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TUTÓIA-MA, 2022

EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva

CONSELHO EDITORIAL
Ana Carla Barros Sobreira (Unicamp)
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
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Revisão: Editora Diálogos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

M956
Estudos linguísticos aplicados [livro eletrônico] : interlocuções na
contemporaneidade / Organizadoras Marcela Regina Vasconcelos da
Silva Nascimento, Rosiane Maria Soares da Silva Xypas, Jaciara Gomes.
– Tutóia, MA: Diálogos, 2022. v.2

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-50-5

1. Estudos discursivos. 2. Representação 3. Linguagem e línguas –
Pesquisa. I. Nascimento, Marcela Regina Vasconcelos da Silva. II. Xyspas,
Rosiane Maria Soares da Silva. III. Gomes, Jaciara.
CDD 410

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

https://doi.org/10.52788/9786589932505

Editora Diálogos
contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
Sumário

Apresentação..................................................................................................7

“O estranho mundo de hoje”: o enigma da vida em


poemas e narrativas de Cecília Meireles.................................. 11
Rosiane Xypas

“Preta é minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”: as


dimensões de afeto e escrevivência da mulher negra
em “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus e
os olhares sobre seu tempo...............................................................30
Allan Jonhnatha Sampaio de Paula
Samuel Maciel Martins
Joiciane Maria Rodrigues de Carvalho

O “apagamento” das escritoras negras na literatura


brasileira...........................................................................................................51
Fransueiny Pereira Fleischmann

Uma perspectiva pós-colonial da literatura e


ciberliteratura afrofeminina..............................................................63
Fernanda Santos Silva

Questões femininas na literatura: um projeto para a


contemporaneidade...............................................................................76
Janaína Buchweitz e Silva
O “eu”, a mãe e a morte em uma morte muito suave,
de Si-mone de Beauvoir, e “Une Femme”, de annie
ernaux.................................................................................................................91
Camila Geovanna Alves da Silva
Tiago Hermano Breuni

Dialogismo e patriarcado no conto “I love my husband”,


de Nélida Piñon........................................................................................... 118
Caio Vitor Marques Miranda
Sofia Finguermann e Fernandes

Sobre as organizadoras...................................................................... 132

Sobre as autoras e autores.............................................................. 134

Índice remissivo........................................................................................ 136


Apresentação

Quando a escritora nigeriana Chimamanda Adichie incita “sejamos


todos feministas”, seu chamado está intrinsecamente atravessado por vozes
sociais que construíram estereótipos do que é ser feminista em sociedades
patriarcais: mulheres infelizes que estão sempre zangadas e que odeiam os
homens. Contra o silenciamento promovido por essas vozes sociais que
representam a luta feminista como uma cruzada contra os homens, a autora
se insurge, revelando a sua própria construção identitária como feminista.
Sem medo dos estereótipos que tentam subjugar a mulher por meio da
depreciação e distorção dos princípios que regem a luta por equidade,
Chimamanda adentra o universo feminista.
Assim, ao afirmar que “o problema da questão de gênero é que ela
descreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos”, a voz
da autora nigeriana questiona múltiplos discursos sociais que ainda
insistem em caracterizar mulheres de acordo com atributos biológicos,
invisibilizando os fatores históricos e culturais que ideologicamente têm
construído e mantido a desigualdade entre gêneros.
Vozes como a de Chimamanda são importantes, pois sabemos que, a
despeito de todas as contribuições advindas de campos como o científico,
o político e o literário (que têm avançado em termos de participação
feminina, embora ainda haja muito a ser trilhado), as representações sociais
da mulher persistem na construção de estereótipos que relegam à condição
feminina papéis subalternos.
Nesse sentido, a literatura tem um papel de relevância incomensurável,
visto que, como espaço de representações e produções culturais, pode, por
meio da linguagem, (des)construir representações sinalizadoras das nossas
percepções de mundo, valorações sociais e práticas culturais. Sua função não
se restringe a contar o mundo, como um espelho que apenas reflete o seu

DOI: 10.52788/9786589932505.1-1 7
entorno: a literatura participa da formação cultural e ideológica da sociedade,
constituindo-se como locus privilegiado de articulação e contestação de
discursos que constroem realidades sociais. O próprio discurso literário,
ao se instituir como resistência, configura-se como prática libertária (e,
por que não, libertadora?). Historicamente reservado aos homens, cada vez
mais, o espaço literário, que conjuga o saber e o estético, vê a participação
feminina ser potencializada. Começam as esmorecer as fronteiras literárias
que subordinavam mulheres a atuações limitadas.
Neste segundo volume da obra Mulher, identidade e discurso: visões
plurais, os textos põem em foco a produção literária de/sobre mulheres –
chamamos a atenção para o termo no plural, pois o que se problematiza,
discute e enfatiza é justamente a diversidade, ou seja, as diferenças entre
nós (de raça, classe, idade, sexualidade), todavia sem perder de vista o que
nos une, a necessidade de luta pela superação de um sistema patriarcal que
inferioriza, subordina e silencia mulheres ao longo da história.
No primeiro capítulo intitulado “'O estranho mundo de hoje': o enigma
da vida em poemas e narrativas de Cecília Meireles", a autora Rosiane Xypas
abre espaço para reflexão sobre vida, tempo e morte através de poesias e
crônicas literárias escritas por Cecília Meireles percorrendo a vida e a obra
dessa poetisa nascida no Rio de Janeiro no início do século XX. A autora
revela - para o leitor comum e o especialista - um retrato jamais antes visto
de Cecília. De fato, em nosso estranho mundo de hoje pandêmico não
nos conformamos com a morte. E um dos papeis da poesia - nesse mundo
estranho - seria o de recriar mundos menos estranhos e que através dos
poemas talvez condenássemos ou quem sabe, salvássemos a nós mesmos ou
de nós mesmos, dessas estranhezas do mundo.
No capítulo seguinte, Carolina Maria de Jesus, com a obra “Quarto
de despejo”, é estudada no artigo escrito por Allan Jonhnatha Sampaio de
Paula, Samuel Maciel Martins e Joiciane Maria Rodrigues de Carvalho,
intitulado “Preta é minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”: as dimensões
de afeto e escrevivência da mulher negra em ‘Quarto de Despejo’, de Carolina

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Maria de Jesus e os olhares sobre seu tempo”. Os autores investigam aspectos
subjetivos e sociais no texto de maior relevância da escritora negra e perifé-
rica que experimentou sua inviabilização também no não reconhecimento
de sua autoria. Na contramão desse silenciamento, o texto apresenta com
base na narrativa historiográfica uma Carolina afetuosa, sensível e atenta
ao seu tempo.
Em “O ‘apagamento’das escritoras negras na literatura brasileira” de
autoria de Luana da Silva Santos fundamentando-se em teorias da sociologia
discorre sobre obras que suscitam reflexões diversas sobre a mulher na
sociedade. A autora aborda, para atingir seus objetivos, a temática do
silêncio na literatura que neste caso, silêncio é sinônimo de submissão,
opressão e trangressão.
Fernanda Santos Silva, no capítulo “Uma perspectiva pós-colonial da
literatura e ciberliteratura afrofeminina”, discute a abertura para vozes
femininas negras na ciberliteratura. A autora, pautada especialmente
nas discussões pós-coloniais de Fanon e Spivak, analisa o silenciamento
de Carolina Maria de Jesus, mostrando como essa autora teve sua obra
subcassificada como não literatura e até a linguagem alterada em processos
editorias de explícita violação do direito, não apenas do subalterno falar, mas
principalmente dele ser ouvido. Ademais, Silva retoma o entendimento de
subalternidade, buscando no campo do virtual novas rotas de expressividade.
Já Janaína Buchweitz e Silva, no capítulo “Questões femininas na
literatura: um projeto para a contemporaneidade”, a autora analisou a obra
de Márcia Tiburi (2018) Sob meus pés o corpo inteiro entendendo que a
referida obra possibilita deve ser lida para além do combate ao silenciamento
e as situações de violência e opressão de maneira geral que acompanham as
mulheres em geral. Dessa maneira, a proposta é que as mulheres se vejam
em uma forma de narrar suas experiências de tal modo que não sejam
coadjuvantes, e sim protagonistas de suas vidas, experiências e histórias.
No capítulo “O ‘Eu’, a mãe e a morte em Uma morte muito suave, de
Simone de Beauvoir, e Une Femme, de Annie Ernaux”, os autores Camila

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Geovanna Alves da Silva e Tiago Hermano Brreunig apresentam de forma
ampla as temáticas propostas no tramento do eu, da mãe e da morte pelas
teorias da Sociologia e da Filosofia, entendo serem estes caminhos possíveis
da renovação do tema tratado.
No capítulo que encerra a coletânea, “Dialogismo e patriarcado no
conto ‘I love my husband’, de Nélia Pinon”, os autores Caio Vitor Marques
Miranda e Sofia Finguermann e Fernandes, fundamentados na Teoria
Dialógica desenvolvida por Bakhtin e o Círculo, promovem uma reflexão
sobre a construção de um sujeito que é mulher e esposa e se reconhece
em uma realidade axiologicamente permeada por valores patriarcais que
inevitavelmente atravessam a sua constituição identitária.
A coletânea está voltada a todo público interessado em diferentes
visões a respeito de mulher, identidade e discurso. Os textos reunidos aqui
compreendem diálogos nos estudos de linguagens, discursos, história,
literatura, artes e estudos culturais. É indicado a todos que discutam os
temas e se dediquem a compreendê-los enquanto problemas que precisam
ser superados na construção de um novo marco civilizatório.

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CAPÍTULO 1

“O estranho mundo de hoje”:


o enigma da vida em poemas e
narrativas de Cecília Meireles
Rosiane Xypas

Introdução

“Esta sou eu – a inúmera”.


Que tem de ser pagã como as árvores
E, como um druida, mística.”
Mar Absoluto (1945)

Não é raro nem difícil perceber que professores e alunos da escola e


da universidade constróem seu saber sobre a Literatura Brasileira, tanto
a partir da historiografia quanto das leituras dos críticos sobre as obras
literárias. No entanto, não é raro e nem difícil perceber que o que às vezes
é legitimado pelos críticos, é deslegitimado pelos não críticos. Certo, a
instituição impõe a leitura de clássicos, mas não abre espaço algum para
investigações das leituras do leitor comum sobre a obra clássica negando
quase sempre um dos elementos do ensino-aprendizagem da literatura.
A instituição escolar, universitária quer e várias vezes consegue dar ao
estudante uma leitura pronta, diminuta porque advinda de outros no

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âmbito da formação do leitor. No entanto, não está em tempo de se pensar
em uma instituição que viabilize uma “leitura [como um] rito de passagem
pelo qual o leitor cresce em sua consciência do mundo e da linguagem?”
(SANTOS, 2021, p. 12).
A leitura pronta e diminuta, porque o sujeito leitor não a constrói,
acontece na leitura da obra da poetisa Cecília Meireles (1901-1965),
uma leitura formatada, condicionada em páginas de alguns de seus versos
encontrados palidamente em livros didáticos. Cecília aparece sempre da
mesma forma nos livros escolares, restringindo-a. Porém, ao se fazer um
estudo aprofundado da obra completa de Cecília Meireles, por exemplo,
confrontando uma leitura pessoal com a dos críticos, e quando se pensa em
uma homenagem aos 120 anos desta poetisa, surge diante de nossos olhos,
uma outra Cecília, rompendo com a forma(ta)ção anteriormente recebida.
Restringindo-me às duas mil páginas de poesia escritas por ela, e
reunidas em 2001 por Antônio Carlos Secchin pela editora Nova Fronteira,
temas universais de sua obra saltam aos olhos de qualquer leitor comum.
Cecília trata da vida, da morte e do tempo, para citar apenas três de tantos
outros temas universais1 com uma pluma leve, mas desconcertante. Ela
realoca as palavras conhecidas arranjando-as em outros espaços físicos da
língua portuguesa, e psicológicos em cada leitor que a lê. Cada tema tratado
impõe ao leitor comum refletir em sua própria vida. O efeito poético
produzido no ritmo de cada poema lido suscita, o que afirma Octavio Paz
(1956), uma manifestação simples, uma atitude, um sentido, uma imagem
distinta e particular do mundo.
É nesse sentido, que Cecília Meireles, entre farpas e liras apresenta seu
mundo poético singularizando-o em uma voz única e inúmera. Seu mundo
poético pode ser espelho estruturante para o nosso estranho mundo de hoje
porque põe em palavras o caos atual devido a vida arrastada, precarizada,

1 Escrevemos uma dissertação de Mestrado sobre as representações da morte na obra poética de Cecília Meireles defendida em
2004 e uma tese de doutorado ampliando esta temática introduzindo sua visão da vida e do tempo, doutorado defendido em 2009.
Resultados apontaram que a vida e o tempo são guiados pela morte, sendo a vida passageira, o tempo, um eterno instante e a morte
natural vista como um dos ciclos da vida.

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humanamente desumanizada. Em sua obra completa, os temas universais e
os do cotidiano visto por uma mulher nascida em 1901 no Rio de Janeiro,
professora aos 17 anos de idade, e poetisa aos 18 anos, marca sua voz
feminina na geração em que se encontrava diferenciando-se das mulheres
de sua época. A vida para Cecília não era, não podia ser como as das outras
mulheres de sua época, pois sua visão de mundo e de experiência da vida,
transformam-se em criação poética atual igualmente nos dias de hoje.
O objetivo deste texto é apresentar a temática da vida em alguns
poemas e crônicas literárias de Cecília Meireles. Para tal, partimos da
hipótese de que as representações da temática da vida segundo Cecília
Meireles amplia a visão de alunos e estudantes sobre a poetisa e desvela uma
poetisa rara ou nunca vista antes, nem nos livros didáticos estudados nas
escolas brasileiras, nem na opinião da historiografia da literatura brasileira.
A metodologia utilizada na análise do corpus foi a comparativa entre dois
gêneros literários: a poesia e a prosa. Esse método comparativo favorece,
por um lado, as representações estudadas, e por outro, as inovações que
surgem, libertando a obra das visões únicas dos críticos.
A pergunta norteadora é a seguinte: Em que medida o retrato de
Cecília Meireles apresentado por nós destoa do dos críticos no tocante à
temática da vida?
O presente texto está dividido em quatro subtítulos: no primeiro,
apresento a leitura dos críticos sobre a obra de Cecília Meireles; no segundo,
a minha própria leitura sobre a obra de C.M; no terceiro, uma nova leitura
da obra poética lida por computador, e por fim, um estudo da crônica
Nosso estranho mundo de hoje destacando o enigma da vida em poemas e
narrativas de Cecília Meireles.

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Relendo os críticos de Cecília Meireles: que novo olhar
na temática da vida em sua obra literária?

Este subcapítulo apresenta o retrato de Cecília Meireles elaborado pe-


los críticos literários renomados no Brasil. Desde que possível intervenho
nas afirmações dos críticos para ampliar nossa visão sobre a obra da poetisa
estudada.
A poesia de Cecília Meireles para os Críticos literários, começando por
Alfredo Bosi é a seguinte: “O poeta de Solombra parte de um certo distan-
ciamento do real imediato e norteia os processos imagéticos para a sombra,
o indefinido, quando não para o sentimento da ausência e do nada” (1994,
p. 461). Na voz do crítico Massaud Moisés “a poesia de Cecília é uma po-
esia narcisista, megalomaníaca e descritiva, mas esconde conceitos, ideias e
reflexões” (1995, p. 7). Segundo Andrade Muricy citado por Damasceno,
ele assevera que a poesia é “a mais escarpada e selvagem solitude de alma,
a mais atonal música poética da geração. Só e só o ardor perdido de deses-
perança, misticismo num universo vazio” (2001, p. 5). Desse modo, Bosi,
Moisés, Muricy citado por Damasceno representam Cecília Meireles como
uma alienada megalomaníaca.
Azevedo Filho (1970, p. 39), crítico renomado, afirma que “o tema
da infância em geral, representa o tema do desengano e do desespero”. Porém,
mesmo tendo sido órfã de pai e mãe, será que viveu uma infância infeliz,
dolorosa, como pretende o crítico que acabo de citar? Para responder a esta
perguntas, recorri a poemas e crônicas escritas por Cecília Meireles para
introduzir respostas. E no poema Para a minha morta lemos o que segue:

Pedrina minha, és a mais doce de todas as memórias. /Para a minha alma, a vida
inteira alma de criança,/ amando sempre o encantamento das histórias/ De Bar-
ba Azul, de Ali Babá, de um rei de França…/ … pois a vida completa e bela e
terna ali estava (MEIRELES,1925/2001 p. 108).

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Fora indubitavelmente a linguagem literária que transportava para
longe aquela criança com as histórias que ouvia de sua babá querida. Além
disso, em uma crônica, a poetisa descreve sua infância com saudades da
infância que viveu, alimentando-se do seu mistério e da sua distância. Ni-
tidamente, alimenta-se da literatura que a ajudou a sublimar, a ressignificar
sua vida cheia de perdas e de lutos. Pela literatura, ela constrói sua vida
enigmática onde há quem conte suas histórias e mate seus personagens.
Antonio Carlos Secchin, o organizador de sua obra poética em dois
volumes pela Editora Nova Frontreira (2001) teve como objetivo apresen-
tar “toda a obra da poeta em sua sequência (tanto quanto possível) cro-
nológica (...) correpondendo a “verdade poética” de Cecília”. A meu ver,
Secchin valoriza a obra poética de Cecília Meireles na tomada de decisão
de reunir sua obra completa, incluindo novos poemas nunca antes publica-
dos. Mas para este crítico, ela é poeta. Essa palavra é intrigante. Não existe
feminino desta palavra em língua portuguesa? Por que ela é poeta e não
poetisa? Há conotações pejorativas na feminização desse nome? Deixo ao
leitor ou leitora deste texto refletir.
Para Miguel Sanches Neto, Cecília é misteriosa e subverte o conceito
de viagem. Ele escreveu Cecília Meireles e o tempo inteiriço introduzindo o
sujeito-leitor pesquisador ou admirador da poética ceciliana em suas po-
esias, podemos ver que por este estudioso, configuram-se no princípio da
trajetória poética de Cecília “um discurso que poderia ser definido como
insinuante, sugestivo, tal o uso das reticências – as reticências estão para a
linguagem como a neblina e o mistério para a vida física” (2001, p.xxx).
Para que o leitor não especialista de Cecília saiba, este crítico fala da Cecília
em sua fase inicial de poetisa. Na segunda fase, afirma Neto (2001, p. xxxi)
o que segue: “Cecília subverte o conceito de viagem [que tanto marcou os
poetas de sua geração] apostando no deslocamento do espaço como proje-
to linguístico, folclórico, histórico e sociológico”.
Ora, este crítico assevera igualmente que “viajar para esta geração, era
anexar novas realidades, nacionais ou internacionais, tirando o Brasil de

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seu isolamento e de seu autodesconhecimento”. Essa afirmação introduz,
a meu ver, uma voz feminina conectada com a vida e não alienada como
retrataram alguns críticos. Neto afirma ainda que a poesia de Cecília Mei-
reles caracterizou-se “por um olhar telúrico e tinha como programa a defi-
nição de uma identidade fragmentária e em movimento”. Cecília constrói
sua identidade até o último suspiro de sua vida, vida esta recriada sem a
qual não seria possível viver.
Eliane Zagury apresenta uma notícia biográfica de Cecília Meireles
desde seu nascimento até sua morte. Mas, a temática da vida, segundo Za-
gury, é que Cecília “viveu uma infância terrível, e no entanto, feliz moldou
as bases do temperamento poético que se desenvolveu. (...) A morte viria a
ser, na poesia o Absoluto que o espírito anseia, mas é incapaz de assumir”.
(2001, p.xiii).
Há retratos diversos de Cecília nessas afirmações. Mas como pode
apenas desejar a morte, quem reinventa a vida, e quem pensa que a vida só
é possível reinventada? Uma infância terrível? Cecília não afirma isso em
nenhum de seus mais de dois mil versos escritos.
Perguntamos então, o que permite esses críticos elaborarem tais jul-
gamentos? Cecília “poeta que norteia seus sentimentos para a ausência e o
nada”, ou ainda, “misticismo num universo vazio”, ou ainda, ela cria uma
“poesia narcisista, megalomaníaca! Entendendo que essas representações
da poesia de Cecília são limitadas a uma ou duas fases de sua criação poé-
tica, apreciamos a afirmação de Neto (2001, p. xxxi), quando diz que ela
tem “um olhar telúrico”, A palavra telúrico é definida como um olhar que
permite observar uma raia espectral de algum ponto fixo da terra. Que bela
imagem! Assim, no tratamento da temática da vida, esta é um enigma que
advém do tratamento singular que ela dá à morte.
No tocante à filiação a uma corrente literária, a leitura dos críticos de-
monstram que suas opiniões à filiação estão divididas entre eles. Vejamos,
por exemplo, que para Da Silva Ramos apud Péricles Eugênio, (1967, p.
292) “Cecília Meireles é, em nosso modernismo, uma derivação direta de
seu próprio Simbolismo, que se depurou com o tempo e o sofrimento, até

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 16


se fazer uma linguagem isenta dos sestros e do tom da escola”, enquanto
que para José Fonseca escrevendo no Correio da manhã em 06.04.1957,
no texto Poesia para Todos (2001, p.14), “Cecília jamais se filiou, efeti-
vamente, a nenhuma das correntes que agitaram nossas letras neste meio
século. Essencialmente lírica, em função de tal fato, manteve-se, malgrado
o afastamento dos “movimentos”, fiel à tradição luso-brasileira”. Entendo
assim que Cecília estava além de seu tempo e que sua noção de poesia não
era apenas militante, mas atemporal, escrevia visando o humano e não um
período sobre uma fase da humanidade.
Marisa Lajolo teve razões para afirmar que Cecília fica espremida en-
tre un pós-isto e um pré-aquilo. Com efeito, os críticos falam de Cecília,
como poeta espiritualista e outros a colocam fora do modernismo, e ela
fica inclassificável. E outros ainda apelidaram-na de Pastora das nuvens que
longe de ser bonito tal apelido minimiza a imensa e profunda obra poética
criada. Rotulando-a de pastora das nuvens, ignoraram o real valor de Cecília
Meireles enquanto mulher de Letras que começa aos 18 anos de idade e vai
até 64 anos!

Cecília Meireles: Mulher de Letras

Respeitando o espaço aqui acordado para a escrita deste texto, a Mu-


lher de Letras que retrato será por uma breve enumeração. Então, por que
considero Cecília Meireles Mulher de Letras? Ela o é, no que tange às lín-
guas estrangeiras, porque falava inglês, francês, italiano e espanhol, e apren-
dia sozinha o latim, o grego, o sânscrito e o indu durante seu tempo livre.
Sua erudição se estendia igualmente para as literaturas estrangeiras, tradu-
zindo desde os anos 40, escritores como Rilke, Woolf, Lorca, Tagore e até
mesmo poetas chineses, como Li Po e Tu Fu, além de, em sua curta vida,
ter igualmente escrito quase oito mil páginas de textos em poesia, prosa e
teatro!

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 17


Esta mulher de letras, ainda como se não bastasse, estudava as filosofias
e a espiritualidade oriental. O seu interesse pelo budismo, pelo hinduísmo
e confucionismo cujas influências orientais na vida e na obra dela estão
fortemente presentes, como ela mesma afirma em O que se diz e o que se
entende: “o Oriente tem sido uma paixão constante na minha vida: não po-
rém, pelo seu chamado ‘exotismo’ - que é atração e curiosidades de turistas
- mas pela sua profundidade poética, que é uma outra maneira de ser de
sabedoria” (1980, p. 36). Esses escritos suscitam um olhar outro-diferente
das pessoas de sua época, e transforma Cecília em alguém que soube viver
o tempo presente, passado e o futuro de forma singular.
Assim, a representação do tempo presente se faz em seus instantes
eternos experienciados com a poesia; o tempo passado se faz ao mergulhar
no estudo de línguas estrangeiras antigas, e o tempo futuro no tocante à
Educação dos jovens e dos adultos. Sua poesia suscita um olhar da vida e
do mundo de quem é una e múltipla, um ser daqui e d’alhures, uma voz
feminina que vive o momento presente onde quer que se encontre e dele
sabe aproveitar bem os diversos instantes que o constitui, reconstruindo o
passado e criando o futuro. Dos tempos de Cecília tem-se a vida represen-
tada como um círculo, em seu modo de ver, e sua visão aponta para uma
reconstrução, e não uma cisão. Em Crônicas de Viagem Vol. 2 no texto
Ocidente Perplexo pode-se ler o que segue:

Duas visões do mundo. Dois conceitos de vida, de heroísmo, de luta, de vitória.


O dinamismo e a renúncia. Os pés bem agarrados à terra, e a fronte bem perto
das estrelas. Um progresso físico e um progresso espiritual. (…) O Ocidente
ainda não entendeu bem a técnica da não-violência, do sacrifício, do amor, e da
alma sozinha diante de um exército... (MEIRELES, 1954/1999, p. 192).

O que pensar de uma poetisa que reúne três volumes de prosa totali-
zando umas 900 páginas sobre culturas e modo de vida de outros povos?
O que ela busca aprender? O que procura ensinar? Suas crônicas testemu-
nham a abertura que tinha às culturas e ao Outro. Desse modo, entre 1934

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 18


e 1962, Cecília Meireles multiplica suas viagens pela Europa (Portugal,
Espanha, França, Itália, Bélgica, Holanda); pelas Américas (USA e México,
Argentina, Uruguai, Peru); em Israel e Índia. Sem dúvida, ela era uma mu-
lher de Letras e apegada às palavras que constroem, às palavras que dese-
nham, arquitetam seu mundo real e literário, e de uma curiosidade ímpar,
ela se torna viajante, e não uma turista. Na sua concepção, turista é alguém
que acompanha cegamente o guia, esquecendo de sentir, ver e refletir por
si próprio.
Em toda sua obra, Cecília Meireles tratou dos ditos temas universais
como a vida, a morte, o tempo, a solidão, a dor, o sofrimento, o amor entre
outros. Ela não era apenas pastora das nuvens - no sentido dos críticos – .
E, mesmo se quisesse, ela não poderia ser porque se o fosse, como poderia
ter tratado de uma temática universal como, por exemplo, a da morte? Por
falar dela, seus poemas me levaram a buscas de outras ciências humanas a
fim de melhor compreender o tratamento dado ao tema em questão. Eu
introduzi teorias da psicanálise do luto e as da história da morte no Oci-
dente ampliando ainda mais o modo de perceber sua escrita literária. Pelo
estudo da morte pode-se entender melhor a vida.
A reconstrução da vida com palavras em seu mundo ora desabado, ora
incompreendido pelo próprio enigma da vida, se manifesta na reinvenção.
Esta vem junto com a renúncia, o desapego às coisas materiais e a aceitação
da morte de si. Atualmente, introduzo o conceito de resiliência advindo da
psicologia positiva que amplia ainda mais meu etendimento sobre a visão
de mundo de Cecília, com o seu “grito frenético dos provisórios dias do
mundo”. (DISPERSOS, 1958/2001, p. 1788). Lendo sua obra completa,
pergunto o que movia Cecília em meio a tanto turbilhão de sua vida agita-
da. Que forma misteriosa ela tinha de encarar sua vida e de pensar na vida
humana em geral? Afirmo que a resiliência, como o autor Berndt (2019) seja
essa forma misteriosa de resistir às expectativas do mundo ou de sair de uma
situação deprimente e voltar a vida plena. Esse para mim é um dos retratos
mais completos de Cecília Meireles, deixa-se cortar para renascer mais forte!

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 19


Enfim, ressalto que na busca para ampliar as leituras dos críticos sobre
a poesia de Cecília Meireles foi no doutorado, onde li e analisei a evolução
temática da Obra Poética completa de Cecília Meireles, como ninguém
jamais o tinha feito, ou seja, pela linguística de corpus. Desse modo, a fim
de comprovar, pelo método quantitativo, a evolução das temáticas tratadas
na Poesia completa de Cecília, utilizei uma das funções propostas pelo pro-
grama de computador, a função fatorial do Hyperbase (2007). O objetivo
desta função é de apresentar um panorama de toda a obra poética escrita.
O programa usa um gráfico conhecido na matemática como análise fatorial
de correspondências. O belo gráfico foi construído com os vocábulos que
compõem a obra. A função os contabiliza pela quantidade de ocorrências
das palavras no texto. Quanto mais há ocorrências de uma determinada
palavra no texto, mais o tema nele está representado.
Desse modo, a apresentação da obra poética, através da análise do
vocabulário geral da poesia constitui um corpus que elaborei em quatro
partes nomeado de sub-corpus UM, sub-corpus DOIS, sub-corpus TRÊS
E subcorpus QUATRO, como se vê abaixo.
Gráfico 1: Evolução temática da obra poética: o corpus MEIRELES e seus sub-corpus.

Fonte: Programa Hyperbase e a autora (2007).

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A leitura objetiva feita na busca das temáticas predominantes em cada
fase dos escritos da poética de Cecília, permitiu adormecer tanto as inter-
pretações dos críticos quanto as minhas obtidas no Mestrado pela análise
qualitativa. Elaborei o sub-corpus UM, criado com os poemas escritos de
1919 à 1937, e descobri que ele apresenta como tema dominante, o da
morte e pode ser lido nos livros poéticos Baladas para El-Rei, notadamente,
a representação da morte que arrebatou toda sua família, ou seja, a morte
de sua mãe encontrado no poema Dolorosa ; a da sua avó em Das avozi-
nhas mortas e a da sua babá Pedrina em Para a minha morta. O que há em
comum nesses poemas sobre o tema da morte é que eles suscitam uma
atmosfera poética de sofrimento, de sensação de abandono, de nostalgia
do paraíso perdido e de profunda tristeza. Essa é a poetisa dos críticos lite-
rários. E ficaram apenas nessa Cecília!
No sub-corpus DOIS, formado por poemas de 1939 a 1949, consta-
ta-se a permanência do tema da morte que se encontra em poemas como
Elegia à Jacinta Garcia Benevides, minha avó; O afogado do canal de Ams-
terdã, entre outros. Mas o que muda no tema tratado é a transformação
do mesmo em uma atitude menos implicada, menos dolorosa que aquela
apresentada no sub-corpus UM. Paralelamente a esta transformação, há
aparição de novos temas, tais como: o amor sofredor em Vaga Música, Re-
trato Natural ; A vida marinha em Mar Absoluto e Outros Poemas ; o senti-
mento de solidão em Morena, Pena de Amor, Vaga Música, Viagem ; o tema
da viagem em Retrato Natural, Viagem et Poemas de Viagens; a busca de si
em um desejo de transformação em Vaga Música. Por isso, qualifiquei es-
tes dez anos de produção poética de Período intimista no qual se emprega
demasiadamente vocábulos como meu, minha e se revelam particularmen-
te significativos no tratamento do tema em questão. Antes a presença da
morte estava na vida dos outros, neste sub-corpus, ela está voltada para a
poetisa e é introduzido o tema da solidão que desponta grandiosamente na
poesia de Cecília Meireles.

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No sub-corpus TRÊS, constituído de poemas de 1951 à 1959, apa-
rece o tema do amor ao outro sob diversos aspectos, notadamente o da re-
núncia aos bens deste mundo pelo amor aos outros. Entram em cena nos
seus poemas, personagens como São Fransico de Assis em Éramos de famí-
lia patrícia, santa Clara em Fuga, como também santa Maria Efigênia em
Oratório de Santa Maria Egipcíaca. Ressalto que o que ela valoriza nesses
personagens santificados não é essa dimensão, mas a abnegação de que eles
dão prova. Na mesma época, ela escreve Elegia a Gandhi e em suas crônicas
de viagem apresenta seus mestres da vida: Buda, Jesus, Confúcio. Tal espi-
ritualismo de Cecília Meireles é centrado na sabedoria da vida e no amor
pelo ser humano. O tema da morte na vida de seus entes queridos não está
ausente não, mas apaziguado e sobretudo, reversível. A morte é percebida
como prolongamento e transformação da vida, como escreveu em Cenário
do deserto “e esta que morre e só na morte encontra a vida” (1964/2001,
p.1577). Esses são poemas intrigantes porque sua linguagem se amplia ain-
da mais suscitando valores intrínsecos a estes seres humanos diferentes dos
mais comuns dos mortais. A dimensão de um tempo alhures que a remete
ao aqui e agora se faz evidentemente presente nesses poemas.
Enfim, no sub-corpus QUATRO composto por poemas escritos de
1960 a 1965, a poetisa explora, nesse curto período de vida, a essência da
vida e do mundo. Porém, ao tema da vida em um tempo dominado de dor,
de sofrimento, se encontra amor, vida e morte. Suscitam esses poemas, as
leis que regem o universo, e a poetisa enseja unir a vida à morte em uma
exploração da linguagem representando o tempo, como finito, infinito,
contínuo.
Considero assim, Cecília Meireles, como a poetisa do luto, do canto
pela vida, do trágico e da condição humana. Em outras plavras, enquanto
Poetisa do luto e do canto pela vida, seu nome, mesmo estando associado à
temática da morte, do sofrimento e do sentimento de solidão, há uma evo-
lução clara operando-se lenta e progressivamente. Quando sua linguagem
na criação de seu universo literário foi submetida ao emprego da função

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Evolution de Hyperbase, a função desvela, de fato, um duplo movimento
temático: o primeiro, a regressão da palavra luto e o segundo, a progressão
da palavra essência. Fica claro assim que luto e essência definem bem a re-
presentação da vida, segundo a poetisa. Diante da morte, Cecília Meireles
adota duas atitudes: uma dolosa, outra humanista. Assim, luto e essência
fazem parte da vida para Cecília, fazem parte da vida de Cecília.
Enquanto Poetisa do trágico e da condição humana, se tomarmos o
poema Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro2 pergunto então, que olhar de
poeta intimista, que certos críticos julgam como “desconectada da vida” é
apresentado no poema Cemitério militar? Eis algumas estrofes:

Eles vieram felizes, como/ para grandes jogos atléticos:/ com um largo sorriso
no rosto/ com forte esperança no peito/ – porque eram jovens e eram belos.//
Este cemitério tão puro/ é um dormitório de meninos:/e as mães de muito longe
chamam,/ entre as mil cortinas do tempo,/ cheias de lágrimas, seus filhos. (MEI-
RELES, 1955/2001, p. 1060).

Após a leitura do poema Cemitério Militar acrescido das leituras que


fiz de Crônicas de Educação, vejo uma poetisa pacifista e antimilitarista. O
poema citado não contém nem condenação, nem julgamento de valor, não
perpassa nenhuma esperança espiritual de vida após a morte, seja cristã,
budista ou outra. No entanto, está cheio de vestígios de uma serenidade
majestosa, serenidade esta testemunhada em uma conversação telefônica
com Ruy Affonso Machado.3 Daí percebo claramente a atitude de Cecília
face à vida transpondo sem dúvida alguma, esta mesma atitude de sereni-
dade e de resiliência diante da morte, com o que escreveu Ruy após uma
conversa telefônica com ela, já com câncer, e com seu tempo de vida con-
tado:
No dia 09 de julho, (…) falei com Cecília Meireles durante meia hora pela últi-
ma vez: chamei-a pelo telefone instalado a bordo, e conversamos a bom conver-

2 Este poema foi publicado em 1955, com apenas 100 exemplares.


3 Ruy Affonso Machado é escritor e fundador do Grupo Os Jograis de São Paulo.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 23


sar. Pareceu-me extraordinariamente alegre e animada. Falou-me de um sem-nú-
meros de trabalhos, de colaborações, de livros, de traduções. Só uma vez aludiu à
sua « convalescência. » Fez-me mil perguntas : sobre Moçambique, sobre amigos
portugueses, (…) Quando contei a ela que eu aproveitara os vagares de bordo
para ler alguns bons livros, inclusive Les Mots de Jean-Paul Sartre, que acabava de
ser publicado na França, Cecília pediu-me pormenores do livro, e ficou de en-
comendá-lo no mesmo dia. A mim, essa impressionante vitalidade me deu alma
nova. Nenhum voto de « boas vindas » poderia me ter deixado mais contente.
Nem mais enganado. (…) Despedimo-nos. Quem concluiu foi Cecília: « Então,
até por São Paulo, ou por aqui. » Eram cinco horas da tarde. Nunca mais ouvi
sua voz (GOUVEIA, 2007, p. 306).

Cecília foi e gostou de ser passeadora solidária, morta jovem aos 63


anos no RJ, ela abraça com a bravura de sua essência, o que outros não
podem ou não querem abraçar: o trágico da condição humana. Daí minha
incompreensão sobre Cecília Meireles ser vista apenas como uma “des-
conectada da vida”. Como pode sê-lo, alguém que soube conviver com
os mistérios da vida, com a efemeridade do tempo e com um rebanho de
morte?
Cecília Meireles em sua linguagem poética, mesmo na prosa, cria um
mundo para si e para os outros, reiventando a vida, a vida com seus misté-
rios porque para Cecília Meireles, a vida só é possível reinventada!4 Mesmo
nesse nosso estranho mundo de hoje?

“O estranho mundo de hoje”: o enigma da vida em


poemas e narrativas de Cecília Meireles

O poder da reinvenção está ao alcance de todos. Porém, esse poder de-


manda criatividade que é um elemento motor capaz de, como uma máqui-
na, recarregar nossa rede neural de modo positivo para enfrentar as batalhas
da vida. Na crônica Resumo do mundo, a vida deve ser situada “com lem-
branças, reminiscências, continuações [para se sentir em um mundo] que

4 Reinvenção, in Vaga Música, 1942. A Vida só é possível reiventada.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 24


é de todos, e a sua responsabilidade nessa participação”(MEIRELES,1998,
p. 286).
O tema da vida na obra literária de Cecília Meireles está de fato, em
toda parte e se encontra em todos os gêneros em que escreveu. Do pensar a
vida em uma união com a morte e com o tempo, surge seu enigma. Parece
tudo simples e concatenado na obra literária de Cecília Meireles: a morte
e o tempo existem, e disso se tem consciência, porque se está em vida: os
seres humanos nomeam os sentimentos que os invadem e os constróem ou
os destróem por esses mesmos sentimentos que os invadem.
Um dos pontos dignos de atenção, entretanto, durante a leitura da
obra literária completa de Cecília, é a tomada de consciência que esta poe-
tisa tem sobre a vida e o que a circunda. Para ela, a vida é breve, e o tempo
é fugaz como mencionei anteriormente. Em Desordem do mundo, crônica
aqui estudada, Cecília diz que todos estão descontentes: países, indivíduos
entre si, consigo mesmo” (1998, p. 267). No entanto, a representação da
vida é permeiada de uma relação intrínseca entre o tempo que se faz amigo,
cúmplice e contemplado na exatidão de seus fatos e do inevitável. O tempo
sempre cumpre sua rota quer se queira ou não.
Na poesia de Cecília, entendendo o esquema da vida vinculado à mor-
te, esta pode ser natural, porque todo ser vivo morre, mas também de re-
jeição, como no caso de suicídio. Neste esquema de vida recriado pela lite-
ratura, nossos “rostos esquecem de acordar” (1998, p. 279), em um tempo
mais distante quem sabe “todos estamos pulando corda, e não morreremos
nunca” (1998, p.281). Esse jogo com o tempo passado e o presente, essa
ideia de um mesmo tempo em dois, evocando imagens diferentes do tem-
po de vida de uma só pessoa, pode ser lido e relido na crônica literária
Imagens da infância escrita por Cecília e publicada em 1982.
Na obra poética feminina de Meireles, a vida é exaltada graças à beleza
do efêmero, ao instante da vida como potência transformadora. Assim,
efêmero e instante compõem a essência da vida para todo ser de lingua-
gem. Não cabe, pois nos poemas dela, ou isto ou aquilo quando se trata

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 25


do enigma da vida. Ela não instala antagonismo entre vida e morte, pelo
contrário, para ela, uma é a face da outra, e não teme ao sofrimento, não o
nega, não se ilude essa passeadora solitária, achando que a vida é fácil, e que
é só de alegria, de felicidade que se vive, ou que encontraremos, por exem-
plo, o paraíso prometido, a vida eterna, nesta vida. É em Dispersos, em um
poema intitulado Poemas I de 1928, que lemos essas palavras: “Escapa ao
que atinge a todos./ Constrói-te para um tempo sem fim, /que nunca te termi-
ne, /ainda que morras todos os dias!” (MEIRELES, 2001/1928, p. 1571 ).
De onde vem a construção desse mundo sólido de um tempo sem fim,
no qual as representações da vida se aliam ao destino e suas experiências
repletas de momentos alegres e tristes? Ora, o que pensar sobre essas expe-
riências aceitas como tal? Elas não ampliam de forma corajosa e singular, o
sentido da vida? Em nosso estranho mundo de hoje faz-se necessário cada
vez mais entender a vida em busca da essência de si para deixarmos de ser
sonâmbulos.
Relembrando que a pergunta que me guiou para elaborar este texto
oriundo de estudos sobre a obra completa de Cecília Meireles foi a seguin-
te: Em que medida o retrato de Cecília Meireles apresentado por nós destoa
do dos críticos no tocante à temática da vida? Ela pode ser respondida por
uma leitura que não ficou arraigada apenas a dos críticos literários porque
elaborei um retrato novo de Cecília Meireles que tanto me faz pensar sobre
este nosso estranho mundo de hoje, como diz : “apenas o sábio estava triste
porque era a pessoa mais esclarecida” (MEIRELES, 1982, p. 23).
Em nosso estranho mundo de hoje com a pandemia do Covid 19, ômi-
cron e a gripe, quem de nós é sábio em nosso pobre mundo?! Cecília escre-
veu que nossa cabeça é embrulhada em século de sombra. Não seria a vida
o único meio que favorece mudanças do nosso “sangue estranho e instável”
e dessas “ordens que trazemos por dentro”? Desse modo, é preciso então mor-
rer cada dia para entender que a obscuridade fundamental não hesita nem
um segundo em matar sem chances de ressureição para um eu renovado.
O enigma da vida em“Conversa com as crianças mortas”escrito em

DOI: 10.52788/9786589932505.1-2 26
1947 vai igualmente suscitar certa intimidade com a morte apontando
uma outra atitude poética positiva. Tudo se passa como se Cecília diante
do fato de ter tido dois irmãos e uma irmã morta, pai e mãe mortos, ter
vivido em uma casa desabada, se perguntasse constantemente por que a
vida lhe escolheu em detrimento da dos seus irmãos, da dos seus pais? Por
que ela estava viva e os outros não? Que enigma é esse? Perguntas ainda
sem repostas para mim.

Considerações finais

Objetivando neste texto apresentar a temática da vida em alguns poe-


mas e crônicas literárias de Cecília Meireles, empreguei a análise compara-
tiva entre o que os críticos dizem de sua obra e o que a minha leitura crí-
tica e reflexiva da obra completa me faz entender da obra. Apresentei uma
Cecília com diversas rupturas daquela apresentada em livros didáticos, a
Cecília de Retrato Natural ou de Motivo ou ainda do Ou isto ou aquilo.
Não é apenas essa Cecília que vejo neste texto.
Desse modo, a minha hipótese, segundo a qual o estudo das represen-
tações da vida de Cecília Meireles pode ampliar a visão dos alunos da escola
e dos estudantes de Letras na universidade é confirmada no momento em
que se demonstra uma poetisa raramente vista em livros didáticos estuda-
dos na escola brasileira e libertando-a das visões únicas dos críticos. Cecília
não está presa a uma só fase de sua criação literária.
Quando volto à temática tratada neste texto, penso em um dos maio-
res teóricos do gênero poesia, Octavio Paz afirmando que a verdadeira
condição do ser humano “não é separação da vida e da morte, mas uma
totalidade: vida e morte num só instante de incadescência” (PAZ, 1956,
p. 190). Em nosso estranho mundo de hoje pandêmico, certo, não nos
conformamos com a morte. Muitos de nós não escreve poesia, mas utiliza

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 27


a linguagem dos outros e suas ideias para talvez condenarmo-nos ou quem
sabe salvarmo-nos a nós mesmos ou de nós mesmos desse mundo.
Enfim, encerro este capítulo com as palavras de Cecília retiradas de
Mundo das rosas texto em que ela diz que o mundo é vasto, mas dentro
dele é breve a existência das flores. (...) mas ainda assim procuremos salvar,
cada dia, a rosa que desfalece. Ela diz que ainda virão outras mais belas,
sim, mas a beleza de cada uma é sem repetição; cada rosa é única – e nisto
se parecem com a criatura humana – e o seu tempo de vida é um tempo
exclusivo, e o seu segredo, se não for entendido, perde-se na morte súbita,
e foi inútil ter vindo de tão longe, até tão perto dos nossos olhos, tão ao
alcance de nossas mãos (MEIRELES, 1982).

Referências

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Poesia e Estilo de Cecília Meireles, Rio de


Janeiro, José Olímpio, 1970.
BOSI, Alfredo. O Ser o tempo da poesia. Companhi das Letras, 2000.
COMPAGNON, Antoine. O Leitor. In: O demônio da teoria. 2001.
GOUVEIA, Leila B. V. Ensaios sobre Cecília Meireles, in: Cecília Meireles, amiga,
2007, p. 306.
MEIRELES, Cecília. Obra Poética completa. (Org.) Antônio Calos Secchin, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
MEIRELES, Cecília. Ilusões do Mundo. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1998.
MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PAZ, Otávio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1956.
SANTOS, Jair. F. dos. Prefácio. in. Leitura: Uma aprendizagem de prazer. VARGAS,
Suzana. RJ: Altabooks, 2021, pp. 11-13.
SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia Completa: Cecília Meireles. Vol. 1 e 2 , Nova
Fronteira: 2001.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 28


ZAGURY, Eliane. Cecília Meireles: (Poetas Modernos do Brasil, 3), Petrópolis: Vo-
zes, 1973.
XYPAS, Rosiane. As Representações da Morte na Obra Poética de Cecília Meireles – A
Vida só é possível reinventada. Dissertação de Mestrado – UFPE, 2004, 126, fs. (não
publicada).
XYPAS, Rosiane. Étude lexicale de l’œuvre poétique de Cecília Meireles – Linguistique
du corpus et analyse littéraire. Éditions Universitaires Européennes, 2010. https://
drive.google.com/file/d/1-qEAsWSnoi98hev-WY5up0e0mpUkrJcc/view
XYPAS, Rosiane. Processos do luto em Poemas líricos de Cecília Meireles. In Re-
vista Leia Escola- UFCG, vol. 10 n. 1 2010. https://www.rosianexypas.com/post/
revista-leia-escola

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 29


CAPÍTULO 2

“Preta é minha pele. Preto é o lugar


onde eu moro”: as dimensões de afeto
e escrevivência da mulher negra em
“Quarto de Despejo”, de Carolina Maria
de Jesus e os olhares sobre seu tempo
Allan Jonhnatha Sampaio de Paula
Samuel Maciel Martins
Joiciane Maria Rodrigues de Carvalho

Introdução

Quando foi lançado em 1960, Quarto de despejo: diário de uma fave-


lada tornou-se um best-seller em pouquíssimo tempo, trazendo para diante
dos holofotes a figura de Carolina Maria de Jesus. A autora e intérprete
daquele Brasil das décadas de 1950 e 1960, filtrado nas vivências da favela
do Canindé às margens do rio Tietê, impactou o âmbito sócio literário bra-
sileiro ao trazer a crueza de uma realidade subalternizada, construindo não
apenas um olhar próprio sobre a sociedade de sua época, como também
explorando seus próprios sentimentos de afeto, solidão, prazer e satisfação
diante das vivências que costurava com cada palavra em seus diários.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 30


Pretendemos problematizar o olhar que Carolina Maria de Jesus tem
sobre seu tempo, estabelecendo-se não apenas como uma mulher atenta ao
que lhe rodeia, mas que busca compreender seu entorno a partir de uma
ótica particular, constituindo uma narrativa literária, sociológica e histó-
rica sobre a sociedade, assumindo, portanto, o lugar também de intelec-
tual. Consonante a isso, suas impressões e anseios enquanto mulher negra
brasileira e migrante revela traços próprios de sua vivência e de sua escrita,
delineando pontos em comum com o que Conceição Evaristo nomeia de
escrevivência. Nesse sentido, analisamos as dimensões privadas e coletivas
da vida de Carolina Maria de Jesus expressas em Quarto de despejo, suas
subjetividades e sentimentos de afeto e solidão, apresentando assim, sua
obra mais exitosa como construção literária, sociológica, memorial, bem
como narrativa historiográfica.
Dessa forma, almejamos conceber a imagem de Carolina Maria de
Jesus, bem como de sua própria obra a partir de outras lentes, problemati-
zando alguns aspectos já recorrentes quando se pesquisa e se discute sobre
ela:

[...] a maioria dos trabalhos insiste em atrelar à análise da obra aspectos físicos
e sociais da autora. Por exemplo, é recorrente o uso de lexias como 'negra',
'pobre', 'favelada', 'vira-lata', 'resíduo', 'favela', 'lixo', 'mãe solteira', 'marginal'
etc. Não se vê, no entanto, a mesma estratégia de análise quando se aborda, por
exemplo, a literatura de Clarice Lispector (1920-1977). Quantas vezes vimos as
análises da obra da autora de A hora da estrela (1977) recorrerem a termos como
'judia', 'branca', 'divorciada', 'imigrante' ou coisa do tipo? Ora, se esse tipo de
abordagem não serve (e não deve servir jamais) como aporte de análise literária
para a obra de Lispector, por qual razão é, reiteradamente, usado para Carolina?
(CARVALHO DA SILVA; CAVALCANTE CARVALHO, 2021, p. 94-95).

Carolina Maria de Jesus pode também ser enxergada a partir de uma


lente distinta, reconhecendo-a como uma mulher sensível e atenta ao seu
tempo, disposta a analisá-lo e percebê-lo a partir de sua vivência e experiên-
cia de leitura e de vida, ao mesmo tempo que reconhece sua história como
parte de um conjunto, construindo uma rede valorativa de percepções que

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 31


reclamam uma existência constante, inquieta e ansiosa por construir novos
enlaces para sua trajetória.

Os olhares de Carolina Maria de Jesus sobre seu lugar


e seu tempo

Quando nasceu em 14 de março de 1914, a menina Carolina vivia na


região de Sacramento, Minas Gerais. Sua família, pobre e remanescente do
campo, mudou-se para a cidade. Era uma dentre oito filhos de uma lava-
deira analfabeta e de avós um dia escravizados. Ainda na infância, aos sete
anos, Carolina Maria de Jesus teve a oportunidade de estudar no colégio
Allan Kardec, primeira escola espírita do Brasil, por intermédio de Maria
Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina trabalhava. Es-
tudou o primeiro e o segundo anos até que sua mãe, sem mais condições
de viver na urbe, regressou ao interior rural. A família teve passagens por
diversas cidades: Ubatuba, Franca e Ribeirão Preto, nas quais passaram por
inúmeras privações. Suas vivências desde cedo remontam a inquietude da
sua escrita, assim como sua vida, sempre em constante movimento, demar-
cando seu entorno e seus entraves.
Em 1947, Carolina mudou-se para São Paulo. Lá, ela trabalhou como
empregada doméstica, mas acabou engravidando de um português. Sem
emprego pela sua condição de mãe solteira, passa a morar na rua. Na épo-
ca, o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, configurou a região es-
querda das margens do rio Tietê como reduto para moradores e moradoras
de rua, da qual veio a se formar a favela do Canindé, onde Carolina passou
a viver em seu barraco, junto a seu primeiro filho, João José, seguidos por
José Carlos e Vera Eunice. Esta última, viria a se tornar professora e hoje
cuida da obra de sua mãe.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 32


Foi na favela do Canindé, um reduto com mais de uma centena de
barracos, sem água encanada ou saneamento básico, onde Carolina Maria
de Jesus, enquanto recolhia papéis, garrafas e outros objetos do lixo para
vender, encontrava cadernos e livros velhos. Sua inquietude sempre em
movimento, que havia sido emparedada pela abrupta ruptura de sua vida
escolar, podia enfim ser retomada, agora sob a luz do candeeiro de seu bar-
raco. Ela passou a registrar em inúmeros cadernos suas angústias com as
privações que passava, os desafios de ser uma mãe solteira e sem recursos,
moradora de uma favela e que, como muitos ali, ansiava por uma mudança
de vida, uma casa nova, comida na mesa, afeto, atenção. É pela indignação
e atenção de seu entorno que Carolina Maria de Jesus analisa problemas
sociais, políticos, econômicos e culturais no Brasil e segmenta uma forma
de pensar a sociedade a partir da organização da cidade.
Em 1959, com uma reportagem encomendada, o jornalista Audálio
Dantas chegou à favela do Canindé para registrar um pouco da vida dos
que ali moravam. Chegando próximo a região, o jornalista viu uma mulher
ralhando com um bando de garotos que não largavam do parquinho. A
mulher ameaçava colocar o nome deles em seu diário. Foi diante daquela
situação que Carolina foi parar na reportagem de Audálio Dantas e nas
páginas da revista O Cruzeiro em junho daquele ano. No primeiro semestre
de 1960, Carolina teve seus manuscritos editados por Dantas e transfor-
mados na sua obra inaugural e de maior êxito: Quarto de despejo: diário
de uma favelada. A obra se tornou um best-seller com milhares de cópias
vendidas e traduções em mais de uma dezena de países. A vida de Carolina
mudaria dali em diante e muitos, enfim, entraram em contato com sua es-
crita. O recorte temporal de seu diário inicia com a entrada de 15 de julho
de 1955 e encerra com a data de 01 de janeiro de 1960.
Já pelo recorte temporal, se percebe um primeiro destaque ao contexto
político nacional: era o exato período do governo de Juscelino Kubitschek.
Na entrada do dia 20 de maio de 1958, Carolina Maria de Jesus registra
em seu diário:

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 33


(...) Quando cheguei do palácio que é a cidade os meus filhos vieram dizer-me
que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca. Eu fiz um pouco
de macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me:
– Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi minha palavra falhar. Eu disse:
– É que eu tinha fé no Kubistchek.
– A senhora tinha fé e agora não tem mais?
– Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país
tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos
fraquíssimos. E tudo o que está fraco, morre um dia (JESUS, 2014, p. 39).

Decepcionada com o governo de Juscelino Kubitschek, nossa autora


é confrontada pelo filho, denunciando a expectativa de Carolina Maria de
Jesus com a difusão do discurso político de Kubitschek, na época, pautado
numa base desenvolvimentista e industrialista. Segundo Schwarcz e Star-
ling (2018):

A chave para construir esse novo país chamava-se 'desenvolvimentismo' e defen-


dia a ideia de que nossa sociedade, defasada e dependente dos países mais avan-
çados, repartia-se em duas: uma parte do Brasil ainda era atrasada e tradicional;
a outra já seria moderna e estava em franco desenvolvimento. Ambas, o centro
e a periferia, conviveriam no mesmo país, e era essa a dualidade que se devia
resolver pela industrialização e urbanização [...] (SCHWARCZ; STARLING,
2018, p. 417).

O plano de metas do governo JK era coroado pelo seu slogan. O con-


junto de metas de desenvolver principalmente as áreas de transporte, re-
cursos de energia, indústria e alimentos deveria ser segmentado como um
processo condicionado, um desenvolvimento de “cinquenta anos em cin-
co”. Contudo, esse processo que contribuiu para a entrada de capital es-
trangeiro no país e aumento na força produtiva nas indústrias também foi
coroado com o aumento da dívida externa brasileira e da inflação. Ainda
mais, “a situação de carência da população pobre mantinha-se inalterada:
faltavam escolas, não havia saneamento básico nem acesso à saúde, o tra-
balhador rural continuava excluído da legislação protetora do trabalho”
(SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 424). Com isso, a migração para

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 34


as cidades e as regiões periféricas, que recebiam o maior contingente de
migrantes, se multiplicaram. É sobre essa questão, para além do verniz
desenvolvimentista, que Carolina Maria de Jesus fala. Ela, como muitos,
arvorou-se do famoso “cinquenta anos em cinco”, manteve a ideia de que
sua realidade mudaria. Contudo, sua confiança, não apenas no governo,
como na própria noção de democracia e sociedade fragmenta-se, como ob-
servamos no trecho: “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nos-
so país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca
e os políticos fraquíssimos. E tudo o que está fraco, morre um dia (JESUS,
2014, p. 39)”. Para Carolina Maria de Jesus, democracia está conectada
ao andamento do país, ao dinheiro e à política, tendo esses elementos um
enlace de dependência, se um enfraquece, todos enfraquecem. É forçoso
também salientar como ela enxerga a fraqueza da democracia como uma
emergência social, algo “que está fraco, morre um dia”. A fraqueza desse te-
cido, enfim, seria rompida anos depois com o golpe civil-militar de 1964.
O que embasa o pensamento de Carolina Maria de Jesus é sua noção
organizacional da sociedade. Na entrada de 19 de maio de 1958, ou seja,
um dia antes de seu comentário sobre a democracia brasileira, ela afirma:

(...) As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excre-
mentos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impres-
são que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo.
Almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um
objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (...) Sou rebotalho.
Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou
jogase no lixo (JESUS, 2014, p. 37, grifos nossos).

Como dito antes, Carolina Maria de Jesus imagina a sociedade bra-


sileira a partir da cartografia urbana de São Paulo, onde reside, e esta por
sua vez, é reimaginada como uma casa. Nossa autora concebe uma teoria
para explicar a disposição dos agentes organizacionais da sociedade brasi-
leira, dispondo o lugar onde mora o nome de quarto de despejo, onde as
pessoas são “objetos fora de uso”, o “rebotalho” e acima de tudo, um lugar

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 35


pouco visitado de uma casa, logo, praticamente invisibilizado. Por sua vez,
quando Carolina se dirige ao centro da cidade, ela se sente na sala de visi-
tas, no lugar onde tudo está à mostra, onde se recebe os convidados, onde
tudo é bem disposto e arrumado, criando o verniz brilhante da boa vida.
Com “seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo. Almofadas de sitim”
(JESUS, 2014, p. 37), a sala de visitas é o oposto do quarto de despejo e
também a imagética da contradição: a mesma imagem que Juscelino Ku-
bitschek dispõe para o Brasil na sua campanha, na ânsia de fazer do país
uma sala de visitas, deixando de lado, no entanto, o quarto de despejo.
Nesse sentido, Carolina Maria de Jesus reclama para si a voz silenciada,
construindo uma narrativa escovada a contrapelo, e entendendo, portanto,
que toda narrativa “deve sua existência não apenas ao esforço dos grandes
gênios que a criaram, mas também à escravidão anônima de seus contem-
porâneos” (BENJAMIN, 2020, p. 13). A escravidão aqui pode ser enten-
dida pela própria noção de subalternização e silenciamento. Silêncio esse
quebrado na obra de Carolina, mas que nem por isso, impede que ela seja
disposta por uma representação distorcida.
Isso se deu na própria recepção da obra Quarto de despejo, recebida
como uma obra de linguagem peculiar e por isso mesmo, criticada. Para
além disso, o sucesso de vendas da obra não correspondeu à crítica que in-
visibilizou o livro e a deixou em um limbo de esquecimento, até passar por
múltiplas lentes de pesquisadores e pesquisadoras a partir dos anos 1990,
três década depois de sua publicação (SILVA; BRAZ, 2021).
Na época de lançamento, Carolina Maria de Jesus foi reconhecida e
recebida por políticos e personalidades da literatura, como Clarice Lispec-
tor, participou de programas de rádio e televisão e melhorou suas condições
de vida, mudando-se da favela do Canindé, hoje inexistente. Em sua obra
seguinte, Casa de alvenaria (1961), a autora demonstra sua estranheza,
mas também satisfação e esperança por estar adentrando a “sala de visitas”.
Contudo, ela também reflete sobre as críticas que recebe sobre sua obra,
afirmando: “Alguns críticos dizem que sou pernostica quando escrevo - os

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 36


filhos abluiram-se - Será que preconceito existe até na literatura? O negro
não tem o direito de pronunciar o classico?” (JESUS, 1961, p. 63-64).
Dessa forma, Carolina Maria de Jesus também rebate uma noção de cul-
tura letrada, ocupada em grande maioria por personalidades brancas. Ela
reflete se sua condição enquanto mulher negra e pobre a enquadra apenas
na suposta figura daquele que não escreve, que não se dispõe a ser culto.
A própria confrontação de Carolina ilustra como sua imagem e sua obra
foram deslegitimadas, tendo recebido mesmo críticas de que sua obra não
é literatura, o que se contesta pela própria ressignificação que a chamada
“escrita de si” vem tomando a partir de análises de diários, cartas e memó-
rias, obras que por muito tempo foram apenas de autoria de classes domi-
nantes e privilegiadas (LEJEUNE, 2014). Carolina Maria de Jesus rompe
com isso e emerge de seu campo de invisibilidade quebrando a imagem de
“unicórnia preta” da literatura brasileira (CARVALHO DA SILVA; CA-
VALCANTE CARVALHO, 2021, p. 97), fazendo alusão à obra de Audre
Lorde (1995) na ideia de um ser fantástico, fora da realidade e por isso,
invisível.
Ao percebermos esses enlaces, encontramos as subjetividades presen-
tes em Carolina Maria de Jesus, mulher negra brasileira, que respalda um
novo lugar para si e sua realidade, enxergando a rede de vivências que a
circunda e a legitima a partir de sua narrativa.

Carolina, escritora negra brasileira

Ao lançar o olhar para as obras de Carolina Maria de Jesus, nesse


caso, em especial, Quarto de Despejo: diário de uma favelada (2014), não
se pode deixar de enxergar a autora. Movimento comum para a análise de
qualquer obra literária. Carolina foi uma mulher negra brasileira, escritora,
catadora de papel, mãe solo de três crianças, morou na extinta favela do

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 37


Canindé, em São Paulo, onde escreveu os seus primeiros diários, os quais
foram publicados e proporcionaram à autora a oportunidade de sair da
favela. Apesar da condição financeira de Carolina ter mudado ao longo de
sua carreira, entre altos e baixos, outros marcadores como raça, gênero e
maternidade seguiram curso até o fim de sua vida em 1977.
Os elementos que constituem a identidade da autora, em ampla pers-
pectiva, estão imbricados, assim como para qualquer outro sujeito. Con-
sideramos que este fato repercute no pensamento da autora, não simples-
mente por se tratar de um livro escrito sob caráter autobiográfico, mas, por
principalmente implicar na relação de Carolina com o mundo. Isto é, por
repercutir nas condições de vida e de produção da escritora. Essa composi-
ção, para tanto, pode ser analisada através da Teoria da Interseccionalidade.
Collins e Bilge (2020) descrevem o uso comum da interseccionalidade
da seguinte forma:

A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder in-


fluenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem
como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica,
a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orienta-
ção sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – são in-
ter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma
de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências
humanas (COLLINS; BILGE, 2020, p. 15-16).

Ademais, priorizamos essa abordagem por concordar com Akotirene


(2019), quando a pesquisadora assevera que por meio da análise interseccio-
nal evita-se reducionismos da política de identidade e por “dessencializar a
identidade” como um construto homogêneo. Dessa maneira, a abordagem
teórica que se segue visa analisar como a organização social e cultural brasi-
leira, no tocante à raça, trabalho e gênero, implica na construção dos afetos
da protagonista de Quarto de Despejo. Assim, nos valemos da interseccionali-
dade como aparato metodológico para compreender os efeitos que se produ-
zem em torno de Carolina, sobretudo enquanto mulher negra.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 38


A mulher negra, o trabalho e os afetos

Na primeira página de seu primeiro livro, Carolina Maria de Jesus nos


conta sobre o seu dia 15 de julho de 1955: “Ablui as crianças, aleitei-as e
ablui-me. Esperei até as 11 horas, um certo alguem. Ele não veio. Tomei
um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslisa-
va no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: — Vai buscar agua mamãe!”
(JESUS, 2014, p. 11). Naquele dia, após colocar as crianças para dormir,
Carolina tinha um encontro marcado. No trecho, chama a nossa atenção
a forma como se narra o acontecimento em períodos curtos, concisos e
objetivos. Principalmente, quando se nota a escolha de abrir o livro escre-
vendo sobre uma ausência, mas a narradora não se debruça sobre isso, um
melhoral, em tese, resolveu a situação, porém a solidão afetiva vem a ser
uma constante no livro de Carolina. Exceção que se vê apenas no núcleo
interno, entre a mãe e os filhos.
Antes e depois do encontro que não aconteceu é preciso que se observe
as atividades que a personagem exerce. Ela cuida de seus filhos e prepara-os
para dormir, podemos, assim, entender a maternidade como um labor,
inclusive porque não havia uma outra figura para assumir esses cuidados.
Depois de tomar o remédio, dormir e acordar, Carolina inicia um outro
trabalho indo carregar latas d’água. Isso demonstra como a relação entre
trabalho, maternidade e os afetos se entrelaça e pode ser vista com recor-
rência e relevância no decorrer da narrativa. Em face do exposto, vimos que
Carolina dedicou tempo para se relacionar afetivamente, no entanto não
foi correspondida.
A teórica feminista negra bell hooks1, em seu ensaio Vivendo de Amor
(2010), reflete sobre a necessidade de o amor estar presente na vida das
mulheres negras como condição de vida plena. Para tanto, ela salienta que
ao lado disso é preciso que ocorram mudanças sociais que propiciem as

1 Em letras minúsculas como a autora pede para que seja citada.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 39


condições básicas para que essas mudanças ocorram. O contexto brasileiro,
enquanto território colonizado, mostra, inclusive através de dados, como a
desigualdade social é um fato persistente que afeta principal e diretamente
homens e mulheres negras. Seja no mercado de trabalho com o desempre-
go, com a desigual remuneração em mesmos postos de trabalho, na edu-
cação com o tempo de escolaridade ou nos índices de mortes em casos de
homicídios, como aponta a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça
no Brasil, publicada pelo IBGE em 2019.
Em Quarto de Despejo é evidente como a raça, dentro do contexto his-
tórico brasileiro de pauperização e marginalização das populações negras,
foi determinante para a subalternização de Carolina Maria de Jesus, mate-
rial e geograficamente. A própria autora registrou em seu diário-livro sobre
a alta carga horária e física de trabalho perante uma situação recorrente de
carência de recursos básicos, isso em 16 de julho de 1955: “Pensei na vida
atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço
na rua o dia todo. E estou sempre em falta” (JESUS, 2014, p, 12). Estar em
falta chegou a ser uma constante, ou seja, retomando bell hooks, naquele
momento Carolina não teve condições de viver plenamente, como se lê
em seu primeiro livro. E, mesmo com a ascensão social impulsionada pelas
vendas de Quarto de Despejo, a escritora continuou a ser a outra no meio
da elite letrada branca, pois era mulher negra e a ascensão financeira indi-
vidual não é capaz de provocar uma mudança estrutural ou coletiva que
proporcione um outro olhar, que não seja com as lentes do racismo, sobre
uma escritora negra bem-sucedida, como aconteceu com o lançamento do
primeiro livro.
Consoante a isso, o arranjo feito entre racismo e sexismo são indica-
dores-chave para a compreensão da organização social e cultural brasileira.
Lélia Gonzalez (2020) em Racismo e sexismo na cultura brasileira dissertou
sobre esse assunto observando a mulher negra como sujeito, ao mesmo
tempo em que era, ela mesma, uma pesquisadora negra:

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 40


O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo
fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sin-
tomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que
sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em
particular (GONZALEZ, 2020, p. 76) (grifo da autora).

Em seu texto, Gonzalez exemplifica o comportamento do neurótico


quando afirma que ele “constrói modos de ocultamento do sintoma por-
que isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de
se defrontar com o recalcamento” (Idem, p. 84). Isso se aplica a Caio Pra-
do Jr., por exemplo, um dos renomados historiadores que empreenderam
leitura sobre a formação cultural brasileira, mencionado pela própria Lélia
Gonzalez em seu artigo:

Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial,


fator trabalho e fator sexual, não determinará senão relações elementares e muito
simples. […] A outra função do escravo, ou, antes, da mulher escrava, instru-
mento de satisfação das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores, não
tem um efeito menos elementar. Não ultrapassará também o nível primário e pu-
ramente animal do contato sexual, não se aproximando senão muito remotamente da
esfera propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve de todo um
complexo de emoções e sentimentos tão amplos que chegam até a fazer passar
para o segundo plano aquele ato que afinal lhe deu origem (PRADO JR. 1961,
p. 341-342) (grifos nossos).

Diante daquilo que seria ocultar os sintomas em troca de benefícios,


entendemos a escrita do autor como sintomática de um modo de inter-
pretar os fenômenos sócio-históricos por uma perspectiva racista e sexista.
Nesse caso, é salutar retomar a perspectiva de Gonzalez que nos alerta da
relevância em situar o lugar de quem interpreta as relações raciais e de gê-
nero. Prado Jr. (1961) considera que entre as funções da mulher escrava2
uma era ser “instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus
senhores e dominadores”. Vemos que o historiador não deixa de escrever

2 O que não quer dizer “mulher negra”, porém era comum reduzir a condição de homens e mulheres negras à condição
e denominação simples de “escravos”.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 41


sobre as relações entre negras e brancos, mas no seu método está a negação
e o recalque por trás daquilo que se pretende esconder. Afinal, o que vem a
ser, de fato, essa tal necessidade sexual do homem branco que só se satisfaz
com a mulher escravizada?
E o autor de Formação do Brasil Contemporâneo segue. Mas, antes pre-
cisamos destacar sob qual tratamento a mulher negra está submetida na
análise de Caio Prado Jr. Gonzalez (2020) considera que há uma certa
persistência na abordagem sobre negros e negras, dentro dos estudos que
perpassam pelas relações raciais, tais como objeto ou como objeto de saber.
E complementa: “[...] ele lhes nega o estatuto de sujeito humano. É por aí
que a gente compreende a resistência de certas análises que, ao insistirem
na prioridade da luta de classes, se negam a incorporar as categorias de raça
e sexo. Ou seja, insistem em esquecê-las” (GONZALEZ, 2020, p. 84).
Esse é o caso.
Também constatamos na citação a Prado Jr. (1961), por fim, a proe-
minência que se dá aos atos sexuais relacionados à mulher negra escraviza-
da em detrimento das relações de amor. O primeiro está ligado ao instinto,
visa aproximar a mulher negra do mundo animal, enquanto o amor a ela
é negado por estar ligado à esfera humana, segundo o autor. Tais aspectos
são responsáveis por alimentar os estereótipos sobre a mulata e a mulher
negra superforte, num contexto de hiperssexualização, sofrimento físico e
psicológico.
No que diz respeito ao trabalho em Quarto de Despejo: diário de uma
favelada (2014), dado o contexto de pobreza extrema em que Carolina e
seus filhos viviam, esse era um meio de lutar pela subsistência. Frequen-
temente, junto às jornadas de trabalho estava a maternidade, duas cargas
sobre um corpo num mesmo instante:

Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice.
Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça
e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera
Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem
culpa de estar no mundo (JESUS, 2014, p. 22).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 42


Há um perigo corrente com a naturalização dos esforços exaustivos
enfrentados por mulheres negras. A condição de “mulher guerreira”, “mu-
lher forte” etc. ao invés de construir uma imagem positiva faz-nos interpre-
tar as situações de extremo esforço como superáveis, ou até mesmo como
pretexto de redenção, porém, é preferível a exaltação sem a humilhação,
ou apenas as condições básicas de vida plena. Kilomba (2019) nos ajuda a
pensar melhor sobre isso:

A ideia da “supermulher de pele escura” para usar o termo de Kathleen, pode,


por um lado, ser vista como uma estratégia política para superar as represen-
tações negativas das mulheres negras no mundo branco. Mas, por outro lado,
aprisiona as mulheres negras numa imagem idealizada que não nos permite ma-
nifestar as profundas feridas do racismo. Kathleen fala dessa ambivalência, de
ter de preencher imagens empoderadoras – imagens que podem, na verdade, ser
experienciadas como desempoderadoras, na medida em que silenciam os danos
psicológicos do racismo cotidiano (KILOMBA, 2019, p. 192).

A vida de Carolina Maria de Jesus é representativa de um grande con-


tingente de mulheres negras pelo mundo3 que vivenciam semelhantes ten-
sões raciais, de gênero e de classe social. Essa intersecção produz dores agu-
das, tanto do ponto de vista material como afetivo, de acordo com o que se
pode interpretar das palavras da autora: “Refleti: preciso ser tolerante com
os meus filhos. Eles não têm ninguém no mundo a não ser eu. Como é
pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (JESUS,
2014, p. 22). Carolina compreende e sente a sobrecarga que é sustentar
uma família sozinha, ainda que demonstre não fazer questão de ter marido.
Necessário é, portanto, ler Carolina Maria de Jesus enquanto mulher
negra brasileira e pela perspectiva de mulheres negras, a fim de se evitar a
omissão, o recalque e o uso de eufemismo sobre as violências do passado e
do presente. A repetição da negação da história da mulher negra enquanto
sujeito leva-a primeiro à margem e depois ao esquecimento. Por isso, faz-se

3 Um exemplo é a escritora Françoise Ega (1920-1976), que nasceu na Martinica e viveu na França. Ao ler trechos do
Quarto de Despejo numa revista francesa, Ega logo se identificou com a escritora brasileira e desejou se corresponder com
Carolina, o que resultou no livro Cartas a uma negra (2021), publicado postumamente em 1978.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 43


importante, outrossim, refletir sobre o amor, porque também é algo que se
nega ou se omite à mulher negra, seja como ato de afeto ou por meio de
pesquisas científicas. E, isso nos leva a tensionar a cultura brasileira e suas
estruturas sociais aparentemente consolidadas, mas que contribuem para a
manutenção da marginalização das mulheres negras.

Carolina e a escrevivência

“A nossa escrevivência não pode ser lida como história de


ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos
injustos”
(Conceição Evaristo)

Carolina Maria de Jesus traz em sua escrita força, poder e em sua nar-
rativa uma vivência não vista pelos “da casa-grande”, fazendo um paralelo
com Conceição Evaristo, mulher, negra, escritora e linguista da atualidade
que cunhou o termo “escrevivência” com a seguinte explanação em entre-
vista à Revista PUCRS:

Em 1994, na minha dissertação de mestrado, fiz um jogo de palavras entre escre-


ver, viver, escrever-se vendo e escrever vendo-se e aí surgiu a palavra escreviver.
Mais tarde comecei a usar escrevivência. [...] Termino meu relato dizendo que
nossa escrevivência não era para adormecer a casa-grande, e sim para acordá-la
de sonos injustos. A partir do momento em que esse texto foi publicado nos
anais do evento, foi ganhando mais leitores e interesse (EVARISTO, 2019).

Em seus relatos, Conceição Evaristo nomeia um conceito cujo Caro-


lina já usava não em seus textos, porém na sua vivência de mulher, negra e
periférica. Conceição ainda relata:

O termo tem como imagem fundante as africanas e suas descendentes escraviza-


das dentro de casa. Uma das funções delas era contar histórias para adormecer os

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 44


meninos da casa-grande. A palavra das mães pretas e bás era domesticada, na me-
dida em que tinham que usá-la para acalentar essas crianças. Hoje a escrevivência
das mulheres negras não precisa mais disso. Nossas histórias e escritas se dão com
o objetivo contrário: incomodar e acordar os da casa-grande. Não estamos aqui
para ninar mais ninguém nem apaziguar as consciências. (EVARISTO, 2019).

Carolina Maria de Jesus na obra “Quarto de Despejo”, reforça o que


cita Conceição Evaristo. Carolina faz surgir através de sua escrita a escrevi-
vência de forma autêntica e singular. Carolina não tinha interesse em ninar
os “da casa-grande” muito pelo contrário, o desejo de Carolina era escrever
a sua vida, o seu ser viver e o ser vivendo, existindo, e nisso não cabem os
“da casa-grande”, a vivência de Carolina não estava relacionada ao desejo
de satisfazer senhores ou patrões ou até políticos, mas o sonho dela era
apenas escrever, escrever a dor, a miséria, a revolta e em sua mente havia a
certeza de que sonhos nobres não eram para os pobres. Carolina escreveu
o que viveu, intensamente no chão da vida.
A voz de Carolina ganha força no livro desde os primeiros trechos
quando em 15 de julho de 1955 é aniversário de sua filha Vera Eunice e
Carolina não tinha dinheiro para lhe comprar um par de sapatos, isso é
descrito na obra de uma forma simples e entendível e como uma literatu-
ra da realidade, realidade não dos anos 50 ou 60, mas também realidade
de tantos e tantas brasileiros e brasileiras ainda hoje em outros quartos de
despejo do nosso país. Carolina de Jesus não só não era objeto fora de uso
como sua escrita trouxe à língua portuguesa novas vertentes de existência e
de instrumentalização da língua, como afirma Conceição Evaristo.

Carolina representa essa possibilidade de ampliação de uma criação literária bra-


sileira. Carolina chega exigindo espaço para novas formas, inclusive de com-
preensão do que seria literatura, quebra com a hegemonia literária liderada por
autores brancos - homens e mulheres -, e chega se apropriando da língua, do
texto literário, desse desejo da literatura a partir das classes populares. Sua escrita
também institui novas formas de escrita. Tenho chamado isso de uma gramática
do cotidiano. Ela brinca com a língua portuguesa a partir de outra experiência
linguística e navega pela língua culta. Sabe que está produzindo literatura e tra-
balhando com a arte da palavra (EVARISTO, 2021).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 45


A arte da palavra a qual Conceição se refere quando fala de Carolina
tem como inspiração nada mais que a vida, o chão, a miséria e a dor des-
crita em seu diário. A visão de Carolina sobre sua própria realidade faz com
que ela utilize de outras formas possíveis a língua portuguesa que conhe-
cemos; Carolina é compreendida e faz-se compreender a todas e todos de
forma que sua escrita revela além de sua realidade, seus desejos e sonhos,
escrita essa que era vista de uma forma muito comum para homens e mu-
lheres brancos e brancas; Carolina surge como um feixe negro de sabedoria
de dentro de um quarto de despejo, escurecendo e expondo em seu diário
sua vida e sua história como catadora de papel na favela do Canindé.
Na obra em questão, Carolina traz à tona também assuntos políticos
da época e sua opinião sobre alguns políticos, até que em um trecho ela
relata “[…] o Brasil precisa ser dirigido por quem já passou fome. A fome
também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, nas
crianças.” (JESUS, 2014, p. 29), em alguns trechos Carolina demonstra
grande entendimento sobre a vida política da época e uma revolta explícita
em seus textos.
A escrita de Carolina e sua justa revolta na escrita é também forma
de escreviver, escrevivendo enquanto luta por justiça social, enquanto luta
por si e pelos filhos para terem o mínimo e como escreve Grada Kilom-
ba (2019) “ Escrever, portanto, emerge como um ato político” e foi isso
que Carolina fez politicamente, trouxe dentro sua escrita força e literatura,
em uma linguagem simples e compreensível ao leitor na realidade de cada
trecho do Diário de uma favelada, inclusive quando retrata em trechos
da obra o motivo de quarto de despejo, visto que o era como se tivessem
colocado na favela o que não fosse mais útil ou tivesse serventia para a so-
ciedade, como se fosse “objeto fora de uso, digno de estar num quarto de
despejo” como visto acima. Mesmo se autointitulando como “objeto fora
de uso”, Carolina hoje é reconhecida como uma das maiores escritoras bra-
sileiras e que abriu portas para tantas escritas, vivências e escrevivências de
outros tempos. Carolina foi a porta por onde escritoras negras passaram e
passam e a fonte por onde também temos bebido.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 46


Carolina Maria de Jesus durante toda a obra reforça o que vivia no
chão da miséria e o que sentia na pele preta e periférica. Em sua escrita Ca-
rolina deixa transparecer o desejo de não ver mais seu povo sendo oprimido,
como viu, ouviu e sentiu. “Chora criança. A vida é amarga”, o amargo que
Carolina transformou em um pouco mais açucarado não para si, mas para
as gerações que viriam após ela. O anúncio de Carolina na literatura deu
um lugar que já era nosso lugar de gente preta, mas que não fora utilizado
com tanta veemência e força antes, não com a história contada por boca
faminta de pão e de justiça, Carolina propõe em sua escrita um desejo de
mudança social pois enxerga uma problemática muito maior, que não seria
resolvida em curto prazo, mas com sua força e potência conseguiu semear
nos trilhos da literatura deixando rastros negros para os que viriam após
ela. As problemáticas trazidas em Quarto de despejo não se limitam a temas
já debatidos na época e sim o oposto, Carolina trazia na veia o sangue de
trazer à tona assuntos que são debatidos hoje e que como pesquisadores
nos valemos dos escritos de Carolina para validar ideias e comprovar fatos.

Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava
em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e
o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque nin-
guém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi
a realidade (JESUS, 2014. p. 197).

A leitura de Carolina Maria de Jesus, favelada e reexistente, deve ser


tida como objeto na nossa sala mais ilustre, na sala da frente, na sala da fren-
te de nossas bibliotecas, estantes, apesar de ela mesma fazer essa perspicaz e
pioneira leitura dela e dos seus como objeto fora de uso, hoje utilizamos os
escritos de Carolina para validar nossa escrevivência, para levar adiante nos
rastros negros que ela nos deixou um modo de tensionar a realidade que
vivemos, independentemente de onde vivemos. Carolina conseguiu em
suas letras de próprio cunho dizer à sociedade que preto tem voz, tem vez
e tem lugar, não um lugar qualquer ou um lugar de brancos, o nosso lugar.

DOI: 10.52788/9786589932505.1-3 47
Lugar este que mesmo sendo 56,2% da população geral brasileira1 ainda
somos minoria em lugares de poder dentro da sociedade, ainda somos de-
sacreditados em nosso profissionalismo, em nosso caráter, em nossa escrita.
Carolina Maria de Jesus trouxe a nós o possível quando para ela parecia
impossível, mostrando a nós o poder e a força preta existente, resistente e
reexistente em cada um de nós.

Considerações finais

Assim, Carolina Maria de Jesus se estabelece como pensadora e in-


telectual não apenas do seu tempo, mas também de um Brasil que ainda
se configura em diversas nuances e problemáticas na nossa contempora-
neidade. Ao pensar seu lugar, sua família e o pedaço de mundo que ha-
bitava, Carolina construiu suas particularidades de escrita e pensamento,
enxergando a cidade como uma casa e estabelecendo as desigualdades da
sociedade a partir de um ponto comum de opressão e exploração – a sala
de visitas, que ela mesma estranhou ao adentrar – e um ponto de esque-
cimento e desigualdade, o epicentro de sua vivência – o quarto de despe-
jo. Analisando um Brasil dos anos 1950 e 1960, anos conturbados, em
que a democracia parecia seguir por uma corda bamba, em meio a troca
frequente de presidentes e o futuro golpe civil-militar que se seguiria em
1964, nossa escritora, enxergou nesse aspecto o ponto fraco da sociedade
brasileira. Se a democracia se encontra em emergência, toda a sociedade
também está. Foi a imagem imbricada, racializada e dividida em cômodos
que Carolina registrou nas entradas de seus diários.
Além disso, a expressão literária de Carolina possui a marca da escrita
de uma mulher negra brasileira. Ela é interseccional, pois ilustra um amplo
contingente da população brasileira, por isso se inscreve complexa, uma
1 Dados disponíveis em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html#:~:tex-
t=De%20acordo%20com%20dados%20da,1%25%20como%20amarelos%20ou%20indígenas.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 48


vez que a sua produção resgata vozes plurais e cria uma narrativa literária
em torno de sua própria escrita singular. A sua narrativa toca em feri-
das abertas que têm se transmutado da colonização à contemporaneidade.
Exemplo disso é a própria organização racial e social urbana, que margi-
naliza grupos específicos; a exploração da mulher negra no mercado de
trabalho; a solidão da mulher negra, que é hiperssexualizada, abandonada
junto à família e corriqueiramente posta à margem das relações de afeto.
Ler Carolina, de fato, é ler páginas do Brasil por uma perspectiva crítica,
independente da abordagem que se priorize à sua obra de estreia.
Ler Carolina é adentrar dentro de uma realidade que perpassa muitas
brasileiras, seu marco histórico e social faz com que cada mulher negra que
seja deste chão da vida perceba a força e a potência de uma mulher negra
que vai de uma catadora de papel a uma escritora, que tensiona a realidade
política com sua escrita, fazendo com que pensemos e reflitamos qual a cor
da nossa fome e de que temos fome hoje. O tensionar proposto por Caro-
lina tem como consequência a escrita de seus textos profundos sobre aquilo
que ela viveu na pele, na pele preta, dentro de um quarto de despejo. Que
a escrita de Carolina impulsione e alargue caminhos de uma escrita pobre,
preta e forte, escrita de vida, de raça e de representação para os que virão
depois de nós.

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anos da obra de Carolina Maria de Jesus. Catu: Bordô Grená, 2021, p. 15-40.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 50


CAPÍTULO 3

O “apagamento” das escritoras


negras na literatura brasileira
Fransueiny Pereira Fleischmann

Introdução

A literatura brasileira passou (e passa) por um árduo percurso para


representar efetivamente a natureza e a vivencia de seu povo. Toda essa “di-
ficuldade” da representação e valorização da literatura no Brasil acontece
por vários fatores, sobretudo por questões históricas de colonização e visões
eurocêntricas que ao longo dos anos fomos induzidos a defender. Isso, sem
esquecer, que por muitos anos (e talvez indiretamente ainda hoje) a litera-
tura no Brasil é vista como algo supérfluo das classes privilegiadas e para
um grupo seleto da sociedade2.
Quando se é analisada a literatura escrita por mulheres, existe um hia-
to tanto nas produções quanto nas publicações pelas editoras. Dessa forma,
este texto tem como tema central a análise do “apagamento” das escritoras
negras na literatura brasileira.
Para realização desta análise, a pesquisa partiu das seguintes problema-
tizações: Qual motivo do pouco conhecimento de obras literárias escritas
por mulheres negras? Existem escritores que são reconhecidos (de maneira

2 Este texto faz parte de uma pesquisa desenvolvida por mim para obtenção de título em uma pós-graduação Lato Sensu
em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 51


justa) por seus ensaios, artigos e livros e outros escritores que estão desde
sempre sendo esquecidos e “apagados” da literatura brasileira mesmo sendo
autores de obras com inegável valor e absurdamente literárias?
Diante destes questionamentos, a proposta foi analisar os fatos, as ori-
gens e os motivos pelos quais escritores foram e são “apagados”, diminuí-
dos e sequer citados nos livros didáticos escolares da Educação Básica e até
mesmo na Educação Superior. A partir de uma pesquisa bibliográfica, com
levantamentos de dados e estudos de artigos científicos, livros teóricos e
publicações em geral sobre o tema tratado, as possíveis hipóteses levantadas
para tais problematizações é que esse “apagamento” ocorre, dentre outros
fatores, pelo racismo estrutural que acomete o país desde o período da es-
cravidão, sendo que, historicamente, os negros sofreram os mais variados
episódios de racismo. Ainda foi possível constatar que as escritoras negras
sofreram dupla invisibilidade: do gênero e raça.
A pesquisa realizada foi importante para o entendimento da formação
da literatura brasileira a luz de elementos históricos que silenciam o negro
e a mulher, além de inserir esses questionamentos para a sociedade, uma
vez que promove discussões relacionadas a dois temas de grande relevância
social: racismo e sexismo.

O “apagamento” de autoras negras no Brasil

Quando se faz uma leitura crítica em relação à literatura brasileira, em


especial ao século XIX, fica evidente como a mulher negra era retratada:
sempre relacionada ao erotismo, à promiscuidade e ao objeto sexual. Cabe
ressaltar que essa “literatura” foi escrita essencialmente por homens e que
romper com essa construção é um processo difícil e trabalhoso que ainda
não foi concluído. E mesmo quando a mulher passa a ter o direito de se
lançar como escritora, percebe-se que a narrativa em pouco foi alterada em
relação ao retrato da mulher negra. Edith Piza (1998) retrata esse aspecto

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 52


na sua obra O caminho das águas, analisando como as mulheres negras são
construídas pelas escritoras brancas a partir da década de 70: retratadas
como babás ou cozinheiras e trazem a sexualidade aflorada e sua objetifi-
cação sexual. Sendo assim, é muito importante, para o meio acadêmico,
pesquisar sobre as representações dos negros, em especial da mulher negra,
a partir do seu próprio olhar.
Djamila Ribeiro (2017, p. 21) reforça esse conceito quando cita na
obra O que é lugar de fala?:

Falar a partir das mulheres negras é uma premissa importante do feminismo


negro, como nos ensina Patricia Hill Collins sobre a necessidade dessas mulheres
se autodefinirem, assim como fez Lélia Gonzalez ao evidenciar as experiências
de mulheres negras na América Latina e no Caribe. Existe um olhar colonizador
sobre nossos corpos, saberes, produções e, para além de refutar esse olhar, é pre-
ciso que partamos de outros pontos. De modo geral, diz-se que a mulher não é
pensada a partir de si, mas em comparação ao homem. É como se ela se pusesse
se opondo, fosse o outro do homem, aquela que não é homem.

Diante do exposto é notório que a mulher negra, ao longo dos séculos,


vem sendo representada na literatura brasileira de maneira estereotipada,
em desconformidade com o papel que ela representa para a formação do
país. E, se essa mulher é assim “representada” nas obras, como tem sido
então a aceitação das escritoras negras no mercado literário? Destaca-se que
escrever sobre a representação da mulher negra no decorrer dos períodos
literários brasileiros é um assunto bastante pertinente, inclusive sendo algo
necessário e urgente, mas o objetivo desse artigo segue para um foco um
pouco diferenciado.

Uma leitura mais profunda da literatura brasileira, em suas diversas épocas e


gêneros, nos revela uma imagem deturpada da mulher negra. Um aspecto a ob-
servar é a ausência de representação da mulher negra como mãe, matriz de uma
família negra, perfil delineado para as mulheres brancas em geral. Mata-se no
discurso literário a prole da mulher negra. Quanto à mãe-preta, aquela que cau-
sa comiseração ao poeta, cuida dos filhos dos brancos em detrimento dos seus
(EVARISTO, 2005, p.53)

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 53


Especificamente, o capítulo propõe questionamentos acerca do fato
de que escritoras negras, com obras excepcionais, traduzidas em diversos
países, inclusive, não tiveram o reconhecimento e a difusão desses ensaios
pela Academia, pela crítica literária e por tantos outros espaços onde es-
critores homens e brancos foram ovacionados e reconhecidos. Ressalta-se
que não se trata de propor um duelo entre homens e mulheres escritoras,
mas questionar qual a escala de reconhecimento que esses autores têm na
formação da literatura brasileira.

Para as mulheres negras ou brancas, a literatura foi por muito tempo espaço de
exclusão e muitas vezes de negação de sua participação. Essas mulheres eram
restritas aos espaços domésticos ou religiosos. Essas mesmas mulheres eram
vítimas de uma sociedade patriarcalista e sexista, enquanto os homens eram
quem dominavam as letras da literatura que circulavam. O sexo feminino
teve seus discursos negados e rejeitados à inclusão no cânone por muitos anos
(MONTEIRO, 2016, p. 2).

Para a mulher, independentemente de sua classe ou raça, sempre foi


um grande desafio lançar-se como escritora em um país sexista e patriarcal.
Elas tiveram seus discursos como sujeitos deslegitimados sob toda forma
de opressão: cultural, social, política, dentre outras, até aproximadamente
a década de 1970. Foi a partir daí que houve uma explosão da literatura
feita por mulheres e, consequentemente, a expansão da literatura negra
propriamente dita, com produções tanto de mulheres quanto de homens
negros comprometidos com as causas da negritude. Dessa forma, em meio
a muita resistência, as mulheres passaram a escrever sobre o seu povo e suas
lutas, rompendo com os estereótipos literários que lhes eram atribuídos na
história e tradição da literatura brasileira.
Todo esse processo de construção de narrativas de resistência e luta nas
obras negro-brasileiras também são vistas na literatura negro-feminina. As
escritoras negras usam, como “arma”, sua potente escrita para romper com
o machismo e o racismo e modificar a realidade do apagamento e silen-
ciamento que sofreram na história do país, incorporando nas suas escritas,
elementos dos seus ancestrais e suas heranças culturais africanas.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 54


pretende-se com a literatura afro-feminina elaborar discursos em que se possam
fiar e ficcionalizar mazelas advindas de práticas racistas e sexistas, mas também,
em tom de lirismo, tecer versos e prosas que re-elaborem identidades, entoem
e inventem amores, dissabores, dores, histórias, resistências e ancestralidades
(SILVA, 2010, p. 98).

Ou seja, a literatura feminina negro-brasileira busca representar a re-


sistência dos costumes e dos valores (culturais, sociais e religiosos) do negro
em diáspora, a partir das suas relações em sociedade ressignificando o coti-
diano de um povo que vive respeitando as tradições ancestrais, sem deixar
de denunciar, em tempo oportuno, o racismo e o sexismo que sofreram
desde a escravização.

A importância das escritoras negras na formação da


literatura brasileira

O reconhecimento de um escritor(a) nem sempre é simples. Muitos


são questionados pelos seus pares por vários motivos, como a forma de
sua escrita, os assuntos sobre os quais escrevem, a corrente literária que lhe
serve de suporte. Muitas vezes (a maioria alias), os escritores somente são
“reconhecidos” e valorizados após a sua morte. Isso aconteceu com Hen-
ry David Thoreau, em relação a sua obra A desobediência civil (1849) ou
Franz Kafka, com O Processo (1925), por exemplo. Dessa feita, é possível
citar uma quantidade demasiada de escritores que passaram por este reco-
nhecimento póstumo. Mas o fato é que tais autores, que têm suas obras
reconhecidas de maneira póstuma, de uma forma ou de outra- em vida ou
pós vida - são respeitados por seus pares.
A proposta deste artigo é tratar especificamente de escritoras negras
que realizaram ensaios, artigos, livros de excelência, mas que não tiveram
o reconhecimento como escritoras. Essas mulheres passaram (e passam) a
vida em busca dessa valorização, e são, em grande maioria, excluídas pela

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 55


Academia, pelas editoras e muitas vezes, pelas pessoas com quem elas con-
vivem. Mas pode-se perguntar: porque isso acontece? Essas mulheres não
são reconhecidas por questões meritocráticas ou devido a sua raça, gênero
ou classe social?
Infelizmente é necessário expor que não é assim que funciona o mer-
cado literário. Existe um “padrão” com características que determina quem
vai ser lançado e quem vai bater de “porta em porta” nas editoras para ser,
ao menos, lido (a). Sim, isso parece cruel, mas funciona exatamente as-
sim. De acordo com pesquisa realizada por Dalcastagnè (2008) no artigo
intitulado Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasilei-
ra contemporânea, de 165 escritores publicados, os homens representavam
72,7%. “Mas a homogeneidade racial é ainda mais gritante: são brancos
93,9% dos autores e autoras estudados (3,6% não tiveram a cor identifica-
da e os “não-brancos”, como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%)”
(DALCASTAGNÈ, 2008, p.89).
Assim, a pesquisa proposta por este estudo farar-se-á referência a essas
escritoras negras que tiveram (e continuam tendo) “as portas” fechadas ao
longo de sua caminhada no país. Tente recorda-se quantas escritoras negras
foram lidas durante o seu período escolar? Quantas autoras negras você leu
ao longo de sua existência? Será que elas não existem? Será que mulheres
negras não têm a vontade e a capacidade de escreverem livros, que pode-
riam por considerados clássicos e fundamentais para a construção da socie-
dade no nosso país, visto que somos, de acordo com o próprio IBGE, uma
população composta maiormente por pessoas do gênero feminino e predo-
minantemente uma população preta ou parda? Onde estão essas mulheres
negras que escrevem, então? Elas foram apagadas, silenciadas, esquecidas e
oprimidas pelo mercado literário. Sofrem a exclusão e o preconceito que,
por serem negras e mulheres, não têm a possibilidade de escrever e serem
autoras de suas obras.
Por isso, quando se pensa na composição da literária brasileira, reme-
te-se ao que Schmidt e Navarro (2007) defenderam: a literatura (em sua

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 56


base cultural) foi, até pouco tempo, controlada pela hegemonia patriarcal e
seus pressupostos sobre diferenças assimétricas e hierárquicas de gênero, o
que significa dizer que as mulheres que atuaram, no passado, no campo das
letras, ficaram à margem da literatura, esquecidas e silenciadas nas histórias
literárias. Dessa forma, “uma visada crítica às culturas literárias nacionais
ilumina as conexões entre cultura e poder, entre instituição intelectual e
dominação, entre privilégio e exclusão” (SCHMIDT; NAVARRO, 2007,
p. 85).
Sob essa perspectiva, mulheres brancas ou negras, viram na literatura
um espaço de exclusão e silenciamento. “Restritas aos espaços domésticos
ou religiosos, as mulheres ficaram a olhar de ‘longe’, enquanto os homens,
em sua maioria, teciam as letras das literaturas que circulavam.” (SOUSA,
2015, p.78). Essas mulheres negras escritoras:

assenhorando-se 'da pena', objeto representativo do poder falocêntrico branco


[...], buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma autorepre-
sentação. Surge a fala e um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo
vivido. A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desven-
turas de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer
inferiorizada, mulher e negra (EVARISTO, 2005, p. 205, grifo da autora).

Esse assenhoramento permitiu que mulheres negras deixassem de se-


rem descritas como meros objetos e se tornassem sujeito de suas histórias,
redesenhando os seus perfis na literatura, com obras, muitas vezes, auto-
bibliográficas, fato que expressa o que a professora Eneida Maria de Souza
(2011) classifica como “recuperação da memória literária”.
Schmidt e Navarro (2007) escrevem ainda que, foi a partir da década
de 70, que houve uma “explosão” em torno das literaturas que tinham
as mulheres como vanguardistas. A partir daí homens e mulheres negras
expandiram suas obras literárias em torno de suas negritudes. Até então,
como citado anteriormente, o negro, e principalmente a mulher negra era
representada nas obras literárias com estereótipos de escravas, mãe-de-leite
e objetos sexuais de seus donos. Sendo exatamente nesse contexto que as

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 57


escritoras negras passaram a questionar esses “rótulos” impostos pela lite-
ratura e começaram a escrever sobre suas vivências, dores, lutas e imagem.
Pode-se ressaltar foi um ato de resistência e coragem que as escritoras tive-
ram em contestar uma estrutura patriarcal e sexista que existia na literatura.
A busca por esta auto representação e a quebra dessas imagens nega-
tivas ou comumente circulantes na literatura nacional realizou-se com a
tomada de consciência dessas mulheres que se aglutinam em movimentos
literários e passam a expressarem seu próprio sujeito poético, com suas
dores, lutas, anseios, história e memória. Um sujeito negro feminino capaz
de se apresentar, agora por suas próprias mãos e sentidos; “aos poucos, es-
sas mulheres foram rompendo com as deturpações e estereotipias literárias
a elas atribuídas na história e tradição da literatura brasileira”. (SOUSA,
2015, p.80)
Davis (2016, p. 24) avigora essa opinião quando diz que “embora as
mulheres negras desfrutassem de alguns duvidosos benefícios da ideologia
da feminilidade, não raro presume-se que a típica escrava era uma traba-
lhadora doméstica – cozinheira, arrumadeira ou mãe de leite na ‘casa-gran-
de’”. Simone Beauvoir, em O segundo Sexo (1949) evidencia esses concei-
tos quando defende que o homem mantém uma relação de dominação e
submissão com as mulheres, pois estes as desejam como objetos. Para a
filósofa, a mulher não é construída em si mesma, mas sob o olhar e desejos
do homem, ou seja, a mulher teria uma função pré-definida de acordo com
as vontades e necessidades masculinas. Dessa forma, a mulher deixa de ser
uma pessoa que se constrói “para si” e passa a ser vista como algo “para o
outro”, nesse caso para o homem.
Com a construção dessa temática de valorização e retrato da realidade
de um povo, a função da literatura fica ainda mais evidente, visto que ela
serve como uma âncora na cultura nacional, edificando novos padrões de
sociabilidades (CANDIDO, 1975). Assim, quando a literatura muda sua
temática, arrasta consigo as possibilidades de novos hábitos e costumes de
um povo ao longo da história, modificando a forma de registro da vida de
comunidades por décadas. Daí a importância da literatura africana, tanto

DOI: 10.52788/9786589932505.1-4 58
no Brasil, quanto em outros países ser construída a partir de pessoas que
representem esse povo e resgatem a literatura de raiz, definida por Manuel
Ferreira (1977) como a escrita que enaltece a mãe-África e suas caracterís-
ticas.
Para Zilá Bernd (1992) o discurso da obra na literatura africana é jus-
tamente escrever sobre essas pautas que dificilmente seriam relatadas por
escritores não negros, ela segue escrevendo que:

a filiação à literatura negra não se reduz à opção por uma temática negra (o negro
como objeto), nem à cor da pele do escritor (critério epidérmico). O principal
elemento identificador da pertença a este campo é a emergência de um eu-enun-
ciador que se assume como negro no próprio discurso literário (BERND, 1992,
p. 13).

Quando Djamila Ribeiro escreve Quem tem medo de feminismo preto?


(2018), pontua qual é a importância da construção de narrativas que mos-
trem e valorizem as ancestralidades e cultura dos povos africanos que tem
forte influência no processo social, político e cultural do país.

Também foi o feminismo negro que me ensinou a reconhecer diferentes saberes,


a refutar uma epistemologia mestre, que pretende dar conta de todas as outras.
O saber da minha avó, benzedeira, é um saber como qualquer outro. Até hoje
sei que chá de boldo é infalível para curar ressaca e que álcool com arnica cica-
triza picadas de mosquito. Valorizar o saber das ialorixás e dos babalorixás, das
parteiras, dos povos originários é reconhecer outras cosmogonias e geografias da
razão. Devemos pensar uma reconfiguração do mundo a partir de outros olhares,
questionar o que foi criado a partir de uma linguagem eurocêntrica (RIBEIRO,
2018, p. 15).

Na visão de Silva (2010), é pelo projeto afro-feminino que as pontes


são construídas ligando a insubmissão ao patriarcado que é sexista e racista,
dessa forma, essas obras são ações transgressoras que perpassam pela difi-
culdade que mulheres negras tiveram (e tem) para se relacionarem de igual
para igual com os homens e serem reconhecidas como escritoras que são.
Por isso, a escrita negra é um ato de resistência que luta ao longo da

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história com bravura e determinação, afinal, quando um negro escreve, ele
não escreve somente para ou sobre ele, mas sim, para os seus pares, seus
ancestrais e seus descendentes, mostrando a sua realidade para a sociedade
de maneira geral.

Considerações finais

Os estudos sobre as mulheres negras têm se ampliado no Brasil nas


últimas décadas, porém a revelação do cotidiano contado a partir de es-
critoras negras ainda terá que percorrer um longo caminho. É notável que
apesar de alicerçarem a literatura brasileira essas escritoras foram apaga-
das da formação literária. Desde a educação básica, passando pelo ensino
superior, poucas são as Instituições que abordam obras de autoria negra
feminina e toda sua forma de escrita autêntica e necessária.
Apesar das mulheres negras estarem em ascensão em relação ao pro-
tagonismo de meios de comunicação, ainda existe um longo caminho a
percorrer na efetiva mudança da realidade porque muitas continuam im-
possibilitadas de narrarem suas próprias histórias e de seu povo.
Dessa forma fica evidente que existem escritoras negras brasileiras com
talentos imensuráveis, mas que por questões históricas (como o colonialis-
mo europeu e a escravidão dos negros), culturais (a ideia do saber mestre
tendo o eurocentrismo como a base da formação literária mundial) e eco-
nômicas (em que Editoras não tem interesse em publicar tais mulheres),
estas foram silenciadas da literatura brasileira nas mais diversas formas,
desde os livros didáticos da educação básica, que sequer mostram textos
produzidos por tais autoras, quanto às próprias Universidades que, quando
abordam tal temática ao estudar a literatura brasileira, faz-se isso de manei-
ra extremamente superficial.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 60


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Horizonte: Editora UFMG, 2011.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 61


CAPÍTULO 4

Uma perspectiva pós-colonial


da literatura e ciberliteratura
afrofeminina
Fernanda Santos Silva

Considerações iniciais

Durante os últimos anos, foram realizadas constantes investigações


sobre o tema do racismo e misoginia que sofrem as escritoras negras, tor-
nando-as assim, invisíveis e consideradas inferiores quando comparadas a
escritores brancos. No entanto, não há nenhuma pesquisa, texto ou men-
ção a esse tema abordado à luz dos estudos pós-coloniais de Fanon e Spi-
vak, e do estudo da literatura digital ou ciberliteratura, bastante presente
na contemporaneidade.
Estudar autoras negras é oportuno, pois, às mulheres sempre foram
atribuídos os cuidados domésticos e à reprodução social; para as mulheres
negras o fator socioeconômico é mais um agravante, já que a maioria des-
sas mulheres é pobre, e isso sempre foi um dos fatores determinantes para
mulheres negras não se consolidarem na literatura. Essa realidade parece
estar começando a mudar, no entanto, é importante não confundir visi-
bilidade com aceitabilidade. O resgate da literatura de autoria feminina e

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 62


negra analisada sob diversas perspectivas se faz relevante na medida em que
recupera informações em áreas silenciadas, descentralizando um discurso.
Destaca-se na presente pesquisa, a importância de estudar autoras bra-
sileiras negras contemporâneas relevantes, porém inexploradas ou pouco
aceitas, bem como, de que forma as autoras usam o espaço digital para
publicar online. Apesar de espaços diferentes, há um fenômeno amiúde
comum a todas as escritoras negras: a falta de visibilidade. Os autores pós-
-coloniais nos ajudam a entender porque, por exemplo, muitas autoras ne-
gras, apesar de muito estudada nos últimos tempos, nunca foram de fato,
ouvidas.
Justifica-se o presente estudo por tudo o que foi acima apresentado e
pelos demais percursos e incursões que, durante a continuidade das leitu-
ras, venham a ser apresentados.

Quem fala pelo sujeito emudecido?

Quando Lúcia Zolin discorre sobre a literatura de autoria feminina,


são delimitadas três fases das subculturas literárias, sendo elas: a fase da
imitação dos padrões dominantes; a fase de protesto contra tais padrões;
e a fase da autodescoberta, marcada pela busca da identidade própria. Em
nenhuma dessas fases, no entanto, nota-se uma inquietação pela falta de
espaço na literatura para as mulheres negras. A literatura sempre foi um
lugar reservado para figuras masculinas que correspondem a um padrão
eurocêntrico.
Figuras Como Carolina Maria de Jesus ainda não são muito bem re-
cebidas, embora seja notável que nas últimas décadas os trabalhos de Ca-
rolina têm alcançado mais visibilidade no meio acadêmico. No entanto, a
autora de Quarto de despejo não é aceita pela sociedade, tampouco sua obra
é aceita pela academia, pois se estuda a construção de uma autora negra
como arquétipo do outro, daqueles que não são vistos e ouvidos.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 63


Em 1985, Gayatri Chakravorty Spivak, uma das figuras mais influen-
tes em estudos pós-coloniais, publica o texto Pode o subalterno falar?, com
o subtítulo Especulações sobre o sacrifício das viúvas, obra fundamental para
entendermos o conceito de subalternidade, sobretudo, feminina. Quando
apresenta o prefácio da obra de Spivak, Almeida (2010) salienta que para a
autora, o termo subalterno é muitas vezes utilizado de forma errônea, quan-
do usado para se referir a todo e qualquer sujeito marginalizado:

Para ela, o termo deve ser resgatado, retomando o significado que Gramsci lhe
atribui ao se referir ao 'proletariado', ou seja, aquele cuja voz não pode ser ou-
vida. O termo subalterno, Spivak argumenta, descreve 'as camadas mais baixas
da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da
representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos
no estrato social dominante' (ALMEIDA, 2010, p. 12).

Spivak explicita que não é possível o ato de resistência ocorrer em


nome do subalterno sem que seu ato esteja inserido no discurso hegemô-
nico, e que dentro da lógica socioeconômica em que estamos inseridos, su-
jeitos subalternizados não recebem a atenção da sociedade e são excluídos
por ela. A fala do colonizado, ou seja, sujeito vítima dos efeitos políticos,
filosóficos, artísticos e literários deixados pelo colonialismo, é sempre in-
termediada pela voz de outrem, que se coloca na posição de reivindicar
algo em nome de outro indivíduo, e isso acaba criando a ilusão do intelec-
tual que acredita poder falar por esse outro:

(...) a tarefa do intelectual pós-colonial deve ser a de criar espaços por meios dos
quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa
ser ouvido(a). Para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar
'contra' a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se articu-
lar e, como consequência, possa também ser ouvido. (ALMEIDA, 2010, p. 14)

Spivak aborda em sua obra o lugar ocupado pelas mulheres ao falar


da história das mulheres indianas e do sacrifício das viúvas (tradição hindu
que exige que as mulheres se sacrifiquem após a morte dos seus maridos).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 64


Ao relatar sobre Bhubaneswar Bhaduri, uma jovem indiana que foi apaga-
da da História por não ser reconhecida e aceita, a autora se dirige principal-
mente á mulher intelectual. Segundo a autora, “a relação entre a mulher e
o silêncio pode ser assinalada pelas próprias mulheres; as diferenças de raça
e de classe estão incluídas nessa relação” (SPIVAK, 2010, p. 66).
Uma pessoa negra, além de provar que a sua fala é verdadeira, precisa
provar antes que tem o direito de falar; há uma estrutura racista na nossa
sociedade que exclui o negro de qualquer debate que não seja sobre ques-
tões raciais, e com isso, a produção de conhecimento no Brasil e no mundo
é feita fundamentalmente por pessoas brancas.

A existência e a escrita de Carolina: retrato da


subalternidade afrofeminina

Quarto de despejo é um diário pessoal que relata o cotidiano desuma-


no de quem vive na favela. Com uma linguagem triste e poética, Carolina
Maria de Jesus, ao relatar o seu cotidiano, expressando seus pensamentos e
vontades, comove o leitor pelo realismo e ao mesmo tempo pela sensibili-
dade na maneira de contar sua vivência nos anos em que morou na comu-
nidade do Canidé em São Paulo, com seus três filhos. Pela primeira vez, se
teve, através do diário de Carolina, um relato de quem realmente viveu a
miséria cotidiana, de quem sentia fome, e de quem quis gritar isso para o
mundo, como um pedido de ajuda e com poesia.
A obra de Carolina é, muitas vezes, denominada por literatura infe-
rior, por ser escrita por uma mulher, negra e favelada; uma literatura de
colonizados. Nas décadas de 1950 e 1960, os homens ainda reivindicavam
somente para si o direito de produzir o que eles consideravam literatura,
nesse sentido, a narrativa feminista surge em Carolina como a possibilida-
de de escrita do sujeito feminino subalternizado falando sobre si mesmo.

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No limiar dos anos 1960, o mundo, teoricamente, começa a ouvir as
vozes das minorias sociais, com isso Carolina surge “no clamor das reivin-
dicações sociais das minorias num momento especial da vida brasileira,
em que, às lutas populares pelas mudanças do modelo econômico, alia-se
a busca de alguns intelectuais pela valorização das raízes nacionais” (PER-
PÉTUA, 2002, p. 34).
Apesar de ser bastante criticada por muitas mulheres por não ter ma-
rido, Carolina tinha uma opinião formada sobre ser solteira:

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer
especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar.
Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu
barracão ouço valsas vienenses (...) Não invejo as mulheres casadas da favela que
levam vidas de escravas indianas. Não casei e não estou descontente (JESUS,
1960, p. 14).

Carolina em diversos momentos questiona se a figura masculina é


realmente importante num grupo familiar, como chama atenção (BER-
NARDO, 2003, p. 44) conforme citado por (COSTA, 2009, p. 4), para
as mulheres negras não é um sacrifício garantir a sobrevivência dos filhos
como é para as mulheres brancas. Analisando as falas de Carolina, nota-se
que a autora tinha uma visão muito crítica acerca de sua condição de sujei-
to feminino no mundo e fazia questão de escrever isso.
Carolina foi uma grande intelectual, no entanto, no imaginário brasi-
leiro o sujeito negro não é intelectual, e isso faz com que a posição de inte-
lectual negro seja de questionamento constante; além de provar que a sua
fala é verdadeira, a autora precisaria provar antes que tem o direito de falar.
Na década de 1960, os meios de comunicação brasileiros procuravam
mostrar um país em que não existia a dificuldade de representação da classe
subalterna nos seguimentos mais privilegiados da sociedade, como a mídia
– ao mesmo tempo em que essa classe estava totalmente excluída do cená-
rio político brasileiro:

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Para as camadas populares, as transformações socioeconômicas desse período
consolidaram uma cultura de massa urbana. O popular irrompia sob as mais
diversas formas, tanto na política como na cultura, sem necessariamente carac-
terizar uma relação de 'reflexo' da primeira sobre a segunda. Portanto, a cultura
era mais uma lente pela qual a sociedade se representava do que um espelho que
refletia a 'realidade' das estruturas econômicas e políticas. O real e o imaginário
se entrecruzavam e a luta pela articulação desses dois elementos e sua inculcação
coletiva fermentava o movimento da História. O resultado desse processo é que
o país descobriu, ou melhor, reinventou as imagens sobre seu povo (...). (NAPO-
LITANO, 2006, p. 16-7, 29, 35 apud SANTOS, 2015, p. 16)

Nesse contexto, Quarto de despejo foi publicado sem que houvesse


uma verdadeira compreensão sobre a condição de Carolina e suas lutas,
Carolina era uma mera representação, essa visão acerca da autora e da sua
obra acaba por restringir sua narrativa a um documento. Tanto no Brasil
quanto em outros países, o acolhimento de Carolina não se deu porque en-
fim o mundo estava dando voz às minorias, mas sim porque o público es-
tava interessado em ouvir as histórias do outro sujeito, do sujeito específico.
Carolina foi representada por Audálio Dantas, sujeito masculino inte-
lectual branco, porque não podia falar por si mesma. Dantas é uma figura
presente do prefácio do livro até o final, ele avaliou os escritos da autora,
assinou o prefácio e está presente na própria produção da obra como edi-
tor. Em todo o livro encontra-se uma visão filtrada pelo jornalista: “(...)
Mexi, também, na pontuação, assim como em algumas palavras cuja gra-
fia poderia levar à incompreensão da leitura” (DANTAS, 1993, p. 3). O
processo de editoração, as supressões e as seleções criteriosas de Dantas
transformaram Quarto de despejo em um outro texto, publicado por razões
ideológicas. A tese de doutorado intitulada Traços de Carolina Maria de
Jesus: gênese, tradução e recepção de Quarto de Despejo nos deixa claro que
Carolina foi recebida pelo público como um personagem construído:

Assim, através das anotações de Carolina em seus cadernos, primeiramente refi-


zemos os caminhos tomados pelos textos jornalísticos sobre a escritora. Desco-
brimos nos manuscritos os ecos da opinião pública sobre as reportagens, além da
figura sempre presente de Audálio Dantas, incentivando Carolina, divulgando

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 67


seu nome e, mais tarde, seu livro. Do ponto de vista do epitexto, pode-se to-
mar Carolina como uma personagem que vinha sendo construída pelo jornalista
através de reportagens, por cuja repercussão ele ia tomando conhecimento da
reação do público. Como os antigos folhetins, as reportagens seduziram os leito-
res para o enredo do diário e os prenderam até o clímax do lançamento do livro.
(PERPÉTUA, 2002, p. 38)

Dantas foi o responsável pelo grande número de vendas que a primeira


edição de Quarto de despejo alcançou. A autora jamais conseguiu o mesmo
êxito em suas publicações posteriores por não contar com a contribuição
da mídia; antes de virar livro, seus escritos foram, sobretudo, uma notícia.

A ciberliteratura afrofeminina e a análise pós-colonial

Allinne Santos, pesquisadora baiana, em sua dissertação Mulheres e


literatura no Ciberespaço – uma ciranda de mulheres em profudanças 2: fe-
minismos, escritas de si e etnicidade, levanta um debate acerca da literatura
afrofeminina produzida por mulheres brasileiras na atualidade e em como
essa literatura tem ganhado força nas redes sociais. A autora faz uma análise
dos discursos e tecnologias narrativas de um livro publicado virtualmente,
assim como o alcance poético da produção literária feminina no espaço
virtual. No entanto, apesar de enfatizar a representatividade étnica, a au-
tora não faz um recorte para demonstrar o que muda na recepção da obra
literária da mulher negra, que sempre foi inferiorizada, nesse novo espaço.
Seria previsto que as redes sociais dariam voz às mulheres negras, que assim
estariam em situação de igualdade em relação a outros(as) escritores(as).
Mas, como questiona Gayatri Spivak, o subalterno como tal, pode, de fato,
falar?
A literatura de autoria feminina sempre foi um desafio, como afirma
Virginia Woolf, a inacessibilidade ao papel é um dos fatores determinantes
para mulheres negras não se consolidarem na literatura. Nos dias atuais,

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escrever, para mulheres negras, se tornou tão acessível quanto para outros
indivíduos, independentemente da classe social; nas redes sociais, com a
oportunidade de interatividade e disponibilidade democrática, muda o
nosso jeito de fazer a análise literária, o que pode exigir no futuro um novo
cânone, uma renovação conceitual de literatura. Nesse sentido, pode-se
considerar que as escritoras que publicam em perfis do Instagram devem
ser lidas com um olhar voltado também para o contexto virtual em que
estão inseridas. Retomando o questionamento de Spivak, dentro da lógica
socioeconômica que estamos inseridos, sujeitos subalternizados não rece-
bem a atenção da sociedade e são excluídos por ela. A fala do colonizado,
ou seja, sujeito vítima dos efeitos políticos, filosóficos, artísticos e literários
deixados pelo colonialismo, é sempre intermediada pela voz de outrem.
A partir da discussão de Allinne e o questionamento de Spivak, po-
de-se acrescentar no debate pós-colonial a ciberliteratura produzida por
escritoras negras, e as implicações de sua escrita, considerando que Spivak
preocupa-se em teorizar sobre um sujeito que é específico e heterogêneo,
será oportuno usar a sua teoria para incluir no debate a escrita digital de
sujeitos femininos, definidos pela autora como subalternos. O que se per-
cebe muitas vezes é que o intelectual fala ao sujeito subalterno, em vez de
ouvir ou falar em nome do sujeito emudecido. Falar pelo sujeito subalter-
no, transformá-lo no que ele não é e medir silêncios faz parte do que Spivak
chama de desaprendizagem:

(...) quando formos confrontados com as perguntas 'pode o subalterno falar?' e


'pode a mulher subalterna falar?', nossos esforços para dar ao subalterno uma voz
na história estarão duplamente suscetíveis aos perigos que incorre os discursos
de Freud. Como um produto dessas considerações, elaborei a sentença, 'homens
brancos estão salvando mulheres de pele escura de homens de pele escura'.
(SPIVAK, 2010, p. 91).

Pode-se concordar com Spivak neste aspecto, se for considerado que


o tema em foco analisa textos que não permitem a interação acessível e

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 69


imediata, diferente dos textos presentes nas redes sociais como Instagram,
que facilitam a interação entre o(a) escritor(a) e o(a) leitor(a), além de que
as redes sociais dão muito mais visibilidade à escrita do autor(a). Levando
em conta tais ideias, os conceitos de Spivak precisam de uma renovação,
uma nova abordagem que contemple as novas maneiras de expressividade
que possuem a população subalterna. Assim como Spivak ressalta que de-
vemos acolher toda recuperação de informação em áreas silenciadas, como
está ocorrendo na antropologia, ciência política, história e na sociologia, é
inegável que também deve haver essa recuperação no âmbito da literatura.
Santaella ressalta que “O espaço virtual gerado pelas redes de computado-
res funciona como um novo meio. Abre-se com ele uma miríade de opor-
tunidades que expandem o conceito de literatura em função da emergência
de novas formas de criação literária” (SANTAELLA, 2012, p. 229). Tendo
isso em vista, para manter a pesquisa atualizada, é necessário incluir aqui a
ciberliteratura, tão presente nos dias atuais.
Frantz Fanon, um dos precursores do argumento pós-colonial, em seu
livro Pele negra, máscaras brancas, dedica um capítulo acerca das relações
que têm os homens europeus com as mulheres negras. Nesse texto, Fanon
discorre acerca do sentimento de inferioridade que sentem as mulheres ne-
gras em relação a homens e mulheres brancas. O autor usa obras literárias
para analisar o pensamento racista que refletia a sua época:

Porque enfim, quando lemos no romance autobiográfico Je suis Martiniquaise


— 'Gostaria de ter me casado, mas com um branco. Só que uma mulher de cor
nunca é realmente respeitável aos olhos de um branco. Mesmo se ele a ama. Eu
sabia disso' — temos o direito de ficar preocupados.¹ (...) A acolhida entusiásti-
ca reservada a esta obra em certos meios nos coloca no dever de analisá-la. Para
nós, nenhum equívoco é possível: Je suis Martiniquaise é uma obra barata, que
preconiza um comportamento doentio (FANON, 2008, p. 54).

Assim como Fanon fez com os romances publicados fisicamente, con-


sidera-se fundamental usar a mesma abordagem em autoras que ainda não
possuem o reconhecimento que merecem, devido às barreiras discrimina-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 70


tórias, e em autoras muito pouco conhecidas, mas muito relevantes, bem
como nas autoras que fazem ciberliteratura, já que, cada vez mais, escrito-
ras negras aderem a esse espaço e esperam ter nele liberdade para falarem e
serem ouvidas.
De acordo com Amauri Mendes Pereira,

os Estudos Pós-Coloniais constituem um campo na área das Ciências Humanas,


que encontra sua referência central nas ressignificações do sinuoso percurso das
interações entre as potências ocidentais e suas colônias, e dos processos que su-
cedem à descolonização do continente asiático e africano (PEREIRA, 2013, p.
266).

O autor ressalta que os estudos negros e feministas, entre outros,


frequentemente costumam ser colocados nesse campo, e de fato há uma
emergência nos estudos pós-coloniais, pois é uma perspectiva de novos su-
jeitos, tirando assim a visão unilateral do indivíduo étnico, feminino, etc.
Na visão de Pereira, Fanon, dentre outros autores pós-coloniais, buscam
uma afirmação teórica de um espaço de significações, mas, além disso, na
medida em que Fanon explicita sua análise literária, também nos apresenta
de certa forma, um processo de descolonização. O indivíduo subalterno
precisa estar consciente do lugar que lhe atribuíram na sociedade e dos seus
comportamentos decorrentes disso, e a partir de então se inicia um proces-
so de descolonização, quando o indivíduo é exposto à sua condição, que é
o primeiro passo, e em seguida, passa a pensar sobre os modos de superá-la.
Pereira questiona como as novas visões dos estudos pós-coloniais serão
absorvidas pela intelectualidade brasileira, visto que são visões que impli-
cam ouvir vozes silenciadas. Essa perspectiva não vai tornar ativas as vozes
emudecidas se continuar apenas dentro do contexto interno de movimen-
tos sociais, ela precisa estar alinhada com os pensamentos, espaços e ferra-
mentas populares como as redes sociais.
Michel Cahen e Ruy Braga em seu livro Para além do pós(-)colonial,
afirma que o pós-colonial ou decolonial não é apenas uma conjuntura,
como houve pós-fascismos ou pós-fordismos, mas uma análise “que con-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 71


segue ir além das heranças epistemológicas coloniais” (CAHEN; BRAGA,
2018, p. 13). Cahen e Braga chamam atenção para o fenômeno que faz
com que a subalternidade produza conhecimento e a produção de conheci-
mento produza subalternidade: os subalternos sempre encontraram formas
de produzir conhecimentos em uma sociedade repressora, mas a produção
de conhecimento sempre manteve o subalterno no lugar de opressão. Na
atualidade, a ascensão da literatura digital feminina e negra, parece estar
sendo a manifestação da autonomia de um grupo que nunca parou de re-
sistir.
Como afirma Spivak em entrevista: “a maioria das pessoas que você
conhece, nós, o pessoal, etc., eles descreveriam a si mesmos como subalter-
nos, porque são negros.” (SPIVAK, 2018, tradução nossa), assumimos isso,
em parte, devido ao poder do imaginário. Já na década de 1980, tinha-se
uma ideia, partindo de Castoriadis, de que quando falamos de imaginá-
rio queremos falar sobre algo inventado. As produções literárias dos seres
subalternos nos permitem afirmar que o que está no imaginário popular
pode não ser real, mas tem muito poder sobre a sociedade. A partir da base
pós-colonialista de Spivak e Fanon, que se propõe a fazer uma releitura da
colonização como parte de um processo global, bem como a contribuição
de outros autores mencionados, é imprescindível que se estude a escrita
afrofeminina no espaço digital, a fim de trazer o debate pós-colonial para
esse campo.

Considerações finais

Certamente o tema da afrofeminilidade é bastante discutido dentro e


fora do ambiente acadêmico, estudantes e pesquisadores sempre buscaram
trazer novas perspectivas para o estudo de autoras negras que se tornaram
muito conhecidas. No entanto, há diversas autoras contemporâneas que
são conhecidas apenas nas suas cidades ou estados. Autoras que se tornam
famosas, como Carolina Maria de Jesus, recebem o apoio de pessoas que

DOI: 10.52788/9786589932505.1-5 72
não estão em condição de subalternidade, o que torna o estudo pós-co-
lonial tão importante para entender como essa literatura se distingue das
demais e como ela é recebida pela crítica e pelo público em geral. Tão im-
portante é também o estudo da ciberliteratura, que leva a escrita de autoria
feminina e negra para outro espaço, muito mais explorado pelo público.
O principal questionamento feito por Spivak para a denúncia da su-
balternidade revela que, como explica a autora, quando se trata de priorida-
des globais, a mulher não possui nenhum valor como um item de respeito.
O subalterno pode ser representado, mas ele não pode falar por si mesmo,
a identidade do sujeito subalternizado é a sua própria especificidade, o su-
balterno não fala, porque a condição afônica é o que sustenta a condição
de subalterno; a partir do momento em que o sujeito subalternizado fala,
ele se liberta da condição de subalternidade.
Levando em conta as considerações sobre a literatura afrofeminina
tradicional e a ciberliteratura sob a ótica e método da análise pós-colo-
nial, considerando o sujeito feminino e negro como subalterno, torna-se
possível verificar que a voz do sujeito feminino subalternizado permanece
silenciada em relação aos sujeitos hegemônicos. No entanto, com as redes
sociais, sujeitos discriminados revelam sua escrita usando novas maneiras
de expressividade, o que torna a sua literatura distinta.

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MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 75


CAPÍTULO 5

Questões femininas na literatura: um


projeto para a contemporaneidade
Janaína Buchweitz e Silva

Introdução

O presente trabalho versa sobre a escrita de autoria feminina no cam-


po literário, partindo da análise do romance Sob os pés meu corpo inteiro,
de Márcia Tiburi (2018), para abordar a necessidade da problematização
de questões que permeiam o universo feminino, entendendo que a refe-
rida obra possibilita, além do combate ao silenciamento - que por muito
tempo acompanhou as pautas das mulheres, bem como as situações de
violência e opressão de maneira geral - uma forma de narrar a história e as
experiências das mulheres de maneira que estas não sejam coadjuvantes, e
sim protagonistas de suas vidas, experiências e histórias.

Desenvolvimento

No campo da literatura, ocorreram avanços significativos no que tan-


ge ao tema da autoria feminina. A conquista de direitos e espaços que an-
teriormente eram destinados quase que exclusivamente aos homens opor-
tunizou com que as mulheres se fizessem presente no meio literário, tanto

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 76


por meio da escrita quanto também da crítica e da pesquisa, proporcio-
nando novas vozes e problematizações, vindas daquelas que, por séculos,
foram caladas e tiveram que se resignar a ter suas experiências retratadas
por escritores homens. 
No quadro da literatura brasileira, já no século XX, tivemos autoras
que alcançaram a consagração de público e crítica, enquanto o século XXI
nos apresenta um momento em que as mulheres escrevem sobre grande di-
versidade de temáticas e problematizam situações próprias de seu universo
por meio da literatura, a qual passa a operar como forma de luta contra
opressões e silenciamentos.
A ativista Gloria Anzaldúa defende a necessidade da escrita como uma
forma de colocação da mulher no mundo:

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que
me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito
de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita
compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo,
coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca
meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para
me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-
-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma
profetisa louca ou uma pobre alma sofredora (ANZALDÚA, 2000, p. 232).

Com isso, a autora defende a escrita feminina como uma forma de


empoderamento das mulheres, na medida em que a escrita opera enquanto
forma de luta contra a opressão, já que para Anzaldúa, “Escrever é perigo-
so porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, a força
de uma mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. Porém, neste ato
reside nossa sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder. E
uma mulher com poder é temida” (ANZALDÚA, 2000, p. 234). Assim,
entende a escrita feminina como necessária, com um apelo às mulheres
escritoras:

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 77


Não deixem o censor apagar as centelhas, nem mordaças abafar suas vozes. Po-
nham suas tripas no papel. Não estamos reconciliadas com o opressor que afia
seu grito em nosso pesar. Não estamos reconciliadas. Encontrem a musa dentro
de vocês. Desenterrem a voz que está soterrada em vocês. Não a falsifiquem, não
tentem vendê-la por alguns aplausos ou para terem seus nomes impressos (AN-
ZALDÚA, 2000, p. 235).

A escritora inglesa Virginia Woolf participou de um movimento de


vanguarda feminino que se expressou por meio de discussões sobre o papel
da mulher na sociedade e na literatura, destacando o que ela considerava
ser primordial para que uma mulher de sua geração conseguisse escrever:
ter acesso a um espaço físico adequado, e receber remuneração justa pelo
seu trabalho. Há cerca de cem anos, Woolf também se questionava sobre
as diferenças entre o ser homem e o ser mulher, e suas consequentes impli-
cações no ato da escrita: “Por que os homens bebem vinho e as mulheres,
água? Por que um sexo é tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tem
a pobreza sobre a ficção? Quais as condições necessárias para a criação de
obras de arte? – milhares de perguntas se insinuaram ao mesmo tempo.”
(WOOLF, 2014, p. 41-42). A autora se utilizou da alegoria do espelho
para discorrer sobre a necessidade que os homens possuíam em inferiori-
zar as mulheres, para que eles mesmos então se sentissem superiores: “As
mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e
deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural.”
(WOOLF, 2014, p. 54). 
Woolf entendia a escrita de ficção como a construção de uma teia de
aranha, em que tanto teia quanto ficção seriam produtos de um meio ma-
terial, constituído de saúde, dinheiro e a casa onde se mora. A autora sa-
lientava que, como inicialmente as mulheres não escreviam, acabavam por
serem retratadas majoritariamente pelos escritores homens, o que ocasio-
nou em um imaginário de grandiosidade sobre as mulheres, que não con-
dizia com sua vida real, em que eram submissas aos homens, ocasionando
em casos de grandiosidade na literatura que não retratavam a situação das
mulheres na sociedade nem o tipo de tratamento que recebiam:

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 78


Assim, surge um ser muito complexo e esquisito. É de se imaginar que ela seja da
maior importância; na prática, ela é completamente insignificante. Ela permeia a
poesia de capa a capa; está sempre presente na história. Domina a vida de reis e
conquistadores na ficção; na vida real, era a escrava de qualquer garoto cujos pais
lhe enfiassem um anel no dedo. Algumas das palavras mais inspiradas, alguns
dos pensamentos mais profundos da literatura vieram de seus lábios; na vida
real, ela pouco conseguia ler, mal conseguia soletrar e era propriedade do marido
(WOOLF, 2014, p. 66-67).

Para a autora, caso a mulher conseguisse atravessar os obstáculos que a


sociedade lhe impunha e começasse a escrever, sua escrita seria considerada
“torcida e deturpada, pois teria vindo de uma imaginação mórbida e es-
gotada.” (WOOLF, 2014, p. 74), salientando a importância das primeiras
mulheres, desconhecidas e anônimas que um dia começaram a escrever:
“Pois as obras-primas não nascem de eventos únicos e solitários; são o
resultado de muitos anos de pensamento comum, de pensamento coleti-
vo, de forma que a experiência da massa está por trás de uma voz única.”
(WOOLF, 2014, p. 96). Mesmo destacando a imensa dificuldade que foi
para as mulheres se iniciarem no ato da escrita, Woolf conclui seu ensaio
sobre as mulheres e a ficção com certa dose de expectativa e esperança:

Dê a ela mais cem anos, concluí, lendo o último capítulo – o nariz e os ombros
descobertos das pessoas apareciam sob um céu estrelado, pois alguém havia pu-
xado as cortinas da sala de estar -, dê-lhe um espaço, um teto todo seu e qui-
nhentas libras por ano, deixe que ela diga o que lhe passa na cabeça e deixe de
fora metade do que ela hoje inclui, e ela escreverá um livro melhor algum dia.
Será uma poetisa, disse eu, colocando A aventura da vida, de Mary Carmichael,
no final da prateleira, dentro de cem anos (WOOLF, 2014, p. 134).

A partir da referida leitura, percebemos que a escrita das mulheres


não era legitimada pela sociedade justamente pelo fato de ser produzida
por mulheres, e não por homens. Além disso, Woolf aponta para a imensa
dificuldade que as mulheres tiveram, durante séculos, em possuir condi-
ções iguais à dos homens, para que pudessem exercer igualitariamente uma
gama imensa de atividades, dentre elas o ato da escrita. O ensaio de Woolf
sobre as mulheres e a ficção é importante no sentido de apresentar uma re-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 79


flexão de uma escritora do início do século XX que pesquisou e dedicou-se
sobre as especificidades do ser mulher e escritora, preocupando-se com as
possibilidades do ser escritora tanto para o seu tempo quanto para o tempo
vindouro. Como se vê em diferentes passagens de seu texto, Woolf foi es-
perançosa no sentido de vislumbrar que passados cem anos, haveria muito
mais mulheres escritoras. 
Em outro ensaio de Woolf, intitulado Profissões para mulheres (2019),
a autora se utiliza da metáfora do Anjo do Lar para referir-se à situação da
mulher à sua época, que era simpática, encantadora, a responsável por sa-
crificar-se para agradar ao restante da família, aquela que não tinha opinião
ou vontade própria. Nas palavras de Woolf, a escritora precisava matar o
anjo do lar para que conseguisse escrever e assim expressar sua própria opi-
nião. Para ela, a escritora mulher sentia uma espécie de bloqueio perante
os homens ao abordar determinados assuntos, dentre eles as experiências
do corpo:

Então, essas foram duas experiências muito genuínas que tive. Foram duas das
aventuras de minha vida profissional. A primeira – matar o Anjo do Lar – creio
que resolvi. Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre minhas experiências
do corpo, creio que não resolvi. Duvido que alguma mulher já tenha resolvido.
Os obstáculos ainda são imensamente grandes – e muito difíceis de definir. De
fora, existe coisa mais simples do que escrever livros? De fora, quais os obstáculos
para uma mulher, e não para um homem? Por dentro, penso eu, a questão é mui-
to diferente; ela ainda tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a
vencer. Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo até que uma mulher
possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise
matar, uma rocha que precise enfrentar. E se é assim na literatura, a profissão
mais livre de todas para as mulheres, quem dirá nas novas profissões que agora
vocês estão exercendo pela primeira vez? (WOOLF, 2019, p. 17).

Passados quase cem anos dos ensaios de Woolf, deparamo-nos na con-


temporaneidade, felizmente, com uma realidade distinta da que foi viven-
ciada pela autora e por sua geração. No entanto, conforme a própria Woolf
era bastante ciente, muitas mulheres lutaram por espaço para que pudés-
semos alcançar a liberdade e os direitos que exercemos nos dias de hoje.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 80


Mesmo assim, o caminho continua árduo e as batalhas e os obstáculos
continuam a fazer parte dos caminhos trilhados pelas mulheres, nas suas
mais variadas escolhas pessoais e profissionais. Nesse sentido, é preciso que
as mulheres tenham ciência de que a luta deve continuar, para que as futu-
ras gerações possam colher os frutos do esforço pela luta de direitos iguais
e de melhores condições de vida e de trabalho, como nos é oportunizado
na contemporaneidade. 
As experiências do corpo, tão mal resolvidas em Woolf e nas mulheres
de sua geração, ganham destaques nas narrativas contemporâneas de auto-
ria feminina, em que as autoras buscam problematizar temas próprios do
seu universo, tais como a gestação, o aborto, o estupro e a violência contra
a mulher, dentre outros. Em um momento tão necessário quanto o atu-
al, em que a violência contra a mulher vem à tona e o feminicídio atinge
índices alarmantes, é não só importante quanto também necessário que o
tema da violência contra a mulher ganhe tanto as páginas literárias quanto
também um maior espaço junto às outras formas de arte, no entendimento
de que as artes como um todo, além de recurso estético, operam também
enquanto ato político, na medida em que problematizam temas e geram
discussões e reflexões necessárias ao avanço das pautas das mulheres. 
Em Sob os pés, meu corpo inteiro (2018), a escritora e filósofa Márcia
Tiburi traz para a contemporaneidade um dos episódios mais violentos da
história do Brasil, que foi o período da ditadura militar iniciado em 1964,
abordando ainda questões do universo feminino e das experiências das
mulheres, como a gestação, o estupro e a violência contra a mulher. 
Na narrativa em primeira pessoa a protagonista Lúcia busca enfrentar
os fantasmas do passado, por meio da rememoração de sua infância, ado-
lescência e vida adulta, e é ambientada em uma São Paulo distópica, em
uma cidade cinzenta, sem flores nem árvores, onde não chove há mais de
um ano e um mísero copo d’água custa uma verdadeira preciosidade: “A
terra da garoa tornou-se a terra da chuva ácida quando a irônica sorte de
chover se faz presente” (TIBURI, 2018, p. 16). A partir desse discurso dis-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 81


tópico, a autora problematiza as condições das cidades, e de forma muitas
vezes irônica aborda situações que nos fazem refletir sobre os limites da ex-
periência humana e sobre até que ponto o que é imaginado em um futuro
distópico não está mais próximo de nós do que imaginamos: “A polícia já
não consegue controlar os maltrapilhos que se aglomeram para se prote-
ger e de vez em quando são retirados à força para lugares inimagináveis”
(TIBURI, 2018, p. 20). A autora problematiza uma série de questões que
permeiam o dia a dia nas grandes cidades e que são problemas que habitam
a nossa cotidianidade: “As coisas vão muito mal politicamente, a violência,
o racismo, a alimentação industrial, não temos qualidade de vida. Comemos
plástico, você percebe, comemos plástico, ela comenta, perplexa com o que
para mim simplesmente faz parte da vida” (TIBURI, 2018, p. 26, grifos
da autora). Em diversas passagens a narradora alude ao momento político
vivido no Brasil, ora pessimista, ora tentando passar uma mensagem de
superação: 

Que o governo do golpe logo cairá, como caiu outras vezes, que haverá mudan-
ças positivas. Que os psicopatas que atualmente estão no governo logo perderão
suas forças. Que as pessoas terão melhores condições de vida. Que todos terão
casas e carros e aparelhos domésticos e poderão pagar seus seguros de vida (TI-
BURI, 2018, p. 27).

O romance se inicia com a protagonista indo visitar o túmulo de sua


irmã e encontrando uma jovem, que depois descobrirá ser sua sobrinha,
filha da falecida irmã. Não por acaso a cena inicial é retratada em um ce-
mitério, já que os temas da vida e da morte ocupam parte considerável das
reflexões da protagonista. Também o tema da violência recebe destaque
desde as primeiras páginas da narrativa:

Que meu trajeto termine no cemitério, onde acaba a aventura humana quando
se tem a sorte de não acabar ainda pior, tem algo de um trocadilho e, ao mesmo
tempo, é uma potencialidade a ser levada cada vez mais a sério. Morrer na rua
das grandes cidades, na guerra de todos contra todos que se intensifica a cada
dia, é mais do que uma mera probabilidade. Na guerra entre bandidos e polícia

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 82


quando já não se sabe mais quem é quem, nessa guerra comum em megalópoles
gangrenadas, há certamente menos conjecturas a fazer do que balas perdidas.
Mesmo assim, tomadas por alguma espécie de dúvida quanto ao sentido da vida
que ajuda a suspender o medo, as pessoas andam por aí, como eu nesta tarde de
ventania (TIBURI, 2018, p. 9).

Lúcia seria o nome adotado pela protagonista quando passou a assu-


mir sua nova vida, após as experiências da ditadura militar. Ao rememorar
o período da ditadura, a protagonista revela seu verdadeiro nome – Alice
–, e nos relata o relacionamento conflituoso que teve com sua irmã Adria-
na, que foi assassinada durante o período da ditadura e deixou uma filha,
sua sobrinha Betina. A trama se desenvolve a partir de uma suposta troca
de lugares, em que o corpo da irmã de Lúcia jaz no túmulo que leva seu
nome, e onde tia e sobrinha se encontram pela primeira vez, em frente ao
túmulo que acolhe os restos mortais de Adriana:

Aqui está enterrada minha tia Alice, Betina diz para si mesma como quem me
deixa saber de um segredo. Desaparecida na época da ditadura, ela fala apontando
didaticamente para as palavras e datas, a estrela do nascimento e a cruz do fale-
cimento. Descobri há poucos dias, conversando com pessoas que conheceram minha
mãe e minha tia, que minha mãe está viva em algum lugar (TIBURI, 2018, p. 14,
grifos da autora).

Desta forma, nos deparamos com uma narrativa que privilegia a abor-
dagem das experiências das mulheres, oportunizando com isso a reflexão
sobre a representação da mulher no campo literário. Com relação ao tema
da identidade, e também de sua representação, a teórica Judith Butler de-
fende que “a teoria feminista inicialmente presumia em sua essência a exis-
tência de uma identidade definida, composta pela categoria das mulheres,
que deflagra a partir do discurso os objetivos e interesses feministas, além
de constituir o sujeito em nome de quem a representação política é alme-
jada” (BUTLER, 2003, p. 17-18), destacando a importância que a questão
da representação teve para a teoria feminista, na medida em que para as
mulheres pareceu necessário o desenvolvimento de uma linguagem que

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 83


fosse capaz de representá-las, com o intuito de promover sua visibilidade
política, tendo em vista que para as mulheres suas vidas eram mal repre-
sentadas ou não representadas. No entanto, a autora argumenta que mais
recentemente o discurso feminista aponta para um questionamento de
identidade que anteriormente parecia estável ou permanente, salientando
ainda a problemática de que o termo mulher não designa uma identidade
comum, tendo em vista a necessidade de contextualização histórica e tam-
bém as interseções que o gênero estabelece com outras modalidades, tais
como étnicos ou sociais, por exemplo. 
Com o avançar da trama, tia e sobrinha passam a conviver e a trocar
experiências e memórias, e assim a protagonista vai revelando suas expe-
riências violentas ao longo da narrativa. Desse modo, o tema da ditadura
vai ganhando destaque, já que tanto a personagem protagonista quanto
sua irmã vivenciaram os anos de chumbo. A autora também problematiza
a condição da mulher na sociedade, ao rememorar como foi a vida de sua
mãe, durante o casamento com seu pai e as responsabilidades com as lidas
do lar e com a criação de duas filhas pequenas, em uma situação que retrata
a condição da mulher subalterna perante o homem:

Minha mãe, que não fazia muita coisa, se escondia no único lugar onde podia
existir, esse lugar mais que esquisito de esposa e mãe, esse lugar verdadeiramen-
te cruel ao qual havia sido destinada. Esse lugar onde se está sem que se possa
existir. Ela, a funcionária da casa encarregada de cuidar para que meu pai fosse
feliz e para que fôssemos educadas. A que devia controlar para que ele não fosse
perturbado com nossas necessidades de meninas (TIBURI, 2018, p. 34).

No romance, temas e situações que foram ocultados durante o perí-


odo da ditadura militar são desvelados por Tiburi: histórias abafadas e ig-
noradas são trabalhadas na contemporaneidade por meio da literatura, que
cumpre com seu papel social ao problematizar e propor reflexões. Dessa
forma, a autora aborda um importante momento histórico no Brasil, que
reverbera na contemporaneidade através da rememoração por ela proposta.
A pesquisadora Jeanne Marie Gagnebin entende o conceito de rememora-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 84


ção enquanto uma memória que está atrelada ao presente e que considera
os lapsos e esquecimentos:

Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez
de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esqueci-
do e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo
que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração
também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estra-
nhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se
esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao pas-
sado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (GAGNEBIN,
2009, p. 55).

A protagonista rememora constantemente suas experiências e trau-


mas, ressaltando que o passado não fica para trás nem é esquecido, mas
permanece atrelado ao presente. A seguir, uma passagem de rememoração
da narradora:

Há coisas que mesmo ficando no passado, que mesmo desaparecidas, retornam


mais vivas do que nunca, porque o que está no passado nunca está exatamente
morto. E o que retorna do passado é aquilo que não pode ser abandonado. Aqui-
lo que tem sido deixado para trás não se deixa ficar para trás é o que move quem,
como eu, vive na direção de uma fuga impossível (TIBURI, 2018, p. 116).

Ao enfatizar o tema da violência contra a mulher, o discurso promovi-


do por Tiburi atua enquanto uma denúncia das atrocidades que ocorreram
durante o período da ditadura, ao mesmo tempo em que tematiza uma
situação constantemente vivenciada pelas mulheres na contemporaneida-
de. No fragmento a seguir, a partir de uma protagonista que é abusada nos
porões do regime e engravida de seus carrascos, a autora traz à tona o tema
da violência contra a mulher durante o regime militar:

Na prisão na qual fiquei provavelmente por mais de um ano, porque perdi a


conta do tempo, eu soube que estava grávida quando acordei cheia de pavor
enquanto alguma coisa se mexia dentro de mim, embora eu estivesse magra e
não tivesse uma barriga que pudesse reconhecer como de uma mulher grávida.
A promessa de que eu deveria sair para ter meu filho, assim que ficou claro que

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 85


eu estava grávida, seria cumprida se eu falasse tudo o que sabia. O que eu sabia,
o que sei eu do meu corpo, eu me pergunto agora quando analiso o que sobrou
de mim (TIBURI, 2018, p. 74).

Desse modo, a escrita de Tiburi contribui com a diversificação do câ-


none, formada majoritariamente por homens brancos de classe média. Ao
dar voz para personagens mulheres, a autora prioriza que seu universo fe-
minino ganhe espaço na narrativa, o que possibilita uma maior problema-
tização de questões que tangenciam a vivência e o dia a dia das mulheres,
que durante o período da ditadura militar foram expostas à violência tanto
ou mais do que os homens:

Quando souberam que, mesmo grávida e doente como estava, eu não ia falar,
sem que jamais tivessem acreditado que eu não sabia o que falar, os encarregados
das ações, que apenas anos depois eu entendi serem torturadores, partiram para
atos considerados por eles mesmos como mais leves, e esses atos mais leves eram
as agulhas enfiadas sob as unhas, o tapa simultâneo nas orelhas que chamavam
com aquele nome estúpido de telefone. Faziam o que faziam enquanto riam.
Riam muito, como só é permitido a quem perdeu ou nunca conheceu o senso
de dignidade. Sempre riram. Sempre usaram a humilhação verbal como tática
de aniquilação da pessoa que tinham como objeto no momento da tortura, vim
a saber muito depois (TIBURI, 2018, p. 74).

Por meio do romance, Tiburi retrata a violência física e verbal a que


foram submetidas as presas políticas no período da ditadura brasileira e de-
monstra como a condição da subjugação da mulher é um problema social
e histórico a ser continuamente enfrentado:

O estupro era um ato do corpo e das palavras, e entre eles um silêncio abjeto
era o disfarce a sustentar que nada estava acontecendo. Os xingamentos eram
miasmas lançados sobre as vacas, as piranhas, a carne animal, hoje penso, com a
qual as mulheres sempre pagaram o preço da desumanidade junto aos bichos. A
vítima era eu, apagada para sempre da história (TIBURI, 2018, p. 76).

Cabe salientar que a autora problematiza ainda a questão dos resquícios


que a violência ocasiona no sujeito, já que as agressões vivenciadas pela pro-
tagonista originaram um trauma que lhe acompanhou por toda sua vida:

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 86


Eu olho para esse estupro de fora. Parece mais fácil se o tomo como uma espécie
de objeto e penso que não aconteceu comigo, no meu próprio corpo. Se me
olho como uma personagem de um tempo que me escapa. De uma vida passada.
Agora, o passado me parece um filme alucinado incrustado como um chip em
algum lugar da minha memória (TIBURI, 2018, p. 76).

Tiburi aborda ainda a questão da gestação, e os dilemas vivenciados


pela mulher que sofre o estupro e que ainda passa pelo dilema em ter ou
não ter o seu filho, fruto da violência de um relacionamento não consen-
tido:

O estupro se faz mais real quando minha barriga começa a aparecer e a gravidez
se torna, ao mesmo tempo, a autorização à violência sob a garantia de que ne-
nhum daqueles homens delirantes seria o pai da criança. Não, ninguém me disse
isso. No entanto, não tenho como não pensar nisso, porque, na condição de
grávida, eu tinha outra qualidade, o gesto daqueles homens parecia fazer outro
sentido, era algo ainda mais perverso (TIBURI, 2018, p. 76-77).

A narradora reconstrói o ingresso das irmãs no movimento de resis-


tência ao regime militar, bem como os vários episódios de perseguição, re-
pressão e agressão a que foram submetidas. O exílio e a troca de nomes e de
vidas, a falta de exercício do mais elementar dos direitos, o uso do próprio
nome, também é tema desenvolvido na narrativa:

Lúcia Antonelli Magalhães e Silva é o nome escrito no passaporte. Leio e releio


até decorar o nome que eu usaria para sempre, meu nome oficial, ainda me cha-
mo assim para mim mesma, esse nome que hoje, na impossibilidade de voltar
atrás, ainda é o meu nome. O nome que eu digo quando me olho no espelho.
O nome no qual acredito como uma roupa que me veste. O nome da minha
personagem. A que apresento a todos com quem encontrei e hoje enceno diante
de Betina precisando recriar um papel de algum modo ultrapassado. Eu e meu
nome de guerra diante de Betina. A vida é essa guerra na qual sou um corpo que
sobra (TIBURI, 2018, p. 89).

O pesquisador Carlos Magno Gomes (2010) discorre sobre romances


contemporâneos produzidos por algumas autoras brasileiras defendendo
que o romance pós-moderno produzido por elas quebra a ordem estru-

DOI: 10.52788/9786589932505.1-6 87
tural do romance, ao utilizar-se da metanarratividade para questionar as
fronteiras entre literatura, cultura e arte. O pesquisador aponta ainda que
as produções das escritoras estudadas oportunizam espaço para diferentes
vozes oprimidas socialmente, apresentando um levantamento histórico so-
bre as experimentações estéticas pelas quais passou o que ele denomina de
romance feminino, dando especial ênfase aos estudos realizados pelas pes-
quisadoras Elódia Xavier e Constância Lima Duarte, salientando que para
ambas as pesquisadoras, o romance feminino contemporâneo está voltado
para a representação da alteridade transgressora. Para Xavier (1998), isso se
deu devido a duas marcas: a falência da família patriarcal e a representação
do corpo feminino deliberado. Já Duarte (2007) aponta os avanços sociais
da mulher enquanto fator determinante para sua escrita na contempora-
neidade. Para Gomes, as autoras estudadas possibilitaram novas reflexões
sobre o papel da literatura na sociedade contemporânea. Assim, o romance
pós-moderno feminino incorpora a cultura de massas e as questões femini-
nas como parte de um projeto literário para a contemporaneidade. 

Considerações finais

Na atualidade, vemos as mulheres inseridas no meio artístico e lite-


rário, seja como escritoras ou editoras, seja como pesquisadoras acadêmi-
cas ou críticas literárias, citando apenas algumas possibilidades de funções.
Nesse sentido, cabe às próprias mulheres essa busca constante por espaço e
manutenção de cada direito e oportunidade adquiridos, no entendimento
de que o debate sobre as especificidades do ser mulher na contempora-
neidade deva aparecer constantemente no meio literário, como forma de
constante proposição de reflexão sobre os espaços ocupados pelas mulheres
nas suas mais variadas esferas, e também na literatura.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 88


O romance de Tiburi pode ser compreendido enquanto uma luta con-
tra o silenciamento que permeia as situações de opressão vivenciadas pelas
mulheres, que por muito tempo, conforme apontou Woolf (2014), tive-
ram suas histórias contadas Gagnebin (2009) tece considerações sobre o
que ou quem estariam fora do discurso histórico, nomeando, juntamente
com um sofrimento indizível oriundo das grandes guerras,

aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que
não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória
de sua existência não subsiste – aqueles que despareceram  tão por completo que
ninguém lembra de seus nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam
transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa
tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade
ao passado e aos mortos, mesmo – principalmente – quando não conhecemos
nem seu nome nem seu sentido (GAGNEBIN, 2009, p. 54).

Podemos entender que as mulheres permaneceram por muito tempo


no anonimato, sem espaço ou oportunidades para a expressão, ou seja,
fora da tradição dominante. Nesse sentido, a autoria feminina, na contem-
poraneidade, atua como uma forma de restituição de um espaço ao qual
as mulheres sempre tiveram o direito de ocupar. Ao problematizar temas
pertinentes ao universo feminino, Tiburi se utiliza de um evento histórico
traumático para reverberar as mazelas as quais as mulheres são constante-
mente submetidas, sendo que sua escrita opera enquanto forma de registro
e reconstrução da história, mas também de combate ao esquecimento:

Todas as manhãs, há quarenta anos, a cada dia um soldado, um policial, um


coronel, um general, o carcereiro com um chapéu-panamá na cabeça, o que ca-
minha lento, o que me põe a mão, me levam pelo braço. O que cospe em mim,
o que baixa os olhos, o que me dá um pão, o que me dá um tapa me levam pelo
corredor. O que me puxa o cabelo, o que me corta o cabelo, o que me dá uma
roupa, o que me estupra, o que abre a porta com um pontapé e me conduz pelo
corredor da morte que é a vida. O que me leva pelo braço toca com o cassetete
nas minhas canelas como se avisasse que preciso prestar atenção ao fim do mun-
do (TIBURI, 2018, p. 100).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 89


Assim, entende-se que o romance Sob os pés, meu corpo inteiro, de
Márcia Tiburi, além de contribuir com o resgate do passado e da memória,
na medida em que aborda um importante episódio da história brasileira
que foi a ditadura militar e desse modo operando enquanto forma de luta
contra o silenciamento e o esquecimento, também colabora para a reflexão
e o debate de temas que são específicos do universo feminino, tais como
o estupro, a opressão e a violência contra a mulher, atendendo ao que o
pesquisador Carlos Magno Gomes (2010) descreve como uma escrita que
incorpora e as questões femininas como parte de um projeto literário para
a contemporaneidade. 

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escri-


toras do terceiro mundo. Revista Estudos feministas, Florianópolis,  v. 8, n. 1, p.
229-236, 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/
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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradu-
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WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Tradução De-
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São Paulo: Tordesilhas, 2014.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 90


CAPÍTULO 6

O “eu”, a mãe e a morte em uma morte


muito suave, de Si-mone de Beauvoir,
e “Une Femme”, de annie ernaux
Camila Geovanna Alves da Silva
Tiago Hermano Breuni

Introdução

Na língua francesa, as palavras mer (mar) e mère (mãe) são objetos de


uma interessante homofonia. Essa coincidência fonética é notadamente
explorada por Baudelaire, em As flores do mal (1857), mais especificamente
no poema “L’homme et la mer”:

Homme libre, toujours tu chériras la mer !


La mer est ton miroir ; tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame,
Et ton esprit n’est pas un gouffre moins amer. 
Tu te plais à plonger au sein de ton image;
Tu l’embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage. 
Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets:
Homme, nul n’a sondé le fond de tes abîmes;

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 91


Ô mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets ! 
Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combattez sans pitié ni remord,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
Ô lutteurs éternels, ô frères implacables !
(BAUDELAIRE, 2019, p. 66)1

No poema, a configuração fônica dessas duas palavras cria uma insti-


gante ambiguidade: assim como o mar (mer), as riquezas íntimas da mãe
(mère) são ignoradas, desconhecidas; e, como o homem, a mãe e o mar
são tenebrosos e discretos. A figura materna, dessa forma, é concebida en-
quanto ser possuidor de características profundas, passíveis de análises que
visam a compreendê-las, e, amiúde, colocá-las no mundo através de uma
forma literária.
De acordo com Ménissier (2016, p. 19), a representação do sujeito
materno na literatura francesa remete à Idade Média, quando, de acordo
com a estimativa de D. Desclais Berkvam, a mãe enquanto personagem
se encontrava presente em 80% dos textos medievais, os quais, por vezes,
integrava como parte fundamental da ação dramática. Estando represen-
tadas em livros tais quais La princesse de Clèves, de Madame de La Fayette,
Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre, La femme de trentre ans, de
Honoré de Balzac, entre tantas outras obras, as figuras maternas provindas
da literatura francesa compõem um extenso mosaico de diferentes cons-
truções arquetípicas. A exemplo desses modelos, podemos evocar algumas
representações do sujeito materno.
Em Julie ou A nova Heloísa, romance epistolar de Jean-Jacques Rous-
seau, a maternidade é definida “não somente como uma necessidade fisio-

1 “Homem livre, tu sempre prezarás o mar!/O mar é teu espelho; tu contemplas tua alma/No desenrolar infinito de sua lâmina/E
teu espírito não é um abismo menos amargo//Tu gostas de mergulhar no seio de sua imagem/Tu a beijas com olhos e braços, e teu
coração/se distrai, às vezes, de seu próprio barulho/Ao som desse monocórdio indomável e selvagem//Vocês dois são tenebrosos e
discretos/Homem, ninguém sondou o fundo dos teus abismos;/Ó, mar, ninguém conhece tuas riquezas íntimas/Pois sois, os dois,
ciosos de guardar seus segredos!//E, no entanto, eis aqui séculos inumeráveis/Que vocês se combatem sem piedade ou remorso/
Tanto que amam a carnificina e a morte/Ó lutadores eternos, ó irmãos implacáveis!” (BAUDELAIRE, 2019, p. 66, tradução nossa).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 92


lógica, mas como uma vocação quase metafísica, uma missão a cumprir”
(MÉNISSIER, 2016, p. 36). Assim, essa representação da figura materna
se baseia nos princípios patriarcais de dedicação e sacrifício aos quais uma
mãe teria de se comprometer. Por outro lado, no mais célebre livro de Gus-
tave Flaubert, a figura de Emma Bovary faz oposição ao arquétipo da mãe
amorosa e altruísta. Mesmo que esse retrato materno vá de encontro às re-
presentações idealizadas da mãe-personagem, o desfecho da narrativa não
se exime de apresentar uma lição moralista. De forma a satirizar os valores
burgueses oitocentistas, a morte da heroína ressalta, simultaneamente, a
decadência das estruturas sociais tradicionalistas e a existência de uma mo-
ral igualmente vinculada aos valores patriarcais: o fim da mulher adúltera
e negligente será a morte.
Em 1881, Jules Vallès publica o primeiro romance da trilogia Memó-
rias de um revoltado, L’enfant. De maneira oposta às heroínas de Rousseau
e de Flaubert, a mãe do protagonista Jacques Vingtras não é concebida
através de um processo puramente ficcional: a personagem é retratada em
função da relação abusiva entre mãe e filho, manifestamente inspirada na
relação que o autor e sua mãe cultivaram. O livro, além de conter uma re-
presentação da figura materna que vai de encontro aos retratos idealizado-
res da maternidade, funciona enquanto denúncia da violência doméstica
sofrida pelas crianças em uma época na qual os serviços de assistência social
ainda não eram uma organização institucionalizada e vinculada ao Estado.
O curto mosaico de representações da figura materna na literatura
francesa que aqui propomos auxilia-nos a melhor compreender a confi-
guração social e histórica que cinge os retratos literários do sujeito-mãe
ao longo dos séculos, e como tais retratos serão contrastantes com os que
surgem na contemporaneidade. Da criação de arquétipos que visavam à
manutenção da condição subalterna na qual viviam as mulheres, como
vimos em Rousseau, à concepção da figura materna mediante uma inspira-
ção autobiográfica, tal qual realizada por Vallès, denotamos a existência de
uma constante: o papel interpretado por essas mães será dado, de acordo

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 93


com Ménissier (2016, p. 31), em função de como influenciam o destino
de outros personagens.
“Será necessário”, defende Ménissier (2016, p. 31), “esperar a Primei-
ra Guerra mundial, no momento em que se impõe a imagem da força
materna”, para que a literatura se revele como espaço de representação
do sujeito-mãe em posição de protagonismo, mesmo que através de vozes
narrativas externas. Ao revisitarmos o panorama sociocultural do século
XX, constatamos que, em adição aos avanços nos estudos do ramo da psi-
cologia, essa era evidenciou a aquisição de poder e autonomia feminina a
respeito da liberdade de escolha. Com a comercialização da pílula anticon-
cepcional e a alta demanda dos movimentos feministas pela legalização do
aborto, a maternidade sofre uma transformação: antes um dever, torna-se
uma opção. Simultaneamente, no meio da criação artística, verifica-se que
as expressões literárias de cunho autobiográfico tornam-se mais frequentes.
Diante das guerras e dos avanços tecnológicos, o testemunho, o relato das
memórias e a conservação dessas se fazem, cada vez mais, uma necessidade. 
Dessa forma, propomos, para esse estudo, o recorte de duas obras
nas quais a representação da figura materna, então morta, é realizada atra-
vés entidades enunciadoras que conceberão narrativas protagonizadas pelo
sujeito-materno, mesmo que subjugada aos seus juízos de valores, quais
sejam, Uma morte muito suave, de Simone de Beauvoir, e Une femme, de
Annie Ernaux. A análise que intentamos tecer pressupõe o estudo do “eu”
que figura no decurso dos textos, ou seja, como a voz narrativa se comporta
face à construção e concepção, em forma literária, do Outro: no caso de
ambos os livros, da mãe. 
Publicado em 1964, Uma morte muito suave se trata de um livro so-
bre os meses que precederam a morte de Françoise de Beauvoir, mãe de
Simone de Beauvoir. Une femme2, de Annie Ernaux, por sua vez, conce-
bido enquanto narrativa “auto-socio-biográfica”, foi publicado em 1987 e

2 Todos as citações provenientes de Une femme foram traduzidas pelos autores deste artigo.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 94


escrito quando sua mãe, acometida pela condição de demência, sucumbe
à morte após ter vivido dois anos em uma casa de repouso. Veremos que,
assim como no poema de Baudelaire (2019, p. 66), o sujeito-mãe será,
nesses livros, retratado a partir de suas características intrínsecas, mediante
análises ciosas de sua conduta e das dinâmicas relacionais que mantinha
com seu meio social.
O primeiro momento desse estudo versará sobre o complexo narrativo
da prosa ernausiana em Une femme. Ao contextualizarmos a obra enquanto
integrante das escritas do luto, ensejamos trazer à tona as particularidades
do projeto literário de Ernaux, discorrendo sobre as propriedades e a gêne-
se da “auto-socio-biografia”. Por fim, realizaremos uma análise comparati-
va mediante o contraste de excertos retirados dos livros em questão, pro-
pondo leituras analíticas das temáticas e dos eventos que os permeiam. O
segundo momento será dedicado ao estudo de Uma morte muito suave.
Vale, portanto, traçar uma análise acerca do projeto literário beauvoiria-
no, objetivando compreender a narrativa enquanto espaço de hibridização
de manifestações de diferentes gêneros autobiográficos. Traçaremos, igual-
mente, paralelos entre as temáticas e os retratos da figura materna em O
segundo sexo que se encontram presentes em Uma morte muito suave.

Annie Ernaux e a “auto-socio-biografia”

A produção literária de Annie Ernaux é essencialmente inscrita em um


projeto de escrita de si que não se formula através da introspecção, nem
de uma representação ou busca intrínseca do Eu, mas de uma gênese de
si através do Outro; de uma compreensão do eu-sujeito enquanto perten-
cente a uma configuração espaço-temporal, caracterizada pela classe, pela
diferença, pela convivência com os outros através dos quais o Eu – literário
ou social – existe. Declarou Ernaux em entrevista a Brigitte Aubonnet: “o
‘eu’ que utilizo [...] não é um ‘eu’ interior, introspectivo, mas um ‘eu’ espe-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 95


lho, passado pelo crivo da análise sócio-histórica, por exemplo em La place
e Une femme, ou Les armoires vides”.3
Sendo um vasto campo de reflexões metatextuais, a prosa ernausiana
se torna um lugar de representação de indivíduos reais em suas condições
político-sociais, estando esses figurados através de uma forma literária. Isso
se deve ao fato de o texto de Ernaux caracterizar-se enquanto espaço de
contato da criação literária com estudos históricos e sociológicos, resultan-
tes da grande influência do pensamento de Pierre Bourdieu4 no tratamen-
to destinado à condição humana e ao indivíduo inscrito na sociedade.5
Conforme afirma Viart (2014, p. 25), “a adesão de Annie Ernaux às re-
flexões de Bourdieu, e, pouco depois, às teorias de Marx, autorizaria, sem
dúvida, uma tal abordagem: a obra seria, então, apenas um reflexo, ou uma
consequência, de um certo número de realidades socioeconômicas”.6
A entidade narrativa que rege Une Femme, bem como a categorização
do livro em um gênero literário definitivo, é, de todo, complexa. Com a
intenção proposital de se subscrever a uma escrita engajada à história e à
sociologia, a narrativa se distancia do biográfico, assumindo um caráter
neutro, no qual a representação dos personagens é a consequência de um
processo analítico de sua vivência e experiência enquanto ser individual
integrante de uma coletividade. Esse intuito é explicitado na obra, quando
expressa a narradora: “Isso não é uma biografia, nem um romance, natural-

3 « Le «je» que j’emploie est une sorte de lieu traversé par des expériences très peu particulières, banales même (la mort, l’inégalité
sociale et culturelle, la passion, les transports en commun). Ce n’est pas un «je» intérieur, introspectif, plutôt un «je» miroir, passé au
crible de l’analyse socio-historique, par exemple dans La place et Une femme, ou Les armoires vides. » Disponível em: <http://www.
encres-vagabondes.com/rencontre/ernaux.htm>. Acesso em: 23 de setembro de 2021.
4 “Cela me reste un mystère et une tristesse que l’œuvre de Bourdieu, synonyme pour moi de libération et de «raisons d’agir» dans
le monde, ait pu être perçue comme une soumission aux déterminismes sociaux. Il m’a toujours semblé au contraire que, mettant
au jour les mécanismes cachés de la reproduction sociale, en objectivant les croyances et processus de domination intériorisés par
les individus à leur insu, la sociologie critique de Bourdieu défatalise l’existence. En analysant les conditions de production des
œuvres littéraires et artistiques, les champs de luttes dans lesquelles elles surgissent, Bourdieu ne détruit pas l’art, ne le réduit pas,
il le désacralise simplement, il en fait ce qui est beaucoup mieux qu’une religion, une activité humaine complexe. Et les textes de
Bourdieu ont été pour moi un encouragement à persévérer dans mon entreprise d’écriture, à dire, entre autres, ce qu’il nommait
le refoulé social.” Disponível em: http://www.homme-moderne.org/societe/socio/bourdieu/mort/aernau.html. Acesso em: 04 de
outubro de 2021.
5 Uma análise mais atenciosa da influência da obra de Pierre Bourdieu sobre os escritos literários de Annie Ernaux foi desenvolvida
por Isadora de Araújo Pontes, no artigo intitulado Annie Ernaux, uma escrita trânsfuga de classes. Disponível em: https://www.
revistas.usp.br/magma/article/view/154405. Acesso em: 15 de janeiro de 2022.
6 « L’adhésion d’Annie Ernaux aux réflexions de Bourdieu, et plus lointainement aux théories de Marx, autoriserait sans
doute une telle approche: L’oeuvre ne serait alors qu’un reflet, ou une conséquence, d’un certain nombre de réalités
socio-économiques. » (VIART, 2014, p. 25).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 96


mente. Talvez algo entre a literatura, a sociologia e a história” (ERNAUX,
2007, p. 41).7
Para uma análise mais densa da prosa ernausiana, partimos da consi-
deração da escrita de si enquanto método de concepção de uma prosa en-
gajada à transfusão de eventos, experiências e histórias reais em literatura:
Une femme, afinal, firma-se sobre uma escrita do luto8; sobre a tentativa de
construção de um personagem proveniente de uma realidade que coincide
com a da autora. Desse modo, a voz narrativa do narrador autodiegético se
inscreve no plano conceitual de juntura da voz literária à voz autoral. Con-
comitantemente, as reflexões metalinguísticas expressam o projeto cons-
ciente do retrato de uma verdade sobre a figura materna que, agora morta,
torna-se objeto a ser apresentado, representado, analisado e historicizado: 

O que espero escrever se situa, sem dúvida, no ponto de contato do familiar e


do social, do mito e da história. Meu projeto é de natureza literária, pois se trata
de procurar uma verdade sobre minha mãe que só pode ser alcançada através das
palavras. (Isso é: nem as fotos, nem minhas memórias, nem os testemunhos de
família podem me dar essa verdade). Mas eu desejo permanecer, de certo modo,
embaixo da literatura (ERNAUX, 2007, p. 10).9  

Identificamos, assim, ao longo da construção prosaico-narrativa de


Ernaux, um complexo literário consciente de si, que se instaura através
de digressões caracterizadas por um “eu” homônimo à entidade autoral, e
constrói, concomitantemente, um retrato da perda.
O retrato biográfico da figura materna tecido em Une femme traça
paralelos com o que Bakhtin (2018) identificou como o segundo tipo gre-
go de biografia. Os intuitos da prosa ernausiana e da biografia grega, no
7 « Ceci n’est pas une biographie, ni un roman naturellement, peut-être quelque chose entre la littérature, la sociologie et l’histoire. »
(ERNAUX, 2007, p. 41).
8 Para uma análise acerca da representação do luto em Uma morte muito suave e Une femme, cf. XYPAS, Rosiane.
Representações da morte nas obras Une femme (1987) de Annie Ernaux e Une mort très douce (1964) de Simone de
Beauvoir. Lettres Françaises, Araraquara, v.1, n. 22, p. 183-197, set. 2021. Disponível em: https://periodicos.fclar.
unesp.br/lettres/article/view/14953/11291. Acesso em: 20 de janeiro de 2022.
9 « Ce que j’espère écrire de plus juste se situe sans doute à la jointure du familial et du social, du mythe et de l’histoire. Mon projet
est de nature littéraire, puisqu’il s’agit de chercher une vérité sur ma mère qui ne peut être atteinte que par des mots. (C’est-à-dire
que ni les photos, ni mes souvenirs, ni les témoignages de la famille ne peuvent me donner cette vérité.) Mais je souhaite rester, d’une
certaine façon, au-dessous de la littérature. » (ERNAUX, 2007, p. 10).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 97


entanto, diferem. Para a tradição grega, o segundo tipo biográfico tem
suas origens no discurso de homenagem proferido quando das pompas
fúnebres – o encômio; e o contato com a esfera político-social se dá, so-
bretudo, através da louvação pública: é de modo a representar o cronotopo
externo de uma figura real que o protótipo biográfico grego é constituído
(BAKHTIN, 2018, p. 71-73). Em contraste com o referido tipo grego de
biografia, a prosa de Ernaux evidencia, como visto anteriormente, o cará-
ter metatextual de uma escrita que nega o biográfico, todavia assume seu
cunho literário fincado em bases político-histórico-sociológicas. 
O paralelo que aqui estabelecemos entre a tradição grega, cujas prá-
ticas “exerceram enorme influência não só na evolução da biografia e da
autobiografia europeia, como também na evolução de todo romance euro-
peu” (BAKHTIN, 2018, p. 71), e o projeto literário de Ernaux se configu-
ra através da semelhança na intersecção de uma forma literária com a esfera
social. O complexo ernausiano é consonante com a tradição grega, uma
vez que se baseia na intenção de transcender a natureza literária a fim de
adentrar o panorama político-social. No caso de Ernaux, de adentrar tam-
bém o plano sociológico, que atua em congruência com as outras esferas
de análise. Em contrapartida, o intuito vigente no tipo grego, sustentado
pela louvação pública, difere do intuito da escrita engajada de Une Femme,
que se desagrega do cunho simplesmente biográfico em prol de um retrato
neutro de uma figura real, mesmo que concebido através de influências
teórico-metodológicas e, sobretudo, sentimentais. Dessa maneira, a prosa
de Ernaux não se dissocia da experiência pessoal e individual da entidade
narrativa.
Em 1975, quando da aparição, em meio editorial, de O pacto autobio-
gráfico, Philippe Lejeune defende que a homonímia das entidades narrativa
e autoral (AUTOR = NARRADOR = PROTAGONISTA), amiúde reali-
zada mediante um narrador autodiegético, é suficiente para que uma nar-
ração autobiográfica se institua (LEJEUNE, 1996, p. 16). Essa condição
onomástica firmada entre narrador e autor, frequentemente presente na
produção literária de Ernaux, surge a partir de uma intenção consciente de

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 98


fomentar uma construção narrativa de cunho autobiográfico. “Autobiogra-
fia”, no entanto, é um termo que, para a autora, não engloba o todo, nem
expressa o intento de seu projeto literário, sendo “auto-socio-biografia” o
neologismo por ela empregado a fim de categorizar sua obra e localizá-la
em um campo teórico, conforme declarou em uma entrevista concedida a
Pierre-Yves Jeannet:

[O] 'eu' do texto e o nome inscrito sobre a capa do livro remetem à mesma
pessoa. Grosso modo, as narrações nas quais tudo poderia ser verificado por um
inquérito policial, ou biográfico [...] se revelaria exato. Mas o termo de 'narração
autobiográfica' não me satisfaz, porque ele é insuficiente. Ele sublinha um aspecto
fundamental, mas não diz nada sobre o almejo do texto, ou sua construção. Mais
gravemente, ele impõe uma imagem redutora: 'o autor fala de si'. Ora, La Place, Une
Femme, La honte e, em parte, L’événement, são menos autobiográficos que auto-so-
cio-biográficos [...] (ERNAUX in JEANNET, 2003, p. 17, grifo nosso).10

O “eu” que substancia o todo da narrativa ernausiana pressupõe um


“ele”. No caso de Une femme, um “ela”. O intuito da obra é o de explorar
a figura materna de modo, a princípio, neutro. O retrato almejado é, ain-
da assim, entrelaçado à esfera pessoal, na medida em que os sentimentos
pertencentes à voz narrativa, enquanto entidade coexistente à realidade
do ser retratado, são evocados sob formas de digressões paralelas ao relato
principal. Esse relato visa a se fundar sobre a construção da história, não
de um indivíduo caracterizado por sua maternidade, mas de um ser real,
pertencente a uma conjuntura social; um ser histórico, pertencente a uma
classe, compreendido em sua existência em sociedade. Mas nunca despren-
dido de sua acepção enquanto figura materna que, agora morta, é retratada
em literatura de maneira atrelada à sua condição social – isto é, jamais des-
tituída de seu vínculo pessoal com o “eu” narrativo. Essa perspectiva pode
ser ilustrada pelo seguinte excerto do livro:

10 « Enfin le « je » du texte et le nom inscrit sur la couverture du livre renvoient à la même personne. Bref, des récits dans
lesquels tout ce qu’on pourrait vérifier par une enquête policière, ou biographique [...] se révélerait exact. Mais ce terme de « récit
autobiographique » ne me satisfait pas, parce qu’il est insuffisant. Il souligne un aspect certes fondamental, une posture d’écriture
et de lecture radicalement opposée à celle du romancier, mais il ne dit rien sur la visée du texte, sa construction. Plus grave, il
impose une image réductrice : « l’auteur parle de lui. » Or, La place, Une femme, La honte et en partie L’événement, sont moins
autobiographiques que auto-socio-biographiques. » [...] (ERNAUX in JEANNET, 2003, p. 17).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 99


É uma empreitada difícil. Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre
esteve aqui. Meu primeiro movimento, falando dela, é fixá-la em imagens sem
noção de tempo: 'ela era violenta,' 'era uma mulher que queimava tudo', e evo-
car, em desordem, as cenas nas quais ela aparece. Só consigo achar a mulher do
meu imaginário, a mesma que, há alguns dias, nos meus sonhos, vejo de novo
viva, sem idade precisa, numa atmosfera de tensão parecida àquela dos filmes
de suspense. Gostaria de introduzir a mulher que existe fora de mim, a mulher
real, nascida no bairro rural de uma pequena cidade da Normandia, e morta no
serviço de geriatria de um hospital da região parisiense (ERNAUX, 2007, p. 9).11

E igualmente por este:

Tento não considerar a violência, os excessos de ternura, as repreensões da minha


mãe como traços pessoais de caráter, mas de situá-los em sua história e sua con-
dição social. Esse jeito de escrever, que me parece ir no sentido da verdade, me
ajuda a sair da solidão e da obscuridade da lembrança individual, pela descoberta
de uma significação mais geral. Mas sinto que algo em mim resiste, quer conser-
var, da minha mãe, imagens puramente afetivas, calor ou lágrimas, sem lhes dar
sentido (ERNAUX, 2007, p. 21).12

Na intenção de testemunhar, de forma representativa e consciente, os


espaços de vivência de diferentes classes sociais, a prosa ernausiana revela
uma escrita que descarta a introspecção em prol do testemunho de uma re-
alidade através de um estilo neutro. Intenta-se, assim, dar gênese a um tex-
to às margens da etnografia, cuja transfiguração em forma literária se revela
uma necessidade (LABOURET, 2018, p. 274): a motivação transcende o
puramente autobiográfico ou biográfico – torna-se um ato de coletividade. 
Subscrevendo-se ao complexo de escritas do eu, Une femme é conce-
bido enquanto consequência do processo de perda, localizando-se no que

11 « C’est une entreprise difficile. Pour moi, ma mère n’a pas d’histoire. Elle a toujours été là. Mon premier mouvement, en parlant
d’elle, c’est de la fixer dans des images sans notion de temps : « elle était violente », « c’était une femme qui brûlait tout », et d’évoquer
en désordre des scènes, où elle apparaît. Je ne retrouve ainsi que la femme de mon imaginaire, la même que, depuis quelques jours,
dans mes rêves, je vois à nouveau vivante, sans âge précis, dans une atmosphère de tension semblable à celle des films d’angoisse.
Je voudrais saisir aussi la femme qui a existé en dehors de moi, la femme réelle, née dans le quartier rural d’une petite ville de
Normandie et morte dans le service de gériatrie d’un hôpital de la région parisienne. » (ERNAUX, 2007, p. 21).
12 « J’essaie de ne pas considérer la violence, les débordements de tendresse, les reproches de ma mère comme seulement des traits
personnels de caractère, mais de les situer aussi dans son histoire et sa condition sociale. Cette façon d’écrire, qui me semble aller
dans le sens de la vérité, m’aide à sortir de la solitude et de l’obscurité du souvenir individuel, par la découverte d’une signification
plus générale. Mais je sens que quelque chose en moi résiste, voudrait conserver de ma mère des images purement affectives, chaleur
ou larmes, sans leur donner de sens. » (ERNAUX, 2007, p. 21).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 100


poderíamos nomear “escritas do luto”: seriam essas as narrativas impulsio-
nadas pela tentativa de atravessar e enfrentar, através da literatura – ou da
produção literária, mais precisamente –, o período subsequente à morte de
alguém, concebendo e transformando a figura ausente no plano real em
figura presente no âmbito da narrativa.

Simone de Beauvoir e o programa de escritas de si 

A fim de que tracemos um breve panorama do projeto literário de Si-


mone de Beauvoir, interessa compreender o espaço ali ocupado pela escrita
de si, e como uma relação dialógica e representativa do pensamento filosó-
fico e sociológico beauvoiriano se faz presente em seus escritos autobiográ-
ficos. Para tanto, utilizaremos as acepções e as análises feitas por Jean-Louis
Jeannelle em Écrire ses mémoires au XXème siècle (2008), estudo no qual o
projeto literário de Beauvoir ganha especial atenção. Discorre o autor: 

a escrita memorial [beauvoiriana] não ocupa [...] a função tradicional de balanço


de uma vida, consignada no limiar da morte, e destinada a entregar à posterida-
de o eco de uma voz de além-túmulo; ela participa, ao contrário, de diferentes
práticas de autoconsignação e responde a um objetivo bem determinado [...]
(JEANNELLE, 2008, p. 181).13

Essa reflexão é feita em consonância às declarações de Beauvoir, con-


forme afirmou a escritora em uma entrevista concedida à Radio Canada: 

Escrever memórias não era somente falar de mim. Era profundamente falar da minha
época. Me censuraram algumas vezes por ter passado tanto tempo escrevendo minha
autobiografia; que alguém teria de ser muito narcisista ou egocêntrico para tal. Penso
que essa censura é completamente falsa. Se eu quis falar de mim, foi para testemunhar
sobre minha época e sobre um certo número de coisas que me transpassam.14 

13 « L’écriture mémoriale [beauvoirienne] n’y occupe pas, de ce fait, la traditionnelle fonction de bilan de vie, consigné au seuil
de la mort et destiné à livrer à la postérité l’écho d’une voix d’outre-tombe; elle participe, au contraire, de différentes pratiques
d’autoconsignation. » (JEANNELLE, 2008, p. 181).
14 Tradução livre das declarações de Simone de Beauvoir em Les mémoires de Simone de Beauvoir. Locução de: Adèle

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 101


Dessa forma, é válido pensar a escrita de si beauvoiriana como lugar
de expressão que não se limita à vivência do Eu, mas que se constrói atra-
vés dela. É importante considerar, no entanto, que a entidade narrativa
que evoca as experiências do sujeito onomástico não se exime de retratar
as experiências exteriores, compondo, assim, um mosaico testemunhal do
tempo – compreendido em sua condição política e socioeconômica – em
que viveu. A pluralidade de retratos contribui para a composição do pano-
rama de uma época que não se limita a uma acepção tecida por uma única
perspectiva: o Eu é composto por si, evidentemente; mas é, sobretudo,
composto pelo Outro, considerando as experiências que o vinculam a ele,
bem como aquelas que, pelo contrário, o diferenciam. Conforme aponta
Ursula Tidd (2006, p. 228, tradução nossa),

os parâmetros éticos da relação Eu-Outro foram, desde o início, a fonte da ques-


tão filosófica para Simone de Beauvoir. Todos os seus escritos filosóficos e literá-
rios podem ser descritos como marcados pelo interesse em mapear uma relação
ética com o Outro.15

E defende, ainda, que

As relações entre o Eu e o Outro são descritas, em A ética da ambiguidade, como


constituintes, de forma recíproca, da facticidade de minha situação, ou das ca-
racterísticas da minha existência no mundo que não escolhi. Isso significa que,
para Beauvoir, o Outro assume a mesma importância para mim como os outros
elementos de minha facticidade, como meu passado, ou as circunstâncias espe-
cíficas de meu nascimento, e do meu corpo. Não escolhi essas características da
minha existência, e não posso escolher viver sem elas. Mas posso escolher como
vivê-las (TIDD, 2006, p. 231, tradução nossa).16

Van Reeth. Entrevistados: Jean-Louis Jeannelle. Paris: France Culture, 18 de maio de 2018. Emissão de rádio. Série
Les chemins de la philosophie. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-chemins-de-la-philosophie/
les-memoires-de-simone-de-beauvoir. Acesso em: 25 de setembro de 2021.
15 “The ethical parameters of the Self-Other relation were a source of philosophical concern to Simone de Beauvoir
from the beginning of her career. All of her literary and philosophical writing can be described as marked by a concern
to map an ethical relation with the Other” (TIDD, 2006, p. 228).
16 “Self-Other relations are described in The Ethics of Ambiguity as constituting, reciprocally, the facticity of my
situation, or the given features of my existence in the world that I have not chosen. This signifies that, for Beauvoir, the
Other assumes the same importance for me as other elements of my facticity, such as my past, the specific circumstances
of my birth, and my body. I did not choose these features of my existence and cannot choose to exist without them,
although I can choose how to live them. If we want to live authentically, we cannot use the Other or retreat to collective

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 102


Dessa forma, o emprego constante da primeira pessoa nos escritos
de cunho autobiográfico de Beauvoir ilustra a constância de um projeto
literário subjugado ao programa beauvoiriano de escrita de si. Com efeito,
a relação dialógica que o “eu” dos escritos sociológicos e filosóficos trava
com o “eu” dos escritos narrativos se apresenta no todo de sua produção
intelectual. Evidenciamos, assim, o intento de Beauvoir de construir, em
seus textos, um espaço de registro de determinados eventos provindos da
realidade – muitas vezes, da esfera pessoal da própria autora, como nota-
mos em Memórias de uma moça bem-comportada (1958), A força da idade
(1960) ou A força das coisas (1963). Essas obras, conforme Jean-Louis Jean-
nelle (2008, p. 105), ditas, também, de cunho memorialístico, carregam a
característica intrínseca de veicular o testemunho de uma época através de
uma perspectiva analítica sociológica e filosófica. A fim de se legitimar, o
testemunho pressupõe uma entidade narrativa em condição homonímica
à esfera autoral, e faz uso de acontecimentos reais como materialidade a ser
analisada por intermédio da intertextualidade com a esfera científico-aca-
dêmica.
Retomando as proposições de Jeannelle17, especialista em Simone de
Beauvoir, a principal diferença entre o gênero autobiográfico e o gênero
memorialístico, ambos presentes na prosa beauvoiriana, é a exemplaridade.
A exemplaridade memorialística é de tipo social e histórico: “meu percur-
so, minha história, minhas ações”, resume o teórico. Já a autobiográfica
é de cunho psicológico e moral. São gêneros que caracterizam diferentes
tipos de escrita, mas uma linha nítida não delimitaria precisamente a sepa-
ração entre os dois. Dessa forma, Uma morte muito suave se situa no ponto
de hibridez que reúne características de gêneros tais como a autobiografia,
a biografia, as memórias e o testemunho. É um texto de cunho autobio-

identity as a means to avoid the burden of individual responsibility for our existence” (TIDD, 2006, p. 231).
17 Conforme as declarações de Jean-Louis Jeannelle em Les mémoires de Simone de Beauvoir. Locução de: Adèle Van
Reeth. Entrevistados: Jean-Louis Jeannelle. Paris: France Culture, 18 de maio de 2018. Emissão de rádio. Série Les
chemins de la philosophie. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-chemins-de-la-philosophie/les-
memoires-de-simone-de-beauvoir. Acesso em: 25 de setembro de 2021.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 103


gráfico, pois é engendrado por um eu-sujeito onomástico e homônimo à
entidade autoral; de cunho biográfico, pois intenta delinear e testemunhar
o percurso de vida de Outro desde o nascimento à morte, mesmo que de
forma, por vezes, anacrônica; de cunho memorialístico, uma vez que narra
um determinado evento, ou seção particular, da vida da entidade narrati-
vo-autoral, e do sujeito que procura representar; e de cunho testemunhal,
dado que “parte do relato da experiência pessoal e toma dimensão coletiva”
(FAEDRICH, 2014, p. 81). Assim, a narrativa engloba características de
todos esses gêneros, não se limitando às fluidas delimitações teóricas a que
foram submetidos. 
Subscrevendo-se ao projeto literário de Beauvoir, que compreende a
vivência feminina enquanto problemática através da qual seu estudo fi-
losófico se constrói, a narração toma como exemplo a vivência de uma
figura real. Essa figura, analisada através de uma perspectiva que a situa no
tempo, em sua condição e posição sociais, é igualmente retratada por uma
entidade narrativa vinculada ao personagem por uma ligação sentimental
que a atrela, consequentemente, à voz autoral. “Françoise de Beauvoir” e
“mamãe” são termos que dizem respeito à mesma pessoa, e remetem, tanto
na esfera literária, quanto na real, à pessoa que Simone de Beauvoir almeja
transfigurar e representar em sua obra. 
Quando denominada “Françoise”, a personagem é analisada e retra-
tada conforme a posição que ocupa em determinado meio social: é uma
mulher de valores burgueses, católica e reprodutora dos valores patriarcais
que Beauvoir, em O segundo sexo, questionará. Quando evocada por “ma-
mãe”, no entanto, a construção de Françoise enquanto personagem se fará
de modo a reforçar sua ligação pessoal à entidade narrativa cujo relato a
constrói. Assim, o emprego das diferentes palavras que remetem à mesma
pessoa, mesmo que em contextos diferentes, exemplifica um dos pontos
de contato que o relato (auto)biográfico beauvoiriano trava com o projeto
filosófico e sociológico da autora: “mamãe” e “Françoise” convivem para
gênese da representação de uma mulher que, através do texto literário, é

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 104


concebida de acordo com sua posição social, sua educação, seus deveres.
Dessa forma, a personagem não é apresentada de maneira apartada de sua
condição social e econômica, não se resumindo, assim, à ligação familiar e
sentimental que a vinculava à narradora. É assim que o Eu se torna possível
através do Outro, e vice-versa: Uma morte muito suave, afinal, fundamen-
ta-se na intenção de construir um retrato biográfico vinculado à expressão
autobiográfica, que, por sua vez, o legitima.
O retrato materno tecido por Beauvoir pressupõe momentos que bus-
cam expor, de modo analítico e reflexivo, as manifestações comportamen-
tais dessa figura materna em seus meios sociais. Essas análises não se exi-
mem de estabelecer paralelos com as proposições e observações feitas em
O segundo sexo: as atitudes de Françoise serão amiúde estudadas mediante
as asserções resultantes da extensa pesquisa compendiada no livro. Alme-
jando exemplificar, de forma pragmática, como se dá a intersecção entre
a produção científica de Beauvoir e sua produção literária, propomos a
contraposição de excertos que abordam semelhantes temáticas nesses dois
espaços. Para tanto, analisaremos a questão principal que circunda Uma
morte muito suave, igualmente – e amiúde – presente n’O segundo sexo: o
complexo da maternidade. Sendo uma consequência direta do casamento,
a condição é analisada, nesse último, em todas as suas formas, tomando,
como aspecto inicial, o valor altruísta que lhe é atribuído, convictamente
vinculado ao sacrifício e à devoção:

O drama do casamento: não é que ele não assegure à mulher a felicidade que
promete – não há segurança sobre a felicidade – é que ele a mutila – ele a fada
à repetição e à rotina. Os vinte primeiros anos da vida feminina são de uma
riqueza extraordinária; a mulher atravessa as experiências da menstruação, da
sexualidade, do casamento, da maternidade; ela descobre o mundo e seu destino.
Com vinte anos, dona de casa, ligada até a morte a um homem, com um filho
no braço, eis aqui sua vida acabada para sempre. As verdadeiras ações, o verda-
deiro trabalho são privilégio do homem: ela só tem ocupações que são, por vezes,
exaustivas, mas que nunca a preenchem. Lhe vangloriaram a renúncia, a devo-
ção; mas lhe parece muito vão consagrar-se “à conservação de dois seres quais-
quer até o fim de suas vidas”. É muito bonito se esquecer, mas ainda é necessário

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 105


saber para quem, e por quê. E o pior é que sua devoção parece importuna; ela
se converte, aos olhos do marido, em uma tirania da qual ele tenta subtrair-se;
e, entretanto, é ele que se impõe à mulher como seu supremo, sua única justi-
ficativa; desposando-a, ele a obriga a dar-se a ele inteiramente; ele não aceita a
obrigação recíproca, que é a de aceitar essa doação (BEAUVOIR, 2009, p. 553). 

Esse tópico, ao ser retomado em Uma morte muito suave, é, dessa vez,
subordinado à “escrita do luto” beauvoiriana. Na narrativa, a maternidade
é retratada enquanto parte de um complexo maior, que intenta transfor-
mar a figura materna em um elemento integrante de uma forma literária:
um personagem, e, de mesmo modo, de uma construção social, visto que
a condição materna não se desvincula da condição feminina à qual é su-
bordinada. Vale considerar, no entanto, que a representação e a análise da
mãe, agora morta, transpassa e transcende sua esfera puramente filosófica
e sociológica em virtude da esfera sentimental à qual o eu-narrativo se en-
contra atrelado:

Era [Françoise de Beauvoir] capaz de se esquecer, sem esperar recompensa para


si, pelo amor a meu pai, a nós. Mas ninguém pode dizer “eu me sacrifico” sem
experimentar certo azedume. Uma das contradições de mamãe é que acredita-
va na grandeza da dedicação e, entretanto, tinha gostos, repugnâncias, desejos
imperiosos demais para não detestar aquilo que a molestava. E insurgia-se cons-
tantemente contra as obrigações e privações que ela própria se impunha (BEAU-
VOIR, 2020, p. 31).

 Esse paralelo serve, também, como instrumento de auxílio à compre-


ensão do comportamento de Françoise enquanto mãe. Sabemos, ao curso
da narrativa, que a vivência de suas filhas foi afetada, em virtude de sua
conduta controladora e possessiva, manifesta mediante ações que reme-
tiam aos traumas de sua infância. É o que lemos no excerto seguinte:

Carente de alegrias do corpo, privada de satisfações da vaidade, submetida a


tarefas que a aborreciam e humilhavam, essa mulher orgulhosa e obstinada não
estava dotada para a resignação. [...] Precipitou-se então na única saída que se
lhe oferecia: alimentar-se das vidas jovens que estavam a seu cargo. “Eu, pelo
menos, jamais fui egoísta, vivi para os outros”, disse-me ela mais tarde. Sim, mas

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 106


também pelos outros. Possessiva, dominadora, ela teria querido conservar-nos
inteiramente na palma de sua mão. Mas foi no momento em que essa compen-
sação se lhe tornara necessária que nós começamos a desejar a liberdade, a inde-
pendência. Conflitos fermentaram, eclodiram, que não ajudaram mamãe a reen-
contrar seu equilíbrio. [...] Em casa, era preciso deixar todas as portas abertas; eu
devia estudar sob seus olhos, tinha que me ver desde o quarto onde ela estivesse.
Quando, de noite, minha irmã e eu tagarelávamos, de uma cama a outra, ela
colava o ouvido à parede, roída de curiosidade, e gritava: “Calem-se!” Não nos
deixou aprender a nadar e impediu que papai nos comprasse bicicletas: através
desses prazeres de que ela não teria compartilhado, teríamos escapado ao seu
controle absoluto. Se ela exigia participar de todas as nossas distrações, não era
apenas porque tinha poucas; por motivos que remontavam, sem dúvida, à sua
própria infância, não tolerava sentir-se excluída (BEAUVOIR, 2020, p. 33-34).

Beauvoir (2009, p. 320) defende ainda que, em determinadas situa-


ções, “a mulher não saúda [na filha] um membro da casta eleita; nela pro-
cura seu duplo” (p. 320). Assim, as dinâmicas relacionais existentes entre
Françoise, Simone e sua irmã, Poupette, podem ser melhor compreendidas
ao levarmos em conta as asserções feitas n’O segundo sexo a propósito das
mães que se revoltam contra a independência que, passada a fase da infân-
cia, suas filhas almejam. Assim, é durante a fase de crescimento que tais
conflitos nascem, haja vista a intenção natural do ser humano de se tornar
autônomo e independente perante seus genitores. Em alguns casos, a figu-
ra materna se rebela, vendo, na filha, “um traço de ingratidão odiosa” (BE-
AUVOIR, 2009, p. 599) em virtude da perda gradual de sua autoridade.
Diante dessa situação, pode agir com tirania, ou resignar-se e renunciar a
seus privilégios e, consequentemente, renunciar à posição superior que, ao
curso da infância, ocupou no imaginário da filha – posição essa que, para
as mulheres, é ocupada pelos homens (BEAUVOIR, 2009, p. 599).
A exposição desse padrão comportamental materno auxilia o entendi-
mento da conduta adotada por Françoise de Beauvoir face às suas filhas, e,
particularmente, suas atitudes para com Poupette. Defronte às influências
externas que inspiravam o comportamento de sua filha mais velha, a figura
materna aqui retratada assiste, não sem se manifestar, a perda de seu duplo

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 107


em sua filha mais nova: “eu a defenderei”, declarará. Tendo sido, para suas
filhas, veículo da moral cristã, a renúncia à fé se revela como uma traição:
trata-se de uma confirmação de alteridade, do afastamento de um alter ego
criado no imaginário da figura materna que revela tão somente a relação
ambígua que mantém consigo mesma. Acerca desse complexo, observa Be-
auvoir (2009, p. 599): “[A mãe] detesta sistematicamente as amigas em
que a filha busca auxílio contra a opressão familiar [...]; tomando como
pretexto a ‘má influência’ delas, proíbe-lhe radicalmente que as veja”. Um
bom exemplo para essa proposição se faz presente em Uma morte muito
suave no excerto abaixo:

Era principalmente sobre minha irmã que ela se empenhava em assegurar seu
domínio, e sentia inveja de nossa amizade fraterna. Quando soube que eu perde-
ra a fé, gritou para Poupette, irada: “Eu a protegerei contra a influência dela! Eu
a defenderei!” Durante as férias, proibiu-nos de nos ver a sós: encontrávamo-nos
clandestinamente nos castanhais. Esse ciúme atormentou-a a vida inteira, e nós
mantivemos até o fim o hábito de esconder-lhe a maioria dos nossos encontros
(BEAUVOIR, 2020, p. 35).

Assim, intentamos ilustrar como o projeto literário beauvoiriano se


encontra conjugado a um complexo panorama de testemunho de uma
época que encontrou seus meios de concretização através da escrita de si.
Os escritos autobiográficos de Beauvoir, aponta Labouret (2018, p. 240),
encontram-se em um espaço narrativo no qual o relato memorialístico e
testemunhal da vida individual se enquadra em uma interpelação histórica
e filosófica que, por estarem ali figurados, transcendem a esfera puramente
literária. Essa escrita autobiográfica, memorialística e testemunhal espelha
um trabalho filosófico embasado e moldado nas filosofias da existência
“que reabilitaram o sujeito concreto, os fatos da consciência em sua relação
com o mundo e com os outros, se opondo aos sistemas filosóficos idealis-
tas” (LABOURET, 2018, p. 138, tradução nossa).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 108


Uma morte muito suave e Une femme: diálogos
comparativos

Adolescência, sexualidade, vivência feminina, condição de classe, mãe,


morte: são essas as principais temáticas retratadas em Uma morte muito su-
ave e Une femme. Traçaremos, nesta seção do artigo, uma análise compara-
tiva de excertos retirados das duas obras, estabelecendo os temas comuns
nelas presentes e contrapondo, dessa maneira, as perspectivas com as quais
esses são abordados. Sabemos que os livros em questão são primariamente
caracterizados pela escrita do eu. Esse “eu”, sujeito onomástico, fomenta a
criação de uma figura materna delineada em sua complexidade: o retrato
materno, tanto em Ernaux, quanto em Beauvoir, é arquitetado no intuito
de representar mulheres cujas vidas foram atravessadas pela maternidade,
mas não definidas por ela.
Sendo Une femme uma narrativa que se encontra em consonância com
o projeto literário de Annie Ernaux, há, por conseguinte, uma notável in-
tersecção entre a intenção literária e a análise sociológica, que conjectura
a contextualização dos personagens em uma esfera socioeconômica. Para a
figura materna representada na prosa de Ernaux, a vivência enquanto ser
pertencente à classe trabalhadora se deu desde sua infância. Tendo deixado
a escola aos doze anos de idade e adentrado, enquanto operária, uma usi-
na – condição da qual se orgulhava –, a realidade burguesa, assim como os
valores atrelados a ela, eram-lhe desconhecidos. A condição de sua filha, no
entanto, não foi semelhante à sua. Explica a narradora: “seu [de sua mãe]
desejo mais profundo era o de me dar tudo aquilo que ela não teve” (ER-
NAUX, 2007, p. 20)18. Sabemos, de semelhante maneira, que, por von-
tade de sua mãe, a narradora passa a frequentar uma instituição de ensino
privada, e que, por intermédio das conexões e amizades que lá criou, pôde
entrar em contato com o estilo de vida burguês19. 

18 « Son désir le plus profond était de me donner tout ce qu’elle n’avait pas eu. » (ERNAUX, 2007, p. 20).
19 « Elle m’offrait des jouets et des livres à la moindre occasion, fête, maladie, sortie en ville. Elle me conduisait chez le dentiste,
le spécialiste des bronches, elle veillait à m’acheter de bonnes chaussures, des vêtements chauds, toutes les fournitures scolaires

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 109


Diante desses fatores, notamos, no excerto seguinte, a ocorrência de
um ponto de contato entre a contextualização de classe e o relacionamento
materno e filial, atrelado à passagem da infância à adolescência, e igual-
mente à assimilação da vivência burguesa. Essa influência atuará de forma
a estabelecer uma distância ideológica entre mãe e filha, firmando-se de
modo a atravessar as questões de classe que minam a relação:

Eu vivia minha revolta adolescente no mundo romântico, como se meus pais


tivessem sido burgueses. Me identificava com os artistas incompreendidos. Para
minha mãe, se revoltar tinha apenas um significado: recusar a pobreza; e uma
só forma, a de trabalhar, ganhar dinheiro, e ficar tão bem quanto os outros. Daí
vem esta censura amarga, que eu não entendia mais do que ela entendia minha
atitude: “se tivesse sido mandada para a usina aos doze anos, você não seria as-
sim. Você não conhece sua sorte”. E, ainda, muitas vezes, esta repreensão: “Ela
vai para o pensionato e não vale nem um pouco mais caro que as outras”. Em
certos momentos, ela tinha, em sua filha, uma inimiga de classe (ERNAUX,
2007, p. 25-26).20 

Para além da esfera socioeconômica, mesmo que de forma indisso-


ciável dessa, a incompatibilidade crescente entre mãe e filha se alicerçou,
sobretudo, em um abismo intelectual, emergido do padrão de comporta-
mentos burgueses ao qual a narradora foi exposta: 

[...] E descobria que, entre o desejo de se cultivar e o fato ser culto, havia um
abismo. Minha mãe precisava do dicionário para dizer quem era Van Gogh. Os
grandes escritores, ela só conhecia de nome. Ela ignorava o funcionamento dos
meus estudos (ERNAUX, 2007, p. 25).21 

réclamées par la maîtresse (elle m’avait mise au pensionnat, non à l’école communale). » (ERNAUX, 2007, p. 20).
20 « Je me suis mise à mépriser les conventions sociales, les pratiques religieuses, l’argent. Je recopiais des poèmes de Rimbaud et
de Prévert, je collais des photos de James Dean sur la couverture de mes cahiers, j’écoutais La mauvaise réputation de Brassens, je
m’ennuyais. Je vivais ma révolte adolescente sur le mode romantique comme si mes parents avaient été des bourgeois. Je m’identifiais
aux artistes incompris. Pour ma mère, se révolter n’avait eu qu’une seule signification, refuser la pauvreté, et qu’une seule forme,
travailler, gagner de l’argent et devenir aussi bien que les autres. D’où ce reproche amer, que je ne comprenais pas plus qu’elle ne
comprenait mon attitude : « Si on t’avait fichue en usine à douze ans, tu ne serais pas comme ça. Tu ne connais pas ton bonheur ».
Et encore, souvent, cette réflexion de colère à mon égard : « Ça va au pensionnat et ça ne vaut pas plus cher que d’autres ». À certains
moments, elle avait dans sa fille en face d’elle, une ennemie de classe. » (ERNAUX, 2007, p. 25-26).
21 « Et je découvrais qu’entre le désir de se cultiver et le fait de l’être, il y avait un gouffre. Ma mère avait besoin du dictionnaire
pour dire qui était Van Gogh, des grands écrivains, elle ne connaissait que le nom. Elle ignorait le fonctionnement de mes études. »
(ERNAUX, 2007, p. 25).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 110


A condição de classe será uma questão igualmente explorada em Uma
morte muito suave, sendo sucedida de sua ligação à condição matrimonial,
que pressupunha, para as mulheres, a submissão. A propósito de Françoise
de Beauvoir, vale mencionar sua condição burguesa de nascimento, afetada
pela falência da qual seu pai foi vítima. Então casada, seu padrão econô-
mico é afetado por uma nova mudança. A figura materna aqui retratada se
encontrará diante das exigências patriarcais em relação ao comportamento
feminino, submetendo-se consequentemente aos serviços domésticos. Isso,
contudo, não se dará sem sombras de uma coerção compulsória: 

Quando a situação de papai mudou e conhecemos uma semipobreza, mamãe


decidiu manter a casa sem ajuda. Infelizmente, as tarefas domésticas eram-lhe
enfadonhas e, entregando-se a elas, pensava estar se rebaixando. Era capaz de se
esquecer, sem esperar recompensa para si, pelo amor a meu pai, a nós. Mas nin-
guém pode dizer “eu me sacrifico” sem experimentar certo azedume. Uma das
contradições de mamãe é que acreditava na grandeza da dedicação e, entretanto,
tinha gostos, repugnâncias, desejos imperiosos demais para não detestar aquilo
que a molestava. E insurgia-se constantemente contra as obrigações e privações
que ela própria se impunha. (BEAUVOIR, 2020, p. 31). 

Da mesma maneira, os anos de jovem-adulta da narradora são retrata-


dos de forma a rememorar as discordâncias entre a narradora e sua mãe. É
o que notamos no excerto seguinte:

A “mamãezinha querida” dos meus dez anos já não se distingue da mulher hostil
que oprimiu minha adolescência; chorei as duas ao chorar pela minha velha mãe.
[...] Não estava em meu poder apagar os infortúnios da infância que condena-
vam mamãe a tornar-me infeliz e a sofrer por minha vez. Pois se ela envenenou
vários anos de minha vida, sem lhe ter dado remédio, eu paguei-lhe na mesma
moeda. Ela atormentou-se por minha alma. Neste mundo, ela estava contente
com meus êxitos, mas terrivelmente afetada pelo escândalo que eu suscitava em
seu meio. Não lhe era agradável ouvir um primo declarar: “Simone é a vergonha
da família.” (BEAUVOIR, 2020, p. 87). 

No decurso das duas narrativas, as problemáticas sociais que circun-


dam as personagens foram retratadas de forma manifesta: a figura materna
ernausiana é construída em seu contexto proletário; a figura beauvoiriana,

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 111


em sua estrita formação burguesa e em sua condição de submissão resul-
tada do casamento. É de semelhante maneira que se institui a relação que
essas travam com a erudição de suas filhas. As protagonistas são, afinal,
escritoras cujas formações se deram em espaço universitário, e que se man-
tiveram em constante contato com a ciência produzida nesse ambiente. É
assim que, nos testemunhos de Ernaux e Beauvoir, constata-se, na esfera
intrínseca das figuras maternas, a gênese de uma opressão interior: a in-
telectual. Deparamo-nos, assim, com a representação de duas mães que,
mesmo contentes por testemunhar o sucesso de suas filhas no âmbito aca-
dêmico e literário, tinham a consciência de que não compartilhavam tal
conhecimento, e que, devido a isso, poderiam ser julgadas ou desprezadas
– seja por suas filhas, ou pelo meio social do qual elas, por intermédio da
educação que receberam e do que com ela empreenderam, faziam parte.
Esse complexo é abordado por Beauvoir no seguinte excerto:

Eu sempre intimidara um pouco mamãe, por causa da admiração intelectual


que ela nutria por mim [...] Frequentemente chocada pelo conteúdo dos meus
livros, envaidecia-a o seu sucesso. Mas pela autoridade que o êxito me conferia
a seus olhos, ele agravava seu embaraço, seu mal-estar. Por mais que eu evitasse
toda e qualquer discussão — ou talvez precisamente porque as evitava —, ma-
mãe pensava que eu estava julgando-a [...] Ao cabo de cinco minutos, a partida
estava perdida: tínhamos tão poucos interesses em comum! Folheei seus livros:
não líamos os mesmos. Fazia-a falar, escutava, comentava. Mas, porque era mi-
nha mãe, suas frases desagradáveis me desagradavam mais do que se tivessem
saído de uma outra boca. E ficava tão crispada quanto aos vinte anos, quando
ela tentava — com sua habitual inépcia — estabelecer intimidade: “Sei que não
me acha inteligente. Mas, em todo o caso, foi de mim que você recebeu essa sua
vitalidade, e isso me dá prazer (BEAUVOIR, 2020, p. 57-59).

E por Ernaux:
Em relação a esse mundo [intelectual], minha mãe se manteve dividida entre a
admiração que a boa educação, a elegância e a cultura lhe inspiravam, o orgu-
lho de ver sua filha fazer parte de tudo isso, e o medo de ser desprezada, sob a
aparência de uma excelente cortesia. Toda medida de seu sentimento de indig-
nidade, indignidade da qual ela não me dissociava (talvez seria necessária uma
outra geração para apagá-la), está nessa frase que ela me disse na véspera do meu

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 112


casamento: “cuide de manter a casa, vai que ele te manda de volta!”. E, falando
da minha sogra, há alguns anos: “vemos que é uma mulher que não foi criada
como nós!” (ERNAUX, 2007, p. 28).22 

Os conflitos então retratados pelas narradoras não se darão unicamen-


te na esfera ideológica. Esses conflitos, internos e introspectivos, provin-
dos das relações familiares e das complexidades sociais que circundam as
narradoras, não se limitarão à esfera psicológica e intelectual. O corpo,
esfera física da existência, surge como igual fonte alavancadora de reflexões
introspectivas que remetem à condição e ao imaginário do corpo materno
desde a infância. As mães, então acometidas por doenças de porte físico,
em Beauvoir, e psicológico, em Ernaux, estabelecerão comportamentos di-
ferenciados daqueles que realizavam quando estavam em plena saúde e
sanidade. 
Em Uma morte muito suave, essa reflexão é despertada quando, privada
de sua independência física, entregue aos cuidados médicos, Françoise de
Beauvoir deixa aparecer seu sexo. Esse acontecimento suscita, na narrado-
ra, uma digressão introspectiva acerca de sua relação com o sexo sua mãe:

A fisioterapeuta aproximou-se da cama, afastou o lençol e apoderou-se da per-


na esquerda de mamãe: a camisola aberta revelava com indiferença seu ventre
flácido, recoberto de minúsculas rugas, e o púbis glabro. “Já não tenho pudor
nenhum”, disse ela num tom surpreendido [...] Ver o sexo de minha mãe: isso
me chocara. Para mim, não havia corpo que existisse menos do que o dela; mais
ainda, não existia. Criança, amara-o; adolescente, inspirara-me uma repulsa in-
quieta, isso é clássico, e achava normal que tivesse conservado esse duplo caráter,
repugnante e sagrado: um tabu. Mesmo assim, surpreendia-me com a violência
de meu desagrado. O consentimento despreocupado de minha mãe agravava-o;
ela renunciara às interdições, às ordens que a haviam oprimido durante a vida
inteira; e não podia deixar de aprová-la. Só que esse corpo, subitamente reduzido
por essa renúncia a não ser mais do que um corpo, já não diferia muito de um
despojo: pobre carcaça sem defesa, apalpada, manipulada por mãos profissio-
nais, onde a vida parecia prolongar-se apenas por uma inércia estúpida (BEAU-
VOIR, 2020, p. 19). 

22 « À l’égard de ce monde, ma mère a été partagée entre l’admiration que la bonne éducation, l’élégance et la culture lui inspiraient,
la fierté de voir sa fille en faire partie et la peur d’être, sous les dehors d’une exquise politesse, méprisée. Toute la mesure de son
sentiment d’indignité, indignité dont elle ne me dissociait pas (peut-être fallait-il encore une génération pour l’effacer), dans cette
phrase qu’elle m’a dite, la veille de mon mariage : « Tâche de bien tenir ton ménage, il ne faudrait pas qu’il te renvoie. » Et, parlant
de ma belle-mère, il y a quelques années : « On voit bien que c’est une femme qui n’a pas été élevée comme nous. » » (ERNAUX,
2007, p. 28).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 113


Semelhante evento permeia a prosa de Ernaux:

Numa noite de abril, ela já dormia, às seis horas e meia, deitada em cima dos len-
çóis, de camisola; as pernas levantadas, mostrando seu sexo. Estava muito quente
naquele quarto. Comecei a chorar porque era minha mãe, a mesma mulher que
aquela da minha infância (ERNAUX, 2007, p. 39).1 

Na narrativa de Beauvoir, a figura materna é representada em situação


de plena vulnerabilidade. Uma vez que sua mãe – alguém que, ao curso
de sua vivência, conservou e propagou os valores cristãos, e que prezou a
moral patriarcal acerca da conduta feminina – renega a importância da
prudência e do recato diante dos outros, o episódio serve de parâmetro
da sujeição de Françoise de Beauvoir à medicina, que, naquele momento,
intermedia sua ligação à vida. Em Une femme, a perda do pudor se com-
porta de forma a projetar a evolução da condição mental na qual a figura
materna se encontra. Acometida da demência, psicopatologia ocasionada
em decorrência do mal de Alzheimer com o qual havia sido diagnosticada,
a mãe representada por Ernaux se situa numa configuração inconstante
quanto às suas habilidades mentais. Seu discernimento face às situações so-
ciais estão afetados, e suas expressões pessoais – pensamentos, julgamentos,
ações –, comprometidas. 
Podemos, ainda, evidenciar uma constante nas condutas adotadas pe-
rante os acontecimentos: o apelo à infância. Esse mecanismo de reação
pode ser analisado ao considerarmos o contraste concebido entre duas re-
presentações construídas em torno da figura materna. A primeira, retirada
de lembranças passadas provindas da infância, evoca a mãe em condição
saudável, jovem, contrastando, assim com sua condição no tempo presente
da narrativa. Essa última, por sua vez, pode ser descrita por características
antônimas às da primeira, uma vez que se encontra doente, idosa, depen-
dente. Assim, as reações diante do incidente se manifestam em decorrên-
1 « Un soir d’avril, elle dormait déjà, à six heures et demie, allongée par-dessus les draps, en combinaison ; les jambes relevées,
montrant son sexe. Il faisait très chaud dans la chambre. Je me suis mise à pleurer parce que c’était ma mère, la même femme que
celle de mon enfance » (ERNAUX, 2007, p. 39).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 114


cia da comparação subconsciente que fazem as narradoras entre as duas
imagens de suas mães. A mulher em plena saúde, rememorada tal qual se
apresenta no imaginário da infância, não mais condiz com a mulher enfer-
ma que sobrevive nos momentos antecessores a seu falecimento. A perda
da mãe se dá, dessa forma, antes da morte, e através de um processo de
definhamento gradual. 
Enquanto filhas, as narradoras testemunham a degradação física e
mental de suas genitoras que, irreversivelmente acometidas por suas cir-
cunstâncias patológicas, assistem a uma inevitável dissolução do Eu – para
as mães, seus valores e princípios, suas crenças e convicções não mais ocu-
pam a posição de importância que outrora ocuparam. Assim, a percepção
do corpo, por parte das mães, manifesta-se enquanto esfera da existência
desatrelada à consciência social e moral. Tendo ele se tornado um elemento
físico com o qual se lida com indiferença, em decorrência das doenças das
quais sofrem, a relação que travam com seu corpo acarretou a perda do
pudor. Essa perda se manifesta como presságio de um esvaecimento imi-
nente – isso é, de uma prova concreta de que aqueles seres, então em vida,
aproximam-se da morte.
Vale considerar, de igual forma, que os projetos literários das narra-
doras se fundam no testemunho de uma vida permeada pela existência da
figura materna. As mães integram as partes formadoras do eu-sujeito-nar-
rador figurado em ambos os livros. Observamos, assim, a partir do campo
de inexistência ao qual o eu materno se destina, que, diante de uma perda
irredutivelmente sentimental, o eu-narrativo se encontra transtornado, e o
texto literário se torna um espaço de expressão de um Eu que, face à perda
do “ela”, intenta tecer uma reconstrução testemunhal de ambas as entida-
des. 

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 115


Considerações finais 

As manifestações literárias do século XX, múltiplas em suas expres-


sões, encontraram na escrita de si o subterfúgio para construir um eu-sujei-
to que, irreversivelmente dissociado, vê-se diante da necessidade de com-
pletar o vazio de uma literatura que se fazia palco dos transtornos políticos,
sociais e econômicos de uma época. Essa literatura, consciente da insufici-
ência da razão humana, reivindicava o texto enquanto espaço para o em-
bate e o debate de ideias. No leque de suas materialidades, encontrava-se
o Eu, em seu estado indefinível e necessitado de expor as sequelas morais,
psicológicas, éticas e físicas às quais foi subjugado enquanto integrante de
uma sociedade posterior a duas guerras que descortinaram os horrores da
tão investigada condição humana.
Ambas as narrativas analisadas no estudo que traçamos estabelecem
um ponto de contato configurado pela necessidade de uma expressão que
se traduz pela intersecção, possibilitada pela reflexão sociológica e filosófi-
ca, entre a consciência crítica da vivência humana e a literatura, em todo
seu poder de alcance e possibilidades. Essas expressões, notadamente trans-
passadas pela escrita do luto, ultrapassam o âmbito pessoal, revelando-se
verdadeiros testemunhos de suas respectivas épocas. 

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance III: O romance como gênero literário. São
Paulo: Editora34, 2018.
BAUDELAIE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
BEAUVOIR, Simone de. Mémoires. Paris: Éditions Gallimard, 2018. 
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
BEAUVOIR, Simone de. Uma morte muito suave. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2020. Recurso eletrônico.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 116


ERNAUX, Annie. Une femme. Paris : Éditions Gallimard, 2007. Recurso eletrônico. 
ERNAUX, Annie. JEANNET, Pierre-Yves. L’écriture comme un couteau. Entretien
avec Pierre-Yves Jeannet. Paris: Éditions Stock, 2003. Recurso eletrônico. 
FAEDRICH, Anna. Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura brasi-
leira contemporânea. 2014. Tese (doutorado) – Curso de pós-graduação em Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. 
GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Éditions du Seuil, 1972. 
JEANNELLE, Jean-Louis. Écrire ses mémoires au XXème siècle : Déclin et renouveau.
Paris: Éditions Gallimard, 2008. Recurso eletrônico. 
LABOURET, Denis. Histoire de la littérature française des XXème et XXIème siècles.
Paris: Armand Colin, 2018. 
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996.
Les mémoires de Simone de Beauvoir. Locução de: Adèle Van Reeth. Entrevistados:
Jean-Louis Jeannelle. Paris: France Culture, 18 de maio de 2018. Emissão de rádio.
Série Les chemins de la philosophie. Disponível em: https://www.franceculture.
fr/emissions/les-chemins-de-la-philosophie/les-memoires-de-simone-de-beauvoir.
Acesso em: 25 de setembro de 2021. 
MÉNISSIER, Patricia. Être mère. Paris: C.n.r.s Eds, 2016. Recurso eletrônico
REIS, Carlos. Dicionário de Estudos Narrativos. Coimbra: Grupo Almedina, 2018. 
TIDD, Ursula. The Self-Other relation in Beauvoir’s ethics and autobiography. In:
SIMONS, Margaret (org.). The philosophy of Simone de Beauvoir: critical essays.
Indiana: Bloomington: Indiana University Press, 2006.
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BLANCKEMAN, Bruno; PORTES-DUGAST, Francine. Annie Ernaux: Le Temps
et la Mémoire. Cesiry: Éditions Stock, 2014.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 117


CAPÍTULO 7

Dialogismo e patriarcado no conto


“I love my husband”, de Nélida Piñon
 Caio Vitor Marques Miranda
Sofia Finguermann e Fernandes

Introdução 

 Na literatura, a voz masculina é predominante. Enquanto à mulher


era negado o direito de ler e escrever, ao homem cabia a tarefa de retratá-la
sob suas próprias perspectivas. Nas primeiras produções literárias brasilei-
ras, em cantigas trovadorescas, as personagens femininas eram idolatradas
pelos seus amados, que divulgavam seu amor em público. Depois, apare-
cem associadas a deusas, a elementos celestiais e, mesmo com as mudan-
ças sociais, amá-las e tê-las por perto era muitas vezes retratado de forma
utópica. Décadas mais tarde, na era romântica, a figura feminina é motivo
de muita dor para os homens, pois, ainda idealizadas, eram vistas como
uma impossibilidade para eles. O contexto social de hierarquia de sexo era
constantemente reforçado e legitimado pela literatura brasileira. 
É no século XX que a mulher alcança mais espaço para representar
sua própria voz, sua imagem na sociedade, seus desejos, seus personagens
e suas ideologias. Inclusive, para Tonelo (2015), a figura feminina foi, du-
rante todo esse tempo, mal representada nas artes, já que ela não possuía
voz ativa e o que tivemos foi, então, a má interpretação de um discurso

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 118


masculino traduzindo a voz da mulher, uma visão ditada pela sociedade
machista e patriarcal da época. No entanto, após a articulação mais acen-
tuada do movimento feminista no Brasil, essa realidade muda e a temática
de suas produções se constrói a partir dos valores patriarcais, de seu empo-
deramento e de sua busca pela identidade, como acontece nos contos de
Nélida Piñon, em especial no que selecionamos como objeto de análise: “I
love my husband”. 
Desse modo, objetivamos evidenciar a primeira fase da literatura de
autoria feminina proposta por Zolin (2009) à luz dos fundamentos do dia-
logismo do Círculo de Bakhtin (1997) e da crítica literária feminista, mos-
trando, a partir da investigação do conto, como o sujeito discursivo critica
os valores patriarcais vigentes na segunda metade do século XX no país. 

Representações da figura feminina na literatura

Para discutir questões tangentes à literatura de autoria feminina do


século XX, é necessário resgatarmos valores milenares que contribuíram
para consolidação da cultura ocidental. Afinal, um texto é “apenas um
elo na cadeia ininterrupta de discursos verbais” (VOLOCHINOV, 2017,
p. 184). Conforme exploramos brevemente, o discurso patriarcal incide
no fazer literário desde a consolidação do que conhecemos por literatura
brasileira. Até determinado momento de nossa história, os textos literários
muito mais aderiam a esse discurso do que o combatiam.
A predominância do discurso masculino englobava desde a produção
literária até seus fundamentos conceituais e procedimentos analíticos. Nos
escritos clássicos, como em a Odisseia, de Homero, temos o que Beard
(2018) considera o primeiro exemplo registrado de um homem ordenando
a uma mulher que cale a boca, em um diálogo entre Telêmaco e Penélope;
ainda no século IV a.C, Aristófones escreveu uma comédia que zombava
da possibilidade de as mulheres assumirem o poder; a tradição de silen-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 119


ciamento e ridicularização do discurso feminino na literatura é milenar.
Poderíamos mencionar até o mito hebraico de Adão e Eva ou o mito grego
de Pandora, ambas narrativas em que as mulheres são responsáveis por tra-
gédias catastróficas. Beauvoir, em O segundo sexo (1949) resgata a passagem
do filósofo Poulain de La Barre, que escreveu, ainda no século XVII, “tudo
que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles
são, a um tempo, juiz e parte”.  Para a autora, ainda, a “representação do
mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem
do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade ab-
soluta” (BEAUVOIR, 1949, p. 203).
É claro que essa exclusão literária é reflexo de limitações sociais im-
postas às mulheres durante milhares de anos. Virgínia Wolf, em Um quarto
todo seu (1929), traz a situação hipotética de que Shakespeare pudesse ter
tido uma irmã, tão criativa para a escrita quanto ele, mas que não pôde
aprender gramática e lógica. Essa mulher, assim como milhões de outras
ao longo da história da humanidade, teve sua escrita impossibilitada. Ora,
em 1564, ano em que se estima o nascimento de Shakespeare, mulheres
negras eram escravizadas no Brasil. Sabemos que o patriarcalismo não atin-
ge da mesma maneira todas as mulheres, mas atende a dinâmicas racistas
e imperialistas. Dentre tantas ferramentas de silenciamento e violência, o
afastamento das mulheres do acesso a fazeres discursivos, como o literário,
e o apagamento de seus registros ao longo da história, são poderosas ferra-
mentas para a manutenção da hierarquia do sistema sexo/gênero.
Somente no século XIX, quando (algumas) mulheres passaram a ter
acesso à educação, as conquistas femininas começam a surgir tanto nas his-
tórias literárias como nos feitos históricos da sociedade burguesa – que era
mais registrada até então pelos autores da época. A mulher ganha espaço
no âmbito artístico e passa a conquistar espaço para representar sua própria
voz e imagem na sociedade. Para Zolin (2009), o que tivemos de registro
da mulher até então foi de uma figura feminina sedutora, vulgar, imoral,
“uma megera indefesa e incapaz e, entre outros, o da mulher como anjo
capaz de se sacrificar pelos que a cercam”. Em outras palavras, o manique-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 120


ísmo era representado pela mulher: ora causando o mal aos homens e às
suas famílias, pois eram sedutoras e perigosas, ora como seres celestiais, o
que, ainda que apresente um ponto de vista positivo acerca da sua imagem,
ainda assim, afasta-a de sua humanidade.
Para mudar essa realidade, o feminismo traz para a literatura a cons-
ciência de dar visibilidade à produção literária realizada por mulheres e
aponta questionamentos sobre a visão de submissão que existe. Nessa pri-
meira fase de produção literária de autoria feminina, ainda havia reprodu-
ção do comportamento machista, estereótipos de mulheres donas de casa,
mulheres felizes com seu casamento. Posteriormente, outra visão sobre as
mulheres passou a aparecer, aquelas que fogem e conseguem ter sua inde-
pendência, aquelas que estudam, mulheres que refletem sobre seu papel na
sociedade, mulheres que lutam contra a desigualdade social e tentam, de
algum modo, ressignificar sua presença na terra.
Neste novo panorama de produção literária de autoria feminina após
os anos 70, temos, para Zolin (2015), três fases dessa literatura. A primeira,
intitulada “feminina”, traz enredos de mulheres que reproduzem a realida-
de patriarcal, ainda com submissões e objetificação da mulher. A segunda,
por sua vez, ficou conhecida como a “feminista” ou a “fase da ruptura”, já
que, nessa produção, a figura feminina se recusa a seguir os moldes tracio-
nais e se mostra independente, sem, muitas vezes, a presença dos homens.
Por fim, a terceira fase, denominada como “fêmea” ou “mulher”, apresenta
uma busca pela identidade feminina, que compartilha desejos e anseios,
sem mais críticas dilaceradas contra o sistema opressor de seu passado. 
Neste artigo, voltamo-nos a evidenciar a realidade patriarcal que nos
é contada por uma personagem que reconhece tal contexto, mostra-se fora
dele pelo viés subjetivo, mas decide racionalmente seguir a vida como lhe
foi imposta. Para essa ilustração, valemo-nos da ideia de dialogismo, defen-
dida pelo Círculo de Bakhtin (1997), como vemos a seguir.
 

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 121


O dialogismo de Bakhtin

 
Mikhail Bakhtin, filósofo russo, é um dos mais importantes pesqui-
sadores no que tange à linguagem humana, sendo pauta teórica de várias
áreas do conhecimento. Em sua trajetória, debruçou-se sobre vários te-
mas, desde estética literária a conceitos do discurso. Aqui, focamo-nos no
dialogismo, conceito relevante nos estudos desenvolvidos pelo Círculo de
Bakhtin:
 
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo
corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrá-
rio destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior”
(BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.) 1997, p. 29).
 
Para Bakhtin (1997), a orientação dialógica é inerente a todo discurso,
qualquer enunciado responde e se relaciona com um anterior, que permeia
esse novo fazer discursivo. Além disso, todo discurso admite uma atitude
responsiva do seu interlocutor; dessa forma, ao realizar um enunciado, es-
pera-se que o ouvinte reaja a ele, respondendo-o. Para o autor, a enuncia-
ção é reflexo das vivências e relações socioculturais, cada enunciado profe-
rido pelos sujeitos mantém relações com enunciados que vêm dos outros,
com que manteve algum tipo de relação discursiva. Assim aparece a ideia
de enunciado enquanto elo na cadeia de comunicação discursiva: nenhum
discurso é adâmico, todos respondem a algo que já foi dito e dialogam
com outros enunciados, de forma consonante ou polêmica. Para o autor, a
situação social está intrinsecamente relacionada à produção de linguagem.
Se a palavra, para a abordagem bakhtiniana, consiste no signo ideológico
por excelência, então ela registra as menores variações das relações sociais.
Representa a unidade em que se cruzam as várias formas de contexto, co-
municação e discurso. 

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 122


Os textos literários, portanto, a partir do viés bakhtiniano, são fruto
das práticas verbais de um sujeito que resgata – conscientemente ou não
– uma variedade de ideologias, que dialogam constantemente com as rea-
lidades efetivas do ser. Cada discurso é uma memória axiológica:

as obras rompem fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande
temporalidade, e assim, não é raro que essa vida (o que sempre sucede com uma
grande obra) seja mais intensa e mais plena do que nos tempos de sua contem-
poraneidade (BAKHTIN, 2010, p. 364). 

Essas considerações instrumentalizaram o posterior desenvolvimento


de um segmento da Análise do Discurso, a ADD, ou Análise Dialógica do
Discurso, ferramenta esta que, neste estudo, aplicaremos ao discurso lite-
rário.  Nesse sentido, passamos a analisar o conto de Nélida Piñon sob a
perspectiva dialógica, resgatando as fases da literatura de autoria feminina
propostas por Zolin (2008).

Investigação

Conforme os escritos do Círculo, a forma linguística só pode ser com-


preendida em dado contexto concreto de enunciação e, portanto, sob de-
terminado posicionamento ideológico. Sabemos, ainda, que a linguagem é
um meio de manipulação sociopolítica, sendo qualquer signo uma expres-
são ideológica. Na literatura e dentro da produção de autoria feminina, a
realidade não é outra. Nélida Piñon (1937), jornalista de profissão e uma
autora consagrada pela crítica literária, discute em sua produção os papéis
femininos na sociedade da segunda metade do século XIX em diante, com
temas que versam sobre o machismo, violência doméstica, amor, papel da
mulher, igualdade de gênero.
Membro da Academia Brasileira de Letras em 1990 e a primeira mu-
lher eleita para ocupar a presidência da casa, Nélida ilustra, por meio da

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 123


ironia e de outros mecanismos linguísticos, textuais e discursivos, o modo
de olhar o feminino e as vivências de uma mulher na sociedade patriarcal.
Seu objetivo antes é o de mostrar que a opressão deve ser combatida pela
ação, incluindo uma reconstrução discursiva, pois acredita que assim terá
mais chances de revelar e desvendar a alma das personagens, que servem de
espelhos para o ser humano da época – mas não apenas.
Isso é o que acontece no conto em questão, “I love my husband”.
A escolha de apresentar o título em inglês já traz um recorte da primeira
fase categorizada por Zolin (2009), a patriarcal, apresentando um sujeito
discursivo que justifica ironicamente, várias vezes, o amor pelo seu marido
com práticas machistas que exerce. Narrado por um sujeito feminino, sem
nome – apenas com o conhecimento de gênero e classe – (re)vemos os va-
lores cristalizados na família tradicional brasileira, em que cabe ao homem
o sustento, à mulher o trabalho doméstico e sua subordinação. O título
do conto, frase que percorre todo o texto e o finaliza, nos remete a duas
ideias: a primeira, que se trata de um enredo circular, assim como a aliança
que representa um matrimônio, ciclo da vida em conjunto, promessa de
amor eterno, não havendo mudança do posicionamento; e a segunda, a
existência de um sujeito discursivo apaixonado pelo marido, – que o faz, de
primeiro, em língua estrangeira –, como se não pertencesse a sua realidade
e lembrado desse sentimento no final, posposto a uma interjeição – justifi-
cando-se com posturas patriarcais da sociedade:

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspi-
ra exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta
três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição.
Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como
me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.
 
A frieza do casamento é representada aqui pelo café frio, ao asseme-
lhar-se com o que eles vivem, fugindo totalmente da ideia pré-estabelecida
de um relacionamento amoroso. Assim, discute-se essa divisão social, so-

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 124


bretudo pela opressão a que é submetida a mulher, que não tem domínio
sobre o próprio corpo, cuja função é servir o marido de todos os modos. É
uma revolução silenciosa, que se faz primeiro no espírito, em seu processo
de percepção da realidade, para depois começar a realizar-se nas palavras e,
por fim, constituir-se como novo mundo. 

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por
cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos,
e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam
pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis (p. 163) .

Esse excerto demonstra uma das várias experiências sociais dialógicas


incutidas no seu discurso, ao acreditar que é ingrata dentro do seu papel
como dona de casa – explícito pelas atividades domésticas descritas. Ade-
mais, as perguntas retóricas permeiam o conto com os questionamentos
devido ao contexto histórico: de um lado, temos a ditadura militar, já em
seu final – governo Figueiredo (1979-1985), o último presidente militar;
e, do outro, a chegada dos ideais feministas ao país, em que a submissão da
mulher dentro dos moldes patriarcais é trazida à tona das mais diversas for-
mas, seja pelas manifestações artísticas, seja pelos movimentos de protesto,
em que o medo e o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações
mais acentuadas. 
Dessa forma, a voz feminina, da dona de casa insatisfeita, mas sem
ação, dialoga com o discurso patriarcal durante todo o texto. Ao falar das
queixas do marido, a narradora responde a essa ideologia dominante, com-
bate-a, ainda que com ferramentas sutis.
É curioso o fato que subsiste no conto, a mulher consciente de sua
subserviência, expondo-a de forma irônica. Em poucos momentos, recla-
ma por mais liberdade, no sentido de poder fazer sua voz ser ouvida, mas
ao mesmo tempo percebe ser melhor manter a vida dentro do padrão em
que fora criada. Assim, o ethos do sujeito começa a ficar mais claro a cada
parágrafo do conto, uma vez que evidenciamos sua natureza dialógica, o
contexto de onde fora criada e como ela o reproduz:

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 125


 O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E
dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de cons-
truir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de
um passado com regras ditadas no convívio comum.

A figura masculina a todo momento expressa a ideia de superioridade.


Dialoga-se, assim, com o sistema social em que homens adultos mantêm
o poder primário e predominam em funções de liderança política, auto-
ridade moral, privilégio social e controle das propriedades – inclusive da
mulher, que é vista como uma –, a ponto de serem “ocos”, no que tange
aos seus sentimentos, já que são muitas as demandas: 

Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas


de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar
um trabalho de escravo.

O questionamento retórico do ‘eu’ remete, mais uma vez, à realida-


de patriarcal de sua formação, que no excerto acima coloca as questões
econômicas acima dos valores humanos – “deixe-me progredir, mulher”.
Questão também perceptível na voz da mãe, que partilha dessas práticas ao
ensinar sua filha que ser mulher é não se importar com o tempo, mas sim
perder-se nele, pois sua função é servir o outro – família constituída – e
não a si mesma:
Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem
mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o
tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais reve-
lado ao mundo. 
Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém co-
lheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre
foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento.
[...]Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque vi-
verás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem.
 
Nesse excerto e no anterior, é possível também verificar a presença do
leitor. As perguntas retóricas dirigem-se à própria narradora, mas se revela

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 126


a consciência de um “auditório social”, como colocado por Bakthtin (Vo-
lochinov, 1997), dirigindo-se também ao leitor, àquele que pode estar se
questionando sobre o que a narradora pode estar pensando a respeito dessa
sujeição. A figura do pai, dentro dos moldes do conto, expressa, com or-
gulho, a beleza de uma vida destinada totalmente ao seu marido e aos seus
futuros filhos, para os quais a mulher deve viver. Em nenhum dos planos,
existe a preocupação com o seu ser, com a sua subjetividade. Era preciso,
pois, anular-se para ser. Em outras palavras, quando casada, a mulher liber-
ta-se do pai, que transfere o poder ao marido, mas dele passa, então, a ser
propriedade, sem voz, desconhecendo as leis do homem e as suas, não se
posicionando. Torna-se, portanto, um ser relegado ao “bem querer” mas-
culino. 
Observa-se aqui a presença da voz do discurso patriarcal da época,
simbolizado pelo pai. A narradora justifica sua condição pela fala parental,
assim, esse enunciado dialoga tanto com esse discurso machista, quanto
com o seu oposto, o discurso feminista. Essa presença dialógica é demons-
trada pela necessidade de justificar suas ações e resiliência.
Em relação ao discurso patriarcal, do bem-estar da mulher ser respon-
sabilidade do homem e o desfrutar do corpo e das ações femininas também
caber ao pai, ao marido e aos filhos consiste em uma apreciação axiológica
que se repete no tom de constante agradecimento que cabe a ela demonstrar
ao seu marido. Ele é responsável pela sua “moldagem”, o ato de raciocinar
é responsabilidade dele, a ponto de usar apenas as palavras do homem, já
que tem receio de cometer erros e “apelar para as palavras inquietantes que
terminam por amordaçar a liberdade”, ou seja, a produção de seu discurso
é embasada nas produções discursivas do homem. Quando pensa na ideia
de liberdade, em busca de uma identidade em que se reconheça, em sair de
uma vida imposta – no primeiro momento, pela sua família e, depois, pelo
seu marido –, o sentimento de empoderamento cresce, mas passa, pois, a
narradora entende que é um erro:
 

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 127


Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que
não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem ende-
reço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar
outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E
tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me en-
vergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro
das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada.
 
 No final, os valores cristalizados do contexto do conto – subserviência
feminina – se reafirmam na fala do sujeito, assim como a ideologia presen-
te no imaginário da narradora, assumindo uma atitude avaliativa de sua
vida. Resgata-se, então, a mesma frase que inicia o conto, mas introduzida
por uma interjeição afirmativa que parece indicar uma constante e neces-
sária obrigação de lembrar-se do seu amor: “Ah, sim, eu amo meu marido”
– destronando qualquer sentimento de afetividade devido ao tom irônico,
ou seja, o não dito pelo seu discurso. 
A questão toda não deve ser vista apenas como amar e ser amada, e
sim o quanto a repetição dessa frase – título do conto –, ao longo dele, re-
presenta a ironia, sua consciência diante de sua realidade, mas, ao mesmo
tempo, seu silenciamento devido aos valores vigentes. 
 
Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda
que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o
dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto en-
tão a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às
vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos
há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um
casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido
 
Paradoxalmente, diversas vozes se manifestam, ao longo do enredo,
pelo sujeito que o narra, mas destacam-se: a visão do marido, encarregado
de fazer o país progredir e necessita do suporte doméstico da esposa, repre-
sentando o discurso patriarcal vigente; a visão da mulher que quer comple-
tar-se como ser para além das simples atividades domésticas, demonstran-
do a voz da mulher que não sabe como agir diante dos discursos vigentes;

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 128


a visão de um outro pensamento, mais libertário, ao qual a mulher sente
a necessidade de se justificar e explicar por que não se rebela e se liberta.
Assim, a identidade feminina é camuflada pela primeira voz, pois ensina-
ram-lhe a premissa de esvaziamento, de subordinação, o homem como au-
toridade de um matrimônio que a objetifica, demonstrando construção da
cultura da sociedade machista. Além disso, a terceira voz também impõe
um fardo à mulher que não sabe o que fazer e como agir diante dos ques-
tionamentos colocados a ela e das obrigações impostas pelo masculino.  
Além disso, é interessante olharmos para o objeto estético dentro do
contexto produzido – meados da segunda metade do século XX –, clas-
sificado como literatura contemporânea, que tinha como compromisso,
segundo Schollhammer (2009), criticar a realidade social e política, res-
pondendo ao regime autoritário que está em declínio, e romper com os
valores que eram pregados por eles. É exatamente isso que o conto faz,
com a narradora submissa, consciente, que emite no seu discurso irônico a
submissão estrutural. Nélida Piñon impulsiona os valores do recente mo-
vimento feminista, ao escrever sobre o perfil de uma mulher que, naquele
contexto, ainda é criada para seguir os moldes estruturais transmitidos pe-
las famílias e se recusa a um olhar intrínseco, se nega, ao afirmar-se mulher,
a reconhecer sua identidade. 
Com os mecanismos ideológicos, textuais, a autora assume seu dever
com a sociedade da qual é fruto, em que as mulheres são vítimas do pa-
triarcado, e denuncia esse crime cometido por séculos na história: o silen-
ciamento de uma mulher. Ela sugere, pelo não dito, o rompimento desses
valores, a igualdade de direitos e a quebra de estereótipos da construção
familiar. 
 

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 129


Considerações finais

 Neste trabalho – que tivemos como propósito mostrar os elementos


em que enquadramos o conto de Nélida Piñon dentro da produção de
autoria feminina de primeira fase (ZOLIN, 2009) pelo viés do dialogismo
bakhtiniano –, evidenciamos valores arcaicos expressos pelo sujeito-perso-
nagem ao reafirmar constantemente que ama seu marido com atitudes do
século XVIII, mesmo presente em outra realidade: anos 70/80, mostrando
que esses valores se perpetuaram ao longo dos séculos. Tal fato se justifica
com as relações axiológicas vividas pela personagem, ou seja, suas relações
pessoais; o que ela reproduz é fruto de uma família que acreditava nesse
quadro de valores, apagando sua identidade como mulher para servir-se
a outro. Entretanto, consciente desse contexto, ela se vale da ironia e das
perguntas retóricas para criticar os comportamentos a ela ensinados, im-
postos, tirando-lhe seu poder de decisão. 
Essa é a genialidade de Piñon usada para discutir papéis femininos na
sociedade, uma arma que ela oferece à mulher, aos educadores, para mudar
contextos de mulheres subordinadas, maltratadas e que, muitas vezes, des-
conhecem seus direitos.

Referências 

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: Pro-
blemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. BER-
NADINI, Aurora F. et al. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 130


BEARD, M. Mulheres e Poder: um manifesto. Trad. Celina Portocarrero. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2018.
Beauvoir, S (1970 [1949] O Segundo Sexo. 1. Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Eu-
ropeia do Livro, 4a edição.
PINON, Nélida. I love my husband. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pu-
crs.br/ojs/index.php/fale/article/view/23148/14078> Acesso 20 maio 2020.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009.
VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem.
Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução,
notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório
de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.
TOFANELO, Gabriela Fonseca, “A trajetória do feminismo na literatura de autoria
feminina”, 2015. Disponível em: <http://www.sies.uem.br/trabalhos/2015/593.
pdf> [15 de mar. de 2019]
ZOLIN, Lúcia Osana, “A literatura de autoria feminina brasileira no contexto da
pós-modernidade”, em Ipotesis, 2009. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistaipo-
tesi/files/2009/10/a-literatura-de-autoria-feminina.pdf> Acesso 30 março 20120.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 131


Sobre as organizadoras

Marcela Regina Vasconcelos da Silva Nascimento


Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística
da Universidade Federal da Paraíba (PROLING-UFPB). Professora Ad-
junta do Departamento de Letras do Centro de Artes e Comunicação da
Universidade Federal de Pernambuco (CAC-UFPE). Docente do Mestra-
do Profissional em Letras (PROFLETRAS-UFPE). Pesquisadora líder do
Núcleo de Estudos de Línguas e Discurso (NELD-UFPE-CNPq). Reali-
za pesquisas sobre enunciação, discurso, estudos de gênero e feminismos,
gêneros discursivos, verbo-visualidade, argumentação e ensino de Língua
Portuguesa.

Rosiane Maria Soares da Silva Xypas


Possui graduação em Letras Português/Francês pela Faculdade de Formação
de Professores (1990), Mestrado em Teorias Literárias pela Universidade Fe-
deral de Pernambuco (2004), Mestrado em Didática de Francês Língua Es-
trangeira - Université Catholique de I'Ouest (2010) e Doutorado em Doc-
torat - Université de Nantes (2009). Pós-doutoramento em Didactique de la
littérature em Rennes 2 (2019-2020). Atualmente é professora permanente
do programa de Pós-gradução PPGEdu e do Mestrado Profissional PROLE-
TRAS da UFPE e professor de magistério superior da Universidade Federal
de Pernambuco. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras
atuando nos seguintes temas: compreensão. inferência. leitura., livro didático
- intercultural - cultura - representações, imagens-leitura-modalidade, bilin-
guismo estético; vozes femininas; francofonia, poesia. luto. representações.
cecília meireles. É membro da CLEFS-AMSUD e faz parte do Centre d'étu-
des de langues et littératures anciennes et modernes - CELLAM à Rennes 2.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 132


Jaciara Gomes
Doutora em Linguística pela UFPE. Atua como professora adjunta na
UPE/ Campus Garanhuns. Realiza pesquisas sobre práticas de letramentos
culturais, bem como sobre o ensino de leitura e de escrita. É líder do grupo
de pesquisa em Letramentos e Práticas Discursivas e Culturais (LEPDIC
UPE/CNPq).

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 133


Sobre as autoras e autores

Allan Jonhnatha Sampaio de Paula


Licenciado em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE),
pós-graduando em Metodologia do Ensino de História e Geografia e suas
linguagens; Língua Portuguesa e Literatura no Contexto Educacional e
Arte, Cultura e Educação pelo Centro Universitário de Maringá (UNICE-
SUMAR), mestrando em História e Letras pela UECE. Pesquisa Audiovi-
sual: Cinema e Televisão e suas representações políticas, sociais e culturais
e Relações de Gênero, Raça e Sexualidade a partir de estudos interdiscipli-
nares em História e Literatura. É professor de inglês no Centro de Ensino
Fisk – Quixadá.

Caio Vitor Marques Miranda


Doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - SP,
Mestre em Letras Estrangeiras Modernas pela Universidade Estadual de
Londrina (2016). Licenciado em Letras (2013) pela Universidade Estadual
de Londrina, especialista em Literatura contemporânea pela Universidade
DomBosco (2018). Possui experiência na área de Letras Vernáculas e Le-
tras Espanhol. Atualmente é professor de Literatura Brasileira no Colégio
Interativa Londrina e professor colaborador no curso de Letras Espanhol
da Universidade Estadual do Paraná –UNESPAR.

Fernanda Santos Silva


Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB). Foi bolsista no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID). Atualmente integra o Grupo de Pesquisa e Extensão
em Literatura (GPEL) na linha de pesquisa: Literatura, História e Memó-
ria, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5201372421726787. E-mail: nndslv1@gmail.com.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 134


Fransueiny Pereira Fleischmann
Graduada em Letras Português-português pelo Instituto Federal do Espí-
rito Santo (IFES), pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura Bra-
sileira e Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES).

Janaína Buchweitz e Silva


Doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), da
linha de pesquisa Literatura, cultura e tradução.

Joiciane Maria Rodrigues de Carvalho


Formada em Letras com habilitação em língua inglesa pela Universidade
Estadual Vale do Acaraú - UVA, pós graduada em Gestão Educacional
(PÓS-FLATED). Atualmente é mestranda em História e Letras pela Uni-
versidade Estadual do Ceará MIHL/ UECE, campus Quixadá. Pesquisa-
dora da área de Identidade, gênero e raça com foco na mulher negra.

Samuel Maciel Martins


Graduado em Letras - Língua Portuguesa (UECE). Especialista em Litera-
turas Africanas em Língua Portuguesa (UNILAB). Além disso, é mestran-
do em História e Letras (MIHL/UECE). Pesquisa literatura afro-brasileira,
literaturas africanas em língua portuguesa e história e cultura afro-brasilei-
ra.

Sofia Finguermann e Fernandes


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, bolsista CAPES-PROEX. Mestre em Letras pela
mesma instituição, com ênfase em Análise do Discurso (Linha de pesquisa:
procedimentos de constituição dos sentidos do discurso e do texto, 2019,
UPM, bolsista CAPES-PROEX). Graduada (Bacharelado/Licenciatura) em
Letras (Português/Inglês) pelo Centro de Comunicação e Letras da UPM.

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 135


Índice remissivo

A
Apagamento 5, 47, 48, 50, 116
Autoria feminina 58, 59, 64, 69, 71, 72, 77, 85, 115, 117, 119, 126, 127
D
Discurso 11, 30, 49, 55, 59, 60, 77, 79, 80, 81, 85, 94, 114, 115, 116, 118,
119, 121, 123, 124, 125, 128, 131
F
Feminino 11, 50, 52, 54, 55, 57, 61, 62, 67, 69, 70, 72, 74, 77, 82, 84, 85, 86,
107, 116, 120
Ficção 74, 75
G
Gênero 23, 34, 37, 39, 48, 52, 53, 80, 86, 92, 99, 112, 116, 119, 120, 128, 131
I
Interseccionalidade 34
L
Leitura 7, 8, 9, 12, 16, 19, 21, 22, 23, 27, 37, 43, 48, 49, 63, 75, 128, 129
Linguagem 8, 11, 13, 18, 20, 21, 23, 32, 42, 55, 61, 79, 118, 119, 126, 127
Literatura 5, 7, 9, 11, 21, 27, 32, 33, 41, 42, 43, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 57, 58, 59, 61, 64, 65, 66, 68, 69, 72, 73, 74, 75, 76, 80, 84, 88, 89,
90, 93, 95, 97, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 119, 125, 126, 127, 131
M
Mulher 5, 9, 13, 14, 15, 26, 27, 29, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 44, 45, 48,
49, 50, 53, 54, 57, 61, 64, 65, 66, 69, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 81, 82, 83, 84,
86, 89, 96, 100, 101, 102, 103, 107, 109, 110, 111, 114, 115, 116, 117, 119,
120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 131

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 136


N
Narrativa 27, 32, 33, 35, 40, 45, 48, 61, 63, 77, 78, 79, 80, 82, 83, 89, 90, 91,
92, 93, 94, 95, 97, 98, 99, 100, 102, 105, 110
P
Poesia 8, 9, 10, 12, 13, 14, 16, 17, 21, 23, 24, 61, 75, 128
R
Racismo 36, 37, 39, 46, 48, 50, 51, 58, 70, 78
Representações 8, 9, 12, 22, 23, 39, 49, 88, 89, 110, 128, 130
Resistência 38, 50, 51, 54, 55, 60, 83
S
Silenciamento 32, 50, 53, 72, 85, 86, 115, 116, 124, 125
Sociedade 26, 27, 29, 30, 31, 37, 42, 43, 44, 47, 48, 50, 51, 52, 53, 56, 59, 60,
61, 62, 63, 65, 67, 68, 70, 74, 75, 80, 84, 92, 95, 112, 114, 115, 116, 117, 119,
120, 125, 126

MULHER, IDENTIDADE E DISCURSO: VISÕES PLURAIS - VOLUME 2 137

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