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AFROFUTURISMO E O DEVIR NEGRO DO MUNDO

Laura Burocco

Afrofuturismo afropolitanismo
modernidade colonialidad

O artigo situa algumas reflexões sobre práticas de decolonização do saber no contexto


afro-brasileiro. Alerta sobre um possível esvaziamento de termos e teorias, concentran-
do a atenção no movimento afrofuturista lido em conjunto com o debate sobre o que
define afropolitanismo.

Intro

Os olhos do mundo estão direcionados ao conti- AFROFUTURISM AND THE BECOMING-BLACK OF


nente africano de uma nova forma voraz. Titulam THE WORLD | The article places some reflections
os jornais: Africa’s Economic Growth Prospects on practices of decolonization of knowledge in
the Afro Brazilian context. Alert on a possible
Amongst the World’s Brightest,1 Africa a new emptying of terms and theories, focusing attention
gold rush,2 Africa the “hottest frontier” for in- on the afrofuturist movement in conjunction with
vestments,3 África, a última fronteira do capitalis- the debate on the definition of afropolitanism.
mo, entrevista com Achille Mbembe.4 Ao mesmo | Afrofuturism, Afropolitanism, modernity,
coloniality.
tempo uma onda decolonizadora parece estar se
difundindo nos debates e nas práticas dentro do
mundo acadêmico e de produção de conhecimento. Queremos de(s)colonizar o pensamento, a estética,
os corpos, a língua, os currículos escolares, as referências teóricas, a moda, a comida, a epistemologia.
Mesmo assim, parece que ainda não conseguimos subverter antigas lógicas de poder em nossas tenta-
tivas de práticas de decolonização do conhecimento, ou seja, fracassamos no projeto decolonial como
superação de lógicas coloniais (colonialidad).

Em 2015 o “Rhodes Must Fall”5 começou nas universidades sul-africanas, com uma campanha de estu-
dantes e professores da Universidade de Cape Town – UCT pedindo a remoção do campus universitário
da estátua de Cecil Rhodes (1853-1902), colonialista inglês convencido da superioridade da raça branca
e da missão civilizadora do imperialismo britânico. A campanha alegava que a estátua representaria não
apenas uma celebração da supremacia branca, mas também a permanência de racismo estrutural na

Super Zentai, Bqueer, 2019


Foto: LB

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sociedade sul-africana. Além do simbolismo im- manifestando em diferentes áreas, assumindo a
plícito, os protestos se direcionaram aos altos va- importância da criação de um novo imaginário – e
lores das taxas universitárias; à terceirização e pre- de uma nova estética –, que ofereça à comunida-
carização do trabalho dos funcionários auxiliares; de africana e diaspórica a plena possibilidade de
à sub-representação de estudantes e professores existir para além da ontológica violência branca.
negros; à necessidade de descolonizar os euro-
Coerentemente com o florescimento de interes-
cêntricos currículos escolares e do uso de línguas
se por parte da indústria cultural pelo continente
africanas no ensino universitário. Alguns desses
africano, assistimos no Brasil a uma onda de even-
temas se tornaram comuns no debate sobre des-
tos ‘afrofuturistas’ reservados a um público de ni-
colonização, que está se difundindo também no
cho majoritariamente artístico e acadêmico. “O
Brasil. Entre eles, primariamente a necessidade de
Afrofuturismo é Pop” titula Medium9 e realmente
descolonizar os eurocêntricos currículos escolares
parece ser. Desde 2015, e ainda mais depois do
e, como parte dessa prática, afinar as críticas às re-
filme Panteras Negras, o uso do termo se difunde
lações de poder que regulamentam a produção e
no meio das produções artísticas, artigos de moda
difusão do conhecimento (crítica epistemológica). e costume e numerosos são os eventos que fazem
uso da palavra afrofuturismo no próprio título.10
O afrofuturismo No Brasil o termo assume uma pegada ativista e
Em 1994 Mark Dery cunhou o termo afrofuturis- de resistência – especialmente por pessoas LGBT
mo a partir de uma análise da cena cultural-lite- queer negras – contra uma sociedade excludente,
rária dos Estados Unidos com base em entrevistas racista e violenta, cujo racismo, por longo tempo
que o crítico fez com três artistas e intelectuais disfarçado dentro do imaginário construído por
negros, Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany, Buarque de Holanda11 do ‘homem cordial’ final-
em que se questiona a ausência de autores afro- mente está sendo desmascarado e denunciado.
-americanos na ficção científica. O termo busca No âmbito da produção literária Fábio Kabral12
descrever as criações artísticas que, por meio da autor de O caçador cibernético da Rua Treze
ficção científica, inventam outros futuros para as afirma:
populações negras. Embora a origem do afrofu-
Resolvi me apropriar do termo. Se será um ter-
turismo se situe no campo da produção literária,
mo datado ou sequestrado eu não sei, mas,
a mencionada entrevista, em que Dery aponta
com ou sem rótulo, sempre seguirei criando
também para a produção literária de escritores
novas histórias. Com ou sem rótulo, nós, ho-
como Samuel R. Delany e Octavia Butler, acabou
mens e mulheres negros, seguiremos pisando
estendendo o movimento também ao campo do
firme no mundo, criando para nós mesmos
cinema, da fotografia e das artes visuais, bem
uma nova história.
como ao campo musical. Os textos “Black to the
future”, de Dery,6 o ensaio “Brothers from another Assim Marcio Black,13 produtor cultural de São
planet”, de John Corbett, e o livro More brilliant
7
Paulo, chega a afirmar que “O afrofuturismo é so-
than the sun, de Kodwo Eshun8 definem os pila- nho, mas também é concretização (...) talvez, no
res musicais do afrofuturismo. Em tempos mais fim das contas, afrofuturismo não seja sobre um
recentes o movimento afrofuturista continua se futuro possível, mas um futuro que já é nosso”.

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Diferentemente parece pensar a artista e autora raram a definição do afrofuturismo: pode uma
Jota Mombaça 14
que, ao explorar esse futurismo comunidade cuja história foi deliberadamente
negro afirma o fim do mundo como algo quase apagada imaginar um futuro possível? E qual se-
desejável, ao constatar que lógicas coloniais e re- ria o caráter desse futuro? Resulta interessante, 30
lações de poder permanecem imutáveis no mun- anos depois de sua formulação, tentar responder
do contemporâneo: ao observar os comentários às perguntas relacionando a noção de afrofuturis-
de alguns eventos afrofuturistas encontrados em mo com aquela de afropolitanismo que, segundo
uma pesquisa no Google, algumas narrativas pa- alguns teóricos, definiria uma futura geração de
recem prevalecer: “O Afrofuturismo é uma esté- africanos no mundo.
tica cultural”; “Afrocentrismo e realismo mágico
com cosmologias não ocidentais”; “A reinvenção O debate sobre afropolitanismo
de futuros possíveis a partir de uma ótica cultural
O termo afropolitanismo chamou atenção ao ser
negra, a partir de tecnologias ancestrais”; “práti-
cunhado oficialmente pela escritora ganense ni-
cas culturais que resgatam a tradição ameaçada
geriana Taiye Selasi17 em 2005 para definir a ge-
pela violência colonial”; “recuperar a memória e
ração de migrantes africanos filhos/as de pais que
a história negra e africana e criar cenários futuros
haviam deixado a África nos anos 60-70, “ jovens
de protagonismo”.
que cresceram entre várias metrópoles globais,
Um dos aspectos que mais se destacam da produ- falando vários idiomas, interagindo com africanos
ção afrofuturista é a recuperação de saberes, co- e não”, criando aquela que a autora define como
nhecimentos e referências ancestrais para dialogar “uma identidade entre meio”. Em 2007 Achille
com a realidade presente. Existe, porém, certa fra- Mbembe18 retoma o termo em seu ensaio Afro-
gilidade na realização dessa intenção, que acaba politanismo ao descrever a história do continente
se apresentando mais como um exercício de ima- africano como o resultado do fenômeno da circu-
ginação estética moldado pela indústria cultural lação dos mundos que, segundo o autor, a colo-
global do que por uma retomada ancestral. Falta, nização procura fixar por meio da instituição mo-
a meu ver, uma revisitação brasileira dos conteú- derna ocidental da fronteira. Segundo Mbembe
dos de um movimento que tem origem no con-
É essa maneira de abraçar o estranho, o es-
texto afrodiaspórico norte-americano dos anos
trangeiro e o distante, essa capacidade de re-
90, lacuna talvez causada pela dificuldade lin-
conhecer sua face no rosto do estrangeiro e
guística de acesso a essas produções. Evidencia-se
de valorizar os traços do distante no próximo,
assim como o reforço do discurso decolonial não
de domesticar o in-familiar, de trabalhar com
pode prescindir de um enfrentamento das políti-
aquilo que possui aspecto de ser contrário por
cas de tradução que, além de controlar a oferta de
completo – é precisamente essa sensibilidade
instrumentos de produção de pensamento crítico,
cultural, histórica e estética que o termo afro-
definem, em acordo com interesses econômicos
politanismo indica.19
próprios do capitalismo cognitivo, quais são as
teorias que viajam15 e quem são os encarregados Como Selasi, Mbembe utiliza o termo para des-
de fazê-las viajar, mantendo o controle do projeto crever uma nova forma de ‘modernidade africa-
decolonial. Duas foram as perguntas que inspi-
16 na’ transnacional, que procura abrir mão de uma

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‘africanidade’ essencial para “dissolver a África” netário da negritude”, critica a comodificação da
no mundo. Se Mbembe afirma que esse ‘espírito cultura africana remarcando como os que pode-
aberto’ é percebido ainda mais profundamente rão ter benefício dessa venda serão os mesmos
entre “muitos artistas, músicos e compositores, afropolitanos que a promovem. Além disso, de-
escritores, poetas, pintores – trabalhadores do fende que o afropolitanismo não pode ser visto
espírito – que despertam das profundezas da como a única alternativa às narrativas afropessi-
noite pós-colonial”, Selasi os define como “não mistas. Bosch Santana25 denuncia as formas como
cidadãos, mas africanos no mundo”, jovens que, o afropolitanismo se torna um “fenômeno sempre
acompanhando as mudanças econômicas da mais direcionado à produção, concentrado no de-
produção imaterial post fordista e capitalizando sign e potencialmente patrocinado pelo Ociden-
as próprias capacidades relacionais e cognitivas, te”. Wainaina26 afirma que a visão de Selasi é fun-
afirmam que “Diferentemente dos [nossos] pais damentalmente classista. No Aachronym African
que se sentiram seguro em profissões mais tra- Arts Blog, Ogbechi27 questiona o feito de que os
dicionais como médicos, advogados, bancários artistas pertencentes ao circuito afropolitano são
e engenheiros, nós preferimos a sociedade cria- aqueles que trabalham no Ocidente, enquanto os
tiva, entrando em campos como mídia, política, artistas que vivem e trabalham no continente per-
música, design”.20 manecem desconhecidos pela maioria. Bwesigye28
critica a recensão que Habila faz ao romance We
Os depositários desse futuro negro seriam, portan-
need new name, de Bulawayo. O romance, ao li-
to, uma pequena elite composta por trabalhado-
dar com a realidade de pobreza do continente é
res do conhecimento bacana (cool)21 que “têm a
definido como poverty-porn (pornografia pobre)
sorte de ter feito a experiência de vários mundos e
por Habila,29 que não nega a existência de uma
praticamente não cessaram de ir e vir”.22 Estamos
realidade depauperada no continente, mas afirma
longe da realidade da maioria das pessoas negras
que “Nossa literatura deve nos permitir escapar
do mundo, diaspórica ou não. Num mundo como
da realidade de injustiça e sofrimento na África.
o atual, afetado por várias crises de êxodo huma-
Mesmo que uma clara maioria dos habitantes
nitário (no Mar Mediterrâneo, mas também na
da África tenha que lidar diariamente com essa
fronteira dos EUA), o elogio de uma mobilidade
fealdade, eles não devem esperar encontrá-la na
negra destinada a uma pequena elite intelectual e
literatura que leem”.
econômica afropolitana, além de criar uma distor-
ção da realidade, acentua a divisão entre ‘nós e os Tveit30 refere o termo como elitista e ‘guetizante’
outros’ não mais racial e culturalmente, mas tam- (para agregar um grupo pertencente a uma de-
bém – e sempre mais – economicamente definida. terminada elite), correndo o risco de reproduzir
uma narrativa unívoca que continua funcional à
O ensaio de Selasi ressoou tanto, que acabou ge-
estrutura neocolonial de soft power.
rando um ramo de estudos críticos dedicados à
exploração do conceito de “afropolitanismo”. En- O que parece evidente é que a nova imagem mo-
tre as maiores críticas que Eze23 move ao termo derna da África precisa deixar de lado a realida-
afropolitanismo está o feito de ser exclusivista e de da maioria das pessoas que a habitam. Afir-
elitista. Dabiri,24 definindo afropolitanismo como ma Selasi:31 “A imagem que é reproduzida pela
“a mais recente “manifestação do comércio pla- mídia (guerra e fome) não nos representa”. Se é

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verdade que a história africana precisa de novas ao que lhe permite a reprodução de um estilo
histórias, Ngozi Adichie32 alerta sobre a necessida- de vida ocidental, sem ter que estar fisicamente
de de ter várias histórias a contar, para encontrar no Ocidente. Enquanto exercício de imaginação,
um equilíbrio entre a representação de uma África carregado de simbologias estéticas, feito por não
exclusivamente de sofrimento e miséria própria do brancos cosmopolitas, o futuro negro proposto
Afropessimismo, e aquela contada por ‘the coo- não seria muito diferente “das elites que sofrem
lest- damn-people-on-earth’ (as pessoas mais ba- um caso de amor com a conquista do estilo de
canas do mundo). vida de seus antigos senhores”.37 Ao decidir apro-
priar-se do afrofuturismo como prática decoloni-
Os guardiões do futuro negros seriam pessoas
zadora, parece desejável levantar reflexões críticas
com “identidades entre meio”33 (Selasi, 2005)
sobre questões que parecem vir com seu uso: o
com seu ‘efeito europeu’ e ‘éthos africano’.34
aniquilamento das múltiplas contemporaneidades
Pessoas de pele parda, sem um forte sentimen-
das sociedades africanas; a relação com a ideia
to de ‘negritude’, muitas vezes ridicularizadas
de tempo e múltiplas modernidades; o sentido do
por membros da família africana por ‘agir como
resgate da ancestralidade.
branco’ que “Convivem com um sentimento de
vergonha, ao visitar os países dos pais, que nem O Wall Street Journal em artigo publicado em
sabem dizer se seja motivado por não ter um bom março de 2019, ao comentar um desastre aéreo
conhecimento da cultura originária dos próprios acontecido em Adis Abeba, Etiópia, titula: “Aci-
pais, ou por sentir vergonha daquela cultura estar dente aéreo mata 157 na África”. Esse é apenas
tão atrasada”. 35 um exemplo, ao qual muitos outros poderiam se-
guir. A visão de uma África unida continua se re-
Lembrando a ideia que está na base da definição
fletindo também nas produções ditas decoloniais
da consciência negra (black consciousness) de
e requer urgentemente ser atualizada. O pan-afri-
Steve Biko:36
canismo e o afrocentrismo, dois movimentos que
O fato de sermos todos não brancos não signi- dominaram o discurso africano pós-movimento
fica necessariamente que somos todos negros. independentista (anos ’60 e 70), encontram seu
Os não brancos existem e continuarão a existir poder e sustento em “uma maneira de ver, ser
por um bom tempo. Se a pessoa tem aspira- e pensar o mundo que era exclusivamente ‘afri-
ção branca, mas sua pigmentação faz com cano’ na tentativa de imaginar uma identidade
que esta seja impossível de ser alcançada, essa comum para todas as pessoas de pele escura”38
pessoa é uma não branca. e que se contextualizava naquele específico mo-
mento histórico. O afropolitanismo, ao contrário,
O Futuro negro estaria, portanto, nas mãos de
marca uma virada radical na história do pensa-
pessoas não brancas.
mento emancipatório negro: é o oposto de querer
ser reconhecido pela própria autonomia e unici-
O discurso decolonial na perspectiva afrofu- dade. Nas palavras de Mbembe,39 “Imagina um
turista/afropolitanista futuro em que a diferença é tão supérflua que o
Qual seria o caráter desse afrofuturismo? Seria ‘Outro’, se desfaz inteiramente”. O apelo para um
um progresso africano mensurado em relação “afrocentrismo e realismo mágico com cosmolo-

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The Wall Street Journal, March 2019

gias não ocidentais” acaba aparecendo um pouco ção das realidades contemporâneas do continente
anacrônico em um mundo em que, na mesma Áfri- acaba assim implicitamente engessando a África e
ca, existe um debate sobre processo de construção excluindo-a de uma reflexão contemporânea sobre
da identidade africana não mais definida exclusi- cultura, economia e democracia que a coloque
vamente em oposição (aos europeus), mas numa como sujeito ativo da conversa, interlocutor das
base sempre mais relacional.40 A falta de atualiza- mudanças das sociedades e do tempo.

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Desde os anos dos medos gerados pela corrida moda, a comida, a epistemologia, mas não con-
nuclear durante a Guerra Fria, até as mais recen- seguimos soltar o tempo e com ele os sistemas
tes teorias apocalípticas do antropoceno, neste de produção que regem o mundo, dentro de
começo de século, o alarme sobre o fim do futuro um entendimento cumulativo, produtivista e co-
nos acompanha. Mesmo assim, o futuro, median- lonizado. Assim, o reconhecimento de múltiplas
te seu entendimento meramente eurocêntrico, relações com o tempo, oferece um interessante
continua influenciando nossas produções e tam- apelo a ser explorado no que concerne a mais
bém as ditas decoloniais. O mundo moldado pelo modernidade(s) pré-colonial(is). Ao observar as
Iluminismo impõe uma concepção linear do tem- formas que os eventos afrofuturistas brasileiros
po e tridimensional do espaço. Os povos nativos citados me deparei com um interessante oximoro:
africanos, antes da imposição da narrativa da ci- ‘afrofuturismo é uma ação afirmativa da existên-
ência europeia, não compartilhavam esse mundo cia dos corpos afrocontemporâneos”. Essa ‘afro-
conceitual sobre tempo e espaço e a imposição de contemporaneidade futurista’, ao se apropriar do
uma visão eurocêntrica do tempo acabou “sub- entendimento circular do tempo africano, poderia
vertendo a compreensão das visões de mundo ser – ao meu ver – uma provocação interessante
africanas, bem como as definições africanas alter- de uma prática quilombola44 antropofágica ou –
nativas associadas a essas variáveis”.41 Assim os como melhor diria Edilson Baniwa curador, junto
desdobramentos do originário movimento afrofu- com Pedro Gradella, da exposição ReAntropofagia
turista parecem dar continuidade a teorias euro- – reantropofágica, levando o presente e o futuro
-americanas que tratam a modernidade como se na mesma linha do tempo.
fosse inseparável da ascensão da razão iluminista, Para concluir, apesar de o movimento afrofutu-
reproduzindo uma percepção única da história rismo no Brasil adotar a ancestralidade como a
como linear, progressiva, cumulativa na qual tem nova narrativa sobre a qual basear o futuro negro,
espaço apenas um futuro aonde desenvolvimento, seus adeptos poderiam ficar decepcionados ao
leia-se riqueza e ascensão econômica, se tornam ler Mbembe,45 um dos poucos autores africanos
dois lados da mesma modernidade ocidental. contemporâneos amplamente traduzido no Bra-
sil, afirmar que “aquilo que designamos como ‘a
O ‘futuro afrofuturista’, longe de ser um futuro
tradição’ não existe na África, porque nada disso
livre dos moldes da civilização (ou barbárie ao re-
sobreviveu ao rolo compressor da mestiçagem e
vés) ocidental, continua acelerado e produtivista,
da vernacularização. Já era esse o caso muito an-
e não deixa espaço para uma modernidade rizo-
tes da colonização”.
mática, diferente da absolutista euro-americana.
Estamos longe da proposta de uma modernidade
Um outro futuro decolonizado é possível?
múltipla, que se origina do reconhecimento da
singularidade da história e da Outra individuali- No livro Os condenados da Terra (1963) Fanon46
dade, que exige ser apreendida pelos ‘outros ou- critica o colonialismo “e a degeneração do que
tros’ – afinal quem é outro?42 – e dirigida por si viria a ser chamado de pós-colonialismo” como
mesma.43 Pretendemos, reiteramos, decolonizar período pós-independência por simplesmente se
o pensamento, a estética, os corpos, a língua, reduzir a uma transferência nas mãos de nativos
os currículos escolares, as referências teóricas, a daquelas injustas vantagens que foram herança

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Denilson Baniwa, 2019 foto LB

do período colonial. Nesse sentido Fanon clama vista exclusivamente pelo branco, na verdade pa-
pela necessidade de ‘uma luta interna à luta’ que, rece representar sua continuidade. Como Fanon
por meio de um trabalho de contrapoder a partir critica o nacionalismo pós-colonial como uma
de baixo assumido como práxis construtivas. As- 47
“transferência para as mãos de nativos daquelas
sim poderia ser lida a necessidade de uma volta a injustas vantagens que foram herança do período
um significado mais libertador do que é o sentido colonial”, assim podemos ler a utilização de afro-
de decolonizar o pensamento. futurismo como uma forma de empoderamento
seletivo. Não surpreende que o fim do mundo
Nessa luz do movimento afrofuturista, em suas
preocupe mais os brancos do que os índios, que o
apropriações contemporâneas coerentes com o
movimento estudantil sul-africano “Rhodes Must
capitalismo cognitivo em vigor, aparece mais uma
Fall” encontre resistência por representar uma luta
tradução estética do afropolitanismo, um dispo-
interna à luta.
sitivo de luta que, apesar de ser lido por muitos
representantes do movimento negro como uma Da mesma forma que o amanhã é cancelado, um
forma de emancipação de uma história do mundo outro futuro decolonial não será possível sem co-

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locar em xeque a lógica extrativista de recursos mais entendidas como reapropriaçoes, mas como
subjetivos reproduzida pelo capitalismo cogniti- criações próprias, originárias e únicas, represen-
vo, seja no norte ou no sul, seja entre brancos taria um impasse na reprodução dessas relações,
ou entre não brancos. As razões que levam mui- subvertendo a ordem do discurso em que elas se
tos artistas negros a se rotular espontaneamente baseiam. Trata-se, portanto, de, como diz Jota
dentro da definição afrofuturista nos impõe um Mombaça, ‘praticar uma lógica de vómito’48 ou,
questionamento sobre os poderes que agem na nas palavras de Denilson Banilwa: “o devorar de
produção cultural e que – dentro do mercado da tudo que existe sem usar talheres franceses”.49
indústria cultural da qual a arte faz parte – pa-
recem reproduzir antigas dominações coloniais.
NOTAS
Me parece que uma virada índia quilombola no
Brasil, capaz de colocar as produções indígenas 1 As perspectivas de crescimento econômico da Áfri-
(entendidas como afro-brasileiras e ameríndias) ca entre as mais brilhantes do mundo. Odusola, A.
por si próprias num lugar de prevalência, não Africa’s economic growth prospects amongst the

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world’s brightest. Internet Press Service New Agen- the critic. Cambridge: Harvard University Press, 1983.
cy, 2018.
16 Burocco, L. Polos criativos de colonialidad no
2 África. Uma nova corrida do ouro. Africa – a new sul | Creative hubs of coloniality in the south. Tese
gold rush. The Wall Street Journal, 2011. (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Co-
municação e Cultura, Universidade Federal do Rio de
3 África a mais quente fronteira para investimento.
Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
Africa, the hottest frontier. The Economist, 2013.
17 Selasi, T. ‘Bye-Bye Babar’. The Lip Magazine, 2005.
4 Guerreiro, A. África, a última fronteira do capitalis-
mo – entrevista com Achille Mbembe. Público, Porto, 18 Mbembe, A. Afropolitanism. In: Njami, Simon; Du-
9 dez. 2018. rán, Lucy (eds.). Africa remix: contemporary art of a con-
tinente. Johannesburg: Jacana Media, p. 26-30, 2007.
5 Rhodes deve cair.
19 Apesar de sua beleza, essa imagem parece ali-
6 Dery, M. Black to the future. In: Flame wars: the
mentar uma visão romântica do continente, que não
discourse of cyberculture. Durham, NC: Duke Univer-
dá conta, por exemplo, dos cruéis ataques xenófobos
sity Press, 1994.
que, em 2010, marcaram o cotidiano da África do
7 Corbett, J. Brothers from another planel. In: Exten- Sul e também Johannesburg, a cidade africana que
ded play: sounding off from John Cage to Dr. Funke- segundo Mbembe e Sarah Nuttel, resume a essência
nstein. Durham, NC: Duke University Press, 1994. do afropolitanismo (Mbembe, A. Afropolitanismo.
8 Eshun, K. More brilliant than the sun: adventures Trad. Cleber Daniel Lambert da Silva. Áskesis, v.4, n.2,
in sonic fiction. London: Quartet Books, 1998. jul-dez. 2015: 70).

9 Carli de Moraes, E. O AFROFUTURISMO É POP  –  Os 20 Selasi, op. cit.


filmes “Pantera Negra” e o álbum-visual “Dirty Com- 21 Os afropolitanos são apresentados como uma
puter” de Janelle Monáe agem como um terremoto grotesca versão contemporânea do “Black is beauti-
cultural que afrofuturiza os rumos da Cultura Pop. ful”. A autora chega a se perguntar (e se responder):
Medium, 2018. “Aren’t-we-the-coolest-damn-people-on earth?’ I
10 Burocco, L. Do not make Africa an object of ex- say: yes it is” (Não somos as pessoas mais bacanas
ploitation again. Image & Text, Black Panther and da terra? Respondo: Sim, somos!) (Selasi, op. cit.).
Afrofuturism themed edition, 2019. 22 Mbembe, 2015, op. cit.: 71.
11 Buarque de Holanda, S. Raizes do Brasil. São Pau- 23 Eze, C. Rethinking African culture and identity:
lo: Companhia das Letras, 1995: 139. the Afropolitan model. Journal of African Cultural
12 Apud Porcidonio, G. A força está com os afrofu- Studies, v. 26, n. 2, p. 234-247, 2014.
turistas. Projeto Colabora, 2017. 24 Dabiri, E. Why I am not Afropolitan. Africa is a
13 Apud Gnipper, P. Conheça o afrofuturismo, gê- Country, 2014.
nero artístico que mescla cultura africana com sci-fi. 25 Bosch Santana, S. Exorcizing Afropolitanism. Afri-
canaltech, 2018. cainwords blog, 2013.
14 Mombaça, J. Descolonización como apocalipses.
26 Wainaina, B. I am a Pan-Africanist, not an Afro-
Terremoto, 2019.
politan. Paper apresentado na African Studies Asso-
15 Said, E. Traveling Theory. In: The World, the text, and ciation, UK, 2012.

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27 Ogbechi, O. Afropolitanism – Africa without Afri- lim declarou guerra. Público, Porto, 15 jul. 2018).
cans. Aachronym Global African Arts with a focus
43 Comaroff, J.; Comaroff, J.L. Theory from the sou-
on art-equity and cultural patrimony. Disponível em:
th: or, how Euro-America is evolving toward Africa.
http://aachronym.blogspot.com. 2008.
Reutledge Ed.; 2012.
28 Bwesigye, B. Is Afropolitanism Africa’s New Single
44 Matos Gondim, D. Manifesto quilombola. Ar-
Story. Aster(ix) Journal, 2013.
te&Ensaios, n. 37, 2019.
29 Habila, H. We need new names by NoViolet Bu-
45 Mbembe, 2015, op. cit.: 69.
lawayo – review. The Guardian, 2013.
46 Fanon, F. The wretched of the Earth. New York:
30 Tveit M. The Afropolitan must go. Africa is a Cou-
Penguin Books, 1963.
ntry, 2013.
47 Pithouse, R. Manichean Delirium (In the time of
31 Selasi, op. cit.
Jacob Zuma). The Com, 2017.
32 Ngozi Adichie, C. The danger of a single story.
48 Apud Morais, op. cit.
TEDGlobal, 2009.
49 Nota do texto que abre a exposição ReAntropofa-
33 Selasi, op. cit.
gia no Centro de Artes da Universidade Federal Flu-
34 Mbembe, 2015, op. cit. minense – UFF, Niterói. Disponível em: http://www.
centrodeartes.uff.br/eventos/reantropofagia/. Aces-
35 Selasi, op. cit.
sado em maio.
36 Biko, S. I write what I like. Johannesburg: Eine-
mann Educational Publisher, 1978: 48.
Laura Burocco Pós-doutoranda em Linguagens
37 Dabiri, op. cit.
Visuais no PPGAV-UFRJ, é doutora em Comunicação e
38 Eze, op. cit.: 252. Cultura pelo PPGECO/UFRJ, com estágio doutoral no
WITS City Institute, WITS University de Johannesburg.
39 Notas de uma conferência no Wiser, Johannes-
Tem um Master in Built Environment, MBE Housing pela
burg, maio 2016.
University of Witwatersrand WITS de Johannesburg,
40 Eze, op. cit. pós-graduação em Sociologia Urbana pela UERJ,

41 Imani, Nikitah O. The implications of Africa-cen- Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especialização

tered conceptions of time and space for quantitati- em Políticas Internacionais e Desenvolvimento pela
ve theorizing: limitations of paradigmatically-bound Universidade de Roma, licenciatura em Direito pela
philosophical meta-assumptions. Black Studies Facul- Universidade Estadual de Milão. Atua no ensino,
ty Publications, 8, 2012: 106. pesquisa e curadoria nas áreas de estudos urbanos e
culturais, dentro de uma abordagem teorico decolonial.
42 Muito bem colocada nesse sentido a declaração
Entre 2012 e 2018 desenvolveu um projeto de pesquisa
da curadora da 10a Bienal de Berlim (2018), Gabi
e pratica artistica nas cidades de Johannesburg, Milano
Ngcobo, na abertura da exposição: “É problemático
e Rio de Janeiro com titulo: A Trilogia da Gentrificação
considerar que os artistas da Bienal são descobertos
[gentrilogy.com]
apenas porque na Europa não são conhecidos. Nós
os conhecemos, eles se conhecem a si próprios e nos
seus países de origem” (Morais, P.F. A Bienal de Ber- ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7767-4941

A R T I G O S | L AU R A B U R O C C O 59

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