Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva
CONSELHO EDITORIAL
Ana Carla Barros Sobreira (Unicamp)
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
Copyright © Editora Diálogos - Alguns direitos reservados
Copyrights do texto © 2022 Autores e Autoras
Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-
NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Esta obra pode ser baixada,
compartilhada e reproduzida desde que sejam atribuídos os devidos créditos de
autoria. É proibida qualquer modificação ou distribuição com fins comerciais. O
conteúdo do livro é de total responsabilidade de seus autores e autoras.
M956
Estudos linguísticos aplicados [livro eletrônico] : interlocuções na
contemporaneidade / Organizadoras Marcela Regina Vasconcelos da
Silva Nascimento, Rosiane Maria Soares da Silva Xypas, Jaciara Gomes.
– Tutóia, MA: Diálogos, 2022. v.2
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-50-5
1. Estudos discursivos. 2. Representação 3. Linguagem e línguas –
Pesquisa. I. Nascimento, Marcela Regina Vasconcelos da Silva. II. Xyspas,
Rosiane Maria Soares da Silva. III. Gomes, Jaciara.
CDD 410
https://doi.org/10.52788/9786589932505
Editora Diálogos
contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
Sumário
Apresentação..................................................................................................7
DOI: 10.52788/9786589932505.1-1 7
entorno: a literatura participa da formação cultural e ideológica da sociedade,
constituindo-se como locus privilegiado de articulação e contestação de
discursos que constroem realidades sociais. O próprio discurso literário,
ao se instituir como resistência, configura-se como prática libertária (e,
por que não, libertadora?). Historicamente reservado aos homens, cada vez
mais, o espaço literário, que conjuga o saber e o estético, vê a participação
feminina ser potencializada. Começam as esmorecer as fronteiras literárias
que subordinavam mulheres a atuações limitadas.
Neste segundo volume da obra Mulher, identidade e discurso: visões
plurais, os textos põem em foco a produção literária de/sobre mulheres –
chamamos a atenção para o termo no plural, pois o que se problematiza,
discute e enfatiza é justamente a diversidade, ou seja, as diferenças entre
nós (de raça, classe, idade, sexualidade), todavia sem perder de vista o que
nos une, a necessidade de luta pela superação de um sistema patriarcal que
inferioriza, subordina e silencia mulheres ao longo da história.
No primeiro capítulo intitulado “'O estranho mundo de hoje': o enigma
da vida em poemas e narrativas de Cecília Meireles", a autora Rosiane Xypas
abre espaço para reflexão sobre vida, tempo e morte através de poesias e
crônicas literárias escritas por Cecília Meireles percorrendo a vida e a obra
dessa poetisa nascida no Rio de Janeiro no início do século XX. A autora
revela - para o leitor comum e o especialista - um retrato jamais antes visto
de Cecília. De fato, em nosso estranho mundo de hoje pandêmico não
nos conformamos com a morte. E um dos papeis da poesia - nesse mundo
estranho - seria o de recriar mundos menos estranhos e que através dos
poemas talvez condenássemos ou quem sabe, salvássemos a nós mesmos ou
de nós mesmos, dessas estranhezas do mundo.
No capítulo seguinte, Carolina Maria de Jesus, com a obra “Quarto
de despejo”, é estudada no artigo escrito por Allan Jonhnatha Sampaio de
Paula, Samuel Maciel Martins e Joiciane Maria Rodrigues de Carvalho,
intitulado “Preta é minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”: as dimensões
de afeto e escrevivência da mulher negra em ‘Quarto de Despejo’, de Carolina
Introdução
1 Escrevemos uma dissertação de Mestrado sobre as representações da morte na obra poética de Cecília Meireles defendida em
2004 e uma tese de doutorado ampliando esta temática introduzindo sua visão da vida e do tempo, doutorado defendido em 2009.
Resultados apontaram que a vida e o tempo são guiados pela morte, sendo a vida passageira, o tempo, um eterno instante e a morte
natural vista como um dos ciclos da vida.
Pedrina minha, és a mais doce de todas as memórias. /Para a minha alma, a vida
inteira alma de criança,/ amando sempre o encantamento das histórias/ De Bar-
ba Azul, de Ali Babá, de um rei de França…/ … pois a vida completa e bela e
terna ali estava (MEIRELES,1925/2001 p. 108).
O que pensar de uma poetisa que reúne três volumes de prosa totali-
zando umas 900 páginas sobre culturas e modo de vida de outros povos?
O que ela busca aprender? O que procura ensinar? Suas crônicas testemu-
nham a abertura que tinha às culturas e ao Outro. Desse modo, entre 1934
Eles vieram felizes, como/ para grandes jogos atléticos:/ com um largo sorriso
no rosto/ com forte esperança no peito/ – porque eram jovens e eram belos.//
Este cemitério tão puro/ é um dormitório de meninos:/e as mães de muito longe
chamam,/ entre as mil cortinas do tempo,/ cheias de lágrimas, seus filhos. (MEI-
RELES, 1955/2001, p. 1060).
DOI: 10.52788/9786589932505.1-2 26
1947 vai igualmente suscitar certa intimidade com a morte apontando
uma outra atitude poética positiva. Tudo se passa como se Cecília diante
do fato de ter tido dois irmãos e uma irmã morta, pai e mãe mortos, ter
vivido em uma casa desabada, se perguntasse constantemente por que a
vida lhe escolheu em detrimento da dos seus irmãos, da dos seus pais? Por
que ela estava viva e os outros não? Que enigma é esse? Perguntas ainda
sem repostas para mim.
Considerações finais
Referências
Introdução
[...] a maioria dos trabalhos insiste em atrelar à análise da obra aspectos físicos
e sociais da autora. Por exemplo, é recorrente o uso de lexias como 'negra',
'pobre', 'favelada', 'vira-lata', 'resíduo', 'favela', 'lixo', 'mãe solteira', 'marginal'
etc. Não se vê, no entanto, a mesma estratégia de análise quando se aborda, por
exemplo, a literatura de Clarice Lispector (1920-1977). Quantas vezes vimos as
análises da obra da autora de A hora da estrela (1977) recorrerem a termos como
'judia', 'branca', 'divorciada', 'imigrante' ou coisa do tipo? Ora, se esse tipo de
abordagem não serve (e não deve servir jamais) como aporte de análise literária
para a obra de Lispector, por qual razão é, reiteradamente, usado para Carolina?
(CARVALHO DA SILVA; CAVALCANTE CARVALHO, 2021, p. 94-95).
(...) As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excre-
mentos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impres-
são que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo.
Almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um
objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (...) Sou rebotalho.
Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou
jogase no lixo (JESUS, 2014, p. 37, grifos nossos).
2 O que não quer dizer “mulher negra”, porém era comum reduzir a condição de homens e mulheres negras à condição
e denominação simples de “escravos”.
Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice.
Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça
e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera
Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem
culpa de estar no mundo (JESUS, 2014, p. 22).
3 Um exemplo é a escritora Françoise Ega (1920-1976), que nasceu na Martinica e viveu na França. Ao ler trechos do
Quarto de Despejo numa revista francesa, Ega logo se identificou com a escritora brasileira e desejou se corresponder com
Carolina, o que resultou no livro Cartas a uma negra (2021), publicado postumamente em 1978.
Carolina e a escrevivência
Carolina Maria de Jesus traz em sua escrita força, poder e em sua nar-
rativa uma vivência não vista pelos “da casa-grande”, fazendo um paralelo
com Conceição Evaristo, mulher, negra, escritora e linguista da atualidade
que cunhou o termo “escrevivência” com a seguinte explanação em entre-
vista à Revista PUCRS:
Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava
em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e
o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque nin-
guém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi
a realidade (JESUS, 2014. p. 197).
DOI: 10.52788/9786589932505.1-3 47
Lugar este que mesmo sendo 56,2% da população geral brasileira1 ainda
somos minoria em lugares de poder dentro da sociedade, ainda somos de-
sacreditados em nosso profissionalismo, em nosso caráter, em nossa escrita.
Carolina Maria de Jesus trouxe a nós o possível quando para ela parecia
impossível, mostrando a nós o poder e a força preta existente, resistente e
reexistente em cada um de nós.
Considerações finais
Referências
Introdução
2 Este texto faz parte de uma pesquisa desenvolvida por mim para obtenção de título em uma pós-graduação Lato Sensu
em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
Para as mulheres negras ou brancas, a literatura foi por muito tempo espaço de
exclusão e muitas vezes de negação de sua participação. Essas mulheres eram
restritas aos espaços domésticos ou religiosos. Essas mesmas mulheres eram
vítimas de uma sociedade patriarcalista e sexista, enquanto os homens eram
quem dominavam as letras da literatura que circulavam. O sexo feminino
teve seus discursos negados e rejeitados à inclusão no cânone por muitos anos
(MONTEIRO, 2016, p. 2).
DOI: 10.52788/9786589932505.1-4 58
no Brasil, quanto em outros países ser construída a partir de pessoas que
representem esse povo e resgatem a literatura de raiz, definida por Manuel
Ferreira (1977) como a escrita que enaltece a mãe-África e suas caracterís-
ticas.
Para Zilá Bernd (1992) o discurso da obra na literatura africana é jus-
tamente escrever sobre essas pautas que dificilmente seriam relatadas por
escritores não negros, ela segue escrevendo que:
a filiação à literatura negra não se reduz à opção por uma temática negra (o negro
como objeto), nem à cor da pele do escritor (critério epidérmico). O principal
elemento identificador da pertença a este campo é a emergência de um eu-enun-
ciador que se assume como negro no próprio discurso literário (BERND, 1992,
p. 13).
Considerações finais
Considerações iniciais
Para ela, o termo deve ser resgatado, retomando o significado que Gramsci lhe
atribui ao se referir ao 'proletariado', ou seja, aquele cuja voz não pode ser ou-
vida. O termo subalterno, Spivak argumenta, descreve 'as camadas mais baixas
da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da
representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos
no estrato social dominante' (ALMEIDA, 2010, p. 12).
(...) a tarefa do intelectual pós-colonial deve ser a de criar espaços por meios dos
quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa
ser ouvido(a). Para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar
'contra' a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se articu-
lar e, como consequência, possa também ser ouvido. (ALMEIDA, 2010, p. 14)
Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer
especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar.
Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu
barracão ouço valsas vienenses (...) Não invejo as mulheres casadas da favela que
levam vidas de escravas indianas. Não casei e não estou descontente (JESUS,
1960, p. 14).
Considerações finais
DOI: 10.52788/9786589932505.1-5 72
não estão em condição de subalternidade, o que torna o estudo pós-co-
lonial tão importante para entender como essa literatura se distingue das
demais e como ela é recebida pela crítica e pelo público em geral. Tão im-
portante é também o estudo da ciberliteratura, que leva a escrita de autoria
feminina e negra para outro espaço, muito mais explorado pelo público.
O principal questionamento feito por Spivak para a denúncia da su-
balternidade revela que, como explica a autora, quando se trata de priorida-
des globais, a mulher não possui nenhum valor como um item de respeito.
O subalterno pode ser representado, mas ele não pode falar por si mesmo,
a identidade do sujeito subalternizado é a sua própria especificidade, o su-
balterno não fala, porque a condição afônica é o que sustenta a condição
de subalterno; a partir do momento em que o sujeito subalternizado fala,
ele se liberta da condição de subalternidade.
Levando em conta as considerações sobre a literatura afrofeminina
tradicional e a ciberliteratura sob a ótica e método da análise pós-colo-
nial, considerando o sujeito feminino e negro como subalterno, torna-se
possível verificar que a voz do sujeito feminino subalternizado permanece
silenciada em relação aos sujeitos hegemônicos. No entanto, com as redes
sociais, sujeitos discriminados revelam sua escrita usando novas maneiras
de expressividade, o que torna a sua literatura distinta.
Referências
Introdução
Desenvolvimento
Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que
me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito
de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita
compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo,
coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca
meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para
me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-
-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma
profetisa louca ou uma pobre alma sofredora (ANZALDÚA, 2000, p. 232).
Dê a ela mais cem anos, concluí, lendo o último capítulo – o nariz e os ombros
descobertos das pessoas apareciam sob um céu estrelado, pois alguém havia pu-
xado as cortinas da sala de estar -, dê-lhe um espaço, um teto todo seu e qui-
nhentas libras por ano, deixe que ela diga o que lhe passa na cabeça e deixe de
fora metade do que ela hoje inclui, e ela escreverá um livro melhor algum dia.
Será uma poetisa, disse eu, colocando A aventura da vida, de Mary Carmichael,
no final da prateleira, dentro de cem anos (WOOLF, 2014, p. 134).
Então, essas foram duas experiências muito genuínas que tive. Foram duas das
aventuras de minha vida profissional. A primeira – matar o Anjo do Lar – creio
que resolvi. Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre minhas experiências
do corpo, creio que não resolvi. Duvido que alguma mulher já tenha resolvido.
Os obstáculos ainda são imensamente grandes – e muito difíceis de definir. De
fora, existe coisa mais simples do que escrever livros? De fora, quais os obstáculos
para uma mulher, e não para um homem? Por dentro, penso eu, a questão é mui-
to diferente; ela ainda tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a
vencer. Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo até que uma mulher
possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise
matar, uma rocha que precise enfrentar. E se é assim na literatura, a profissão
mais livre de todas para as mulheres, quem dirá nas novas profissões que agora
vocês estão exercendo pela primeira vez? (WOOLF, 2019, p. 17).
Que o governo do golpe logo cairá, como caiu outras vezes, que haverá mudan-
ças positivas. Que os psicopatas que atualmente estão no governo logo perderão
suas forças. Que as pessoas terão melhores condições de vida. Que todos terão
casas e carros e aparelhos domésticos e poderão pagar seus seguros de vida (TI-
BURI, 2018, p. 27).
Que meu trajeto termine no cemitério, onde acaba a aventura humana quando
se tem a sorte de não acabar ainda pior, tem algo de um trocadilho e, ao mesmo
tempo, é uma potencialidade a ser levada cada vez mais a sério. Morrer na rua
das grandes cidades, na guerra de todos contra todos que se intensifica a cada
dia, é mais do que uma mera probabilidade. Na guerra entre bandidos e polícia
Aqui está enterrada minha tia Alice, Betina diz para si mesma como quem me
deixa saber de um segredo. Desaparecida na época da ditadura, ela fala apontando
didaticamente para as palavras e datas, a estrela do nascimento e a cruz do fale-
cimento. Descobri há poucos dias, conversando com pessoas que conheceram minha
mãe e minha tia, que minha mãe está viva em algum lugar (TIBURI, 2018, p. 14,
grifos da autora).
Desta forma, nos deparamos com uma narrativa que privilegia a abor-
dagem das experiências das mulheres, oportunizando com isso a reflexão
sobre a representação da mulher no campo literário. Com relação ao tema
da identidade, e também de sua representação, a teórica Judith Butler de-
fende que “a teoria feminista inicialmente presumia em sua essência a exis-
tência de uma identidade definida, composta pela categoria das mulheres,
que deflagra a partir do discurso os objetivos e interesses feministas, além
de constituir o sujeito em nome de quem a representação política é alme-
jada” (BUTLER, 2003, p. 17-18), destacando a importância que a questão
da representação teve para a teoria feminista, na medida em que para as
mulheres pareceu necessário o desenvolvimento de uma linguagem que
Minha mãe, que não fazia muita coisa, se escondia no único lugar onde podia
existir, esse lugar mais que esquisito de esposa e mãe, esse lugar verdadeiramen-
te cruel ao qual havia sido destinada. Esse lugar onde se está sem que se possa
existir. Ela, a funcionária da casa encarregada de cuidar para que meu pai fosse
feliz e para que fôssemos educadas. A que devia controlar para que ele não fosse
perturbado com nossas necessidades de meninas (TIBURI, 2018, p. 34).
Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez
de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esqueci-
do e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo
que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração
também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estra-
nhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se
esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao pas-
sado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (GAGNEBIN,
2009, p. 55).
Quando souberam que, mesmo grávida e doente como estava, eu não ia falar,
sem que jamais tivessem acreditado que eu não sabia o que falar, os encarregados
das ações, que apenas anos depois eu entendi serem torturadores, partiram para
atos considerados por eles mesmos como mais leves, e esses atos mais leves eram
as agulhas enfiadas sob as unhas, o tapa simultâneo nas orelhas que chamavam
com aquele nome estúpido de telefone. Faziam o que faziam enquanto riam.
Riam muito, como só é permitido a quem perdeu ou nunca conheceu o senso
de dignidade. Sempre riram. Sempre usaram a humilhação verbal como tática
de aniquilação da pessoa que tinham como objeto no momento da tortura, vim
a saber muito depois (TIBURI, 2018, p. 74).
O estupro era um ato do corpo e das palavras, e entre eles um silêncio abjeto
era o disfarce a sustentar que nada estava acontecendo. Os xingamentos eram
miasmas lançados sobre as vacas, as piranhas, a carne animal, hoje penso, com a
qual as mulheres sempre pagaram o preço da desumanidade junto aos bichos. A
vítima era eu, apagada para sempre da história (TIBURI, 2018, p. 76).
O estupro se faz mais real quando minha barriga começa a aparecer e a gravidez
se torna, ao mesmo tempo, a autorização à violência sob a garantia de que ne-
nhum daqueles homens delirantes seria o pai da criança. Não, ninguém me disse
isso. No entanto, não tenho como não pensar nisso, porque, na condição de
grávida, eu tinha outra qualidade, o gesto daqueles homens parecia fazer outro
sentido, era algo ainda mais perverso (TIBURI, 2018, p. 76-77).
DOI: 10.52788/9786589932505.1-6 87
tural do romance, ao utilizar-se da metanarratividade para questionar as
fronteiras entre literatura, cultura e arte. O pesquisador aponta ainda que
as produções das escritoras estudadas oportunizam espaço para diferentes
vozes oprimidas socialmente, apresentando um levantamento histórico so-
bre as experimentações estéticas pelas quais passou o que ele denomina de
romance feminino, dando especial ênfase aos estudos realizados pelas pes-
quisadoras Elódia Xavier e Constância Lima Duarte, salientando que para
ambas as pesquisadoras, o romance feminino contemporâneo está voltado
para a representação da alteridade transgressora. Para Xavier (1998), isso se
deu devido a duas marcas: a falência da família patriarcal e a representação
do corpo feminino deliberado. Já Duarte (2007) aponta os avanços sociais
da mulher enquanto fator determinante para sua escrita na contempora-
neidade. Para Gomes, as autoras estudadas possibilitaram novas reflexões
sobre o papel da literatura na sociedade contemporânea. Assim, o romance
pós-moderno feminino incorpora a cultura de massas e as questões femini-
nas como parte de um projeto literário para a contemporaneidade.
Considerações finais
aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que
não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória
de sua existência não subsiste – aqueles que despareceram tão por completo que
ninguém lembra de seus nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam
transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa
tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade
ao passado e aos mortos, mesmo – principalmente – quando não conhecemos
nem seu nome nem seu sentido (GAGNEBIN, 2009, p. 54).
Referências
Introdução
1 “Homem livre, tu sempre prezarás o mar!/O mar é teu espelho; tu contemplas tua alma/No desenrolar infinito de sua lâmina/E
teu espírito não é um abismo menos amargo//Tu gostas de mergulhar no seio de sua imagem/Tu a beijas com olhos e braços, e teu
coração/se distrai, às vezes, de seu próprio barulho/Ao som desse monocórdio indomável e selvagem//Vocês dois são tenebrosos e
discretos/Homem, ninguém sondou o fundo dos teus abismos;/Ó, mar, ninguém conhece tuas riquezas íntimas/Pois sois, os dois,
ciosos de guardar seus segredos!//E, no entanto, eis aqui séculos inumeráveis/Que vocês se combatem sem piedade ou remorso/
Tanto que amam a carnificina e a morte/Ó lutadores eternos, ó irmãos implacáveis!” (BAUDELAIRE, 2019, p. 66, tradução nossa).
2 Todos as citações provenientes de Une femme foram traduzidas pelos autores deste artigo.
3 « Le «je» que j’emploie est une sorte de lieu traversé par des expériences très peu particulières, banales même (la mort, l’inégalité
sociale et culturelle, la passion, les transports en commun). Ce n’est pas un «je» intérieur, introspectif, plutôt un «je» miroir, passé au
crible de l’analyse socio-historique, par exemple dans La place et Une femme, ou Les armoires vides. » Disponível em: <http://www.
encres-vagabondes.com/rencontre/ernaux.htm>. Acesso em: 23 de setembro de 2021.
4 “Cela me reste un mystère et une tristesse que l’œuvre de Bourdieu, synonyme pour moi de libération et de «raisons d’agir» dans
le monde, ait pu être perçue comme une soumission aux déterminismes sociaux. Il m’a toujours semblé au contraire que, mettant
au jour les mécanismes cachés de la reproduction sociale, en objectivant les croyances et processus de domination intériorisés par
les individus à leur insu, la sociologie critique de Bourdieu défatalise l’existence. En analysant les conditions de production des
œuvres littéraires et artistiques, les champs de luttes dans lesquelles elles surgissent, Bourdieu ne détruit pas l’art, ne le réduit pas,
il le désacralise simplement, il en fait ce qui est beaucoup mieux qu’une religion, une activité humaine complexe. Et les textes de
Bourdieu ont été pour moi un encouragement à persévérer dans mon entreprise d’écriture, à dire, entre autres, ce qu’il nommait
le refoulé social.” Disponível em: http://www.homme-moderne.org/societe/socio/bourdieu/mort/aernau.html. Acesso em: 04 de
outubro de 2021.
5 Uma análise mais atenciosa da influência da obra de Pierre Bourdieu sobre os escritos literários de Annie Ernaux foi desenvolvida
por Isadora de Araújo Pontes, no artigo intitulado Annie Ernaux, uma escrita trânsfuga de classes. Disponível em: https://www.
revistas.usp.br/magma/article/view/154405. Acesso em: 15 de janeiro de 2022.
6 « L’adhésion d’Annie Ernaux aux réflexions de Bourdieu, et plus lointainement aux théories de Marx, autoriserait sans
doute une telle approche: L’oeuvre ne serait alors qu’un reflet, ou une conséquence, d’un certain nombre de réalités
socio-économiques. » (VIART, 2014, p. 25).
[O] 'eu' do texto e o nome inscrito sobre a capa do livro remetem à mesma
pessoa. Grosso modo, as narrações nas quais tudo poderia ser verificado por um
inquérito policial, ou biográfico [...] se revelaria exato. Mas o termo de 'narração
autobiográfica' não me satisfaz, porque ele é insuficiente. Ele sublinha um aspecto
fundamental, mas não diz nada sobre o almejo do texto, ou sua construção. Mais
gravemente, ele impõe uma imagem redutora: 'o autor fala de si'. Ora, La Place, Une
Femme, La honte e, em parte, L’événement, são menos autobiográficos que auto-so-
cio-biográficos [...] (ERNAUX in JEANNET, 2003, p. 17, grifo nosso).10
10 « Enfin le « je » du texte et le nom inscrit sur la couverture du livre renvoient à la même personne. Bref, des récits dans
lesquels tout ce qu’on pourrait vérifier par une enquête policière, ou biographique [...] se révélerait exact. Mais ce terme de « récit
autobiographique » ne me satisfait pas, parce qu’il est insuffisant. Il souligne un aspect certes fondamental, une posture d’écriture
et de lecture radicalement opposée à celle du romancier, mais il ne dit rien sur la visée du texte, sa construction. Plus grave, il
impose une image réductrice : « l’auteur parle de lui. » Or, La place, Une femme, La honte et en partie L’événement, sont moins
autobiographiques que auto-socio-biographiques. » [...] (ERNAUX in JEANNET, 2003, p. 17).
11 « C’est une entreprise difficile. Pour moi, ma mère n’a pas d’histoire. Elle a toujours été là. Mon premier mouvement, en parlant
d’elle, c’est de la fixer dans des images sans notion de temps : « elle était violente », « c’était une femme qui brûlait tout », et d’évoquer
en désordre des scènes, où elle apparaît. Je ne retrouve ainsi que la femme de mon imaginaire, la même que, depuis quelques jours,
dans mes rêves, je vois à nouveau vivante, sans âge précis, dans une atmosphère de tension semblable à celle des films d’angoisse.
Je voudrais saisir aussi la femme qui a existé en dehors de moi, la femme réelle, née dans le quartier rural d’une petite ville de
Normandie et morte dans le service de gériatrie d’un hôpital de la région parisienne. » (ERNAUX, 2007, p. 21).
12 « J’essaie de ne pas considérer la violence, les débordements de tendresse, les reproches de ma mère comme seulement des traits
personnels de caractère, mais de les situer aussi dans son histoire et sa condition sociale. Cette façon d’écrire, qui me semble aller
dans le sens de la vérité, m’aide à sortir de la solitude et de l’obscurité du souvenir individuel, par la découverte d’une signification
plus générale. Mais je sens que quelque chose en moi résiste, voudrait conserver de ma mère des images purement affectives, chaleur
ou larmes, sans leur donner de sens. » (ERNAUX, 2007, p. 21).
Escrever memórias não era somente falar de mim. Era profundamente falar da minha
época. Me censuraram algumas vezes por ter passado tanto tempo escrevendo minha
autobiografia; que alguém teria de ser muito narcisista ou egocêntrico para tal. Penso
que essa censura é completamente falsa. Se eu quis falar de mim, foi para testemunhar
sobre minha época e sobre um certo número de coisas que me transpassam.14
13 « L’écriture mémoriale [beauvoirienne] n’y occupe pas, de ce fait, la traditionnelle fonction de bilan de vie, consigné au seuil
de la mort et destiné à livrer à la postérité l’écho d’une voix d’outre-tombe; elle participe, au contraire, de différentes pratiques
d’autoconsignation. » (JEANNELLE, 2008, p. 181).
14 Tradução livre das declarações de Simone de Beauvoir em Les mémoires de Simone de Beauvoir. Locução de: Adèle
Van Reeth. Entrevistados: Jean-Louis Jeannelle. Paris: France Culture, 18 de maio de 2018. Emissão de rádio. Série
Les chemins de la philosophie. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-chemins-de-la-philosophie/
les-memoires-de-simone-de-beauvoir. Acesso em: 25 de setembro de 2021.
15 “The ethical parameters of the Self-Other relation were a source of philosophical concern to Simone de Beauvoir
from the beginning of her career. All of her literary and philosophical writing can be described as marked by a concern
to map an ethical relation with the Other” (TIDD, 2006, p. 228).
16 “Self-Other relations are described in The Ethics of Ambiguity as constituting, reciprocally, the facticity of my
situation, or the given features of my existence in the world that I have not chosen. This signifies that, for Beauvoir, the
Other assumes the same importance for me as other elements of my facticity, such as my past, the specific circumstances
of my birth, and my body. I did not choose these features of my existence and cannot choose to exist without them,
although I can choose how to live them. If we want to live authentically, we cannot use the Other or retreat to collective
identity as a means to avoid the burden of individual responsibility for our existence” (TIDD, 2006, p. 231).
17 Conforme as declarações de Jean-Louis Jeannelle em Les mémoires de Simone de Beauvoir. Locução de: Adèle Van
Reeth. Entrevistados: Jean-Louis Jeannelle. Paris: France Culture, 18 de maio de 2018. Emissão de rádio. Série Les
chemins de la philosophie. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-chemins-de-la-philosophie/les-
memoires-de-simone-de-beauvoir. Acesso em: 25 de setembro de 2021.
O drama do casamento: não é que ele não assegure à mulher a felicidade que
promete – não há segurança sobre a felicidade – é que ele a mutila – ele a fada
à repetição e à rotina. Os vinte primeiros anos da vida feminina são de uma
riqueza extraordinária; a mulher atravessa as experiências da menstruação, da
sexualidade, do casamento, da maternidade; ela descobre o mundo e seu destino.
Com vinte anos, dona de casa, ligada até a morte a um homem, com um filho
no braço, eis aqui sua vida acabada para sempre. As verdadeiras ações, o verda-
deiro trabalho são privilégio do homem: ela só tem ocupações que são, por vezes,
exaustivas, mas que nunca a preenchem. Lhe vangloriaram a renúncia, a devo-
ção; mas lhe parece muito vão consagrar-se “à conservação de dois seres quais-
quer até o fim de suas vidas”. É muito bonito se esquecer, mas ainda é necessário
Esse tópico, ao ser retomado em Uma morte muito suave, é, dessa vez,
subordinado à “escrita do luto” beauvoiriana. Na narrativa, a maternidade
é retratada enquanto parte de um complexo maior, que intenta transfor-
mar a figura materna em um elemento integrante de uma forma literária:
um personagem, e, de mesmo modo, de uma construção social, visto que
a condição materna não se desvincula da condição feminina à qual é su-
bordinada. Vale considerar, no entanto, que a representação e a análise da
mãe, agora morta, transpassa e transcende sua esfera puramente filosófica
e sociológica em virtude da esfera sentimental à qual o eu-narrativo se en-
contra atrelado:
Era principalmente sobre minha irmã que ela se empenhava em assegurar seu
domínio, e sentia inveja de nossa amizade fraterna. Quando soube que eu perde-
ra a fé, gritou para Poupette, irada: “Eu a protegerei contra a influência dela! Eu
a defenderei!” Durante as férias, proibiu-nos de nos ver a sós: encontrávamo-nos
clandestinamente nos castanhais. Esse ciúme atormentou-a a vida inteira, e nós
mantivemos até o fim o hábito de esconder-lhe a maioria dos nossos encontros
(BEAUVOIR, 2020, p. 35).
18 « Son désir le plus profond était de me donner tout ce qu’elle n’avait pas eu. » (ERNAUX, 2007, p. 20).
19 « Elle m’offrait des jouets et des livres à la moindre occasion, fête, maladie, sortie en ville. Elle me conduisait chez le dentiste,
le spécialiste des bronches, elle veillait à m’acheter de bonnes chaussures, des vêtements chauds, toutes les fournitures scolaires
[...] E descobria que, entre o desejo de se cultivar e o fato ser culto, havia um
abismo. Minha mãe precisava do dicionário para dizer quem era Van Gogh. Os
grandes escritores, ela só conhecia de nome. Ela ignorava o funcionamento dos
meus estudos (ERNAUX, 2007, p. 25).21
réclamées par la maîtresse (elle m’avait mise au pensionnat, non à l’école communale). » (ERNAUX, 2007, p. 20).
20 « Je me suis mise à mépriser les conventions sociales, les pratiques religieuses, l’argent. Je recopiais des poèmes de Rimbaud et
de Prévert, je collais des photos de James Dean sur la couverture de mes cahiers, j’écoutais La mauvaise réputation de Brassens, je
m’ennuyais. Je vivais ma révolte adolescente sur le mode romantique comme si mes parents avaient été des bourgeois. Je m’identifiais
aux artistes incompris. Pour ma mère, se révolter n’avait eu qu’une seule signification, refuser la pauvreté, et qu’une seule forme,
travailler, gagner de l’argent et devenir aussi bien que les autres. D’où ce reproche amer, que je ne comprenais pas plus qu’elle ne
comprenait mon attitude : « Si on t’avait fichue en usine à douze ans, tu ne serais pas comme ça. Tu ne connais pas ton bonheur ».
Et encore, souvent, cette réflexion de colère à mon égard : « Ça va au pensionnat et ça ne vaut pas plus cher que d’autres ». À certains
moments, elle avait dans sa fille en face d’elle, une ennemie de classe. » (ERNAUX, 2007, p. 25-26).
21 « Et je découvrais qu’entre le désir de se cultiver et le fait de l’être, il y avait un gouffre. Ma mère avait besoin du dictionnaire
pour dire qui était Van Gogh, des grands écrivains, elle ne connaissait que le nom. Elle ignorait le fonctionnement de mes études. »
(ERNAUX, 2007, p. 25).
A “mamãezinha querida” dos meus dez anos já não se distingue da mulher hostil
que oprimiu minha adolescência; chorei as duas ao chorar pela minha velha mãe.
[...] Não estava em meu poder apagar os infortúnios da infância que condena-
vam mamãe a tornar-me infeliz e a sofrer por minha vez. Pois se ela envenenou
vários anos de minha vida, sem lhe ter dado remédio, eu paguei-lhe na mesma
moeda. Ela atormentou-se por minha alma. Neste mundo, ela estava contente
com meus êxitos, mas terrivelmente afetada pelo escândalo que eu suscitava em
seu meio. Não lhe era agradável ouvir um primo declarar: “Simone é a vergonha
da família.” (BEAUVOIR, 2020, p. 87).
E por Ernaux:
Em relação a esse mundo [intelectual], minha mãe se manteve dividida entre a
admiração que a boa educação, a elegância e a cultura lhe inspiravam, o orgu-
lho de ver sua filha fazer parte de tudo isso, e o medo de ser desprezada, sob a
aparência de uma excelente cortesia. Toda medida de seu sentimento de indig-
nidade, indignidade da qual ela não me dissociava (talvez seria necessária uma
outra geração para apagá-la), está nessa frase que ela me disse na véspera do meu
22 « À l’égard de ce monde, ma mère a été partagée entre l’admiration que la bonne éducation, l’élégance et la culture lui inspiraient,
la fierté de voir sa fille en faire partie et la peur d’être, sous les dehors d’une exquise politesse, méprisée. Toute la mesure de son
sentiment d’indignité, indignité dont elle ne me dissociait pas (peut-être fallait-il encore une génération pour l’effacer), dans cette
phrase qu’elle m’a dite, la veille de mon mariage : « Tâche de bien tenir ton ménage, il ne faudrait pas qu’il te renvoie. » Et, parlant
de ma belle-mère, il y a quelques années : « On voit bien que c’est une femme qui n’a pas été élevée comme nous. » » (ERNAUX,
2007, p. 28).
Numa noite de abril, ela já dormia, às seis horas e meia, deitada em cima dos len-
çóis, de camisola; as pernas levantadas, mostrando seu sexo. Estava muito quente
naquele quarto. Comecei a chorar porque era minha mãe, a mesma mulher que
aquela da minha infância (ERNAUX, 2007, p. 39).1
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance III: O romance como gênero literário. São
Paulo: Editora34, 2018.
BAUDELAIE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
BEAUVOIR, Simone de. Mémoires. Paris: Éditions Gallimard, 2018.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
BEAUVOIR, Simone de. Uma morte muito suave. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2020. Recurso eletrônico.
Introdução
Mikhail Bakhtin, filósofo russo, é um dos mais importantes pesqui-
sadores no que tange à linguagem humana, sendo pauta teórica de várias
áreas do conhecimento. Em sua trajetória, debruçou-se sobre vários te-
mas, desde estética literária a conceitos do discurso. Aqui, focamo-nos no
dialogismo, conceito relevante nos estudos desenvolvidos pelo Círculo de
Bakhtin:
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo
corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrá-
rio destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior”
(BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.) 1997, p. 29).
Para Bakhtin (1997), a orientação dialógica é inerente a todo discurso,
qualquer enunciado responde e se relaciona com um anterior, que permeia
esse novo fazer discursivo. Além disso, todo discurso admite uma atitude
responsiva do seu interlocutor; dessa forma, ao realizar um enunciado, es-
pera-se que o ouvinte reaja a ele, respondendo-o. Para o autor, a enuncia-
ção é reflexo das vivências e relações socioculturais, cada enunciado profe-
rido pelos sujeitos mantém relações com enunciados que vêm dos outros,
com que manteve algum tipo de relação discursiva. Assim aparece a ideia
de enunciado enquanto elo na cadeia de comunicação discursiva: nenhum
discurso é adâmico, todos respondem a algo que já foi dito e dialogam
com outros enunciados, de forma consonante ou polêmica. Para o autor, a
situação social está intrinsecamente relacionada à produção de linguagem.
Se a palavra, para a abordagem bakhtiniana, consiste no signo ideológico
por excelência, então ela registra as menores variações das relações sociais.
Representa a unidade em que se cruzam as várias formas de contexto, co-
municação e discurso.
as obras rompem fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande
temporalidade, e assim, não é raro que essa vida (o que sempre sucede com uma
grande obra) seja mais intensa e mais plena do que nos tempos de sua contem-
poraneidade (BAKHTIN, 2010, p. 364).
Investigação
Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspi-
ra exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta
três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição.
Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como
me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.
A frieza do casamento é representada aqui pelo café frio, ao asseme-
lhar-se com o que eles vivem, fugindo totalmente da ideia pré-estabelecida
de um relacionamento amoroso. Assim, discute-se essa divisão social, so-
Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por
cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos,
e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam
pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis (p. 163) .
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: Pro-
blemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. BER-
NADINI, Aurora F. et al. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
A
Apagamento 5, 47, 48, 50, 116
Autoria feminina 58, 59, 64, 69, 71, 72, 77, 85, 115, 117, 119, 126, 127
D
Discurso 11, 30, 49, 55, 59, 60, 77, 79, 80, 81, 85, 94, 114, 115, 116, 118,
119, 121, 123, 124, 125, 128, 131
F
Feminino 11, 50, 52, 54, 55, 57, 61, 62, 67, 69, 70, 72, 74, 77, 82, 84, 85, 86,
107, 116, 120
Ficção 74, 75
G
Gênero 23, 34, 37, 39, 48, 52, 53, 80, 86, 92, 99, 112, 116, 119, 120, 128, 131
I
Interseccionalidade 34
L
Leitura 7, 8, 9, 12, 16, 19, 21, 22, 23, 27, 37, 43, 48, 49, 63, 75, 128, 129
Linguagem 8, 11, 13, 18, 20, 21, 23, 32, 42, 55, 61, 79, 118, 119, 126, 127
Literatura 5, 7, 9, 11, 21, 27, 32, 33, 41, 42, 43, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 57, 58, 59, 61, 64, 65, 66, 68, 69, 72, 73, 74, 75, 76, 80, 84, 88, 89,
90, 93, 95, 97, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 119, 125, 126, 127, 131
M
Mulher 5, 9, 13, 14, 15, 26, 27, 29, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 44, 45, 48,
49, 50, 53, 54, 57, 61, 64, 65, 66, 69, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 81, 82, 83, 84,
86, 89, 96, 100, 101, 102, 103, 107, 109, 110, 111, 114, 115, 116, 117, 119,
120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 131