalcastagnè “além do alpendre”. A autora é precursora na escrita autobiográ-
fica, utilizando-se da literatura para denunciar a situação nacional, sobretudo,
os silenciamentos e as opressões que negros e negras vivenciaram no Brasil do
Século XX e vivenciam ainda hoje nas primeiras décadas do século XXI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Carolina Maria de Jesus, partindo de um projeto literário decolonial


singular no âmbito da Literatura Brasileira, constrói uma poética a partir de
sua experiência, desde criança até seus últimos dias de vida, de Sacramento, no
interior de Minas Gerais, até a tão sonhada e conturbada São Paulo, na Favela
de Canindé, local que inspirou Quarto de Despejo: diário de uma favelada.
É partindo da escrita de si que Carolina Maria de Jesus narra, em
Diário de Bitita, publicado inicialmente em 1986, o Brasil do início do sé-
culo XX, mostrando-nos a realidade e focalizando suas narrativas nos negros
e negras, bem como nas discriminações de gênero e no recorte de classe, em
que os pobres demarcavam seus lugares nas margens e na impossibilidade de
uma ascensão social. A escrita caroliniana em Diário de Bitita é sensível e crí-
tica, inclusive intentando uma resolução pronta e simplificada para todos os
problemas, sempre se questionando sobre o porquê de as coisas serem como
são. Narra, ainda, o sofrimento pós-abolição, bem como as inúmeras formas
de racismo, preconceito, discriminação e todos os incômodos que as minorias
causavam nos grupos dominantes.
Portanto, é na tentativa de reescrever a história oficial do Brasil, bem
como de desmarginalizar a presença negra, herança secular ainda muito pre-
sente neste século e sobretudo no século anterior, que a escritora Carolina Ma-
ria de Jesus escreveu, desde a experiência escolar à triste realidade das favelas
que guardavam os migrantes dos interiores do país, escritas que culminaram
sempre na sensação de estar do lado de fora, ocupando um lugar marginal.
Nessa direção, a escritora ocupa um papel de resistência cultural através da es-
crita, escrevendo e se inscrevendo como forma de manifesto às diversas mortes
simbólicas e físicas a que foram submetidas durante séculos, como materia-

294 Saberes decoloniais


lização da Necropolítica (MBEMBE, 2014)11. Ao reconstituir, ainda que de
maneira breve, os contextos sócio-históricos em que Carolina viveu e tornou
literários, intentamos ampliar a compreensão não apenas da sua produção
literária, mas também a compreensão de seus escritos enquanto expressão das
vozes marginalizadas, insurgentes e decoloniais.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, GIORGIO. “O que é o Contemporâneo?” In: O que é o


Contemporâneo? e outros ensaios. [tradutor Vinícius Nicastro Ho-
nesko]. — Chapecó, SC: Argos, 2009.
ALVES, Uelinton Farias. “Prefácio.” In. JESUS, Carolina de. Diário de Bitita.
São Paulo: SESI-SP editora, 2014.
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura Brasileira Contemporânea: um território
contestado. São Paulo: Editora Horizonte, 2012.
DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL; Virgínia Maria Vasconcelos. Espaços e Gê-
nero na Literatura Brasileira Contemporânea. Porto Alegre (RS): Zouk,
2015.
EVARISTO, Conceição. “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares
de nascimento de minha escrita.” In: ALEXANDRE, Marcos Antônio
(Org.) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas in-
terfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007.
EVARISTO. “Da representação à auto apresentação da Mulher Negra na Li-
teratura Brasileira.” In: Revista Palmares – Cultura Afro-brasileira. Bra-
sília: Fundação Palmares/Minc, Ano 1, nº. 1, agosto, 2005.
FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autofic-
ção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
JESUS, Carolina de. Diário de Bitita. São Paulo: SESI-SP editora, 2014.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Ho-
rizonte: Editora UFMG, 2008.
PERPÉTUA, Elzira Divina. A vida escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo
Horizonte: Nandyala, 2014.

11 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São
Paulo: n-1 edições, 2018a.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 295


SOUSA, Germana Henriques Pereira de. Carolina Maria de Jesus: o estranho
diário da escritora vira lata. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.
ZOLIN, Lúcia Osana. “Crítica Feminista.” In BONNICI, Thomas; ZOLIN,
Lúcia Osana. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências con-
temporâneas. 2. ed. Maringá, 2005.

296 Saberes decoloniais


DECOLONIALIDADES, RESISTÊNCIAS E
LITERATURAS NO BRASIL
Mary Garcia Castro1
Raffaella Fernandez2

INTRODUÇÃO

Anima como contracorrente às tendências conservadoras a perspec-


tiva da decolonialidade, ou seja, um outro contar sobre a colonização das
Américas, ressaltando sua importância na inauguração de um sistema mundo,
contra uma modernidade/colonialidade que consolidaria privilégios eurocên-
tricos e norte-americanos, quer dizer, colonizadores e imperialistas, o que se
reproduz hoje por poderes diversos- culturais, políticos e econômicos, por
exemplo. Essa perspectiva enfatiza também que por via de um dos principais
fatores estruturantes da colonialidade/modernidade, raça/gênero, afirma-se
explorações e violências, mas nasce daí formas de redes de resistências que
afirmam outras formas de ser, saber e poder.
Apregoado ao caráter denunciativo e criativo está o slam ou os saraus
1 Pesquisadora Visitante emérita Faperj/UERJ/NUDERG e consultora da FLACSO-Brasil. PhD
em Sociologia, University of Florida – castromg@uol.com.br
2 Docente no Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História/ ILAACH/UNILA. .- raf-
faellafernandez@yahoo.com.br
organizados por mulheres no desenvolvimento de uma inteligência corporal
mobilizadora de práticas que experimentam e reconhecem terrenos estéticos
e afetivos dos assim denominados “feminismos Insurgentes” por Bidaseca
2019) e acionam um “giro decolonial” a partir da arte da palavra falada. No
âmbito latino-americano o slam produzido por mulheres revela-se com um
patrimônio intangível da humanidade construindo uma teia poética de resis-
tências nas ruas e das redes sociais ligada por um mesmo objetivo: dissemi-
nação de lugares de fala, corpo e escrita dilacerados física e psicologicamente.
São corpos da diferença em resistência que lutam contra o patriarcalismo, o
elitismo, os racismos, os abusos sobre o corpo feminino ou transexual, os di-
reitos sociais e emancipação humana como um todo.
Contudo há o risco da perspectiva da decolonialidade assumir ares de
modismo acadêmico, o que pode comprometer seu potencial emancipatório ou
melhor, seguindo Dussel (Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel, 2007),
“libertário”, em especial sobre formas de pensar/saber e no indagar sobre como
enfrentar poderes, como os modelados no capitalismo patriarcal e racista.
Muito se fala, porém pouco se aprofunda e se alerta sobre as dimen-
sões que necessitam de mais estudos, tais como:
1. As bases geo-culturais e epistêmicas do que se vem escrevendo sobre
perspectiva decolonial, ou seja: como nos textos de autores básicos
dessa perspectiva mais se decola a partir da colonização da América
hispana e da resistência comunitária de povos originais da região
andina à tal colonização, e pouco ainda se reflete sobre a herança da
colonização portuguesa, o apelo do “racismo cordial”, o afeto pater-
nalista e erótico que freia rebeldias, romanceando e domesticando
os subalternizados. Quer dizer, as especificidades das relações socio
raciais entre os brancos, os povos escravizados e os povos originários
do Brasil na complexa combinação entre raça, gênero, sexualidade
e classe;
2. O fato do rico conceito de raça, que embasa o conceito de “giro
decolonial”, cunhado por Maldonato-Torres, em 2006, inspirado
nos trabalhos seminais de Aníbal Quijano (2000) pedir corpos e
referências étnicas. Evocar o embasamento em pesquisas histó-
ricas, antropológicas e representações sobre o pensar e estar do

298 Saberes decoloniais


povo, como uma literatura com tal norte, a fim de como bem
coloca Michael Cahen e Ruy Braga (2018), a perspectiva deco-
lonial não resvale no que muitas vezes ocorre ao pensamento
pós-colonial, ou seja, privilegiar amarras ao viés culturalista com
ênfase em debates sobre epistemologia, sem analises históricas
contemporâneas de casos nacionais, e, assim separando a questão
da decolonialidade do saber daquela da colonização do poder e
sua realização no capitalismo contemporâneo;
3. A dúvida sobre a existência de um campo para debates sobre
como discutir numa perspectiva decolonial a relação intrínseca
entre raça e modernidade, sem necessariamente cair em outro
extremo, qual seja considerar apenas como possíveis sujeitos de
rebelião, os povos originários, os negros em suas diásporas ou a
mulher de determinada classe, etnicidade/raça ou sexualidade, ex-
cluindo outros subalternizados. Então, como incluí-los como su-
jeitos considerando situações, tempos históricos e uma totalidade,
escapando de guetos identitários nas análises que dizem respeito
às potencialidades dos próprios sujeitos que se quer visibilizar?
4. O cuidado do acervo de trabalhos em ciências sociais na América
Latina sobre temas que em alguns autores do Grupo Modernida-
de/Colonização pioneiros no debate sobre colonialidade e deco-
lonialidade a partir aproximadamente da década de 70. Muitos
temas/debates aparecem nesse Grupo como originais ou novos,
como por exemplo, a crítica aos projetos que enfatizam a equa-
ção do desenvolvimento à produtividade quer à direita, quer à
esquerda3;
5. Finalmente, no debate sobre decolonialidade do saber se postula
formas não-eurocêntricas de saber/poder como as que modelam
perspectivas sobre Bem Viver e o eco feminismo, assim como
se deu a tentativa de inclusão de saberes comunais e a perspectiva
do Bem Viver nas constituições do Equador e da Bolívia. Este é
um campo que também pede mais análises. Para alguns analistas

3 Ver entre outros, LEIT, José Correa, UEMURA, Janaina e SIQUEIRA, Filomena “O Eclipse do
Progressismo. A Esquerda Latino-americana em Debate” São Paulo, Elefante, 2018

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 299


não vingaram as tentativas de institucionalização daquela perspec-
tiva, embora se a tenha incluído nas constituições da Bolívia e do
Equador, por razões de Estado, como alinhamento aos modelos
de desenvolvimento/produtividade/inserção no mercado globali-
zado. Autores como Solón em “Alternativas Sistêmicas” e Alberto
Acosta em “O Bem Viver” insertam uma oportunidade para ima-
ginar outros mundos”4. Eles ressaltam que a nível local comunal
as resistências e outras formas alternativas estão sendo tentadas
nos países acima citados. Entretando, fica a questão: Haveria li-
mites de níveis de governanças para a decolonialidade do poder,
sendo essa mais efetiva em escala local no plano de resistências?
Esses são alguns dos muitos temas que desafiam e estimulam um maior
investimento no debate sobre decolonialidade, e que não são matéria deste
texto. Há que ter decolonialidade como um plano de estudos que pede inves-
timentos interdisciplinares a longo prazo, o que se deve combinar com ações
imediatas junto a movimentos sociais comunitários e de povos originários, de
resistências varias, inclusive epistêmicas e artísticas. Nesse sentido, encontra-se
como matriz semeadora em seus trabalhos o reconhecimento e a valorização
da diversidade cultural e do saber latino-americana, promovendo processo de
construção de identidades socioculturais em movimento, trânsitos de livros e
gêneros sexuais e textuais, estimulação da produção de conhecimento sobre os
problemas socioambientais, a incentivar seus múltiplos impactos nos grupos
sociais silenciados, discriminados ou marginalizados com foco na “descolo-
niazação do olhar” (Oyěwùmí) por meio apropriação dos espaços públicos,
onde o político é entendido como algo pessoal e como experiência vivida
(Kilomba). Os eventos organizados pelas slamers intentam erigir sistemas de
práticas de defesa e cura da “ferida aberta” (Anzaldúa), a fim de reconquistar
os espaços, corpos e mentes colonizados, partindo de suas próprias potências
de discursos como base na legitimação se deus aportes para falarem por si mes-
mas e por suas comunidades, mas acima de tudo, instituir uma outra forma
do fazer literário enquanto corpos da dissidência e discursos da diferença.

4 ACOSTA, Alberto “O Bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos”. São Paulo,
Elefante, 2016; Solón, Pablo “Alternativas Sistêmicas. Em Viver, Decrescimento, Comum, Eco
feminismo, Direitos da Mãe Terra e desgoblalizaço”. São Paulo, Elefante, 2019.

300 Saberes decoloniais


De fato, se discute na perspectiva decolonial a intrínseca relação entre
raça e modernidade e realiza-se críticas aos projetos que enfatizam a equa-
ção desenvolvimento e produtividade. A perspectiva sobre decolonialidade
do saber viria colaborando para a visibilidade, inclusive editorial, de mulheres
escritoras não-canônicas, muitas com escritos que modelam utopias por de-
colonialidade do ser, potencialidade da perspectiva decolonial como destaca
Suzana de Castro (2019): as vozes esquecidas das mulheres que negaram o man-
damento patriarcal de se retirar da vida pública5.
Em que pese as fortes marcas da sociologia, como a crítica ao conceito
de desenvolvimento, inspirada em Quijano, via o paradigma da “coloniali-
dade do poder” e seu debate sobre modernidade, defendendo a centralidade
do construto raça para a constituição das Américas e da Europa, bem como a
participação de autores de outras ciências sociais no núcleo duro ou original,
o Modernidade/Colonialidade. Já no Brasil a perspectiva sobre decolonia-
lidade, em especial no campo feminista, vem angariando mais reflexões no
plano de estudos culturais, das literaturas e da filosofia. Sai aos poucos das
comunidades acadêmicas, encantando saberes que se relacionam a movimen-
tos sociais por direitos de identidades varias como no caso do fenômeno dos
saraus e slams.
Sem dúvida, por exemplo, temos no slam produzido por mulheres
latino-americanas uma comunhão decolonial em movimento intenso e ino-
vador de abertura de novos horizontes e quebra de paradigmas fetichizados
más allá das formas das organizações políticas contra o racismo, machismo e
heteronormatividade estruturais, buscando através dos afetos alcançados pela
prática do slam a revisão do presente na afirmação de um passado negado,
porém hoje, dito em voz alta nas ruas como ferramenta de guerrilha poética
como no slam “era uma vez um Brasil conservador” de Bel Puã:

branco dono e preto propriedade


africano era sem alma
e o índio era selvagem
segundo o europeu
nosso grande apogeu de civilização?

5 Castro, Suzana “O feminismo decolonial. As vozes esquecidas das mulheres que negaram o man-
damento patriarcal de se retirar da vida pública” CULT, n 248, agosto 2019, p 30-33.

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 301


colonizaram até nossa mente, boy
pra tudo a Europa virou padrão:
beleza, ciência, progresso
e o Brasil há 500 anos sem sucesso
[...]

denuncio homens abusivos


agressores
desde mãe África,
ancestrais cheias de cores
em senzalas estupradas
por brancos senhores
índias aculturadas
em nome de cristo?
tantas irmãs assassinadas
pelo machismo
mão direita do capitalismo
fez da américa desgostosa
à beira do abismo

eu sou isto: apenas uma moça latino-americana


me agarro às lutas do passado
pra ter força no presente
não defendo vidraça de banco
defendo gente
ao que é injusto sou desobediente
me inspiro em Dandara, Zeferina, Aqualtune, Nise,
Carolina
mas principalmente nas guerreiras
de atualmente
são as terceirizadas, trabalhadoras rurais, professoras,
empregadas
é tempo de primavera
Conceição Evaristo, vovó Vilma, vovó Vera
Gabriellas, Marias, Hildas, Amandas, Eduardas,
Sheylas, Renatas,
Sabrinas

Brasil de golpes, reformas trabalhistas, ditadores milita-


res,
fascistas!
apoiam massacres e chacinas
mulher encarcerada no lar

302 Saberes decoloniais


os pobre cheirando cola
e os rico, cocaína
era uma vez um Brasil conservador
que revolucionou
com o poder das minas. (PUÃ, apud DUARTE, 2019,
p. 30, 31 e p.33)

Essas formas de apropriação da palavra salientam o quão singular é


a questão da identidade no plural quando se lê/escuta um texto da periferia
inserida em movimentos globais para além da guetização desses espaços, mas
compreendida enquanto encontros de quilombos diaspóricos nos enlaces das
discursividades de mulheres negras. As slamers situam, alimentam e encorajam
quem se deixa afetar por esses espaços das margens ocupados por ela e entre elas
como vemos no texto de Puã. Seus textos performances reivindicam um espaço
e corpo que não é objetificado, mas são reapresentados através de subjetividade
que se quer própria e autêntica, ainda que seja atravessada por diversas impli-
cações de caráter mais reacionário quando realizado por slamers homens hete-
ronormatizados. De todo modo, o contato com o interlocutor é um verdadeiro
exercício de posse recíproca, um pertence ao outro: “o leitor lê o texto-corpo,
mas o texto-corpo também lê o leitor, tanto no momento do sarau quanto nas
formas de produzir os textos e disseminar todo o movimento nas redes socais.
Tal espraiamento favorece um dos eixos da perspectiva decolonial que
é a decolonização do saber e da criação, no entanto muitas vezes há um uso
acrítico e descontextualizado, inclusive, em termos cognitivos. De modo que,
o paradigma da decolonialidade pode vir a ser, um modismo, esvaziando po-
tencialidades emancipatórias conforme dito acima. Faz-se necessário, então,
mais pesquisas sobre o histórico do conceito, a observação dos diferentes logos
envolvidos na transdisciplinar dessa virada analítica e em parceria direta com
os sujeitos de estudo.
De fato, com o estudo disciplinar, pode se perder uma das diretrizes
epistêmicas básicas de autores axiais do Grupo Modernidade/Colonialidade,
qual seja ter a decolonialidade como um processo de construção de outro
saber, um saber que questiona traduções, um saber em se fazendo. Portanto,
pede incursões interdisciplinares e críticas a saberes monolíticos avessos a sa-
beres em uso. Note-se que é longa a trajetória de solidificação de um grupo

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 303


e de um ideário do que ficou conhecido como projeto latino-americano mo-
dernidade/colonialidade. Vale consultar os registros das publicações e debates
desse grupo, para melhor se perceber o quão vasta é a historiografia da pers-
pectiva decolonial6.
Em artigo de Ballestrini (2013) se tem um quadro com o perfil dos
então treze integrantes do grupo Colonialidade/Modernidade. Tem-se que a
maioria quase absoluta eram de países de língua hispana da América Latina e
desses quatro eram sociólogos; três de linguística ou semiótica; dois de antro-
pologia; um de direito e quatro de filosofia. Já na coletânea organizada por
Heloisa Buarque de Hollanda, sobre “Pensamento Feminista hoje, perspecti-
vas decoloniais”, publicada em 2020, participam vinte e duas autoras. Tem-se
também um recorte multidisciplinar contudo mais diversificado, com mais
alta representação de autoras de ciências sociais (sociologia-6; antropologia-4
e ciência política-2), além de 3 de filosofia, 2 de letras e estudos culturais, 1
de psicologia;1 de direito e 3 de artes visuais. Também na coletânea, uma alta
participação das que combinam atividades na academia com ativismo em mo-
vimentos sociais. Nessa coletânea, há um apelo à presença de artistas e ativistas
como construtores básicos desse novo saber-fazendo. Ao contrário do Grupo
Modernidade/Colonialidade a representação das brasileiras seria maior, antes
doze, agora vinte e duas, bem como a inclusão de artistas7. Tais estatísticas
representam a potencialidade de no Brasil se gestar um saber decolonial que
de fato integre conhecimentos acadêmicos, arte, literatura e ativismos.
São tempos de busca, de angústias, sobretudo, com as avalanches con-
servadoras e desencantos em relação ao pensamento crítico que nos assolam.
Então, compreende-se a pressa para se agarrar ao novo, muitas vezes simplifi-
cando o complexo. No entanto, são tempos de investir em solidificar o campo
de estudos sobre perspectivas decoloniais, o que pede um investimento e uma
combinação crítica com os saberes e poderes que as linguagens literárias pare-
cem alcançar com força hoje, através da visibilização das literaturas produzidas
nas periferias ou por segmentos outros colocados em lugares de subalterniza-
ção (literatura indígena e literatura negro-brasileira).

6 Vide “El giro decolonial: reflexiones para una diversidade epistémica más allá del capitalismo
global” organizado por Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel (2007).
7 Conf. Buarque de Hollanda, 2020.

304 Saberes decoloniais


É necessário, se apropriar dos debates e propósitos fundantes deste
campo, até que seja possível traçar outros caminhos, o que pede mais campo,
analises histórica, antropológicas, exploração do acervo literário e artístico dis-
ponível e em especial acompanhamento de ativismos e criação dessas redes.
No plano de ativismos e modelação de saberes além da academia, vem cres-
cendo no Brasil experiências várias com acento crítico decolonial na literatura
dos grupos subalternizados em seus projetos acionados em comunidades, sem
a tutelagem do Estado.
Não iremos nos referir aos debates dos pós-coloniais e da pós-colonia-
lidade e aqueles relacionados aos estudos da subalternidade, que informaram
os autores que em torno das ideias originais de Aníbal Quijano foram mo-
delando o Grupo Modernidade/Colonialidade em mais de dez seminários,
encontros e obras individuais até finais de 20068, porém vale lembrar que:

A crítica lançada pelo Grupo Modernidade/Colonialida-


de (M/C) ao pós-colonialismo provém do fato de que
os últimos realmente não se desvincularam das amarras
europeias ao darem mais espaço para o desconstrutivis-
mo e pós-estruturalismo contidos nos aportes teóricos de
Foucault, Derrida e Lacan do que terem como suporte
seus próprios intelectuais oriundos das hibridas culturas
do eixo Sul. (OLIVEIRA, 2016, p. 4)

Contudo, deve-se observar que os autores do projeto latino-america-


no de Modernidade/Colonialidade não poderiam deixar de lado a produção
ocidental de conhecimentos, mas ao contrário, estudá-la para uma crítica que
passasse por análises de ambiências locais, de forma crítica. Segundo Oliveira:

Cabe então o que Mignolo (2008) coloca como pensa-


mento de fronteira: campos de conhecimento que são
complementares e não antagônicos, que se aproximam e
que irão ressignificar o universal moderno pelo pluriver-
salismo. (Oliveira, 2016, p. 4)

Para o semiólogo argentino Mignolo (2015) a crítica à modernidade


nos chega por narrativas europeias, solicitando assim uma genealogia deco-

8 Conf. Ballestrin (2013) e Cahen e Braga (2018).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 305


lonial que seria pluriversal como o ser latino-americano, com múltiplas
identidades , sendo que algumas teriam sido silenciadas pelo modo de pensar
imperialista. Ainda para Oliveira: Como colocado por Mignolo (2008), a ação
da decolonialidade encontra-se na inserção das identidades subalternas na polí-
tica – ao invés de política de identidade – e, isso se dá por meio de desobediência
epistêmica. (2016, p. 4)
O giro decolonial pode ser entendido, assim, como nova forma de
conhecer para traduzir, criticar e transformar a sociedade. Ou seja, uma de-
sobediência epistêmica que pede conhecer marcos teóricos que chegam dos
ditos países acêntricos, para então, através da crítica e da ação superá-los, ou
melhor, desobedecê-los na expectativa de mostrar que não existe um campo epistê-
mico melhor do que o outro e sim teorias mais maleáveis e adequadas para cada
conjuntura histórica e social (Oliveira, 2016, p. 50) e acrescentamos, teorias
que de forma latente ou manifesta têm interesses próprios. É aprender a desa-
prender, a fim de voltar a aprender (WASH apud MIGNOLO, 2008, p.323).
Mignolo recorrer ao conceito de raízes andinas dos povos originais, qual seja
à interculturalidade – segundo o qual, o conhecimento não ocidental intercepta
o ocidental_constrói-se assim epistemologias pluri-versais. A leitura da “póetica
de resíduos” de Carolina Maria de Jesus (19? - 1977) assim como as “minas
do slam” e os escritores em geral das periferias, por exemplo, nos permitem
pensarmos em desobediências epistêmica nas narrativas. Suas estéticas, espe-
cialmente suas linguagens e os temas, sinalizam para o movimento e o esforço
para desvincular-se da estética colonial e estabelecer uma arte decolonial. A
postura dessas narrativas pensa outras bases epistêmicas, questionando os dis-
cursos coloniais e colocando em evidência outras possibilidades de discursos,
a razão subalternizada.
Para Enzo Bello (2015), no âmbito da política tal dinâmica ou giro
decolonial teria sido posto em ação na última Constituição da Bolívia assim
como na do Equador:

Para muitos críticos, esses países adotaram um marxismo


indígena respaldando-se no conceito de emancipação da
Escola de Frankfurt. Entretanto, Souza (2012) esclarece
a diferença entre esse conceito e o de libertação utilizado
pelos intelectuais da vertente Modernidade/Coloniali-

306 Saberes decoloniais


dade. A emancipação de acordo com o referido autor e
também para Dussel (2011), nasce à priori, com o Ilu-
minismo e serve como alicerce para a Revolução Ame-
ricana e também para a Francesa em 1789; serve então
para emancipar e dar a ascensão necessária para a bur-
guesia. Posteriormente, na Revolução Proletária ocorrida
na Rússia em 1917 é que a ideia de emancipação come-
ça a ser utilizada pelos marxistas tornando-se o alvo de
Marcuse na primeira geração da Escola de Frankfurt. Por
conta disso, Dussel (2011) prefere utilizar para o contex-
to da América Latina o termo libertação já que o obje-
tivo é se desamarrar dos domínios europeus, sejam esses
vindos das ideologias de esquerda ou da direita. Mignolo
(2008) coloca que assim como o termo descolonização, o
de libertação também faz o giro geopolítico do discurso
pois, ao se utilizar o conceito de emancipação cai-se nas
teias da modernidade europeia. (OLIVEIRA, 2016, p. 6)

Havendo a crítica aos marxistas, que teriam marginalizado a conjun-


tura histórica dos grupos não europeus, das etnias não-ocidentais e assim te-
riam também recorrido a mecanismo de colonização. Esse é um ponto po-
lêmico, qual seja a leitura do marxismo por autores do Grupo Modernidade/
Colonialidade.
Segundo Michel Cahen (2018) tal critica seria mais aplicável ao mar-
xismo vulgar, economicista e determinista. Ele lembra que Quijano se orien-
tou pelo célebre indigenista marxista, o peruano Carlos Mariategui – nascido
em 1894- cujo projeto era um socialismo indo-americano e combinava re-
flexões sobre a literatura romântica à época e um marxismo afinado com o
pensamento de Gramsci e Benjamin. Segundo Michel Lowy em estudo sobre
Mariategui e suas obras: Durante sua estada na Europa, Mariategui assimilou
simultaneamente o marxismo e alguns aspectos do romanticismo contemporâneo:
Nietsche, Bergson, Miguel de Unamuno, Sorel e o surrealismo (2011, p10).
Uma questão também polêmica no campo decolonial, é a escala das
transformações possíveis quanto à decolonialidade do poder. Nota-se que o ter-
mo decolonial vem sendo preferível por autores dessa perspectiva ao de descolo-
nialidade porque colonialidade também é diferente de colonialismo, conforme
veremos adiante através de Santiago Castro-Gomez e Ramon Grosfoquel (2007).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 307


Até aqui importa salientar que os eixos críticos não seriam apenas he-
ranças do colonialismo ou experiências específicas contra as mesmas. Colonia-
lidade significa também transformações de métodos coloniais de dominação,
atualização de padrão como as práticas de imperialismo cultural, econômico e
político, referindo-se, portanto, a decolonialidade enquanto ações e pensares
contra atualizações e permanência de padrões de relações de dominação.
Já nos anos de 1930 Mariategui, em que pese sua ênfase nas práticas
comunitárias dos incas, considerava que era necessário ir além da escala co-
munitária, de modo que, os teóricos do debate modernidade/colonialidade
apelaram para a crítica do sistema mundo, que a nível global influencia e
subalterniza comunidades, regiões, nações. Mecanismo que solicita um inves-
timento em redes de comuns a vários níveis local/comunal, nacional, regional
e mundial.
Para uma avaliação sobre a capacidade da perspectiva decolonial ir
mais além de experiências comunitárias vale acompanhar a trajetória quanto à
institucionalização da constituição do Equador e da Bolívia e o mais recentes
acontecimentos na Bolívia, com a volta de grupos comunitários organizados
a nível de Estado. A participação política de comunidades indígenas tanto
no Equador quanto na Bolívia foi ampla e as leis escritas de baixo para cima,
quando a população participou de forma ativa através dos referendos e tam-
bém pelos movimentos sociais informais. Houve intensa participação popu-
lar e esforço por combinar leis canônicas do direito ocidental com normas e
tradições ancestrais, embasadas em experiências comunitárias. Pouco restou
dessa experiência no Equador a nível de Estado, o que ainda acompanhamos
no caso Bolívia. Essa foi uma das maneiras em que o decolonial saiu do seu
campo teórico e adentrou ações mais além do particular, a partir de uma obra
ou de uma comunidade.
Do Prólogo do livro dos autores de “El giro decolonial: reflexiones
para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global, de 2007, se-
lecionamos algumas reflexões pertinentes para esta peça em que buscamos
enfatizar a potência dos conceito de colonialidade do poder e giro decolonial
para o processo de construção de saberes decoloniais.
Para Castro Gomez e Ramon Grosfoguel (op.cit.) o conceito de ‘de-
colonialidade’, se confunde com outro, o de giro decolonial, este originalmen-

308 Saberes decoloniais


te formulado pelo filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres (2006).
Conceito, que para aqueles autores “complementa a categoria ‘descoloniza-
ción’, essa utilizada pelas ciências sociais desde os finais do século XX’:

Asistimos, más bien, a una transición del colonialismo mo-


derno a la colonialidad global, proceso que ciertamente
há transformado las formas de dominación desplegadas
por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones
centro-periferia a escala mundial. Las nuevas institucio-
nes del capital global, tales como el Fondo Monetario
Internacional (FMI) y el Banco Mundial (BM), así como
organizaciones militares como la OTAN, las agencias de
inteligencia y el Pentágono, todas conformadas después
de la Segunda Guerra Mundial y del supuesto fi n del
colonialismo, mantienen a la periferia en una posición
subordinada. El fin de la guerra fría terminó con el colo-
nialismo de la modernidad, pero dio início al proceso de
la colonialidad global. De este modo, preferimos hablar
del ‘sistema-mundo europeo/euro-norteamericano capi-
talista/patriarcal moderno/colonial’ (Grosfoguel, 2005)
y no sólo del ‘sistema-mundo capitalista’, porque con
ello se cuestiona abiertamente el mito de la descoloniali-
zación y la tesis de que la posmodernidad nos conduce a
un mundo ya desvinculado de la colonialidad. Desde el
enfoque que aquí llamamos ‘decolonial’, el capitalismo
global contemporáneo resignifica, en un formato pos-
moderno, las exclusiones provocadas por las jerarquías
epistémicas, espirituales, raciales/étnicas y de género/se-
xualidad desplegadas por la modernidad. De este modo,
las estructuras de larga duración formadas durante los
siglos XVI y XVII continúan jugando un rol importante
en el presente. (CASTRO GOMEZ e GROSFOGUEL,
2007, p. 14)

Segato resgata do conceito de giro decolonial sua ênfase à virada epis-


temológica e sua forma de fazer frente a colonialidade do poder, o que segun-
do ela precisa reorganizar a forma de pensar e de questionar linguagem em
uso:

É central, na perspectiva da colonialidad do poder [Quija-


no], essa ideia de reoriginalizaçao do mundo [outro con-

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 309


ceito de Quijano] e, com ela, da subjetividade a partir do
evento da conquista e da colonização. O giro decolonial
ocorre quando se revela diante de nós a impossibilidade
de se narrar o processo de conquista e da colonização
sem usar um vocabulário posterior ao acontecimento,
já que, quando o narramos, nós nos encontramos já em
um mundo reoriginalizado, um mundo novo, que pode
falar apenas com categorias que não existiam antes. Por
exemplo, dizemos que a Espanha descobriu a América,
mas esse enunciado é insustentável, pois ‘Espanha’ não
existia antes de ‘América’. /Quijano afirma que Espanha,
América, o índio, o negro, o branco, a modernidade e o
capital nasceram no mesmo dia. Eis aí a reoriginalização
do mundo, o momento em que aparece uma nova gra-
de léxica, categorial, com a qual vemos e classificamos
as entidades do planeta e narramos os fatos do passado.
(SEGATO, 2019, p. 26)

Já Castro Gomez e Ramon Grosfoguel (2007: p 16) destacam a rela-


ção entre cultura e política, evitando não só hierarquias ou a nomenclatura
de infra e superestruturas, mas como Segato (2019) sublinham o lugar da
linguagem:

Desde la perspectiva decolonial manejada por el grupo


modernidad/colonialidad, la cultura está siempre entrela-
zada a (y no derivada de) los procesos de la economía-po-
lítica. Al igual que los estudios culturales y poscoloniales,
reconocemos la estrecha imbricación entre capitalismo y
cultura. El lenguaje, como bien lo han mostrado Artu-
ro Escobar (2000) y Walter Mignolo (1995), ‘sobrede-
termina’, no sólo la economía sino la realidad social en
su conjunto. (CASTRO GOMEZ e GROSFOGUEL,
2007, p. 16)

Daí a importância das narrativas racializadas para fundamentar eco-


nomias de exploração e formas de resistências, como mais explorar cosmovi-
sões e percepções da ancestralidade, em etnias africanas, entre os escravizados,
os povos originais, ontem e hoje, em tempos que hoje, se pedem referências a
passados, apontam para futuro, como bem lembra Segato:

310 Saberes decoloniais


A emergência contemporânea do sujeito histórico índio
ou, mais exatamente, o retorno do camponês ao índio,
assim como a desconstrução da mestiçagem, são um si-
nal de que o padrão da colonialidade está começando a
se desmontar. Há uma reidentificaçao em curso de cam-
poneses a indígenas, de mestiços a índios e negros, e uma
retomada das linhagens da não brancura por parte das
pessoas. (2019, p. 28)

À guisa de conclusão, salientamos a importância da construção de


redes de conhecimento entre a academia e os movimentos sociais, acionando
uma maior escuta desses saberes para além da tradução desses, e, assim de fato
nós possamos não apenas compreender a linguagem do outro/da outra, mas
poderemos decolonizar o saber, e enfrentar como ato de resistências epistêmi-
ca as colonialidades combatidas nas literaturas do Brasil que não se quer mais
subalternizado.

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uma Nova Temporalidade”. In Revista CULT, N 248, agosto 2019-p
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Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 313


SOBRE AS ORGANIZADORAS,
AUTORAS E AUTORES
AMANDA VOLOTÃO
Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em So-
ciologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/
UFRJ). É mestra em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), licenciada em Por-
tuguês e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal Flumi-
nense (IL/UFF) e bacharel em Administração de Empresas pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro.

ANA MÁRCIA LIMA COSTA


Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação da Univer-
sidade Federal de São Paulo - UNIFESP. Mestra em Educação e Contempora-
neidade, do Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade,
Universidade do Estado da Bahia – UNEB; Especialização em Planejamento e
Gestão para a Educação pela UNEB. Trabalhou como supervisora técnica do
FUNDESCOLA - MEC. Atualmente trabalha como pedagoga no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, Campus Salvador.
BRUNA MACEDO DE OLIVEIRA
Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA), mestre em Letras pelo programa de Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Letras
– área Estudos da Tradução, pelo programa Letras Estrangeiras e Tradução
(FFLCH/USP). Entre seus temas atuais de pesquisa estão: ensino da tradução,
comparação português-espanhol, naturalidade em tradução e tradução de lite-
ratura marginal periférica.

CLAUDIA LETÍCIA GONÇALVES MORAES


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Práticas
Sociais da Universidade de Brasília. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão.Professora As-
sistente da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo. Publi-
cou, dentre outros, os seguintes artigos: “A arte como espaço de decolonização
do conhecimento: análise de três performances de Grada Kilomba”.

CRISTINA BARTHOLOMAY OLIVEIRA


Graduada em jornalismo, é especialista em Comunicação pela Escola
Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Foi repórter das rádios Guaíba,
Gaúcha e CBN. Repórter de política do Jornal Correio do Povo e colabora-
dora do jornal Brasil de Fato. Coordenadora de comunicação do Gabinete de
Reforma Agrária do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, atualmente
é coordenadora de comunicação do MPRS e da seção Rio Grande do Sul da
Associação Brasileira de Comunicação Pública - ABCPública.

DAVI SILISTINO DE SOUZA


Doutorando em Letras (ênfase em Teoria Literária e Estudos Subal-
ternos) pelo Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São
José do Rio Preto (IBILCE). Mestre em Letras pela mesma instituição (2018).
Desenvolve projeto de doutorado na área dos Estudos Subalternos e Decolo-
nialidade via bolsa CAPES e participa do grupo de pesquisa “Gênero e Raça”
316 Saberes decoloniais
(CNPQ). É docente PAADES na disciplina “Literatura, Gênero e Raça” nos
cursos de Letras e Física da UNESP (SJRP) desde 2019.

DEJAIR DIONISIO
É professor colaborador na UNICENTRO - Universidade do Cen-
tro-Oeste do Paraná e é, também, aluno de graduação no curso de Licen-
ciatura em Ciências da Religião na UniFCV - Centro Universitário Cidade
Verde, além de ter sido colaborador externo no NEABI - Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas no Instituto Federal do Mato Grosso do Sul no
campus de Dourados e de Naviraí/MS.

LUIZA VASSELAI DA VEIGA


Mestranda na Universidade Aix-Marseille na Provença, França. Gra-
duada pela Universidade Federal de Pelotas em Licenciatura Português/Fran-
cês e suas respectivas literaturas, interessa-se à linguística aplicada e à sócio-di-
dática do Francês língua estrangeira no contexto migratório e (des)colonizado.

MÁRCIA ESTEVES DE CALAZANS


Pós-doutora em Educação e Interculturalidade pela UFRGS. Pós-
-doutora em Violência, Democracia e Segurança Cidadã INCT/USP/
UFRGS. Doutora em Sociologia pela UFRGS. Mestra em Psicologia Social
e Institucional pela UFRGS. Em formação pelo Instituto de Terapia Cog-
nitivo Comportamental, POA/RS. Professora na equipe docente do Centro
Latino-Americano de Ciências Sociais, no Diploma superior em Seguridad,
violencia y democracia.

MARIA CAMILA OSORIO ORTIZ


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Integração Contem-
porânea na América Latina (PPG-ICAL) na linha de pesquisa “Cultura, Colo-
nialidade/Decolonialidade e Movimentos Sociais”, da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA). Graduanda em Cinema e Audiovi-
sual na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 317


MARIO RENÉ RODRÍGUEZ TORRES
Graduação em Estudos Literários pela Universidad Nacional de Co-
lombia, mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universi-
dade de São Paulo e doutorado em Ciência da Literatura (Literatura compa-
rada) na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) desde 2014, faz parte do
corpo docente no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos
Latino-Americanos (PPG-IELA). É coautor dos artigos “Direito à poesía:
creando aberturas en la universidad”, publicado na Revista Athenea digital em
2020, e “Direito à poesía- uma oficina literária epistolar durante a pandemia
de covid-19”, publicado na Revista Extensão & Cidadania em 2021.

MARJULIÊ ANGONESE
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Comunicação da
UFRGS, mestra em Comunicação e Informação pela mesma instituição. Pes-
quisadora do Laboratório de Interação Mediada por Computador-UFRGS.
Especialista em Cultura Digital e Redes Sociais pela Unisinos e bacharela em
Jornalismo pela Universidade de Caxias do Sul. Foi coordenadora de comu-
nicação social do TRF4, assessora de imprensa do MPRS, além de repórter e
apresentadora das rádios Guaíba e Band News FM.

MARY GARCIA CASTRO


Doutorado em Sociologia (University of Florida); Pós-doutorado em
Sociologia (UNICAMP); e em Estudos Culturais (CUNY University of New
York). Pesquisadora Sênior na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
-FLACSO-Brasil; Pesquisadora Visitante Emérita na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ/PPICS/NUDERG) com bolsa da FAPERJ e professora
aposentada da UFBA .Desenvolve pesquisas sobre feminismos; trabalho domés-
tico remunerado; reprodução social; e estudos comparativos entre autoras afro-
diasporicas e norte americanas, europeias e brasileiras sobre o tema maternidades.

MAUREN PAVÃO PRZYBYLSKI DA HORA VIDAL


Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Autora do livro Cibernarrativa Pós-Contemporânea: pensando o
318 Saberes decoloniais
narrador oral urbano-digital (APPRIS, 2018), e organizadora do ebook Poé-
ticas Orais e Pensamento Decolonial: perspectivas teóricas e metodológicas
(LANMO Editorial, 2021).

MICHAEL DIAS DE JESUS


Mestrando em Educação pela Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP). Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pelo Instituto
Federal Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Licenciado em Geografia
pela Faculdade de São Paulo (FASP). Integrante do Núcleo de Estudos Afro-
-brasileiro e Indígena do Instituto Federal Ciência e Tecnologia de São Paulo
(NEABI-IFSP).

PENÉLOPE CHAVES BRUERA


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução
(PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Bacharel em
Letras pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).
Desenvolve projeto de mestrado via bolsa CAPES e participa do Grupo de
Estudos Feministas na Literatura e na Tradução (GEFLIT/UFSC). Temas de
pesquisa incluem: tradução colaborativa; tradução de literaturas marginais;
literatura de fronteiras; estudos de tradução feminista e decolonial.

RAFFAELLA FERNANDEZ
Pós-doutora em Estudos Culturais e Decolonialidade pela UFRJ
(2021), autora de A poética de resíduos de Carolina de Maria Jesus, resul-
tado de sua pesquisa de doutorado em Teoria e História da Literatura pela
Universidade de Campinas (Unicamp). Organizou os quatro últimos livros
de Carolina intitulados: Onde estaes felicidade? (2014), Meu sonho é escrever
(2018), Clíris, poemas recolhidos (2019) e Casa de alvenaria (2021). Atual-
mente compõe o conselho editorial da Companhia das Letras que está organi-
zando e editando a obra completa de Carolina Maria de Jesus.

RAYRON LENNON COSTA SOUSA


Professor do Curso Interdisciplinar de Linguagens e Códigos – Lín-
gua Portuguesa da Universidade Federal do Maranhão – UFMA/Centro de

Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 319


São Bernardo, atuando no curso de pós-graduação em Cidadania, Inclusão e
Diversidade – UFMA. Atualmente é doutorando em Literatura na Universi-
dade Federal do Piauí – UFPI, com bolsa de doutorado pela FAPEMA.

SUSANA DE CASTRO
Professora do departamento de filosofia e do programa de pós-gra-
duação em filosofia da UFRJ. Fez seu doutorado na Alemanha em 2003 com
tese sobre a substância em Aristóteles. É cocoordenadora do grupo de Pesquisa
Carolina Maria de Jesus e coordenadora o Laboratório Antígona de Filosofia
e Gênero da UFRJ. Publicou, entre outros, os seguintes artigos: “Raça, sexo e
cultura”. In Kalagatos (UECE), 2022; “O caráter anticolonial da luta contra o
racismo no Brasil”. In Debates en Sociologia, 2021.

TEREZA MARIA SPYER DULCI


Professora da UNILA. Possui Doutorado em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP). Mestre em História Social e Bacharel/Li-
cenciada em História pela mesma instituição. Pós-doutorado desenvolvido
no Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe (CIALC), da
Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Especialização em
Epistemologias do Sul e em Estudos Afro-Latino-Americanos e Caribenhos
pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).

FRANCISCO URIBAM XAVIER


Graduado em Filosofia Política e doutor em Sociologia, professor da
área de Ciência Política do Departamento de Ciências Socais da UFC. Estuda
e pesquisa sobre pós-colonialismo, pensamento decolonial e epistemologias
do Sul e gosta de opinar sobre a conjuntura política. Seus dois últimos livros
publicados foram: “América Latina no Século XXI – As resistências ao padrão
mundial de Poder”, Editora Expressão, Fortaleza, 2016; e “Crise civilizacional
e pensamento decolonial. Puxando conversa em tempos de pandemia”. Dialé-
tica Editora, São Paulo, 2021.

320 Saberes decoloniais


Pólen Soft 80g/m2

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
A Coleção Pindorama de Estudos Decoloniais tem como ob-
jetivo publicar obras de autores decoloniais e pós-coloniais.
Entendemos que a coleção irá suprir uma lacuna, visto que
apesar de os estudos pós-coloniais terem alguma inserção
no mercado editorial brasileiro, o dos estudos decoloniais é
relativamente desconhecido. O pressuposto comum do de-
colonialismo e do pós-colonialismo é o de que vivemos uma
realidade geopolítica marcada pela violência epistêmica e
pelo colonialismo discursivo dos países do Norte Global.
Entendemos que a produção de conhecimento é afetada
pela divisão internacional do trabalho e pelo capitalismo
global de tal maneira que países do Sul Global marcados
por um passado colonial acabam sendo englobados em
uma universalidade das ciências produzidas no Norte glo-
bal. Nossa realidade social é marcada pela invisibilização e
silenciamento dos subalternos, o subproletariado urbano
e camponeses expulsos de suas terras pelo agronegócio,
os dissidentes sexuais e os corpos racializados. A coleção
Pindorama almeja mostrar a história não contada sobre a
experiência e história dos povos racializados e submetidos
ao racismo de assimilação.

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