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da nação no Brasil é a narrativa do “settler." De sua fortificação. A guerra contra os
índios. O massacre dos quilombos. Mas a nação, essa colônia, está “surrounded
” por mil quilombos. Harney & Moten interpelam a imagística colonial no
cinema em “Undercommons: Fugitive Planning & Black Study." Em “Shaka Zulu” (1987), o
colono é cercado pelos nativos. O estereótipo é ultrajante. Mas o cerco é a nossa estratégia.
“A nossa tarefa é a autodefesa do cerco, face às repetidas e direcionadas desapropriações
pelas incursões armadas dos colonizadores” No Brasil do século XXI, no centenário de Abdias,
as incursões armadas dos colonizadores estão longe de ser mera metáfora. Nossa
“morte-em-vida” é condição de possibilidade para a branquidade na nação “mestiça."
Converso por e-mail com um aluno na Bahia. “Stefano Harney e Fred Moten. Eles falam em
‘study’ e ‘fugitive planning’. Em trabalhar junto, ‘com e para’ os subcomuns, que
constroem; rupturas e planos de fuga; vivendo agora, aqui, a possibilidade de algo que está
além e que não admite compromissos. A negritude, como essa recusa radical ao ‘mundo’ e
à sua incompatibilidade com a branquidade. E dizem ainda que não faz sentido falar-se em
reparações, porque o dano é irreparável. É preciso cancelar o débito e o sistema de crédito. E
é preciso amor. Contra a ‘logisticality’ que gerencia as subjetividades e o conhecimento,
tramamos nossas pequenas e dispersivas revoluções cotidianas. Nós, os “embarcados."
Alienados ao nascer, estamos aqui e mais além, em nenhum outro lugar. Quilombo. Ori.
Fora do espaço da História. “Terror and enjoyment," diria Saidiya Hartman. Em meio ao calor
dos nossos corpos.
Na entrevista concedida a Stevphen Shukaitis, Stefano nos explica melhor: Todo mundo tinha o
seu balcão e, no correio da região sul da cidade de Nova Iorque, por trás de quase todos os
balcões estava uma mulher negra ou latina, que tinha decorado o seu balcão completamente
para si mesma. E era cheio de coisas como pôsteres de Mumia, fotografias de crianças,
fotografias de Michael Jackson, fotografias de coisas do sindicato, tudo."
Para Carolina Maria de Jesus, escrever, em frente ao seu barraco na favela do Canindé na
manhã de 1955, era uma rota de fuga. Uma mulher negra, uma profetisa. Em meio à fome.
Ao desejo. À degradação que o autodesprezo impunha aos moradores. Sempre o fato da
negritude. ..". Sentei-me ao sol para escrever. A filha da Silva, uma menina de seis anos,
passava e dizia: - está escrevendo, negra fedida!." O “general antagonism” e a centralidade
ontológica da raça. Como em Marcus Garvey, profeta: “I see before me a new world of black
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men." E a instância profética dos “undercommons," que é parte da sua aventura imaginada
no cotidiano, de encontrar um lugar, no coração do radicalismo político negro, como fez
Garvey. Porque o profeta está na posição de ver duplamente. A brutalidade presente nas
coisas como elas são, “out of joint," e dizer essas verdades brutais. Mas também de ver “the
other way," o que poderia ser, o que estamos podendo ser. O antagonismo
geral dos “undercommons," como em Carolina e em sua negritude. O lugar de
uma absoluta “nothingness," de uma vertigem onde o mundo das coisas converge,
ou desaba, na escuridão. “Blackness is fantasy in the hold."
Madame Satã, antes de tornar-se personagem do novo cinema brasileiro, foi uma figura
real na Lapa, centro boêmio da prostituição e do samba, no Rio de Janeiro dos anos 20 e
30. Satã cumpriu 27 anos de prisão por matar um policial em 1928. Homossexual, era
negro e analfabeto. Em 1971, deu uma entrevista a jornalistas do “Pasquim," jornal
“marginal” da oposição de classe média à ditadura militar. Madame Satã conhece o
“porão” melhor do que ninguém, é a rainha dos “embarcados." Estava à vontade no
prostíbulo, nos bares, na favela. Não tinha medo de ninguém e tinha fama de valentão. Os
jornalistas lhe perguntam: “Você tem consciência que é uma figura mitológica no Rio de
Janeiro? – É o que diz a sociedade, não é? Só que eu sou antissocial." Na Lapa e na
cadeia, conheceu políticos, artistas, bandidos famosos. O jovem amigo do chefe da
guarda do Presidente Getúlio Vargas, preso sob acusação de assassinato no Presídio da
Ilha Grande, clama por socorro. “Então o rapazinho escreveu para o Gregório, pedindo que
mandassem buscá-lo, porque estava sendo martirizado, porque o Feliciano vendia o garoto
uma noite para um, outra noite para outro." Satã conheceu o “porão” como ninguém.
A modernidade da experiência da negritude no Brasil, no centro urbano e na cadeia.
Um movimento logístico, que encontra resistência, ruptura entre os “shipped." A
negritude como um “instrument in the making." E a “logisticality” que não encontra
coerência, que é dilacerante como a desorientação queer, como a capoeira. Harney & Moten
citam Wilderson, III para lembrar como é estar no porão e fantasiar o voo alto. Como a “Dama
de Vermelho," que Satã encarnou em seu último carnaval, em 1941.
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Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
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Eu sou professor em uma universidade pública, localizada em uma cidade periférica e
majoritariamente negra, de uma região periférica e majoritariamente negra: o Nordeste do
Brasil. A região e a cidade foram o palco originário do estabelecimento colonial na Amerika
portuguesa. Minha universidade adota políticas afirmativas raciais para o ingresso de
estudantes desde a sua fundação, há sete anos atrás. Não vejo nisso reparação. O projeto do
radicalismo negro não tem nada a ver com reparação, mas “is about a complete overturning
." A superação radical de que falam os autores e a transcendência de todo o sistema
de débito e crédito, “abolition of accounting." Porque como poderia ser pago por tudo o que foi
roubado e como poderíamos pagar, apagar em nós mesmos, o débito?
Como diz um grafite, misteriosamente surgido nos muros da universidade onde trabalho:
“Vocês nos devem até a alma."
Número um, eu sou um homem negro, porque sou contra o que eles fizeram e ainda estão
fazendo conosco; e número dois, eu tenho algo a dizer sobre a nova sociedade a ser
construída, porque eu sou parte importante daquilo que eles têm buscado desacreditar.
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Abusar da sua hospitalidade, maldizer sua missão, juntar-se às suas colônias de refugiados, ao
seu acampamento cigano, estar dentro, mas não ser dela – este é o caminho do intelectual
subversivo na universidade moderna.
Preocupe-se com a universidade. Este é o comando hoje nos Estados Unidos, que
tem uma longa história. Clame pela sua restauração, como Harold Bloom, ou
Stanley Fish, ou Gerald Graff. Clame pela sua reforma, como Derek Bok, ou Bill
Readings, ou Cary Nelson. Chame por ela como ela chama por você. Mas, para o
intelectual subversivo, tudo isso ocorre no andar de cima, com companhias
educadas, entre os homens racionais. Afinal de contas, o intelectual subversivo
veio sob falsos pretextos, com documentos ruins, por amor. O seu trabalho é tão
necessário quanto é mal recebido. A universidade precisa do que sustenta, mas
não pode sustentar o que ela traz. E, acima de tudo isso, ela desaparece.
Desaparece na clandestinidade, na comunidade underground de fugitivos da
universidade, até chegar aos undercommons of enlightenment, onde o trabalho é subvertido,
onde a revolução ainda é negra, ainda é forte.
Qual é esse trabalho e qual é a sua capacidade social, tanto para reproduzir a
universidade como para produzir a fuga? Se alguém dissesse lecionar, estaria
desenvolvendo o trabalho da universidade. Lecionar é meramente uma profissão e
uma operação daquele círculo onto/auto-enciclopédico do estado que Jacques
Derrida chama de Universitas. Mas vale à pena evocar esta operação, para espiar pelo buraco
na cerca onde o trabalho entra, para espiar a sua sala de contratações, os seus alojamentos
noturnos. A universidade precisa de força de trabalho de ensino, apesar de si mesma, ou como
ela mesma, auto-idêntica com e, portanto, apagado por ela. Não é lecionar que mantém essa
capacidade social, mas algo que produz outro lado não visível do lecionar, um pensamento que
passa pelo cerne do ensino, rumo a uma orientação coletiva para o objeto do conhecimento
como um projeto futuro e um compromisso com o que nós queremos chamar de organização
profética. Mas é o lecionar que nos conduz a isso. Antes de existirem os financiamentos, a
pesquisa, as conferências, os livros e periódicos, havia a experiência de ser ensinado e de
ensinar. Antes do posto de pesquisa sem a docência, antes dos alunos de pós-graduação para
corrigir os exames, antes da série de sabáticos, antes da redução permanente da carga de
ensino, a indicação para coordenar um centro, a transferência da pedagogia para uma
disciplina chamada educação, antes do curso concebido para ser um novo livro, o lecionar
acontecia.
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com ter “a determinação e a coragem de usar sua inteligência sem ser guiado por outra
pessoa." “Ter a coragem de usar sua própria inteligência." Mas o que significaria se lecionar,
ou melhor, aquilo que poderíamos chamar de “ir além de lecionar” fosse precisamente aquilo
que se pede que alguém vá além, que deixe de ser um sustento? E o que seria daquelas
minorias que se recusam, a tribo dos infiltrados que se negam a voltar do além (aquele que
está além do “além de lecionar”), como se eles não fossem sujeitos, como se eles quisessem
pensar como objetos, como minoria? Certamente, os sujeitos perfeitos da comunicação,
aqueles bem sucedidos no além de lecionar, os considerarão um desperdício. Mas o trabalho
coletivo deles vai sempre gerar o questionamento sobre quem está verdadeiramente seguindo
as ordens do esclarecimento. As vidas desperdiçadas por aqueles momentos que vão além de
lecionar, quando você fala a frase inesperada e linda – inesperada, ninguém perguntou; linda,
nunca mais vai voltar. Será que ser o biopoder do esclarecimento é verdadeiramente melhor
que isso?
Nos undercommons da universidade, pode-se ver que não é uma questão de lecionar
versus pesquisar, ou mesmo ir além de lecionar versus a individualização da pesquisa.
Entrar nesse espaço é habitar a revelação rompida e arrebatada dos comuns que o
esclarecimento fugidio encena, criminosa, matricida, queer, na cisterna, na
crista da vida roubada, a vida roubada pelo esclarecimento e depois roubada de
volta, onde os comuns oferecem refúgio, onde o refúgio alcança os comuns. O
ir além de lecionar trata-se, na verdade, de não se autoterminar, não passar,
não completar; de permitir que a subjetividade seja ilegalmente dominada por
outros, uma paixão radical e uma passividade tal que faz com que a pessoa
torne-se imprópria para a subjugação, porque não possui o tipo de apoio que
possa manter as forças regulamentares da subjetividade, e não se pode iniciar
o torque autointerpelativo que a subjugação ao biopoder requer e premia. Não é
tanto o lecionar quanto o ato de profetizar na organização sobre o ato de
lecionar. A profecia que prediz a sua própria organização e que por isso
passou, como os comuns, e a profecia que excede a sua própria organização e
que, portanto, até o momento só pode ser organizada. Contra a organização
profética dos undercommons está empenhado o seu próprio trabalho sufocante
para a universidade e, além disso, a negligência da profissionalização e a
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profissionalização do acadêmico crítico. Os undercommons formam, portanto, uma vizinhança
sempre insegura.
Como nos lembra Fredric Jameson, a universidade depende da “crítica do tipo esclarecedor e
das desmistificações das crenças e das ideologias comprometidas, a fim de limpar o terreno
para um planejamento desobstruído e para o ‘desenvolvimento’." Essa é a fraqueza da
universidade, o lapso na sua segurança interna. Ela precisa do poder do trabalho para alcançar
essa “crítica do tipo esclarecedor," mas de alguma forma o trabalho sempre escapa.
Os sujeitos prematuros dos undercommons levaram o chamado a sério, ou tiveram que ser
sérios em relação ao chamado. Eles não eram claros quanto ao planejamento, muito místicos,
muito cheios de crenças. E mesmo assim essa força de trabalho não pode se reproduzir a si
mesma, ela precisa ser reproduzida. A universidade trabalha para chegar ao dia em que ela vai
poder livrar-se, como o capital em geral, do problema do trabalho. Ela então será capaz de
reproduzir a força de trabalho que se entende não só como desnecessária, mas perigosa ao
desenvolvimento do capitalismo. Muita pedagogia e estudos já são voltados para essa direção.
Os estudantes devem chegar a ver a si próprios como o problema – o que, ao contrário das
reclamações das críticas restauracionistas da universidade, é precisamente o que significa ser
um cliente, assumir o ônus da realização e, necessariamente, ser sempre inadequado a ela.
Mais tarde, esses estudantes poderão ver a si mesmos adequadamente como obstáculos para
a sociedade ou, talvez, com o aprendizado de uma vida, os estudantes já tenham obtido
sucesso em autodiagnosticar-se como sendo o problema.
Ainda assim, o sonho de um trabalho não diferenciado que se sabe supérfluo é interrompido
precisamente pelo trabalho de remover as barreiras abrasadoras da ideologia. Apesar de ser
melhor que essa função policiadora esteja nas mãos de poucos, ela ainda trata o trabalho
como diferença, trabalho como o desenvolvimento de outro trabalho e, portanto, trabalho como
uma fonte de riqueza. Apesar de a crítica do tipo esclarecedor, como sugerimos abaixo,
informar, bajular, dar beijinhos em qualquer desenvolvimento autônomo como resultado dessa
diferença de trabalho, há um buraco na parede aqui, um lugar raso no rio ali, um lugar para
pousar sob as pedras acolá. A universidade ainda precisa desse trabalho clandestino para
preparar essa força não diferenciada de trabalho, cuja especialização crescente e tendências
administrativas, mais uma vez contra os restauracionistas, representam precisamente a
integração bem-sucedida da divisão do trabalho com o universo de troca que comanda a
lealdade restauracionista.
Introduzir esse trabalho sobre o trabalho, e prover o espaço para o seu desenvolvimento,
gera riscos. Como a força policial colonial involuntariamente recrutada das vizinhanças
guerrilheiras, o trabalho universitário pode abrigar refugiados, fugitivos, renegados e
náufragos. Mas há boas razões para a universidade estar confiante de que tais
elementos serão expostos ou forçados à clandestinidade. Precauções foram tomadas,
listas de livros foram elaboradas, observações pedagógicas foram conduzidas, convites
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para contribuições foram feitos. No entanto, contra essas precauções ergue-se a
imanência de transcendência, o desregramento necessário e as possibilidades de
criminalidade e de fuga que o trabalho sobre o trabalho requer. Comunidades de
fugitivos, de professores de composição, estudantes de pós-graduação sem mentores,
historiadores marxistas adjuntos, professores de administração saídos do armário ou queer
, departamentos de estudos étnicos nas faculdades estaduais, programas de
cinema encerrados, estudantes do Iêmen, com vistos vencidos, atuando como
editores de jornal, sociólogos de faculdades e engenheiros feministas
historicamente negros. E o que dirá a universidade deles? Dirá que eles não
são profissionais. Isso não é um ataque arbitrário. É um ataque contra os mais
que profissionais. Como é que aqueles que excedem a profissão, que excedem
e que por excederem escapam, como esses fugitivos se problematizam,
problematizam a universidade, forçam a universidade a considerá-los um
problema, um perigo? Os undercommons não são, em resumo, o tipo de
comunidade extravagante e fantasiosa invocada por Bill Readings ao final do
seu livro. Os undercommons, seus fugitivos, estão sempre em guerra, sempre escondidos.
Os fugitivos sabem alguma coisa sobre possibilidades. Eles são a condição de possibilidade da
produção de conhecimento na universidade – as singularidades contra os escritores de
singularidades, os escritores que escrevem, publicam, viajam e falam. Não é apenas uma
questão do trabalho secreto sobre o qual esse espaço surge, apesar de que, logicamente, esse
espaço surge e é sustentado a partir do e pelo trabalho coletivo. Ou melhor, ser um acadêmico
crítico na universidade é estar contra a universidade; e estar contra a universidade sempre é
reconhecê-la e ser reconhecido por ela, e institucionalizar a negligência daquele exterior
internalizado, daquela clandestinidade não assimilada, e instituir uma negligência disto que é
precisamente, temos que insistir, a base das profissões. E este ato de estar sempre contra já
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exclui os modos não reconhecidos de política, o além da política já em andamento, a
para-organização criminal desacreditada, a que Robin Kelley poderia referir-se como campo
infrapolítico (e sua música). Não é só o trabalho dos fugitivos, mas a sua organização profética
que é negada pela ideia do espaço intelectualizado em uma organização chamada
universidade. É por isso que a negligência do acadêmico crítico é sempre, ao mesmo tempo,
uma afirmação do individualismo burguês.
Uma educação profissional tornou-se uma educação crítica. Mas não se deveria
aplaudir este fato. Deveria ser aceito pelo que é, não progredir nas escolas
profissionais, não coabitar com a Universitas, mas ser contra-insurgente,
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refundar o terrorismo da lei, acolhendo os que estão desacreditados,
acolhendo aqueles que se recusam a descartar ou a levar em conta os undercommons.
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responsabilidade e a ciência, e diversas outras escolhas, todas construídas
sobre o roubo, a conquista, a negligência da intelectualidade de massa
marginal dos undercommons.
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departamentos declaradamente neoclássicos de economia ou de ciências políticas da nova
direita da mesma universidade. Não seria muito diferente na Syracuse University ou em uma
dúzia de outras escolas de administração pública proeminentes. Pode-se dizer que o ceticismo
é uma parte importante do ensino superior, mas este ceticismo em particular não está baseado
em estudos aprofundados do objeto em questão. Na verdade, não há qualquer teoria estatal
nos programas de administração pública nos Estados Unidos. Ao invés disso, o estado é
considerado como o proverbial diabo que conhecemos. E se ele é compreendido na
administração pública como um mal necessário, ou como um bem que tem utilidade e
disponibilidade limitadas, é sempre completamente reconhecível como um objeto. Então não é
tanto que esses programas sejam posicionados contra eles mesmos. Na realidade, eles se
posicionam contra alguns alunos, e particularmente contra aqueles que vêm para a
administração pública com um sentimento que Derrida chama de dever além do dever, ou uma
paixão.
Ser cético sobre o que alguém já sabe é claramente uma posição absurda. Se a pessoa é
cética em relação a um objeto, então ela já está em posição de não conhecer aquele objeto; e
se a pessoa alega conhecer o objeto, ela não pode também alegar ser cética em relação
àquele objeto, o que equivaleria a ser cética em relação à própria alegação da pessoa. Mas
esta é a posição da profissionalização, e é esta a posição que confronta aquele estudante,
ainda que raro, que vem para a administração pública com uma paixão. Qualquer tentativa
passional, de pisar fora desse ceticismo do conhecido rumo a um confronto inadequado com o
que excede o ceticismo e consigo mesmo, deve ser suprimido por essa profissionalização. Não
é somente uma questão de administrar o mundo, mas de administrar o mundo para fora (e,
com isso, as profecias). Qualquer outra disposição é não apenas não profissional, mas
incompetente, antiética e irresponsável, beirando a criminalidade. Novamente, a disciplina da
administração pública é particularmente, apesar de não unicamente, instrutiva, tanto na sua
pedagogia quanto no seu academicismo, e oferece a chance de ser desleal, de esmagar e
agarrar o que nela se encerra.
A administração pública prende-se à ideia, tanto nas salas de conferências como nos
periódicos profissionais, de que suas categorias são reconhecíveis. O estado, a economia e a
sociedade civil podem mudar de tamanho ou formato, o trabalho pode entrar ou sair e a
consideração ética pode variar, mas esses objetos são tanto positivistas quanto normativos,
permanecendo em arranjo discreto e espacial um para com o outro. A profissionalização
começa por aceitar essas categorias, precisamente para que a competência possa ser
invocada, uma competência que, ao mesmo tempo, vigia a sua própria fundação (como
Michael Dukakis dando voltas em um tanque, fantasmagoricamente patrulhando o seu bairro
vazio). Essa responsabilidade pela preservação de objetos torna-se precisamente aquela ética
de locais específicos proposta por Weber, que tem o efeito, como reconheceu Theodor Adorno,
de naturalizar a produção de locais capitalistas. Questioná-los torna-se então não somente
uma atitude incompetente e antiética, mas constitui uma falha de segurança.
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Por exemplo, se alguém quisesse explorar a possibilidade de que a administração pública
poderia ser mais bem definida como o trabalho da privatização inexorável da sociedade
capitalista, essa pessoa poderia receber vários pontos de vista não profissionais. Isso
ajudaria a explicar a inadequação das três principais estirpes nos estudos de
administração pública nos Estados Unidos. A estirpe da ethos pública,
representada por projetos como a reformulação da administração pública e o
periódico Administration and Society; a estirpe da competência pública,
representada no debate entre a administração pública e a nova administração
pública e pelo periódico Public Administration Review; e a estirpe crítica,
representada pela PAT-Net, pela Public Administration Theory Network e por
seu periódico Administrative Theory & Praxis. Se a administração pública é a
competência para confrontar a socialização continuamente criada pelo
capitalismo e pegar o máximo possível dessa socialização e reduzí-la a algo
chamado de público ou a algo chamado de privado, então imediatamente todas
as três posições tornam-se inválidas. Não é possível falar-se em um trabalho
que é dedicado à reprodução da desapropriação social como tendo uma
dimensão ética. Não é possível determinar a eficiência ou extensão de tal
trabalho após o seu desgaste nessa operação, olhando-se para ele depois que
ele reproduziu algo chamado de público ou algo chamado de privado. E não é
possível ser crítico e ao mesmo tempo aceitar sem críticas a fundação do
pensamento da administração pública nessas esferas do público e do privado,
e negar o trabalho que está por trás dessas categorias, nos undercommons, por exemplo, da
república de mulheres que administra o Brooklyn.
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pessoais, tornar-se profissional para pagar a universidade. É nesse momento de revolta que a
profissionalização mostra o seu negócio desesperado, nada menos do que converter o
indivíduo social. Com exceção, talvez, de uma coisa mais, o objetivo final de uma
contra-rebelião em todas as partes: transformar os insurgentes em agentes estatais.
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universidade. Mas não é ele o profissional mais bem-sucedido na sua
negligência estudada? Se o trabalho sobre o trabalho, o trabalho entre o
trabalho dos não profissionais na universidade causa revolta, retração,
liberação, o trabalho do acadêmico crítico não envolve um escárnio desse
primeiro trabalho, um desempenho que está finalmente na sua falta de
preocupação pelo que parodia, negligente? O questionamento do acadêmico
crítico não se torna uma pacificação? Ou, para expor claramente, o acadêmico
crítico não ensina como negar precisamente o que uma pessoa produz com
outros, e esta não é a lição que as profissões retornam para a universidade
para aprender mais e mais uma vez? Então o acadêmico crítico não se dedica
ao que Michael E. Brown classificou como empobrecimento, miserabilidade dos
prospectos cooperativos da sociedade? Este é o plano de ação profissional.
Esta charada do tipo esclaredor é totalmente negligente em sua crítica, uma
negligência que nega a possibilidade de um pensamento sobre um exterior, um
não-lugar chamado de undercommons – o não-lugar que deve ser pensado fora para ser
sentido dentro, do qual a charada do tipo escarecedor roubou tudo para usar em seu jogo.
Mas se o acadêmico crítico é apenas um profissional, por que gastar tanto tempo com ele? Por
que não simplesmente roubar seus livros uma certa manhã e doá-los a estudantes não
inscritos em um boteco meio caído e com cheiro de cerveja, onde o seminário sobre os
esconderijos e os empréstimos acontecem? Ainda assim, devemos falar sobre esses
acadêmicos críticos porque a negligência, afinal, é um grande crime de estado.
Talvez então seja preciso dizer que o vendedor de crack, o terrorista e o preso
político compartilham um compromisso para com a guerra e que a sociedade
responde em espécie com guerras ao crime, ao terror, às drogas, ao
comunismo. Mas “esta guerra contra o compromisso para com a guerra”
marcha como uma guerra contra o antissocial, quer dizer, aqueles que vivem
“sem uma preocupação pela sociabilidade." Mas isso não pode assim. Afinal de
contas, é a própria profissionalização que se dedica aos antissociais, a própria
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universidade reproduz o conhecimento de como negligenciar a sociabilidade,
com a sua preocupação com aquilo que chama de antissociabilidade. Não, esta
guerra contra o compromomisso para com a guerra reage ao compromisso para
com a guerra como a ameaça que é – não mera negligência ou destruição
descuidada, mas um compromisso contra a ideia da sociedade em si, ou seja,
contra o que Foucault chamou de conquista; a guerra não falada que fundou e
que, com força de lei, refunda a sociedade. Não antissocial, mas contra o
social, este é o compromisso para com a guerra e é isso que perturba e, ao
mesmo tempo, forma os undercommons contra a universidade.
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nas suas conferências de 1975-76, de guerra das raças.
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Stefano Harney é Professor de Educação de Gerenciamiento Estratégico na Singapore
Management University. É o autor de State Work: Public Administration and Mass
Intellectuality (2002) e The Ends of Management (próximamente).
Garvey, Marcus. 2004. Selected Writings and Speeches of Marcus Garvey. Edição de Blaisdell,
Bob. New York. Dover Publications.
Jesus, Carolina Maria de. 1960. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. São Paulo.
Livraria F. Alves.
Wilderson, III, Frank B. 2011. The Vengeance of Vertigo: Aphasia and Abjection in the Political
Trials of Black Insurgents. InTensions Journal. Toronto. New York University.
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