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Laura Burocco
Afrofuturismo afropolitanismo
modernidade colonialidad
Intro
Em 2015 o “Rhodes Must Fall”5 começou nas universidades sul-africanas, com uma campanha de estu-
dantes e professores da Universidade de Cape Town – UCT pedindo a remoção do campus universitário
da estátua de Cecil Rhodes (1853-1902), colonialista inglês convencido da superioridade da raça branca
e da missão civilizadora do imperialismo britânico. A campanha alegava que a estátua representaria não
apenas uma celebração da supremacia branca, mas também a permanência de racismo estrutural na
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sociedade sul-africana. Além do simbolismo im- manifestando em diferentes áreas, assumindo a
plícito, os protestos se direcionaram aos altos va- importância da criação de um novo imaginário – e
lores das taxas universitárias; à terceirização e pre- de uma nova estética –, que ofereça à comunida-
carização do trabalho dos funcionários auxiliares; de africana e diaspórica a plena possibilidade de
à sub-representação de estudantes e professores existir para além da ontológica violência branca.
negros; à necessidade de descolonizar os euro-
Coerentemente com o florescimento de interes-
cêntricos currículos escolares e do uso de línguas
se por parte da indústria cultural pelo continente
africanas no ensino universitário. Alguns desses
africano, assistimos no Brasil a uma onda de even-
temas se tornaram comuns no debate sobre des-
tos ‘afrofuturistas’ reservados a um público de ni-
colonização, que está se difundindo também no
cho majoritariamente artístico e acadêmico. “O
Brasil. Entre eles, primariamente a necessidade de
Afrofuturismo é Pop” titula Medium9 e realmente
descolonizar os eurocêntricos currículos escolares
parece ser. Desde 2015, e ainda mais depois do
e, como parte dessa prática, afinar as críticas às re-
filme Panteras Negras, o uso do termo se difunde
lações de poder que regulamentam a produção e
no meio das produções artísticas, artigos de moda
difusão do conhecimento (crítica epistemológica). e costume e numerosos são os eventos que fazem
uso da palavra afrofuturismo no próprio título.10
O afrofuturismo No Brasil o termo assume uma pegada ativista e
Em 1994 Mark Dery cunhou o termo afrofuturis- de resistência – especialmente por pessoas LGBT
mo a partir de uma análise da cena cultural-lite- queer negras – contra uma sociedade excludente,
rária dos Estados Unidos com base em entrevistas racista e violenta, cujo racismo, por longo tempo
que o crítico fez com três artistas e intelectuais disfarçado dentro do imaginário construído por
negros, Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany, Buarque de Holanda11 do ‘homem cordial’ final-
em que se questiona a ausência de autores afro- mente está sendo desmascarado e denunciado.
-americanos na ficção científica. O termo busca No âmbito da produção literária Fábio Kabral12
descrever as criações artísticas que, por meio da autor de O caçador cibernético da Rua Treze
ficção científica, inventam outros futuros para as afirma:
populações negras. Embora a origem do afrofu-
Resolvi me apropriar do termo. Se será um ter-
turismo se situe no campo da produção literária,
mo datado ou sequestrado eu não sei, mas,
a mencionada entrevista, em que Dery aponta
com ou sem rótulo, sempre seguirei criando
também para a produção literária de escritores
novas histórias. Com ou sem rótulo, nós, ho-
como Samuel R. Delany e Octavia Butler, acabou
mens e mulheres negros, seguiremos pisando
estendendo o movimento também ao campo do
firme no mundo, criando para nós mesmos
cinema, da fotografia e das artes visuais, bem
uma nova história.
como ao campo musical. Os textos “Black to the
future”, de Dery,6 o ensaio “Brothers from another Assim Marcio Black,13 produtor cultural de São
planet”, de John Corbett, e o livro More brilliant
7
Paulo, chega a afirmar que “O afrofuturismo é so-
than the sun, de Kodwo Eshun8 definem os pila- nho, mas também é concretização (...) talvez, no
res musicais do afrofuturismo. Em tempos mais fim das contas, afrofuturismo não seja sobre um
recentes o movimento afrofuturista continua se futuro possível, mas um futuro que já é nosso”.
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‘africanidade’ essencial para “dissolver a África” netário da negritude”, critica a comodificação da
no mundo. Se Mbembe afirma que esse ‘espírito cultura africana remarcando como os que pode-
aberto’ é percebido ainda mais profundamente rão ter benefício dessa venda serão os mesmos
entre “muitos artistas, músicos e compositores, afropolitanos que a promovem. Além disso, de-
escritores, poetas, pintores – trabalhadores do fende que o afropolitanismo não pode ser visto
espírito – que despertam das profundezas da como a única alternativa às narrativas afropessi-
noite pós-colonial”, Selasi os define como “não mistas. Bosch Santana25 denuncia as formas como
cidadãos, mas africanos no mundo”, jovens que, o afropolitanismo se torna um “fenômeno sempre
acompanhando as mudanças econômicas da mais direcionado à produção, concentrado no de-
produção imaterial post fordista e capitalizando sign e potencialmente patrocinado pelo Ociden-
as próprias capacidades relacionais e cognitivas, te”. Wainaina26 afirma que a visão de Selasi é fun-
afirmam que “Diferentemente dos [nossos] pais damentalmente classista. No Aachronym African
que se sentiram seguro em profissões mais tra- Arts Blog, Ogbechi27 questiona o feito de que os
dicionais como médicos, advogados, bancários artistas pertencentes ao circuito afropolitano são
e engenheiros, nós preferimos a sociedade cria- aqueles que trabalham no Ocidente, enquanto os
tiva, entrando em campos como mídia, política, artistas que vivem e trabalham no continente per-
música, design”.20 manecem desconhecidos pela maioria. Bwesigye28
critica a recensão que Habila faz ao romance We
Os depositários desse futuro negro seriam, portan-
need new name, de Bulawayo. O romance, ao li-
to, uma pequena elite composta por trabalhado-
dar com a realidade de pobreza do continente é
res do conhecimento bacana (cool)21 que “têm a
definido como poverty-porn (pornografia pobre)
sorte de ter feito a experiência de vários mundos e
por Habila,29 que não nega a existência de uma
praticamente não cessaram de ir e vir”.22 Estamos
realidade depauperada no continente, mas afirma
longe da realidade da maioria das pessoas negras
que “Nossa literatura deve nos permitir escapar
do mundo, diaspórica ou não. Num mundo como
da realidade de injustiça e sofrimento na África.
o atual, afetado por várias crises de êxodo huma-
Mesmo que uma clara maioria dos habitantes
nitário (no Mar Mediterrâneo, mas também na
da África tenha que lidar diariamente com essa
fronteira dos EUA), o elogio de uma mobilidade
fealdade, eles não devem esperar encontrá-la na
negra destinada a uma pequena elite intelectual e
literatura que leem”.
econômica afropolitana, além de criar uma distor-
ção da realidade, acentua a divisão entre ‘nós e os Tveit30 refere o termo como elitista e ‘guetizante’
outros’ não mais racial e culturalmente, mas tam- (para agregar um grupo pertencente a uma de-
bém – e sempre mais – economicamente definida. terminada elite), correndo o risco de reproduzir
uma narrativa unívoca que continua funcional à
O ensaio de Selasi ressoou tanto, que acabou ge-
estrutura neocolonial de soft power.
rando um ramo de estudos críticos dedicados à
exploração do conceito de “afropolitanismo”. En- O que parece evidente é que a nova imagem mo-
tre as maiores críticas que Eze23 move ao termo derna da África precisa deixar de lado a realida-
afropolitanismo está o feito de ser exclusivista e de da maioria das pessoas que a habitam. Afir-
elitista. Dabiri,24 definindo afropolitanismo como ma Selasi:31 “A imagem que é reproduzida pela
“a mais recente “manifestação do comércio pla- mídia (guerra e fome) não nos representa”. Se é
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The Wall Street Journal, March 2019
gias não ocidentais” acaba aparecendo um pouco ção das realidades contemporâneas do continente
anacrônico em um mundo em que, na mesma Áfri- acaba assim implicitamente engessando a África e
ca, existe um debate sobre processo de construção excluindo-a de uma reflexão contemporânea sobre
da identidade africana não mais definida exclusi- cultura, economia e democracia que a coloque
vamente em oposição (aos europeus), mas numa como sujeito ativo da conversa, interlocutor das
base sempre mais relacional.40 A falta de atualiza- mudanças das sociedades e do tempo.
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Denilson Baniwa, 2019 foto LB
do período colonial. Nesse sentido Fanon clama vista exclusivamente pelo branco, na verdade pa-
pela necessidade de ‘uma luta interna à luta’ que, rece representar sua continuidade. Como Fanon
por meio de um trabalho de contrapoder a partir critica o nacionalismo pós-colonial como uma
de baixo assumido como práxis construtivas. As- 47
“transferência para as mãos de nativos daquelas
sim poderia ser lida a necessidade de uma volta a injustas vantagens que foram herança do período
um significado mais libertador do que é o sentido colonial”, assim podemos ler a utilização de afro-
de decolonizar o pensamento. futurismo como uma forma de empoderamento
seletivo. Não surpreende que o fim do mundo
Nessa luz do movimento afrofuturista, em suas
preocupe mais os brancos do que os índios, que o
apropriações contemporâneas coerentes com o
movimento estudantil sul-africano “Rhodes Must
capitalismo cognitivo em vigor, aparece mais uma
Fall” encontre resistência por representar uma luta
tradução estética do afropolitanismo, um dispo-
interna à luta.
sitivo de luta que, apesar de ser lido por muitos
representantes do movimento negro como uma Da mesma forma que o amanhã é cancelado, um
forma de emancipação de uma história do mundo outro futuro decolonial não será possível sem co-
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world’s brightest. Internet Press Service New Agen- the critic. Cambridge: Harvard University Press, 1983.
cy, 2018.
16 Burocco, L. Polos criativos de colonialidad no
2 África. Uma nova corrida do ouro. Africa – a new sul | Creative hubs of coloniality in the south. Tese
gold rush. The Wall Street Journal, 2011. (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Co-
municação e Cultura, Universidade Federal do Rio de
3 África a mais quente fronteira para investimento.
Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
Africa, the hottest frontier. The Economist, 2013.
17 Selasi, T. ‘Bye-Bye Babar’. The Lip Magazine, 2005.
4 Guerreiro, A. África, a última fronteira do capitalis-
mo – entrevista com Achille Mbembe. Público, Porto, 18 Mbembe, A. Afropolitanism. In: Njami, Simon; Du-
9 dez. 2018. rán, Lucy (eds.). Africa remix: contemporary art of a con-
tinente. Johannesburg: Jacana Media, p. 26-30, 2007.
5 Rhodes deve cair.
19 Apesar de sua beleza, essa imagem parece ali-
6 Dery, M. Black to the future. In: Flame wars: the
mentar uma visão romântica do continente, que não
discourse of cyberculture. Durham, NC: Duke Univer-
dá conta, por exemplo, dos cruéis ataques xenófobos
sity Press, 1994.
que, em 2010, marcaram o cotidiano da África do
7 Corbett, J. Brothers from another planel. In: Exten- Sul e também Johannesburg, a cidade africana que
ded play: sounding off from John Cage to Dr. Funke- segundo Mbembe e Sarah Nuttel, resume a essência
nstein. Durham, NC: Duke University Press, 1994. do afropolitanismo (Mbembe, A. Afropolitanismo.
8 Eshun, K. More brilliant than the sun: adventures Trad. Cleber Daniel Lambert da Silva. Áskesis, v.4, n.2,
in sonic fiction. London: Quartet Books, 1998. jul-dez. 2015: 70).
41 Imani, Nikitah O. The implications of Africa-cen- Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialização
tered conceptions of time and space for quantitati- em Políticas Internacionais e Desenvolvimento pela
ve theorizing: limitations of paradigmatically-bound Universidade de Roma, licenciatura em Direito pela
philosophical meta-assumptions. Black Studies Facul- Universidade Estadual de Milão. Atua no ensino,
ty Publications, 8, 2012: 106. pesquisa e curadoria nas áreas de estudos urbanos e
culturais, dentro de uma abordagem teorico decolonial.
42 Muito bem colocada nesse sentido a declaração
Entre 2012 e 2018 desenvolveu um projeto de pesquisa
da curadora da 10a Bienal de Berlim (2018), Gabi
e pratica artistica nas cidades de Johannesburg, Milano
Ngcobo, na abertura da exposição: “É problemático
e Rio de Janeiro com titulo: A Trilogia da Gentrificação
considerar que os artistas da Bienal são descobertos
[gentrilogy.com]
apenas porque na Europa não são conhecidos. Nós
os conhecemos, eles se conhecem a si próprios e nos
seus países de origem” (Morais, P.F. A Bienal de Ber- ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7767-4941
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