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Raffaella Fernandez
(organizadoras)
SABERES
DECOLONIAIS
SABERES DECOLONIAIS
LITERATURA E OUTROS GÊNEROS DO CONHECIMENTO
NA AMÉRICA LATINA
Comitê editorial
Caroline Izidoro Marim
Susana de Castro
Conselho científico
Claudia de Lima Costa
Karina Bideseca
Maria Clara Dias
Conselho editorial
Gabriela A. Veronelli
Heloisa Buarque de Hollanda
Joshua M. Price
Mary Garcia Castro
Mirian Pillar Grossi
Paola Baschetta
Rafael Haddock-Lobo
Suely Messeder
Yuderkys Espinosa Miñoso
Mary Garcia Castro
Raffaella Fernandez
(organizadoras)
SABERES
DECOLONIAIS
Copyright desta edição ©2022 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos - CRB-8/9166
S115
Saberes decoloniais: literatura e outros gêneros do conheci-
mento na América Latina / Mary Garcia Castro (Organizadora), Raffaella
Fernandez (Organizadora). – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2022.
(Pindorama)
320 p. ; 23 cm.
ISBN 978-65-80154-51-7
CDD 100
I. Filosofia
SUMÁRIO
PREFÁCIO..............................................................................................................9
Mary Garcia Castro
Raffaella Fernandez
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necessário mais investir em críticas às propostas de mudanças sociais dos de-
coloniais mais relacionadas ao comunal e à pluridiversidade, e com ênfase em
raça, desconsiderando por exemplo, o lugar de religiões fundamentalistas na
América Latina e minimizando o poder do capitalismo2.
No texto “A literatura de Carolina Maria de Jesus como Denúncia
ao Racismo numa Perspectiva Decolonial nos Espaços Escolares” de Michael
Dias de Jesus e Ana Márcia Lima Costa observa-se em que medida aspectos
decoloniais presentes na obra de Carolina Maria de Jesus possibilitam prática
de ensino voltadas ao letramento racial- crítico de crianças e jovens negros(as)
nos seus espaços escolares. Conforme os autores “as escritas pretas e Carolinis-
ta nos dão subsídio para debater as violências raciais em seus diversos sentidos,
assim como, possibilitam a discussão de combate às práticas discriminatórias
que sujeitos negros sofrem diariamente”.
Em “Materiais orais e decolonialidades: reflexões necessárias” Mau-
ren Pavão Przybylski da Hora Vidal, pesquisadora idealizadora do grupo de
estudos poéticas decoloniais, debate as oralidades a partir do conceito de “ma-
teriais orais” de Vázquez e Hernández (2020) e Paul Zumthor (2007), em
relação à sistematização os conceitos de decolonialidade instituídos por Walter
Mignolo (2017), Aníbal Quijano (2002) e Catherine Walsh (2019). A autora
nos apresenta alguns materiais orais que foram analisados a partir das pesqui-
sas realizadas pelo Laboratório Nacional de Materiales Orales (LANMO) e
pelos registros do Repositório Nacional de Materiales Orales da UNAM, a
fim de valorizar produções comunitárias mobilizadas para além de modelos
ocidentais canônicos.
Em “Curtas Brasileiros: Laboratório de Estéticas Insurgentes” Maria
Camila Osorio Ortiz e Tereza Maria Spyer Dulci nos trazem uma linguagem
cara aos debates decoloniais, o cinema, no caso os curtas, associando-o a apre-
sentações do racismo estrutural. O que é antes documentado quanto a alguns
indicadores, em especial sobre violências sofridas por negros e negras, assim
como silenciamentos.
As autoras esclarecem que é “gritante desigualdade entre os(as) ne-
gros(as) e não-negros(as) o que pode ser também percebida no setor audio-
2 Este é um debate que se inicia, ver LEHMANN, David. After the Decolonial. Polity Press, Cam-
bridge, 2022
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O filme Uma história de amor e fúria (2013), dirigido e roteirizado por
Luiz Bolognesi, é discutido no texto “Um projeto decolonial em uma história
de amor e fúria (2013), de Luiz Bolognesi”, assinado por autoria de Davi Silis-
tino de Souza. O autor discute como os grupos ditos hegemônicos reagiriam
à crescente potência da perspectiva decolonial, que visibiliza os/as ‘subalterni-
zados’, como o povo LGBTQI+, as/os negros, as/os povos originários e tantas
outras/outros, como sujeitos de uma outra história. Souza sobre o filme, infor-
ma: “O filme de Bolognesi é uma animação contemporânea brasileira que re-
constitui quatro momentos históricos nacionais distintos: o “descobrimento”
do Brasil; a Colonização e o regime escravocrata; a Ditadura Militar; e uma
prospectiva da sociedade do Rio de Janeiro em 2096. Nas narrativas presentes
no filme, há a presença de personagens silenciadas e subjugadas na sociedade”.
De fato, Silistino de Souza destaca do filme o terrível da colonização,
materializa em letras a tese de Santiago Castro-Gómez (2005)4 de que seria
uma falácia: a “hybris do ponto zero”, desmistificando que teria cabido aos
europeus trazer ‘a civilização’, saberes construídos para iluminar aos ‘não hu-
manos’, ou melhor, tidos como selvagens. Resistências em vários períodos his-
tóricos da então Pindorama, dita Brasil, transitam em linguagem de filme ani-
mação, que apela para lendas, e registra violências contemporâneas de Estado,
“colonialidade do poder”. Contradiz em imagens moveis, a tese conservadora
que acusa perspectivas decoloniais de saudosismo e reivindicar um passado
idílico, sem atentar que para o futurar passados questionando presentes, nem
um tempo cronológico é estático. Reflete Silistino de Souza em seu capitulo
neste livro: “Na obra de Bolognesi, o passado, o presente e o futuro estão
interligados de forma indissociável na trajetória dos heróis: os aprendizados
dos indígenas, dos escravos, dos guerrilheiros contrários à ditadura militar e
dos manifestantes contrários à milícia e ao monopólio empresarial de água se
complementam para constituir uma história de resistência”. Vale e muito ler a
reapresentação do filme no capitulo aqui pautado e buscar o filme.
O texto de Bruna Macedo de Oliveira, Mario René Rodríguez Torres
e Penélope Serafina Chaves Bruera intitulado “Deslocamentos de Carolina na
América Hispânica: alguns apontamentos a partir das traduções de Quarto
4 CASTRO-GÓMEZ, Santiago. La hybris del punto cero: ciencia, raza e ilustración en la Nueva
Granada (1750-1816). Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2005.
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ca, a ancestralidade desafia o modelo eurocêntrico. Ela dá voz a coletividades
silenciadas, chamando a atenção para suas existências. Deste modo, sinaliza
para outros caminhos possíveis”.
Em “Mulheres e o tradicionalismo gaúcho” Márcia Esteves de Cala-
zans, Marjuliê Angonese e Cristina Bartholomay Oliveira combinam conhe-
cimentos disciplinares, em sociologia, psicologia e comunicações, com análise
baseada em pesquisa sobre gênero, patriarcado e tradições próprias do Rio
Grande do Sul, até hoje simbolizando colonialidade que se faz presente, con-
figurando a diversidade Brasil e o nexo de tempos em que as mulheres são ob-
jetificadas, desafiando tal diversidade. Discutem o conceito de prenda, o movi-
mento tradicionalista gaúcho, suas regras e sentidos e o concurso para escolher
entre jovens, la prenda. Recorrem à pesquisa documental e entrevistas com ‘las
prendas’, em tal concurso que mulheres competem por tal título, e assim con-
tribuem para ilustrar a institucionalização cultural do patriarcado colonial, via
tal concurso, Ciranda Cultural de Prendas , no qual as jovens mulheres devem
representar “as virtudes, a dignidade, a graça, a cultura, os dotes artísticos, a
beleza, a desenvoltura e a expressão das gaúchas”. A outra em tal ambiência,
segue o principio colonial, da raça subalternizada, é a “chinoca” – “substanti-
vo feminino, china (índia, ‘cabocla) moça ou menina; caboclinha, chininha;
china (prostituta) jovem; chininha, piguancha” (Calazans et al, neste livro.)
Em “Desencontros entre Cosmovisões Africanas (etnias Yorùbá e
Igbo) e Feminismos Ocidentais: Notas a partir de Ifi Amadiume e Oyèrónké
Oyéwùmí” Mary Garcia Castro após breves referências às etnias Igbo e Yorùbá
e às autoras nigerianas Amaudime e Oyéwùmí, discute artigo de Amadiume
(2005), mais referido à cultura Igbo e publicações de Oyéwùmí (2000, 2005 e
2015) que decolam da filosofia de vida da cultura Yorùbá, destacando críticas
dessas autoras a formulações feministas ocidentais sobre gênero e maternida-
de. De Oyéwùmí (2015) pinça o conceito de “matripotencia” sugerido pela
cultura Yorùbá e o que a autora considera como “materfobia” (conceito em
Adrienne Rich5) em perspectivas feministas ocidentais. Identifica, acima de
tais divergências, a propriedade, ou melhor, a potencialidade da maternidade
para a reprodução social.
5 RICH, Adrienne Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution. Norton Ed. New
York, 1995.
18 Saberes decoloniais
sil”, assinado por nós, Mary Garcia Castro e Raffaella Fernandez, buscou rea-
lizar incursões acerca de algumas produções da literatura contemporânea que
resistem às formas de saberes colonializados. Focamos no slam produzido por
mulheres, enquanto exemplos do giro decolonial desde Abya Yala expresso por
essas literaturas num misto de estética e política. E assim, demonstramos uma
curva na encruzilhada na constituição de imaginários rumo à percepção de
novas sensibilidades em proveito da proposição do ser/estar latino-americano,
mas alla do paradoxo autêntico/mimético como condição primordial de suas
existências. Seguimos saudando aquele que guarda esse fecundo caminho, La-
róyè Èṣù Ọnọn!
David Saint-Clair
22 Saberes decoloniais
específica a ser visitada, numa sociedade que, como bem pontuou Mário de
Andrade em seu poema Garoa de meu São Paulo, todos são brancos. Portanto,
esta intenção de plano de trabalho, procurará a recuperação de registros refe-
rentes à representação desse sujeito negro nos Cadernos Negros, que trazem a
marca da diferença como distintivo, procurando também fazer emergir dis-
cursos que se colocam do lado contrário do instituído, demonstrando como
este sujeito, o afrodescendente – mesmo quando aviltado em sua humani-
dade, consegue sobrepujar as adversidades históricas e construir formas de
permanência, sobretudo quanto à identidade cultural. E no que se refere a essa
cultura, vem a ser presença imprescindível para se entender a constituição des-
te segmento social e seus mecanismos desenvolvidos para continuar trilhando
nessas tortuosas e generalizantes noites ocidentais. As opções pelos contos se
devem pois percebemos ser
24 Saberes decoloniais
É ainda dentro desta mesma linha que se estabelecem diferenças con-
ceituais, distinguindo, a partir de então, diferenças culturais, ao apontar for-
mas de traduzir e estar no mundo. Se pela cultura ocidental a terra é tratada
como algo a ser explorada - a terra como propriedade -, na visão civilizatória
da filosofia e religião africanas ela é mãe doadora, algo a ser amado e cultiva-
do. Dentro desta dicotomia, a terra explorável surge como denúncia de um
sistema perverso que se sustenta, tendo por base a exploração do homem pelo
homem; a terra cultivável, ao contrário, apresenta-se como proposta para um
entendimento maior entre as pessoas, numa relação mais humanizada.
Sendo também a literatura um reflexo da sociedade, lugar em que
questões circundantes são discutidas, torna-se frutífero suscitar debates que
levem este segmento social, em particular, a uma conscientização criteriosa de
sua condição numa sociedade de vícios ainda segregadores. Somente assim se
reconhece a contribuição para a formação de um pensamento independen-
te que se emancipa na medida mesma que permita, a futuros pesquisadores
comprometidos com estes estudos, perceberem valores que os expliquem e
identifiquem. É com este objetivo que se elucida a produção que verse sobre
a representação de personagens afro-brasileiros. Portadores de linguagens e
simbologias próprias, produtores de discursos tradutores de um ethos que os
singularize, trazem, em suas inscrições, elementos a apontarem outra ordem
de sentido. Nos textos, “outras” palavras lançando luz para “outros” (até agora
ocultados) lugares de saber e fazer literários.
26 Saberes decoloniais
as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres
humanos, pelas próprias divindades, assim como por
animais e outros seres que dividem a Terra com o ho-
mem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento,
das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos
insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manu-
tenção da saúde contra os ataques da doença e da morte.
Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por
menos importantes que pudessem parecer, tinham que
ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento
também aos relatos sobre as providências tomadas e as
oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz
em cada desafio enfrentado. (PRANDI, 2015, p. 17)
2 “O àiyé é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habitam, portanto,
mais precisamente, os arà-àiyè, ou aràiyè, são os habitantes do mundo, a humanidade. Já o òrun
corresponde ao espaço sobrenatural, o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele habitam
os arà-òrun, que são os seres ou entidades sobrenaturais” (LUZ, 2000, p. 109).
28 Saberes decoloniais
Ele é o guardião das portas que separam o mundo dos
humanos do mundo dos espíritos. Presente nos cruza-
mentos das estradas, no centro dos mercados, na entrada
das cidades, e nas portas das casas, costuma ser venerado
enquanto protetor e é, no continente africano, frequen-
temente representado por um monte de terra endurecida
e com dois búzios no lugar dos olhos, costume que pode
ser evidenciado em regiões da Nigéria e do Benim, prin-
cipalmente. (DIONÍSIO, 2016, p. 131)
30 Saberes decoloniais
infinito” (KIBULO, 2017. p. 236). Importante relembrar a amarração com o
início da narrativa pois Escurinho, tinha sido “presente natalício de seu pai e
oferendado ao guarda de tráfego” (KIBUKO, 2017. p. 233). O que se observa
é a preocupação em narrar de forma valorativa o pertencimento simbólico e
civilizatório da personagem, apesar das agruras que a sua vida está envolta.
No conto “O homem invisível”, cujo autor é Décio Vieira (VIEIRA,
2008, p. 185), a aproximação das representações dos personagens, tanto ne-
gros quanto não negros, tem um forte diálogo com outros dois textos, sendo
que um deles, “a peça Race faz parte da dramaturgia do autor norte-america-
no, David Alan Mamet. No espetáculo, o espectador observa os bastidores da
construção da defesa de um homem branco, acusado de estuprar uma jovem
negra”. (In: Mundo Negro). Considerando que a peça esteve em cartaz no
biênio 2017/2018, sendo adaptada no Brasil pela “Cia Teatro EPIGENIA”,
problematiza a mesma questão da personagem Gracinda, do conto de Décio
Vieira e para além, ainda dialoga com o rap – termo de origem da língua
inglesa que significa rhitm and poetry ou revolução através das palavras, do
grupo paulistano Face da Morte intitulada A Vingança, que discute esse estado
de mudança de corpos, mas com a mesma performance ou comportamento
em espiral epigênico, da representação do negro no texto. Presentes em três
momentos distintos, a dramaturgia, a letra de música e o conto, as narrativas
se concentram em apontar uma única culpada para o suposto crime, saindo
de cena o estupro em si, que os três textos problematizam, ficando a epigenia
do negro e a sua reação esperada, presente nas composições.
No texto que nos debruçamos o enredo dentro da lógica do conto é
econômico. O personagem Juca ao fim é baleado com dois tiros nas costas,
apresentado como afro-brasileiro, sendo o centro da narrativa. Sua mãe Gra-
cinda e o pai dela, o velho Firmino, saem do Nordeste, e ele é narrado como
trabalhador da construção civil e ela empregado doméstica nos Jardins, bairro
de alta renda da cidade de São Paulo. Percebemos a transferência da espiral,
empurrando os personagens para o fundo da espiral: a epigênia histórica ocu-
pando os corpos narrados, já que ambos têm profissões invisíveis. Quinze
anos que tinham saído do Piauí enquanto retirantes da cidade de São João
da Tapera, percebemos uma relação de proximidades temáticas outros textos
que abordam o grande êxodo de mulheres e homens e as migrações brasileiras,
32 Saberes decoloniais
mente o filho, o personagem negro, levando-o a situação psicológica proposta
pelo narrador de um conflito existencial. Juca se rebela, sendo empurrado para
o fundo da espiral, dentro da lógica reinante do peso do seu fado.
Em Os donos das terras e das águas do mar, conto de Celinha (CELI-
NHA, 2008, p.171) Tibério, menino negro, “jamais em sua infância ele fez
sossegar seu instinto traquinas. Foram dias de farra, de diabruras e de correria,
de lá pra cá, e de cá pra lá. “Eita vida boa hein, Tibério?” (2008, p. 171). De
posse de um estilingue, o menino traquinas xingava Pedrinho, “tadinho, era
todo magrinho e de pele fininha” (2008, p. 171). Dona Rosa do Prado, patroa
da Preta Babaça, ensina o menino as cantigas da terra distante em África, dos
costumes e como uma ancestral a forma de um baobá, que esconde e guarda
segredos que para poucos devem e podem ser revelados, ensina o menino, que
vai nos sonhos, em busca do lugar idealizado que ouve o narrar das histórias
da arauto. Ela o ensina da importância de respeitar o mar, pois mar é calun-
ga - cemitério (2008, p.172), que o amor é luzolo, ensina as danças sagradas
como o Candomblé, “que a terra é odara, alma é fimbo, Deus é Olorum”
(2008, p. 172). O menino é órfão, mas as rezas que ouve o levam para a Áfri-
ca, diferentes daquelas do padre Vigário, que não significam muita coisa para
ele. O narrador tema preocupação em valorizar as questões simbólicas que
formam a lógica de vida e de costumes, bem como as vivências, a partir do que
uma mais velha, a ancestral daquela família e da região, conta para o menino e
para as demais personagens adolescentes presentes, criando a possibilidade de
problematizar e comparar o contar de outras contar histórias, tanto as religio-
sas quanto as ligadas a sua descendência. Preta Babaça fala de um herói mítico,
Alao, que veio com os navios negreiros, da sua luta e resistência/resiliência.
As questões bantuísticas de pertencimento presentes nesta narrativa, nos dão
a localização possível das origens ancestrais de Tibério, para além de outros
personagens, como Cabulo e Peralta, guias espirituais de Alao, escravizado
que foi, mas que é narrado de uma forma heróica, a partir do ponto de vista
negro na História.
Apresentar Ana, Jacinto, Januário e até Anita, negrinha magrinha, tem
o sentido de descrever as agruras em que vivem os negros daquela localidade,
nos permitindo cotejar o texto com o poema em prosa “O Emparedado”, de
Cruz e Souza. Diferentemente do desespero daquele eu lírico/narrador, aqui
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Em Di Lixão, de Conceição Evaristo (EVARISTO, 2008, p. 175), o
poder falocêntrico de imediato é atingido, uma vez que o símbolo de força
masculina, se revela inútil, pela escrevivência da narradora. A evocação de ma-
neiras diversas da dor, manifestada ao passar “lentamente a língua no canto da
gengiva. Sentiu que a bola de pus ainda estava inteira” (2008, p. 175), resvala
na proximidade com “um pontapé nas suas partes baixas. Abaixou desespe-
rado, segurando os ovos-vida” (2008, p. 175). Se os ovos são o enigma a ser
perseguido na narrativa, já que o pontapé foi recebido após ter dado uma cus-
parada em seu colega de quarto, também são, simbolicamente, o prenúncio de
que sua força física está sendo aniquilada, ao comparar o escroto com a bola
de pus que tanto o incomodava na boca já que “ele era uma dor só. As dores
haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio”
(2008, p. 176). Analisando as proximidades com a representação fálica de Èsù,
já que é um bastão em forma fálica que o representa, simbolizando seu poder
reprodutor e o vigor sexual, “brincar” literariamente com essa representação
estética e com a mitologia de Èsù, coloca Evaristo em uma posição diferente
daquela pensada por Cidinha da Silva que afirma “que tudo o que se fala sobre
Exú está sempre amarrado a uma ponta de mistério, ensina Carolina Cunha.
Ele vive em um tempo mágico” (SILVA, 2010, p.19).
O conto problematiza, ainda o abandono no escolar, cujos índices de
abandono escolar são alarmantes no Brasil, considerando a idade das persona-
gens, entre 14 e 15 anos. Importante ressaltar que o outro personagem aparece
de forma periférica na narrativa. “O sol anunciava o dia quente [...] Num
gesto coragem-desespero levou o dedo em cima da bola de pus e apertou-a
contra gengiva, Cuspiu pus e sangue. Tudo doía” (2008, pp. 176-177). Morre
abandonado na rua, com dores, fome e com a alcunha, homônima do nome
do conto. O personagem tinha hábito de chutar latões de lixo.
Em uma conversa sobre religião e literatura, com a própria Conceição
Evaristo no Congresso Nacional de Pesquisadores/as Negros/as no Rio de Ja-
neiro de 2010, ela mesma me disse que não ter invocado religiosamente seus
personagens ou representações estéticas, na concepção do romance “Ponciá
Vicêncio” (2003), ao referir-se aos valores civilizatórios bantus verificáveis no
enredo, conforme foi analisado por nós (DIONÍSIO, 2013). Assim, o ponto
de vista evocado por Cidinha da Silva e suas preocupações em preservar o
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fragilidades de um povo fraco, carente, sem muita cultura na grande maioria,
prometendo a ele mundos e fundos” (SOUZA, 2008, p. 253), mantendo a
lógica de difamação e escamoteamento do arquétipo de Èsù, personagem
principal do conto de Tico. Para JUNIOR e ENOQUE (2018):
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CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
REFERÊNCIAS
40 Saberes decoloniais
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Paulo: Quilombhoje: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
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TRANSIÇÃO CIVILIZACIONAL DECOLONIAL:
UMA CONVERSA DE LONGA DURAÇÃO
Francisco Uribam Xavier de Holanda1
1 Uribam Xavier - gosta de café com tapioca e cuscuz, peixe frito ou no pirão, de frutas e verduras,
antes de ser hipertenso era chegado a uma buchada e a uma feijoada. Frequenta o espetinho do
Paraíba, no boêmio e universitário bairro do Benfica [Fortaleza], e no pré-carnaval segue o bloco
Luxo da Aldeia. É professor, ativista político decolonial e anti-imperialista, estuda e escrever para
puxar conversa e fazer arenga política. Seu último livro escrito foi “Crise civilizacional e pensamento
Decolonial. Puxando conversa em tempos de pandemia”. Dialética Editora, Belo Horizonte, 2021.
uribam@ufc.br
nista, objetivada na forma de conhecimento científico e tecnológico, levou-
-nos, em nome do progresso e do desenvolvimento, à construção de uma so-
ciedade do presente trágico, na qual a vida não tem garantia de continuidade e
a promessa de emancipação não pode ser cumprida. Em ralação à promessa de
emancipação da modernidade, tanto Habermas como Ulrich Bech afirmam
que, diante do seu fracasso, precisamos rumar para outra modernidade, pois
acreditam que a modernidade ainda pode ser reformada, já que ela é um pro-
jeto inacabado.
Mesmo constatando que, no final do século XX, a natureza havia sido
subjugada, explorada e absorvida pelo sistema industrial moderno, Beck con-
tinuava apostando na validade da modernidade. Para ele, até o final do século
XX, todas as formas de sofrimento, violência e miséria que os seres humanos
infligiam a seres humanos eram reservadas aos outros: negros, povos originá-
rios, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas e homossexuais. Depois
do final do século XX, a violência da civilização moderna, diz Beck (2011, p.
7): “[...]é a violência do perigo, que suprime todas as zonas de proteção e todas as
diferenciações da modernidade”.
O pensamento de Ulrch Beck é bem claro, enquanto a colonialidade
do poder, a modernidade euro-norte-americana, a epistemologia eurocentra-
da, reservava a sua violência aos outros, aos não euro-norte-americanos, aos
não brancos, aos países pobres colonizados e periféricos, estava tudo bem, pois
o mundo caminha sem risco para o homem branco, cristão, patriarcal e para
o poder imperial por ele controlado, já que a resistência dos outros poderia
sempre ser quebrada e derrotada por meio da violência.
Todavia, agora foi suprimida a proteção para todas as diferenças da
modernidade, são todas as formas de vida e de existência no próprio planeta
que está sob ameaça, vivemos numa sociedade de risco, diz Beck. No entanto,
para ele, a solução não é a busca de um outro padrão civilizador, mas de uma
outra modernidade como condição para preservação da colonialidade, que é,
como diz Walter Mignolo (2017), o lado escuro, a parte oculta e constituinte
do modo de ser do projeto moderno.
No discurso de Beck, quando fala do sofrimento que os seres hu-
manos infligem aos próprios seres humanos, o sofrimento aparece como se
tratasse de uma questão moral, de uma questão de comportamento individual
44 Saberes decoloniais
egoísta, como se a ordem social e suas relações não fossem estruturadas e sis-
têmicas, como se o capitalismo não fosse parte da colonialidade de poder da
modernidade, como se a razão moderna não comportasse a colonialidade.
Habermas e Ulrich Beck não conseguem falar da crise do capitalismo
enquanto modo de produção e de reprodução das condições materiais de exis-
tência, falam de crise da sociedade moderna entendendo a modernidade como
projeto de realização última da razão. Por isso, como solução para a crise da
razão moderna, propõem mais modernidade.
Habermas, na sua principal obra, “Teoria do Agir Comunicativo”, de-
fende a saída da crise da razão moderna por meio da substituição de sua teoria
da consciência, baseada na relação sujeito e objeto, por uma teoria moral do
agir comunicativo, baseado na relação sujeito e sujeito. Isso poderia fazer com
que a modernidade passasse a ser subordinada ao “mundo da vida”, criando,
assim, condições para a realização de sua promessa de emancipação humana,
com a qual a modernidade chegaria ao fim da história.
Para Habermas, com a globalização dos mercados, particularmente
dos mercados financeiros, o processo de modernização se encontra em um
estágio diferente, a sociedade mundial aparece como dividida em países ven-
cedores, beneficiários e perdedores. Os Estados Unidos, como liderança insu-
perável em termos de desenvolvimento, aparecem, ao mesmo tempo, como
um insulto e um modelo secretamente admirado pelos perdedores. Assim, diz
o filósofo:
46 Saberes decoloniais
A categoria de colonialidade gerou toda uma disputa de narrativa so-
bre a origem da modernidade e do lugar da América Latina na formação do
sistema-mundo colonial moderno. A partir da noção e colonialidade, pas-
sou-se, então, a pensar em um giro decolonial, numa forma de superação do
processo civilizador moderno para além da modernidade.
Pensar para além da modernidade pressupõe, para o pensamento de-
colonial, pensar a partir do um processo constante de resistência que faz parte
do cotidiano dos povos originários das américas e de todos os explorados e
dominados do planeta, articulando-o ao desejo e à capacidade de imaginar um
outro horizonte histórico, ou seja, um outro padrão civilizatório, no qual a sua
objetivação seja efetivada por meios de vários caminhos estratégicos e por uma
ecologia de saberes que ponha fim ao império cognitivo eurocêntrico; horizonte
que negue a tentação moderna de se pautar por um pensamento único, por um
único modelo de sociedade ou por meio de um único sujeito ou classe social.
Trata-se da construção de um novo ethos (uma maneira de ser e de estar no
mundo) pluriversal, em que vários mundos possam coexistir e se retroalimentar.
No mundo presente, faz-se necessário afirmar que coexistimos com
outros padrões civilizatórios, modos de vida que são bem mais antigos que
a modernidade, como a cultura maia, a inca, a asteca, a africana, a chinesa,
a indiana, a semita e outras. Todavia, no imaginário moderno, e eurocentra-
do, esses outros padrões civilizatórios são tratados como primitivos, atrasados,
subdesenvolvidos, pré-modernos, pré-científicos e, portanto, inferiores, logo,
não podem ter existência em si e por si ou se constituírem como modelos
dignos de respeito ou de padrão de humanidade.
Esse comportamento de negação dos outros modos de vida aconte-
ce porque, embora essas experiências outras coexistam em espaços e tempos
contemporâneos, o modelo colonial moderno se impõe como universal. Ou
seja, como padrão de evolução e de desenvolvimento a ser seguido, seja por
meio da cooptação ou pela força. Os outros modos de vida, os não europeus
ou não imperiais, são tratados como restos do primitivismo e do atraso, por
isso, devem ser negados, apagados, são modos de vida de povos sem história,
como afirmou Hegel.
Diante dessa negação da coexistência do pluriculturalismo – seja pela
invisibilidade do outro ou pelo multiculturalismo, no qual a diversidade pode
48 Saberes decoloniais
ciabilidade humana, enfim, para um pluriverso em que muitos mundos sejam
possíveis.
Para muitos críticos da modernidade, a partir da crise estrutural do
capitalismo, nos anos de 1970, passamos a viver numa civilização de morte.
A crise do socialismo real vivido pela União Soviética, o declínio e abandono
do compromisso com o modelo de Estado de bem-estar (Welfare State), uma
resposta ao pós-guerra, mesmo que restrito apenas ao mundo euro-norte-a-
mericano, e a adoção do neoliberalismo se constituíam como um sinal de
incapacidade da modernidade em realizar a sua promessa de emancipação.
Portanto, por nenhum dos seus dois grandes sistemas políticos e econômicos,
o capitalismo ou socialismo, a modernidade conseguiu o êxito prometido.
Os indicadores de morte presentes na civilização modernas são
muitos: as diversas formas de violência; a fome; a miséria; a repressão po-
licial; as legiões de refugiados espalhados pelo planeta; o feminicídio; a
repressão policial; os golpes políticos e militares; as guerras; a quantidade
de negros, pobres e jovens em cárceres; a concentração de riquezas e rendas;
o desemprego; as legiões de pessoas sem teto largadas nas ruas dos centros
urbanos; o racismo estrutural; as pandemias; a proliferação de doenças; o
tráfego de drogas, armas e órgãos humanos; a crise ambiental: diversidade de
poluições, desmatamentos, aquecimento global, extinção de várias espécies
de plantas e animais. Esses indicadores de morte são prova de que a mo-
dernidade é uma tragédia para a maioria da população do planeta, de que a
racionalidade moderna produz os condenados da terra; que a modernidade,
por meio da guerra de todos contra todos, caminha para barbárie, ou seja,
para o fim do mundo.
Estudos2 realizados no ano de 2016, pela Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT) juntamente com a Organização Mundial de Saúde
(OMS), revelaram que 745 mil pessoas morreram de derrame e de doenças
cardíacas causadas por estarem submetidas a longas horas de trabalho. Segun-
do os dados da pesquisa, trabalhar 55 horas ou mais por semana está associado
a um risco 35% maior de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a 17% maior
2 Os dados apresentados aqui foram publicados são da matéria “Trabalho excessivo causa 745 mor-
tes por ano, indica estudo da OMS”, assinada por Luísa Costa. In: Super Interessante. Disponível
em: www///super.abril.com.br. Acesso em: 24 maio 2021.
50 Saberes decoloniais
moderna fica clara nessa lógica de encontrar oportunidade para acumular ri-
queza, submetendo à maioria da população a situação de mais privação, mes-
mos nos momentos em que ela se encontra muito vulnerável, como quando é
vítima do desemprego, da situação de miséria, de guerras e pandemias.
Pensadores sistêmicos, conservadores e defensores da modernidade e
do sistema capitalista afirmam, de forma muito convicta, talvez porque vivam
numa bolha, que vivemos em um mundo que caminha para realização de uma
sociedade emancipada, como afirma Arthur Herman:
52 Saberes decoloniais
mo hegemônico baseado no indivíduo, na propriedade
privada e na democracia representativa; nos sistemas de
conhecimentos baseados na racionalidade instrumental,
com marcada separação entre humanos e natureza (an-
tropocentrismo) (ESCOBAR, 2019, p. 458).
54 Saberes decoloniais
troca de alimentos, energias e transportes, o diálogo inter-religiosos. No Sul
global, a valorização das ontologias e cosmovisões holísticas que enfatizam
a interdependência de todas as formas de existência, o bem-viver, o Estado
plurinacional, os direitos da natureza, a justiça indígena. Tratam de práticas
que coexistem no e com o mundo moderno, mas que são ações de resistência
contra o extrativismo e o desenvolvimentismo, como constata Arturo Escobar
(2019, p. 460): “[...] não se trata de retorno às tradições autênticas e nem de
formas hibridas alcançadas mediante uma síntese racional do melhor e cada
civilização”.
Em um mundo pluriversal, cada universal é investido do poder de sig-
nificar, o que rompe com o pensamento único multicultural da modernidade,
abrindo espaço para o encontro de alternativas de projetos sociais e de vida por
meio de uma ecologia de saberes. A pluriversalidade é o fim do pressuposto de
que existe uma única teoria, um único sujeito e um único sistema verdadeiro
para a organização da economia e para a efetivação das utopias libertárias.
No processo permanente de resistência, quando o inesperado irrom-
pe, constituindo-se em um acontecimento decolonial, as feridas ou heranças
coloniais passam a ser o lócus de anunciação, então, os sentidos da vida e da
história passam a ser ressignificados e algumas relações são rompidas, outras
são reinventadas e criadas.
Como a colonialidade torna insignificante, invisível e ausente o su-
balterno, ele nunca está presente na história oficial como sujeito. O que o faz
presente é a sua ação de existência, que ressignifica a história, a sua imagem
e a sua importância no mundo. O ato de ressignificação da história é, já, a
afirmação do pluriversal, é um passo para transição civilizacional para além da
modernidade; uma transição de longa duração.
O pluriversal é, também, a chave para a descolonização e humanização
do próprio homem branco, tanto de direita como de esquerda, eurocentrado,
cristão, patriarcal, homofóbico, racista e colonial. O campo político branco,
que inclui desde a extrema direita até a extrema esquerda, está presente nos
quatro cantos do planeta. É bom deixar claro que branco não se refere à cor
da pele, mas a um ethos cultural, a uma maneira de ser e de estar no mundo,
do modo eurocentrado de ver, pensar e agir. Portanto, trata-se da epistemo-
logia e da ontologia de uma prática política de um padrão mundial de poder
56 Saberes decoloniais
padrão civilizatório moderno, ou, nos termos de Quijano (2014), da colonia-
lidade do poder.
Para parte do pensamento decolonial, o capitalismo não é o funda-
mento de todo o sistema de dominação e subalternização, como pensa seg-
mentos da esquerda euro centrada. O modo de produção capitalista (Marx) e
o capitalismo histórico (Wallerstein) são estruturas econômicas de algo mais
fundamental: a civilização-mundo moderna ocidental, com suas múltiplas
hierarquias de exploração, instrumentalização e dominação. A partir dessa
compreensão, afirma Ramón Grosfoguel (2017), no prefácio do livro de Hou-
ria Bouteldja (2017), que diante da crise da civilização moderna:
58 Saberes decoloniais
dentro do entendimento de parte do pensamento decolonial, posição que fica
bem explicitada com Ramón Grosfoguel (2021). As lutas pela inclusão social,
pelo reconhecimento das diferenças, pelo combata à fome e por distribuição
de renda, por desenvolvimento sustentável, em si, não passaram de lutas con-
junturais, cíclicas e economicistas, que até chegam a alcançar algumas con-
quistas pontuais e provisórias em algumas conjunturas, mas não entram no
âmago da crise do padrão civilizador moderno.
Com o processo de globalização, no qual o neoliberalismo tem a pre-
tensão de ser a nova razão do mundo, fazendo-nos entrar na era pós-democrá-
tica (Dardot/Laval), a disputa entre os capitalistas, pelo controle e pela acu-
mulação da maior parte das riquezas socialmente produzidas, dos territórios e
patrimônio natural a ser mercantilizado, coloca-os na condição de inimigos,
de guerra de todos contra todos.
Nessa guerra, os capitalistas se unem contra a ideia de um capitalismo
distribuidor de renda, de um Estado de bem-estar, o que reduz a ação e o hori-
zonte da esquerda euro centrada à defesa de projetos minimalistas de respostas
imediatas e subordinados aos atendimentos dos setores extrativistas e rentistas
neoliberais. Assim, se numa sociedade que caminha para barbárie, as políticas
de combate à fome e à miséria se tornam necessárias e urgentes, é preciso ter
clareza que isso é o imediato, não um horizonte. Ficar preso ao imediato ou
à pura disputa do poder pelo poder é ser consumido pela matriz colonial de
poder da modernidade. A imagem para reproduzir tal situação é de uma cobra
em círculo, com a boca engolido o rabo, consumindo-se, sendo auto engolida.
A política decolonial tem a noção de transmodernidade como hori-
zonte de luta de longo prazo. Nesse sentido, as lutas imediatas contra a fome;
o desemprego, as exclusões; pelo combate às desigualdades; pela defesa do
meio ambiente, das identidades e diferenças sexuais e as lutas contra as formas
de exploração e dominação são as pautas concretas e materiais de partida para
mobilização e organização das lutas, mas que devem ser orientadas, também,
por uma disputa epistemológica, pelo fim do império cognitivo do eurocen-
trismo e pela ruptura com a colonialidade do poder, do ser e do saber.
Para os modernistas, os países por eles considerados subdesenvolvidos,
os pobres, os povos originários e negros, que vivem sendo desrespeitados e em-
pobrecidos, é que constituem o problema do mundo contemporâneo. Para o
60 Saberes decoloniais
às múltiplas formas de dominação produzidas pelo modo de produção da
modernidade? Na obra o Anti-Dühring, Engels (1976), ao falar sobre o socia-
lismo, declara:
62 Saberes decoloniais
que a história da luta de classes. O fim do capitalismo marcaria o fim da pré-
-história da humanidade.
Karl Marx expressou que a ideologia é um componente da razão mo-
derna que apresenta os interesses particulares como ideias universais. Todavia,
a ideologia, como elemento da colonialidade, é mais do que um instrumento,
ela nos instrumentaliza. Assim, somos possuídos por ela e, em alguma medi-
da, todos nós somos submetidos à colonialidade do poder, do saber e do ser.
O que significa que o fato de lutarmos contra a exploração capitalista, contra a
opressão, contra as formas de dominação, contra o racismo, contra o machis-
mo e contra a homofobia, desejamos ou não, reproduzimos, em algum grau,
em nossas relações sociais tais explorações, opressões ou dominações. Nesse
sentido, não existem agentes ou sujeitos sociais de transformação puros, como
bem afirma Paulo Freire, na sua obra A Pedagogia do Oprimido:
64 Saberes decoloniais
fico e tecnológico. O desenvolvimentismo se fundamenta na ideia de que, sem
romper com a matriz colonial de poder, sem romper com a dependência e a
superexploração dos países subdesenvolvidos pelos desenvolvidos, os países em-
pobrecidos podem, seguindo a orientação dos países do centro, sair da condição
de periferia, tornando-se desenvolvidos, de primeiro mundo.
Não é por acaso que quem controla, define, estabelece metas de cres-
cimento e modelos de políticas de desenvolvimento (combate à pobreza, cres-
cimento econômico e sustentável) são técnicos, especialistas e pesquisadores
a serviço de governos, empresas, bancos, agências de classificação de risco, do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Fundo Mo-
netário Internacional (FMI) e Banco Mundial.
66 Saberes decoloniais
lar ou de representar os “ou” a perspectiva dos dominados, dos explorados e
subalternizados (operários, negros, indígenas, homossexuais, mulheres, sem
teto, sem terra, etc.), mas o de defender a mudança geográfica da razão ou a
geografia do conhecimento como instituição política e epistêmica. Seu com-
promisso é com a defesa de uma ecologia de saberes, das epistemologias do
sul, do pensamento de fronteira, da decolonialidade do saber.
Nesse sentido, o lugar de fala, quando compreendido como a posse de
uma fala verdadeira, legítima ou autorizada, porque proferida por um sujeito
legítimo, é uma reprodução da gramática da colonialidade do poder como um
“discurso competente” que tem um dono, que quer se impor como reserva de
mercado de bens simbólicos, é uma forma de silenciar o outro. Todavia, todos
têm o direito de tornar claro o seu lugar de fala, de demarcar o seu lócus de
enunciação.
A transição civilizacional decolonial implica o processo permanente
de descolonialidade ou de desobediência epistêmica, política, econômica, cul-
tural, estética, emocional, espiritual e ética. O giro decolonial implica um
localismo cosmopolita no qual o modo de ser local e de fazer política leva em
conta a articulação com as necessidades de todo o planeta.
REFERÊNCIAS
68 Saberes decoloniais
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. No-
vos rumos, São Paulo, v. 17, n. 37, p. 4-28, 2002. Disponível em:
https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/
view/2192/1812. Acesso em: 05 jun. 2021.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad”. In: PAR-
LEMO, Zulma; QUITERO, Pablo (Orgs.). Anibal Quijano. Textos
de fundación, Buenos Aires:Ediciones del Signo, 2014.
SAFATLE, Vladimir. Uma revolução molecular assombra a América Latina.
El País, 19 maio 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opi-
niao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html. Acesso
em: 06 maio 2021.
SCHWAD, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2019.
INTRODUÇÃO
72 Saberes decoloniais
como chama Jesus (2020), rompendo não apenas barreiras geográficas, mas
conceituais e de ordem econômica chegando a atender ao mercado editorial
da época e publicar seus livros.
Ao escrevermos esse trabalho, nos colocamos como pesquisador e pes-
quisadora que reconhecem todos esses aspectos como importantes e relevan-
tes que ao serem estudados e postos em evidência, tensionam debates que
confrontam as teorias dominantes em jogo até aqui e revelam conhecimentos
pós-coloniais a partir da produção literária de Carolina Maria de Jesus.
Acrescemos ao debate sobre seu legado, analisando a luz de saberes
decoloniais, as narrativas da escritora Carolina Maria de Jesus, que a nosso
ver ajudam a evidenciar e explicar em alguma medida o caráter excludente
presente no espaço escolar ao não reconhecer os dilemas e tensões sofridos por
milhares de crianças e jovens negros(as) que não conseguem dar continuidade
aos seus estudos, passam por sucessivos fracassos propositais estruturantes em
seu desempenho educacional e, como Carolina Maria de Jesus, vivem na peri-
feria dos grandes centros urbanos, tão atuais quanto as descritas pela escritora
em seus vastos textos.
A essas crianças e jovens negros(as) por meio de práticas educacionais
que não reconhecem o ponto de partida de suas vidas e as dificuldades de
sua permanência nos espaços escolares ante às carências de objetivas que ex-
perimentam por suas condições e estrutura de vida material e social, lhes são
negados direitos fundamentais, entre eles, o direito à escolarização, à medida,
em abandonam a escola e/ou passam por sucessivas mazelas ao longo da sua
trajetória escolar.
A construção de saberes e conhecimentos acumulados pela huma-
nidade, via instituição escolar, é fator preponderante e reconhecido social-
mente como definidor de possíveis chaves de melhoria de vida e redução de
desigualdade entre as pessoas, “comum é a atribuição à educação do papel de
instrumento de correção das desigualdades injustas produzidas pela ordem
econômica” (CUNHA, 1977, p. 55).
A escola ideologicamente é reconhecida por classes menos favorecidas
como um portal de oportunidades que podem por meio da aprendizagem dos
conhecimentos veiculados, ajudar as pessoas a ascenderem socialmente, mas
sabemos que para pessoas advindas do mesmo contexto de Carolina Maria de
5 Referimo-nos desse modo para fomentar a compreensão de que a vida e obra de Carolina Maria
de Jesus tem a possibilidade de Carolinizar as pessoas de acordo com suas identidades.
74 Saberes decoloniais
longo de anos, já demonstra como a sociedade e seu projeto educacional trata
da inclusão de crianças e jovens negros(as) na escola. Estudos envolvendo
a trajetória de vida de Carolina Maria de Jesus se situam nessa intervenção
quanto a organização do conhecimento, que desprivilegia a vida e o contexto
das pessoas que estão na escola, o conservadorismo acadêmico silenciou a
história de uma mulher que ultrapassou fronteiras que obteve sucesso em sua
produção de literatura brasileira.
Carolina Maria de Jesus poderia se dedicar aos estudos escolares tendo
sua vida solapada diante de tantas dificuldades financeiras e de manutenção
da vida? Mas a sua condição não a impediu de escrever e ainda assim construir
um sonho. Quantas crianças e jovens negros(as) abandonam seus sonhos ao se
depararem com as dificuldades de manter-se estudando?
Pensar de forma crítica sobre como o conhecimento acadêmico si-
lencia sonhos e desejos ao não conhecer a realidade de milhares de crianças e
jovens negros(as), é perceber que não temos um pensamento escolar elitizado
ocasionalmente, mas que ele faz parte de um processo de organização do co-
nhecimento com base em uma “epistemologia dominante “[...] deste hiper-
-contexto na reivindicação de uma pretensão de universalidade” (SANTOS
e MENESES, 2009, p. 10), classificando e normatizando o que reconhecem
como uma experiência válida e “com isso, desperdiçou-se muita experiência
social e reduziu-se a diversidade epistemológica, cultural e política do mundo”
(SANTOS e MENESES, 2009, p. 10).
Propomos na construção desse texto, uma leitura de aspectos deco-
loniais expressos pelo legado de Carolina Maria de Jesus uma mulher preta,
pobre e periférica que com conhecimento, sensibilidade, nos contou a vida de
difícil acesso aos bens materiais de consumo e sucessivas dificuldades que se
apresenta na condição material de sobrevivência, assim como, toda violência
sofrida ao seu corpo negro, nos permitindo refletir sobre quais práticas nos
inspiram a encontrar sonhos e esperanças para as crianças e jovens negros(as)
nos seus espaços escolares.
Destarte, as escritas propostas aqui, fazem parte do projeto decolonial
numa perspectiva do Sul para repensar os espaços escolares com o recorte racial
a partir da vida e obra de Carolina Maria de Jesus. Atenua-se que as escritas
pretas e Carolinista nos dão subsídio para debater as violências raciais em seus
76 Saberes decoloniais
Nesse sentido, a decolonialidade é elemento para que a fala de quem
não pudesse falar seja escutada e respeitada em qualquer espaço que ecoar e,
também, que suas produções de conhecimentos, culturas e corpos sejam com-
preendidas como elementos constituintes no mundo.
Para compreender esse modo de inversão enquanto possibilidade, é
preciso uma atenção nas diferentes formas de se dizer como esse processo se
estabelece na prática, visto que, a prática é parte fundante nesse projeto.
78 Saberes decoloniais
tanto corporalmente, quanto no sentido epistêmico.
Ainda nessa discussão, é preciso haver a compreensão que decolo-
nialidade deve estar ligada diretamente à concepção de práxis (discurso +
ação), a mesma não acontece quando essas duas categorias caminham dis-
tantemente. Rufino (2019) nos chama atenção para essa especificidade alo-
cada ao movimento decolonial. É importante frisar que o autor se utiliza da
palavra descolonização como processos de decolonialidade, o mesmo explica
que compreende as duas categorias como processos contínuos e resultantes de
movimentos históricos que estão ativos.
80 Saberes decoloniais
ou os diferentes sistemas de valor que hoje chamamos
de culturas, etnias, tradições e civilizações, assim como
estes continuam a delinear comportamentos emerge
como uma dimensão básica do exercício da cidadania.
FANON, 2008, p. 103)
Gomes (2020) aponta que a vida e obra de pessoas negras nos espa-
ços escolares é um movimento importante no processo decolonial. A inserção
desses sujeitos como produtores(as) de conhecimentos é potência para práti-
cas pedagógicas e possibilidades de reflexões que fazem a partir de “[...] um
percurso de ruptura epistemológica e política no sentido de descolonizar os
82 Saberes decoloniais
currículos e o próprio campo do conhecimento” (GOMES, 2020, p. 224).
Essa perspectiva de inserção das produções de Carolina Maria de Jesus
para contribuir com reflexões acerca do racismo nos espaços escolares dialoga
com a dimensão acima e promove uma possibilidade de ruptura de conhe-
cimentos impostos como universais e irrefutáveis, visto que, é a presença de
uma autora negra com sua história contribuindo com o desenvolvimento de
um novo olhar sobre a possibilidade de produção de conhecimento.
Consideremos que o próprio corpo da escritora já faz parte da decolo-
nialidade, pois, estamos falando de uma mulher intelectual que escrevia com
os papéis que encontrava em seu ofício.
Partindo da lógica da razão eurocêntrica, Carolina Maria de Jesus
não teria todas as características fundantes para estar nesses espaços como
produtora de conhecimento. Seu labor e a necessidade de angariar dinheiro
para a manutenção de sua família, já a afastaria dos espaços escolares que não
reconhecem as itinerâncias sociais e as alternativas encontradas para a busca
de uma renda. Itinerâncias e necessidades materiais que por vezes causam a
infrequência na escola entre crianças e jovens negros(as) que como Carolina
Maria de Jesus, trabalham por necessidade extrema de ajuda e/ou sustento dos
seus lares junto às suas famílias.
O que não acontece na lógica decolonial, nessa linha de pensamento
a intelectual emerge como possibilidade de atravessamento nos espaços es-
colares a partir da categoria sujeito e produtora de ciência, o que referencia
qualquer prática a partir da sua vida e obra.
O que a vida de Carolina Maria de Jesus ensina aos(as) educadores(as)
nos espaços escolares? Que os processos pedagógicos devem estar atrelados à
função emancipatória que a escola deve propor a partir de outros sujeitos que
fundam outras pedagogias (ARROYO, 2014).
Em tela, estamos falando de um projeto educacional que deve evi-
denciar como as mazelas construídas e perpetuadas socialmente devem ser
combatidas de maneira incisiva a partir de outras produções que nascem no
âmbito espacial onde essas mazelas se localizam.
Numa inserção epistemológica a produção escrita de Carolina Maria
de Jesus apresenta uma base de como, a mesma, deve ser referência nessa ques-
tão no que tange às discussões de raça. A categoria raça aparece em diferentes
84 Saberes decoloniais
Os meus filhos andam tristes com receio de sair na rua,
porque são apedrejados por desconhecidos. Quem pre-
domina no Brasil é o branco. E ele quer tudo de bom
só para ele. [...] O branco nos persegue. Achando que o
negro não deve ter posição elevada. Deve ser desajustado
favelado e ladrões (JESUS, 2021b, p. 144).
Um espaço escolar que não tensione essas situações relatadas, não va-
loriza os corpos negros que dele faz parte e, consequentemente, não cumpre
a função social da escola de emancipação dos sujeitos, evidenciando quais
processos estão infundidos em nossa sociedade, nesse caso, a raça.
86 Saberes decoloniais
os negros que criaram o racismo, e, ao contrário disso segue resistindo para
existir e escrever mesmo diante de toda violência que seu corpo negro sofre
por meio das relações sociais.
A sua consciência acerca da divisão entre coisas que são para bran-
cos(as) e coisas que são para negros(as), impostas por essas relações raciais
que vai viveu, não esconde a compreensão sobre o enrijecimento das relações
entre aquelas pessoas que a destratam. Ela mesma empreende sua resistência,
reconhecendo o racismo e ajudando seu coletivo corpóreo quando diz: “ela é
preta. E eu também. Se puder auxiliar a raça negra auxílio com todo prazer”
(JESUS, 2021, p. 166). Ou quando aponta: “Na questão do negro com o
branco, ninguém procura saber com quem é que está a razão. E o negro é
quem acaba sendo bode expiatório.” (JESUS, 2014, p. 65).
Por que acreditamos que os escritos de Carolina Maria de Jesus, por
meio das evidências da violência de práticas racistas, podem se apresentar
como denúncia e promover uma reflexão dentro dos espaços escolares se cons-
tituindo numa prática decolonial? Primeiro, não podemos nos esquecer que
ainda hoje, infelizmente, o racismo se reproduz na escola, seja pela forma
como o currículo, as práticas pedagógicas ou mesmo as relações entre os sujei-
tos no seu interior estão postas, que permanecem silenciando e inviabilizando
conteúdos importantes para que possamos conhecer a real face de como o ra-
cismo foi estruturado e organizado no projeto de sociedade colonial no Brasil,
ou seja porque o racismo encontra também ressonância no desconhecimento
de educadores(as) sobre a realidade vivida por educandos(as) que estão na
escola pública e advindos das periferias dos centros urbanos.
Segundo, porque os(as) educandos(as) que estão na escola pública e
advindos(as) das periferias dos centros urbanos são negros(as). A exemplo,
dados publicados pelo IBGE em 2020 que demonstram que há cada “Seis de
cada dez estudantes matriculados na rede pública de ensino médio são pretos
ou pardos”.8
Terceiro, porque a escola é tradicionalmente, conforme declara Ara-
nha (2006), uma instituição da sociedade moderna que promete ser portal
8 Dados do IBGE publicados em 12 de novembro de 2020 descrevem que pretos ou pardos repre-
sentavam 62,1% da população entre 15 e 17 anos em 2019. Entre os estudantes da rede pública
de ensino médio, essa proporção é 63,9%. Já na rede particular, eram 35,7%. IBGE, Agência de
Notícias. 2020.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Carolina Maria de Jesus foi uma mulher à frente do seu tempo que
de forma corajosa, criativa e espirituosa contou ao Brasil por meio da escrita
88 Saberes decoloniais
o que significa ser mulher negra, periférica e com poucas chances de emanci-
pação diante dos elementos que uma sociedade moderna descreve que um (a)
cidadão (ã) deveria possuir para ter acesso a níveis elevados de escolarização e
titulação acadêmica.
Mesmo que não tenha obtido em vida o título formal de Doutora,
deve ser reconhecida como uma das mais importantes escritoras de todos os
tempos que o Brasil já teve a oportunidade de ter, a escrita da mesma é in-
terdisciplinar porque se aportou em diversos campos epistemológicos para
descrever um Brasil forjado a partir do racismo.
A intelectualidade Carolinista é mais uma esperança contra-colonial
na esteira de tantos outros processos de resistência. Conhecer Carolina Maria
de Jesus é fôlego e felicidade na crença que podemos esperançar como nos diz
Freire (1997)
Uma esperança que pode não transformar o mundo como assim o de-
sejamos, mas pode comprometer a participação de educadores(as) e educan-
dos(as) numa postura desveladora e desmistificadora dos sistemas perversos de
violência nas relações sociais.
Carolina Maria de Jesus, com sua trajetória de luta e resistência abriu
caminhos para que hoje possamos referenciá-la como uma mulher negra que
rompe o estigma imposto aos nossos corpos.
A argumentação deste texto por meio das obras de Carolina Maria de
Jesus, destacando a denúncia que seus textos nos oferecem, é engrenagem ini-
cial de estudos que pretendem anunciar uma emergência no século XXI, pro-
mover reflexões entre educadores(as) e educandos(as) no interior das escolas
para o combate as práticas racistas que violentam o corpo negro dos sujeitos
presentes na escola e destroem a autoestima e os sonhos que por ventura as
crianças e jovens negros(as) possam ter.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
90 Saberes decoloniais
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C3%A3o_de_Professores_%C3%8Anfas e_Ensino_Superior/Pro-
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tica, 2020.
92 Saberes decoloniais
MATERIAIS ORAIS E DECOLONIALIDADE:
REFLEXÕES NECESSÁRIAS
Mauren Pavão Przybylski da Hora Vidal1
Começar essa reflexão com tal diferença, embora não pareça, tem sua
importância. Ingressei, no ano de 2002 no projeto de pesquisa Transmissão,
transgressão e identidade cultural: estudo comparativo dos lendários do Québec
e do RS, coordenado pela Dra. Sylvie Dion (FURG). Na altura, estando eu no
segundo ano do curso de Letras – Português/Francês e respectivas literaturas,
meu conhecimento sobre narrativas era bastante incipiente o que não me per-
mitia, também, ter um olhar crítico para o estudo que começava a realizar.
Tendo tomado como objeto de análise A Salamanca do Jarau, narrativa
pertencente à tradição oral gaúcha e La Jongleuse, advinda do Québec a ideia
primeira foi entendê-las como participes de uma literatura oral, aquela cujo
94 Saberes decoloniais
Então, se para um rol de pesquisadores pertencentes ao GT de Lite-
ratura Oral e Popular3 não bastava mais pensar em algo que desse conta ape-
nas de uma ideia canônica na medida em que suas pesquisas versavam sobre
comunidades ribeirinhas, originárias, arte, poesia, pintura, a arte de contar
histórias, como se poderia pensar e nomear a teoria-chave, central para tais
estudos? Passa-se, então, e inspirados na poesia oral de Zumthor, a consolidar
o campo das poéticas orais.
Sobre isso, Fernandes destaca que:
96 Saberes decoloniais
riales y su función poética, diferenciándolos del habla
cotidiana y de sus funciones básicas referenciales. (Her-
nández e Vázquez, 2020, p.33-4)
98 Saberes decoloniais
OS MATERIAIS ORAIS: UM CONCEITO DECOLONIAL?
Esse deve, aliás, ser um princípio a ser seguido por toda e qualquer
pessoa que deseje ter sujeitos de pesquisa e não objetos. É importante se deixar
claro o objetivo com tal pesquisa para que desde o início seja fácil perceber se
há ou não interesse do outro em estar em diálogo com a academia.
6 Grifo da autora.
São esses dados que descreverão, com detalhes, de onde vem e o que
contam estes sujeitos sendo de fundamental importância na legitimação não
só dos narradores, mas também de suas narrativas.
Santos nos traz, ainda, nessa mesma reflexão um ponto de vista bas-
tante importante quando nos voltamos para o exercício de centralizar falas
e ações de sujeitos colocados em um espaço de pouco ou nenhum destaque
social: a diferença principal entre os três modos de dominação. Para ele, en-
quanto o capitalismo pressupõe a igualdade abstrata de todos os seres humanos, o
colonialismo e o patriarcado pressupõem que as vítimas deles são seres sem plena
dignidade humana, seres sub-humanos (ibidem).
Sem arrogância, mas também despidos de falta modéstia, pode-se di-
zer que o modo como os protocolos estipulam a catalogação dos materiais
orais faz parte de um projeto que intenta “reestabelecer” a dignidade de su-
jeitos que foram desde sempre invisibilizados pela academia. Por isso, é uma
FONTE: https://lanmo.unam.mx/proyectos.php
13 https://lanmo.unam.mx/proyectos.php
FONTE: https://lanmo.unam.mx/proyectos.php
14 Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1415-69542018000100004#:~:text=A%20multiculturalidade%20implica%20um%20con-
junto,v%C3%A1rias%20culturas%20no%20mesmo%20patamar. Acesso em 20 jun.2022
FONTE: https://lanmo.unam.mx/proyectos.php
AS PUBLICAÇÕES DO LANMO
FIGURA 4: PUBLICACIONES
FONTE: https://lanmo.unam.mx/publicaciones.php#tf-publicaciones
FONTE: https://lanmo.unam.mx/psonoras.php
Essas produções sonoras acabam sendo de poetas populares, cancionis-
tas, artistas que nem sempre tem destaque nas mídias, mas são donos de uma
arte que tem muito a dizer. São sujeitos que representam as tantas culturas e
tradições que o Mexico possui. No site do Laboratório fica disponibilizado,
também, os álbuns produzidos para que quem desejar conhecer tenha acesso.
FONTE: https://lanmo.unam.mx/psonoras.php
FONTE: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/index.php
FONTE: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/fichaactocomunicativo.php?id=1
FONTE: https://lanmo.unam.mx/repositorionacional/fichaactocomunicativo.php?id=1
(IN)CONCLUSÕES ORAIS-DECOLONIAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
O “AFROFUTURISMO”
Narrativas como a dos curtas aqui analisados, que surgem pelo pró-
prio desejo de “re-existir” (ALBÁN, 2018), longe de apelar ao uso e à repro-
dução de imagens essencialistas e romantizadas, utilizam de modo combinado
a ironia, a comédia e o drama no momento de narrar tanto seu passado, seu
presente, como – sobretudo – seus futuros possíveis. Por meio da criação des-
3 “Comenzar todo de nuevo significa tener el poder de nombrar por primera vez el mundo; de tra-
zar fronteras para establecer cuáles conocimientos son legítimos y cuáles son ilegítimos, definiendo
además cuáles comportamientos son normales y cuáles patológicos. Por ello, el punto cero es el del
comienzo epistemológico absoluto, pero también el del control económico y social sobre el mundo.
Ubicarse en el punto cero equivale a tener el poder de instituir, de representar, de construir una visión
sobre el mundo social y natural reconocida como legítima y avalada por el Estado”. Tradução do autor.
Qual outro destino teria uma criança cuja infância se baseia em lei-
turas que reforçam a associação de pessoas de sua raça/etnia com figuras ne-
Após a fala “Fim de linha, pivete”, vemos o ataque realizado pela polí-
cia, a qual não apenas desconsidera a possibilidade de um julgamento ou um
contraditório, como também estabelece a pena de morte imediata a crianças
provavelmente em situação de vulnerabilidade social/econômica. Na figura 2,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 O presente texto é a tradução para o português, com pequenas alterações, do artigo “Desplaza-
mientos de Carolina en Hispanoamérica: algunos apuntes a partir de las traducciones de Quarto de
despejo al español” aparecido em espanhol na revista Belas Infiéis v. 10 n. 1 (2021).
2 Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. E-mail: bruna.oliveira@unila.
edu.br
3 Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. E-mail: mario.torres@unila.
edu.br
Penélope Serafina Chaves Bruera4
Deslocamentos de Carolina
5 As citações dos textos de Butler (2000), Sahovaler (1961), Trejo (1965), Burneo Salazar (2018),
ASALE (2007) e Ribeiro (2019) são traduções nossas ao português.
6 A esse respeito, indicamos a leitura das páginas 34, 67, 70 e 72 de Casa de alvenaria (JESUS,
2019).
7 Uma lista bastante completa da fortuna crítica sobre Carolina pode ser encontrada no website “Vida
por escrito”, organizado por Sergio Barcellos. Disponível em: < https://www.vidaporescrito.com/>.
8 Nos artigos “A construção do outro nas edições e traduções da obra de Carolina Maria de Jesus”
(2019), de Ana Cláudia dos Santos São Bernardo, e “A tradução francesa da linguagem compósita
de Carolina Maria de Jesus” (2011), de Germana Henriques Pereira de Sousa, são apontadas limi-
tações nas traduções inglesa e francesa, respectivamente, da obra de Carolina, semelhantes às aqui
assinaladas para as traduções espanholas dos anos 60, sugerindo a necessidade de novas reescritas da
autora também nessas línguas.
Isso significa, em nosso caso, que apesar de ser ineludível que o texto
passasse por um processo de homogeneização, estão presentes nele marcas
que evidenciam particularidades de cada um/a de seus tradutores/as, o que,
de nosso ponto de vista, resulta em uma das características mais positivas do
trabalho que entregamos.
O seguinte percurso é fruto de vários olhares sobre a obra de uma autora
tão expressiva e singular como Carolina, e pretende enfatizar o complexo pro-
cesso que tem lugar como parte do trabalho coletivo que propusemos realizar.
Texto-fonte
15 de julho de 1955 – Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par
de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimenticios nos impede a realização dos nossos
desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei
e remendei para ela calçar. [...] Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me. Esperei até
as 11 horas, um certo alguem. Êle não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quan-
do despertei o astro rei deslizava no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: – Vai buscar água
mamãe! (JESUS, 1960, p. 9)
Trad. argentina Trad. cubana Nossa Tradução
(Editora Abraxas) (Casa de las Américas) (Editora Uniandes)
15 de julio de 1955. 15 de julio de 1955. Cumple- 15 de julio de 1955 Cumple-
Cumpleaños de mi hija años de mi hija Vera Eunice. Yo años de mi hija Vera Eunice.
Vera Eunice. Preten- pretendía comprarle un par de Pretendía comprarle un par
día comprarle un par de zapatos. Pero el costo de los ví- de zapatos. Pero el costo de
zapatos. Pero el costo de veres nos impide la realización los géneros alimenticios nos
los alimentos nos impide de nuestros deseos. […] Lavé a impide la realización de nues-
la realización de nues- los niños, los acosté, me lavé y tros deseos. […] Ablucioné
tros deseos. […] Lavé me acosté. Espere hasta las 11 a los niños, los dejé en el
a los chicos, los acosté, por alguien. El no vino. Me tomé lecho, me ablucioné y entré
me lavé y me acosté. un mejoral y me acosté de nue- al lecho. Esperé hasta las 11
Esperé hasta las 11 a un vo. Cuando me desperté el astro a cierto alguien. Él no vino.
cierto alguien. Pero no rey se deslizaba en el espacio. Mi Tomé un Mejoral y me acosté
vino. Tomé un mejoral y hija Vera Eunice decía: ¡Ve a bus- nuevamente. Cuando desperté
me acosté nuevamente. car agua, mamá! (JESUS, 1965, el astro rey se deslizaba en el
Cuando me desperté el p. 17) espacio. Mi hija Vera Eunice
astro rey se deslizaba por decía: —¡Vaya a buscar agua,
el espacio Mi hija Vera mamita! (JESUS, 2019, p. 29)
Eunice decía: Vaya a
buscar agua, mamá. (JE-
SUS, 1961, p. 17)
Elaboração: autores.
17 Salientamos que devido à complexidade e cuidado exigidos pela questão, não trataremos neste
documento as diferenças político-ideológicas que podem ser relacionadas com o uso de “preto” e de
“negro” em português, especialmente no Brasil. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), por exemplo, o uso de “preto” designaria a cor da pele, enquanto “negro” corresponderia
à noção de raça, que é socialmente construída e altamente criticável de diferentes perspectivas e
filiações teóricas (ver a este respeito, por exemplo, LUGONES, 2008).
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Cunhataí, por exemplo, carrega uma marca que permite que a mes-
ma seja identificada pelos anciãos de sua aldeia de origem. Em sua busca por
3 Refere-se à zeladora das divindades e casas-terreiro na tradição angola-congo (SILVA, 2020, n.p).
4 Divindade dos ventos e trovões (SILVA, 2020, n.p).
5 Refere-se à divindade do trovão, do fogo e da justiça na matriz angola-congo (SILVA, 2020, n.p).
6 Instrumento sagrado utilizado para invocar divindades (SILVA, 2020, n.p).
7 Representa uma “qualidade de Xangô, divindade do fogo, do trovão e da justiça iorubá. Veste-se
de branco” (SILVA, 2020, n.p.)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
TORNAR-SE PRENDA
Essa etapa tem o intuito avaliar a expressão oral das candidatas. Res-
salta-se que, na competição para tornar-se a Primeira Prenda do Estado do Rio
Grande do Sul, a eleição do júri é extraída da grande lista de Conselheiros do
Literatura e outros gêneros do conhecimento na América Latina 227
MTG (MTG, 2020), composta por 118 conselheiros, entre titulares, suplen-
tes, beneméritos e vaqueanos, sendo que, dentre estes, localizamos apenas os
nomes de 12 mulheres. Isso significa que, mesmo obtendo todo o conheci-
mento necessário para a produção de um conteúdo coerente e que condiz com
o esperado do Tradicionalismo Gaúcho, e assim, obtendo pontuação máxima
no quesito “Conteúdo exposto”, uma candidata poderia ser facilmente des-
qualificada por não adequar a sua linguagem ao esperado por juízes, em sua
enorme maioria homens e com expectativas masculinas e pré-determinadas
de como estas mesmas candidatas deveriam se comunicar, e portanto, pensar.
As mulheres só passaram a fazer parte do Movimento Tradicionalista
Gaúcho em 1949, alguns anos após sua fundação. Sua inclusão se deu através
da dança, culinária ou decoração, tarefas tidas pelo movimento como coeren-
tes com o universo feminino. Assim nasceu a prenda, segundo Dutra (2002),
termo escolhido para representar a companheira do gaúcho heroico, restrito
às mães, filhas e esposas e em oposição às “chinas”:
REFERÊNCIAS
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Alegre: L&PM, 1985.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
incapacidade de ver mesmo a casa como um lugar compelido e limitado, um entre muitos pontos a
partir do qual apreciamos o mundo”. (Oyéwùmí, 2000, p 1095.)
7 MCKENNA, Amy (revisão) e editores da Enciclopédia Britânica, “The Igbo people”. In https://
www.britannica.com/topic/Igbo. Acessado em 20.09.2020.
14 In https://pt.wikipedia.org/wiki/Oy%C3%A8r%C3%B3nk%E1%BA%B9_Oy%C4%9B-
w%C3%B9m%C3%AD. Acessado em 19.09.2020.
15 Maat -para alguns autores uma deusa egípcia, para outros, um princípio, o da verdade, da justi-
ça, da retidão e da ordem. Para alguns deusa responsável pela manutenção da ordem cósmica e social
“Maat é a concepção egípcia de ordenação e da relação que evidencia e governa todos os aspectos da exis-
tência, semelhante à noção ocidental de lei natural. Estende-se desde os elementos da natureza (o mundo
dos deuses) até o comportamento moral e social da humanidade.” (ALLEN, James, 1998, p. 26).
REFLEXÕES FINAIS
17 “A questão é que são tênues as fronteiras entre instituição, legitimidade social desta e imposição
de uma ideologia, assim como a desidentificação de socialistas e feministas com a crítica a um tipo
histórico e social especifico de família- a família nuclear ou extensa baseada na autoridade do pai-
-marido e na divisão sexual do trabalho, do poder e do prazer. A crítica feminista a tal tipo de família
foi confundida com uma palavra de ordem genérica: “morte à família”. Tal simplificação é rejeitada
por diversos autores. Por exemplo, Chodorow e Contratto (1982) em artigo crítico a correntes fe-
ministas, negam a propriedade de posturas que consideram a mãe como toda poderosa, assim como
aquelas que reduzem a mãe e a mulher a vítimas passivas.” (CASTRO, 2014, p 23.)
Abandonada pela mãe na infância, Maya relata tudo o que ela fez para
reconectar-se com a filha (2018).2Ao longo do livro, também fica patente seu
profundo amor pelo irmão um ano mais velho, Bailey, a quem não só recorria
em busca de proteção, mas também de conselho, e por sua austera avó pater-
na, que lhes em ensinou as bases do autorrespeito e cuidado com os outros.
Para a socióloga americana Patricia Hill Collins, Eu sei por que o pássa-
ro canta na gaiola, exemplifica a capacidade de autoavaliação e autoconfiança
(self-valuation of self-reliance) das mulheres negras (Collins, 2000, p. 116).
Para Collins, as mulheres negras sempre resistiram às imagens de controle
produzidas pela sociedade patriarcal racista norte-americana – imagens que as
estereotipavam ou como matriarcas fortes e autoritárias ou como babás cari-
nhosas, ou como mulheres hipersexualizadas. Uma das principais estratégias
de resistência à opressão é não deixar que o outro diga o que você é, mas, sim,
se autodefinir contando a história de sua vida, seus percalços, sofrimentos e
lutas (Collins, 2000, p. 112 e seg.) A autodefinição, isto é, a capacidade crítica
de não se ver como o opressor ou a opressora quer que você se veja, é, na visão
de Collins, uma estratégia decisiva para a saúde mental e sobrevivência dos
oprimidos.
No prefácio à edição brasileira do livro de Maya Angelou, a filósofa
brasileira, Djamila Ribeiro nomeia de ‘narrativa de libertação’ à jornada de
autodefinição empreendida por Angelou em seu romance. Trata-se de uma
narrativa acerca do modo como a autora foi ao longo de sua vida superando
as barreiras e traumas que a vida foi lhe colocando.
2 No livro Mamãe & Eu & Mamãe (2018), Maya relata com mais pormenores a sua relação com a
mãe, o quanto se tornaram amigas e se apoiaram.
[…]
I know why the caged bird sings, ah me,
When his wing is bruised and his bosom sore, –
When he beats his bars and he would be free;
It is not a carol of joy or glee,
But a prayer that he sends from his heart’s deep core,
But a plea, that upward to Heaven he flings –
I know why the caged bird sings!3
REFERÊNCIAS
ANGELOU, Maya. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. Trad. Regiane
Winarski. São Paulo: Astral Cultural, 2018.
hooks, bell. Erguer a voz. Pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia
Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought. Second edition Nova Ior-
que: Routledge, 2000.
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Autêntica Editora, 2019.
MCLEOD, Melvin. “There’s No Place to Go But Up” — bell hooks and
Maya Angelou in conversation. In Lion’s Roar. January 1, 1998.
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RIBEIRO, Djamila. “Apresentação”. Angelou, Maya. Eu sei por que o pássaro
canta na gaiola. Trad. Regiane Winarski. São Paulo: Astral Cultural,
2018.
WINFREY, Oprah. “Prefácio”. In Angelou, Maya. Eu sei por que o pássaro
canta na gaiola. Trad. Regiane Winarski. São Paulo: Astral Cultural,
2018.
3 Eu sei porque o pássaro enjaulado canta, ah, eu, // Quando sua asa está machucada e seu peito dolori-
do, Quando ele bate nas barras e para ficar livre;//Esta não é uma canção de contentamento ou alegria,
// Mas uma oração que ele envia do fundo do coração,//Mas um apelo, que aos céus ele lança – Eu sei
porque o pássaro enjaulado canta! Trad. Nota de terapia (https://notaterapia.com.br/2020/06/02/co-
nheca-o-poe ma-que-inspirou-o-titulo-do-livro-eu-sei-porque-o-passaro-canta-na-gai ola-de-maya-
-angelou/; acessado em 18/08/2022.
INTRODUÇÃO
3 Aqui compreendida a partir das definições do sociólogo jamaicano Stuart Hall, que apresenta ao
leitor suas principais ideias no que tange, principalmente, à noção de cultura – o que, em termos
simples e em colocação própria, diz respeito a “significados compartilhados”. Esse conceito, portan-
to, visa dar à linguagem um papel fundamental, já que atua como um “repositório-chave de valores
e significados culturais” (2016).
5 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA,
2008.
6 SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa;
André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. Como comentado acima, não precisa estar
aqui a referência somente no final do texto e o autor e no corpo do texto. Alterar em todo o texto.
[...] Era uma choça quatro águas coberta com capim. Se-
melhante às ocas dos índios que eu via nos livros. A casa
do vovô era tão pobre! Ele catou quatro forquilhas e enter-
rou-as no chão. Pôs dois travessões e as tábuas. Era a cama
com um colchão de saco de estopa cheio de palha. Uma
coberta tecida no tear, um pilão, uma roda de fiar o algodão,
uma gamela para lavar os pés e duas panelas de ferro. Não
tinham pratos, comiam na cuia. (JESUS, 2014, p. 29).
9 EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. In: PE-
REIRA, Edimilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas
sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.
10 BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo” In: LOURO, Guacira
Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
11 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São
Paulo: n-1 edições, 2018a.
INTRODUÇÃO
3 Ver entre outros, LEIT, José Correa, UEMURA, Janaina e SIQUEIRA, Filomena “O Eclipse do
Progressismo. A Esquerda Latino-americana em Debate” São Paulo, Elefante, 2018
4 ACOSTA, Alberto “O Bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos”. São Paulo,
Elefante, 2016; Solón, Pablo “Alternativas Sistêmicas. Em Viver, Decrescimento, Comum, Eco
feminismo, Direitos da Mãe Terra e desgoblalizaço”. São Paulo, Elefante, 2019.
5 Castro, Suzana “O feminismo decolonial. As vozes esquecidas das mulheres que negaram o man-
damento patriarcal de se retirar da vida pública” CULT, n 248, agosto 2019, p 30-33.
6 Vide “El giro decolonial: reflexiones para una diversidade epistémica más allá del capitalismo
global” organizado por Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel (2007).
7 Conf. Buarque de Hollanda, 2020.
REFERÊNCIAS
DEJAIR DIONISIO
É professor colaborador na UNICENTRO - Universidade do Cen-
tro-Oeste do Paraná e é, também, aluno de graduação no curso de Licen-
ciatura em Ciências da Religião na UniFCV - Centro Universitário Cidade
Verde, além de ter sido colaborador externo no NEABI - Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas no Instituto Federal do Mato Grosso do Sul no
campus de Dourados e de Naviraí/MS.
MARJULIÊ ANGONESE
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Comunicação da
UFRGS, mestra em Comunicação e Informação pela mesma instituição. Pes-
quisadora do Laboratório de Interação Mediada por Computador-UFRGS.
Especialista em Cultura Digital e Redes Sociais pela Unisinos e bacharela em
Jornalismo pela Universidade de Caxias do Sul. Foi coordenadora de comu-
nicação social do TRF4, assessora de imprensa do MPRS, além de repórter e
apresentadora das rádios Guaíba e Band News FM.
RAFFAELLA FERNANDEZ
Pós-doutora em Estudos Culturais e Decolonialidade pela UFRJ
(2021), autora de A poética de resíduos de Carolina de Maria Jesus, resul-
tado de sua pesquisa de doutorado em Teoria e História da Literatura pela
Universidade de Campinas (Unicamp). Organizou os quatro últimos livros
de Carolina intitulados: Onde estaes felicidade? (2014), Meu sonho é escrever
(2018), Clíris, poemas recolhidos (2019) e Casa de alvenaria (2021). Atual-
mente compõe o conselho editorial da Companhia das Letras que está organi-
zando e editando a obra completa de Carolina Maria de Jesus.
SUSANA DE CASTRO
Professora do departamento de filosofia e do programa de pós-gra-
duação em filosofia da UFRJ. Fez seu doutorado na Alemanha em 2003 com
tese sobre a substância em Aristóteles. É cocoordenadora do grupo de Pesquisa
Carolina Maria de Jesus e coordenadora o Laboratório Antígona de Filosofia
e Gênero da UFRJ. Publicou, entre outros, os seguintes artigos: “Raça, sexo e
cultura”. In Kalagatos (UECE), 2022; “O caráter anticolonial da luta contra o
racismo no Brasil”. In Debates en Sociologia, 2021.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
A Coleção Pindorama de Estudos Decoloniais tem como ob-
jetivo publicar obras de autores decoloniais e pós-coloniais.
Entendemos que a coleção irá suprir uma lacuna, visto que
apesar de os estudos pós-coloniais terem alguma inserção
no mercado editorial brasileiro, o dos estudos decoloniais é
relativamente desconhecido. O pressuposto comum do de-
colonialismo e do pós-colonialismo é o de que vivemos uma
realidade geopolítica marcada pela violência epistêmica e
pelo colonialismo discursivo dos países do Norte Global.
Entendemos que a produção de conhecimento é afetada
pela divisão internacional do trabalho e pelo capitalismo
global de tal maneira que países do Sul Global marcados
por um passado colonial acabam sendo englobados em
uma universalidade das ciências produzidas no Norte glo-
bal. Nossa realidade social é marcada pela invisibilização e
silenciamento dos subalternos, o subproletariado urbano
e camponeses expulsos de suas terras pelo agronegócio,
os dissidentes sexuais e os corpos racializados. A coleção
Pindorama almeja mostrar a história não contada sobre a
experiência e história dos povos racializados e submetidos
ao racismo de assimilação.