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Andréa Barbosa
CIÊNCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO
Edgar Teodoro da Cunha
Direção: Celso Castro
FILOSOFIA PASSO-A-PASSO
Direção: Denis L. Rosenfield
PSICANÁLISE PASSO-A-PASSO
Direção: Marco António Coutinho Jorge
Antropologia e imagem
ter
te
CDD 302.2J
06-2312 CDU 316.77
Introdução
Este livro tem por objetivo mapear um percurso de diferentes grupos e povos com os quais os gregos se relacio-
contato e interlocução entre a antropologia e a produção de navam já estivessem presentes na obra de Heródoto, Aristó-
imagens. Trata-se cie trazer uma discussão sobre o estabele- teles e Xenofontes, não podemos classificar essa produção
cimento de relações efetivamente construídas ou possíveis como uma disciplina, A antropologia, como campo de pro-
entre a elaboração do conhecimento antropológico e o uni- dução que posteriormente se transformará em disciplina
verso da imagem. Percorreremos, assim, desde os pontos de científica, é uma criação do humanismo do século XVIII,
contato das histórias do nascimento da antropologia como um momento bastante específico da história do pensamen-
disciplina e do cinema como linguagem até as experiências to, preocupado com a sistematização racional do conheci-
paradigmáticas da utilização da imagem no âmbito da pes- mento humano sobre diversas áreas, aí incluídos o próprio
quisa etnográfica. O intuito, nesse sentido, é discutir as várias homem e sua vida em sociedade. Nesse momento, tornava-
possibilidades que a introdução da imagem no campo da se importante sistematizar o conhecimento sobre os outros,
antropologia pode oferecer.' não-europeus, distantes no espaço, mas simbolicamente
próximos o bastante para serem considerados ameaçadores.
Diante dessas preocupações, o pensamento filosófico
Antropologia e imagem: primeiros encontros humanista e ilustrado doséculo XVIII construiu urna no cão
de alteridade, enquanto percepção das diferenças, enfati-
A história da construção da linguagem fotográfica e zando as semelhanças. O prpjeto de ciência do homem,
tográfica desenvolveu-se paralelamente à ela defendido por Voltaire, M^tesquieu e Rousseau, criava
métodos clássicos da antropologia. Houve muitas "aproxi- uma história natural, oposta à teleologia, que defendia uma
mações ao longo dessa história, mas, de forma geral, elas natureza humana universal. Nesse sentido, as diferenças
expressaram formas de olhar e de construir probl^pas de entre os homens são colocadas também na ordem da natu-
maneira homóloga — urna colaboração ao mesmo tempo reza. São externas e incómodas, existindo por interferência
distante e provocadora, mas que evidencia o quanto a an- de fatores exteriores e naturais, corno clima, localização
tropologia, a fotografia e o cinema, enquanto construções geográfica e outros elementos que as produzem.
culturais, podem compartilhar o desafio de entender e sig- A ideia do "bom selvagem" de Rousseau é a referência
nificar o mundo e sua diversidade. para pensar com interesse e, às vezes, condescendência so-
Embora a construção da noção de "medida humana" e bre grupos étnicos americanos, africanos c asiáticos coloca-
sua importância para a reflexão sobre o mtindo e a vida dos em contito permanente com os europeus pela expansão
remontem à antiguidade clássica e ainda que descrições de mercantilista empreendida desde finais do século XV. Eles
Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 11
são considerados o que foram os europeus num passado alegoria da selvageria e da barbárie, como os índios tapuia.
mítico: povos distantes e não corrompidos pelo estabeleci- Por meio dos atributos associados a cada personagem o
mento da sociedade contratual. A diferença aqui é colocada artista constrói valores opostos, e é essa ambivalência que
em posiçSo ambivalente entre natureza e cultura. Iconogra- torna esses retratos tão instigantes até hoje.
ficamente, podemos lembrar das imagens produzidas pelos A alteridade, nesses casos, é marcada pela busca de uma
viajantes e artistas da missão de Maurício de Nassau ao origem da humanidade cuja memória se perdeu há rnuito
Brasil. Albert Eckhout (1610-65) foi um desses artistas que por questões externas ao próprio homem, mas que de algu-
esteve no Brasil entre 1639 e 1644, e foi a partir dessa expe- ma maneira esses homens "selvagens" poderiam fazer re-
riência que pintou, em telas de grande tamanho, os tipos lembrar. Interessante também é perceber que, acompanhando
humanos locais, como índios, mestiços e africanos, além de as reflexões filosóficas, estava o movimento de representar
espécimes da fauna e flora brasileiras. plástica e esteticamente essa alteridade, de tornar visível esse
Eckhout pintou oito figuras humanas, quatro casais em semelhante distante, mesmo que ainda exótico e muitas
retratos posados, com suas singularidades. São eles índio vezes opaco.
tupi e índia tupi, índio tapuia e índia tapuia, Mulher mame- É, contudo, o evolucionismo, na segunda metade do
luca e Homem mestiço-, Mulher africana e Homem africano. século XIX, que vai transformar a alteridade, a diferença, em
Neles podemos perceber certa ambivalência no tratamento
problema epistemológico. E vai fazê-lo rompendo com a
dosp|y|gnagens quanto a sua humanidade e ao lugar que,
ideia de uma natureza humana filosóf^teo "selvagem"
ocúpOTmó mundo. São quadroá monumentais, em que as
torna-se o "primitivo", o que vive emsiti]||lo semelhante à
figurãPímmanas foram concebidas praticamente em tama-
do homem civilizado europeu em seu passado histórico. A
nho natural, com inúmeros pormenores etnográficos, botâ-
história da humanidade passa a ser concebida corno uma
nicos e zoológicos, associados como atributos dos persona-
gens. Cada um deles é representado isoladamente, com o série de estágios sucessivos de desenvolvimento dos grupos
olhar voltado para o observador, ocupando a posição cen- humanos, em que os chamados povos primitivos seriam os
tral do quadro e se destacando do segundo plano composto remanescentes de etapas iniciais desse desenvolvimento, e
com eleme-ntos locais: plantas exóticas, pequenos animais, as sociedades europeias, o ponto mais elevado do processo
objetos, cenários e adereços que, além de conferirem caráter de evolução das sociedades humanas. Dessa maneira, as
descritivo às pinturas, lhes atribuem significados partícula- sociedades ditas primitivas seriam sobreviventes de uma
res.~Os indígenas ora são uma alegoria da domesticação e forma de vida que fatalmente desapareceria pela "evolução ~
por isso humanizados, como os índios tupi, ora são uma natural'3 das sociedades.
12 Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha
Antropologia e imagem 13
A ideia da diferença perde sua ambivalência e se torna cinematógrafo constituíram ferramentas fundamentais
um problema epistemolôgíco para a ciência justamente
para o registro dos diferentes tipos físicos e culturais. Eram
quando é deslocada para o âmbito da cultura, É essa noção considerados instrumentos científicos, tanto quanto o mi-
de alteridade baseada numa diferença cultural que inaugura
croscópio, capazes de ampliar o olhar do cientista, pois ao
a necessidade do conhecimento empírico do outro. A cultu-
"estabilizar" ou "fixar" os dados obtidos em campo facilita-
ra não estaria apenas nos artefatos, mas também em hábitos, riam análises posteriores. Para o antropólogo Marc-Henri
valores e comportamentos que precisavam ser apreendidos Piault, o património imaterial que a antropologia pode hoje
pela observação e registrados. A questão agora era trazer o
vangloriar-se de ter contribuído para inventariar materiali-
que estava longe para perto, tão perto que se tornasse um za-se paradoxalmente nos rolos de filme produzidos nesses
passado presentificado. O período entre o final do século
processos. Segundo essa perspectiva, gestos, falas, movi-
XIX e o início do século XX é marcado por várias expedições mentos e expressões poderiam ser conservados nos filmes
etnográficas realizadas com esse sentido da busca do longín- assim como se conservam potes de barro e máscaras.
quo, dando-lhe visibilidade, e é nesse ponto que o encontro Nas fotos antro pó métricas, produzidas nas diversas
anunciado entre a antropologia e a fotografia e o cinema vai expedições realizadas na virada do século XIX para o XX,
acontecer. podemos perceber um exercício para construção de urna
Para a jovem antropologia desse período, essa opera- taxionomia dos tipos físicos e culturais e de seus estágios de
ção de estabelecimento de distâncias e proximidades seguia desenvolviment^pm uma fotografia da expedição ao es-
o movimento de encaixar toda a diversidade cultura] cons- treito de Torres^fpor exemplo, figura um grupo fazendo
tatada pelo movimento colonial do século XIX nos modelos fogo com um graveto. Ern outra página de relatório de nma
para o estudo evolucionista das rnanifesLações da natureza expedição à India,jerno3 a foto de uma menina colocada ao
humana. lado cie uma folHa de espécime botânico local. Nesse esforço
Nesse primeiro momento, pontuado pelo esforço ra- classificatório, homens e plantas compartilham um mesmo
cionalista, pesquisa antropológica e técnicas e linguagens lugar nas observações e nos registros científicos. Ainda para
visuais estavam juntas. Uin exemplo dessa parceria é a expe- Piault, é essa necessidade, criada pelo positivismo, de uin
dição multidisciplinar ao estreito de Torres realizada em conhecimento cientifico classificatório do homem e da na-
1898 e comandada pelo pesquisador Alfred Haddon, da tureza que justifica a ação "civílkadora" na exploração do
Universidade de Cambridge. Dela participaram vários cien- mundo.
tistas, entre eles C.G. Seligmane W.H, Rivers, na qualidade É nesse momento também que se difunde na Europa o
de antropólogos. Nesse projeto, a câinera fotográfica e o fascínio pelo mundo exótico e primitivo. Cartões-postais
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com retratos de aborígines corn seus adereços primitivos, ridas na lógica racionalista e da crença na potencialidade da
como lanças com ponta de pedra ou gravetos e ossos atra- modernidade como solução para o desenvolvimento hu-
vessados no nariz, são amplamente divulgados e circulam mano, no final do século XIX ela também já era utilizada para
como suvenires entre as classes abastadas europeias. Esti- encantar e maravilhar os homens, apresentando uma preo-
ma-se que, só na Grã-Bretanha, milhões desses cartões-pos- cupação narrativa: temos o cinema se tornando linguagem.
tais circularam nas primeiras décadas do século XX, Ao lado dos filmes que mostram cenas em tempo real,
Nessa concepção, embora seja a cultura e não a nature- como os de paisagens e cenas do cotidiano, trens chegando
za que produz a diferença entre os povos, os chamados em estações, crianças sendo alimentadas, também eram
povos primitivos eram sempre representados visualmente produzidos filmes que reproduziam números de magia,
de forma a aproximá-los do mundo natural ern oposição ao encenações de contos populares e de contos de fada, estes
mundo civilizado europeu: nudez, artefatos manuais, cos- exigindo uma elaboração narrativa que fugia à consideração
tumes exóticos e não racionais e outros mais eram as situa- do cinema como mero dispositivo de registo documental.
ções e os elementos escolhidos para a construção dessas O mesmo processo pode ser pensado em relação à
representações imagéticas. antropologia, que em alguns casos desenvolve uma meto-
>
No esforço de demonstrar os ganhos advindos das des- dologia voltada, justamente, para a construção do que seria
cobertas técnicas e científicas dessas formas de conhecer o uma "boa distância" capaz de permitir a comunicação e
outro — a antropologia com palavras e a fotografia e o ci- ainda a produção de conhecimento sobre o oxitro, baseadas
nema com imagens —, os pesquisadores esqueceram-se de nessa experiência.
considerar um elemento fundamental que permeia a ação Como exemplo desse momento, podemos tomar os
de ambos: a imaginação. Tanto a antropologia como a foto- trabalhos pioneiros de Franz Boas realizados nos Estados
grafia e o cinema, em seus diferentes processos de constru- Unidos (The Central Eskimo, 1888) e de Bronislaw Mali-
ção do conhecimento, elaboram métodos e formas de re- nowski realizado nas ilhas Trobriand, na Oceania (Argo-
presentar, cie dar corpo a uma imaginação existente sobre a nautas ao Pacífico Ocidental, 1922).
alteridade. Imaginação aqui mencionada em seu sentido A "boa distância", ou seja, uma distância que permita
mais interessante, que é o de formular imagens de objetos e a comunicação — entre realizador, do comentarista, pes-
situações, que já foram ou não percebidos articulando no- quisador, analista e os grupos e processos nos quais eles
vas combinações de conjuntos e de referências. estão inter essados— configura-se, desde esse período semi-
Se, como dissemos, nurn primeiro momento a fotogra- nal, como um desafio tanto para a antropologia corno para
fia e o cinema se constituíam como invenções técnicas inse- o cinema, eé nesse senti d o-que pó demos estabelecer alguns
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.3
paralelos entre trabalhos paradigmáticos tanto em ura cam- riamente terem se tocado. Estamos nos referindo ao cineas-
po como em outro. ta Robert Flaherty com seu Nannok ofthe North, de 1922,
por muitos considerado o marco inicial do cinema docu-
Cronologia filmica mental, e ao antropólogo Bronislaw Malinowski corn Argo-
nautas do Pacífico Ocidental, também de 1922, considerado
1895 Chegada do trem à estação, Saída da. fábrica, A refeição
o marco do método do moderno trabalho de campo na
do bebé, dos irmãos Lumière
antropologia,
1901 Canguru Ceremony, Austrália, Balclwin Spencer
O século XIX, em seu contexto social e histórico, mar-
1913/14 Sertões de Matogrosso, Brasil, major Thomaz Reis
cado pela busca da compreensão e assimilação do mundo
1914 The Land ofThe HeadHunters, Canadá, Eclwarcl Curtís
pelos europeus, caracteriza o surgimento e consolidação da
1917 Rituais e Festas Bororó, Brasil, major Thomaz Reis
1922 Nannok ofthe North, Estados Unidos, Robert Flaherty etnografia e dos registros visuais, como a fotografia e o
cinema, apontando para questões fundamentais sobre essas
formas de representação da realidade social. As expedições
Cronologia etnográfica
cientificas multidisciplinares e as técnicas fotográficas e fil-
1871 Publicação de Primitive Culture, E.B. Tylor micas, que se multiplicam a partir dessa época3 vão possibi-
1888 Publicação de The Central Eskimo, de Franz Boas litar o registro de acontecimentos de um mundo mais am-
1889 Publicação de Natíve Tribes of Central Austrália, de plo que o delimitado pelo continente europeu e permitir a
Baldwin Spencer e F.J. Gillen apreensão da diversidade racial e social.
1890 Publicação de The Golden Bough, de James Frazer É também no final desse século que a ambição do
1898 Realização da Expedição da Universidade de Cam- Ocidente em organizar o mundo se traduziiá em processos
bridge ao estreito de Torres (entre Austrália effé^fGuiné) como o da expansão colonial. A ciência, o cinema e a foto-
1922 Publicação de Argonautas do Pacífico Ocidental, de grafia assumem lugares fundamentais como disciplina e
Bronislaw Malinowskí
instrumentos privilegiados para a observação da experiên-
cia humana. A investigação científica propicia à empresa
Outras histórias paralelas: civilizado rã dos estados-nações europeus a certeza da exis-
Flaherty e Malinowski tência de uma medida racional que explica, a diversidade
racial e cultural do mundo, que a expansão colonial explora,
É interessante traçar um paralelo entre dois trabalhos cujos e mesmo justifica a legitimidade dessas formas de ação. O
métodos e propostas estiveram bem próximos sem necessa- cinema e a fotografia garantem a esse mesmo movimento
...,.,-.. ^ L-uyi-ii iuuuoruda Lunha Antropologia e imagem i»
civilizador um caráter de objetividade ao materializar cor- rnundo, mostrando coisas até então não vistas por olhos
pos e hábitos que se tornam assim passíveis de catalogação europeus.
e classificação. As primeiras décadas do século XX foram um período
Ainda nesse período, a etnologia dos "antropólogos de de grandes turbulências e transformações. As ciências e as
gabinete" realiza-se a partir dos registros visuais e escritos artes, com suas buscas metodológicas, estéticas e de lingua-
que os missionários e funcionários do governo e das expedi- gem, procuram criar novas formas de conhecimento e repre-
ções científicas traziam do campo. Nesse método de organi- sentação de um mundo imerso ern processos de transfor-
zação dos dados científicos, o cinema assumirá o mação acelerada, crises e turbulências. Nessa busca, torna-se
objeto significai!te que representará em imagens ui importante o contato com o mundo em primeira mão,
minada realidade empírica. O registro de outrospcfl tarefa naquele momento pensada corno possível com os
imagens fílmicas e fotográficas, é, dessa forma, construído novos métodos etnográficos e instrumentos de registro au-
por meio de elementos que distinguem e caracterizam a diovisual. Cientistas e cineastas, lançando mão de diferentes
relação ambígua entre hornem e natureza, apresentando recursos, buscam de alguma maneira responder à questão a
imagens de seres humanos que os europeus pensam estar respeito de para onde caminharia a "civilização".
mais próximo da natureza do que da civilização. A Primeira Guerra Mundial introduz vários elementos
O período entre o final do século XIX e o início do XX no processo de conhecimento sobre os povos não europeus;
é, portanto, fundamental para o desenvolvimento da antro- coloca em xeque, por exemplo, os modelos evolucionistas
pologia e do cinema. Nele, nem documentário, nem etno- da humanidade, evidenciando a "barbárie" presente no ho-
grafia científica são categorias consolidadas, e esse momen- mem civilizado europeu e abrindo a possibilidade de se
«rceber uma "civilização" no coração do homern selva-
to pode ser considerado de formação, no qual se reconhece
;em. Inseridos nesse contexto, tanto Malincwski quanto"
a necessidade de novos métodos, abordagens e técnicas para
Flaherty vão em busca da construção.de um novo olhar
lidar com a humanidade, ern seu sentido amplo. Com a
sobre os chamados povos primitivos, Para o primeiro, era
expansão do capitalismo, a criação de mercados mundiais
necessária a construção de um novo método de pesquisa
e a intensificação da industrialização há uma revisão dos
que possibilitasse à antropologia ter acesso ao "ponto de vista
conceitos de tempo e espaço e das teorias evolucionistas. Con- do nativo". O segundo aspirava a um novo método de rea-
ceitos corno bárbaros e civilizados passam por profundo lização capaz de construir um filme que apresentasse os nati-
processo de revisão e a fotografia e o cinema se afirmam vos ern sua luta cotidiana. Ainbos realizaram em seus tra-
como parte integrante e ao mesmo tempo integradora do balhos um movimento de percebei esses povos em seus
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próprios termos por meio da identificação de semelhanças grupo, sempre orientado pelo cotejamento do que seus in-
aparentes que eram transformadas em diferenças pelos pro- formantes dizem com o que ele observa. Segundo Mali-
cessos de construção das respectivas representações etno- nowsld, salienta Eunice Durham, "é necessário contraporás
gráficas e fílmicas. ideias às emoções, o comportamento observado ao comen-
tário que sobre ele tece o nativo, a visão que o antropólogo
Novo olhar etnográfico. Malinowski inicia sua carreira como constrói da cultura à síntese inconsciente que, presente na
antropólogo nesse momento de definição e consolidação da 'cabeça do nativo', orienta e dá significado às suas ações",
disciplina, no qual as experiências das expedições científicas Esse cuidado com a observação e as formas de utiliza-
do final do século anterior incentivaram, pelo menos na ção dos dados empíricos é fundamental no trabalho que ele
Inglaterra, as pesquisas realizadas em campo, em oposição desenvolve, pois é essa a forma possível de penetrar e com-
aos estudos de gabinete empreendidos até então. Nos Esta- preender a especificidade dos diferentes grupos sociais, A
dos Unidos Franz Boas também fará um trabalho pioneiro busca de maneiras de perceber e entender a lógica própria
nesse sentido, mas é o de Malinowski que será consagrado de cada grupo é um dos princípios que norteiam sua prática
como aquele que inaugura o moderno método etnográfico. antropológica. Seu objetivo é reconstruir uma realidade
Em 1914 Malinowski foi surpreendido em campo, na Mela- cultura] específica como um universo integrado e singular
nésia, pela Primeira Guerra Mundial. Impedido de retornar de significados.
à Europa, iniciou uma nova pesquisa nas ilhas Trobriand, Essa postura é uma crítica contundente à forma evolu-
onde permaneceu por quase dois anos distribuídos em duas cionista de pensar os diferentes grupos humanos, pois na
viagens. Essa longa permanência em meio ao grupo estuda- abordagem de Malinowsld não fazia sentido uma compara-
do introduziu uma nova postura no método do trabalho de ção entre eles por meio de elementos isolados da vidasocial.
campo, que permitia o acompanhamento e a participação É preciso entender o grupo em sua lógica e seus contextos
do pesquisador na vida social e cotidiana de seu objeto de específicos, pois eles formam um sistema integrado no qual
estudo. A experiência trouxe para discussão não só ricos um elemento depende do outro. A realidade social de cada
dados etnográficos sobre os trobriandeses, como também grupo é considerada uma totalidade que deve ser com-
uma série de questões de ordem episternológica que in- preendida internamente,
fluenciaram profundamente os fundamentos da disciplina. Esse procedimento teórico leva Malinowski a construir
Para Malinowsld a pesquisa de campo é fundamental um modelo de análise, que chamamos de "piesente etno-
justamente por permitir, pela convivência intensiva, o aces- gráfico", em que o pesquisador isola urn determinado gru-
so a um rico material sobre as várias instâncias da vida do po no tempo e no espaço, mergulhando nessa realidade
Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 23
justamente para dar conta de perceber e compreender seu após remontagem e sonorização realizadas a partir de frag-
funcionamento como uma totalidade. Para Malinowski, mentos do original pela University of Washington e o Burke
cultura não é apenas um conjunto de manifestações rituais, Museum. Nesse filme Curtis constrói urna ficção, uma his-
mas um conjunto amplo que inclui também as técnicas e tória romântica protagonizada por um casal kwakiutl, en-
tecnologias empregadas na vida prática, a arte, a religião e as tremeada de danças, rituais e diversos aspectos da cultura
próprias relações sociais, todas integradas e inter-relaciona- material dos Kwaldutl. A visão romântica desse filme, asso-
das. O ponto de partida para a compreensão dessas múlti- ciada à feitiçaria e a rituais exóticos, deixou marcas importan-
plas facetas é a ação concreta dos indivíduos. tes no imaginário construído a respeito dos grupos indígenas
A novidade do trabalho de Malinowski está no método norte-americanos e no cinema produzido por Hollywood
de pesquisa e no conteúdo a partir dele elaborado, e também nos anos 1940 e 50.
na forma com que organizava e trazia a público sua pesqui- Também nesse período, no Brasil, o major Luiz Tho-
sa. Seus textos etnográficos são muito ricos ern imagens. maz Reis, responsável pela Seção cie Cinematografia e Foto-
Neles, os trobriandeses são descritos em toda sua vivacidade grafia da Comissão Rondon, enveredou por um. caminho
e humanidade. Os leitores são levados a esse mundo tão em que a realização fílmica estava vinculada a contextos de
diferente do nosso pela compreensão. Os costumes "estra- grande interesse etnográfico, As atividades da Comissão
nhos" ou "selvagens" tornam-se pouco a pouco familiares, abrangeram um amplo território fronteiriço e, até aquele
já que são compreensíveis. Suas atitudes não são apenas do momento,-pouco conhecido do interior do Brasil, e ao lon-
mundo da natureza, mas profundamente humanas, posto eo doslllp!
; ífeM?ra< '
de atuação,
*
seus membros travaram contato
que investidas de sentido, de uma lógica própria, e referen- com irnlmeros grupos indígenas, muitos ainda desconhe-
fe.
eidos. -.l*r
ciadas a um universo simbólico compartilhado.
Desses anos de atividades resulta o enorme legado a
Novo olhar cinematográfico. Ainda no início do sécido XX, que hoje temos acesso na forma de publicações, documen-
algumas experiências de realização fílrnica vinculadas a con- tos, relatórios, estudos de cará te r etnográfico e linguístico,
textos etnográficos acontecem na América, e o cinema con- fotografias e filmes. O major Reis foi peça fundamental
sagrado ao real torna-se bastante popular. Edward Curtis, nesse processo de documentação imagética, deixando-nos
conhecido por suas séries fotográficas sobre os índios nor- filmes como Rituais e f estas Bororó, de 1917, de expressiva
te-americanos, faz um épico sobre os Kwakiuú denominado importância para a história do filme etnográfico, dados seu
In the Lana ofthe Plead Hunters (1914), renomeado ao ser pioneirismo e sua proposta.narrativa;, alinhada às novidades
relançado em 1973 como In the Lana ofthe War Canoes, da época. Reis aborda de maneira singular 11 m importante
«-•* Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 25
ritual do grupo indígena bororó, do Maio Grosso, buscando mem como agente, temas recorrentes nos filmes posterior-
construir seu sentido a partir de elementos da lógica local, mente produzidos por Flaherty, comoMoomz (1926), Man
fato raro ern contexto de absoluta exotização, cuja pauta era ofAran (1934) eLowsianaStory(l948).
tratar fílmicamente elementos de outras culturas. Tanto quanto Malinowsld, Flaherty acreditava que a
Esse filme faz parte de um conjunto mais amplo de história deveria emergir do material de carnpo. Ele, contu-
imagens produzidas pela Comissão Rondon e traduz um do, reconstrói esse mundo a partir de uma perspectiva que
momento cia construção da imagem do índio como ser é, em alguns sentidos, fixa. Sua câmera é estática, obviamen-
intocado, exemplo de uma cultura que mantém intacta suas te também por causa dos limites técnicos da época, que
práticas tradicionais e que, em virtude do contato perma- colocavam à disposição dos realizadores câmeras pesadas e
nente corn as frentes de expansão, é "assimilado", "civiliza- películas lentas. No entanto, essa postura também contribui
do" e finalmente incorporado à sociedade nacional, como para a circunscrição da abordagem que, como na etnografia
apontam os filmes posteriores. de Malinowsld, cria uma ideia de presente etnográfico. Fla-
Em 1922, Robert Flaherty realiza seu filme sobre os herty passou 12 meses filmando Nanook, interessado, corno
esquimós, Nanook of the North, e, tal como Malinowski
estivera Malinowsld, em traçar o perfil de uma cultura por
fizera entre os trobriandeses, segue um plano de inserção no
meio das ações dos indivíduos que lhe dão corpo. Havia
contexto de trabalho baseado numa longa permanência en-
então grande consciência da pessoa como indivíduo único
tre o grupo. Ao observar a cultura nativa, Flaherty introduz
e da importância de falar sobre as culturas por meio de seus
o conceito de câmera participante, que não só toma parte
sujeitos e de suas práticas.
dos eventos registrados, mas também procura refletir a
Seu interesse pelos Inuit inicia-se com urna viagem
perspectiva do nativo. Isso se realiza por meio das exibições
do material filmado, ao longo da produção do filme, aos realizada em 1910a fim de trabalhar ern estudos prelimina-
Inuit (denominação moderna para os esquimós) e na aber- res para a construção cie uma ferrovia no norte do Canadá.
tura para seus comentários, que iam sendo incorporados ao Flaherty produziu, durante seis expedições que realizou à
processo de realização do fíJme. área ocupada por esse grupo, uma grande quantidade de
Outro grande mérito desse filme reside no fato de o material fílraico, que foi perdido ern urn incêndio depois de
espectador ser levado a identificar-se com pessoas reais que seu retorno a Toronto. Felizmente, comenta o próprio Fla-
pertencem a um contexto social definido »e distinto. A re- herty ern artigo escrito na época sobre a realização de Na-
presentação desses indivíduos é marcada por sua luta inces- nook, jusíifícando-se por considerar aqueles filmes ainda
sante contra uma natureza hostil e pela afirmação do ho- muito amadores.
26 Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 27
A partir daí cresceu seu interesse pelo cinema e, em outros homens. Aos poucos, num grande plano-seqúência
1920, inicia uma nova filmagem, agora com patrocínio de vemos essas pessoas e, agora também, cães se aproximarem.
uma empresa que comercializava peles. Seu aparato técnico Todos, homens, mulheres e crianças, num esforço coletivo,
incluía também a possibilidade cie revelar os filmes em cam- finalmente conseguem trazer o animal à superfície. Ao final
po, o que permitia mostrá-los aos Inuit à medida em que dessa longa sequência, na qual nos envolvemos intensa-
eram feitos, compartilhando dessa forma o processo de rea- mente, toclos cornem com expressão de rejubilo a carne da
lização. foca recém-caçada.
Nanook era um dos líderes do grupo de esquimós e Essa foi justamente a primeira sequência filmada e a
tornou-se seu principal informante. Durante as filmagens, todos mobilizou. Foi também a primeira parte do filme vista
três rapazes também auxiliavam Flaherty, porém muitas pelos esquimós durante o processo de realização âeNanook,
outras variáveis estavam envolvidas — esposas, famílias, ca- e a primeira vez que eles assistiram a um filme. O diálogo
chorros, trenós, caiaques e equipamento de caça. No filme, estabelecido com Nanook e seus companheiros ao longo de
uma sequência se destaca pela drarnaticidade: a caça à foca. todo o processo de filmagem — intensificado justamente
Nela, acompanhamos Nanook munido de um arpão an- por essa experiência de devolução do material filmado ao
dando em solo gelado e olhando com atenção para onde grupo — é o que firma uma relação de confiança entre
seus pés pisam. Ele procura algo. Pouco depois o vemos Flaherty e seus sujeitos t marca todo o trabalho realizado.
observar um pequeno orifício em meio a grossa camada de Nanook contava suas façanhas a Flaherty e esperava que ele
gelo e arremessar seu arpão em direção a algo dentro dele. tivesse interesse em filmá-las. No caso da sequência da caça
A partir daí urn longo processo se inicia. Parece que Nanook à foca, foi exatamente isso que aconteceu.
de fato acertou com seu arpão um animal, que, contudo, Tanto Flaherty quanto Malinowski estavam interessa-
parece resistir bravamente à captura. Nanook puxa e é pu- dos em urn modo particular de ver e reconstruir a realidade
xado. Tenta novamente içar c animal da água e é novamente tratada: uma representação estável em termos de tempo e
puxado. Após várias tentativas, chama seus companheiros e espaço e com tuna certa "aura". As transformações não eram
sua família para ajudá-lo. o foco de interesse, corno se ao serem abordadas pudessem
Essa é uma das mais belas cenas do filme: num plano colocar em risco a permanência da especificidade desses
com enorme profundidade de campo ^vemos em primeiro povos. Tanto o trabalho de carnpo quanto a imagem ein
plano Nanook agarrado à corda presa ao buraco e, atrás movimento foram utilizados para elaborar urna imagem
dele, chegando até o horizonte íbngínquo, um imenso bran- totalizant€ e única dessas sociedades, além de serem narra-
co, no qual alguns pontos pretos atestam a presença de tivas contundentemente realistas. Enquanto MalinowsJd
oarDosn e Edgar Teodoro da Cunha
Antropologia e imagem £d
após o trabalho de campo, mas durante todo o processo em Aqui existe mais um dado interessante a se perceber no
que vivemos a situação do campo e o grande desafio é como trabalho de David e Judith: as características etnográficas não
construir essa experiência fflmicamente. estão somente no assunto tratado, que pode ser mais ou menos
Partindo dessa perspectiva, é impossível separar a ela- exótico, nem na explicitação verbal dos objetivos, tampou-
boração da pesquisa da própria situação fílmica. Ao optar co num supôs to respeito ético para com os sujeitos do filme.
por filmes sem muitas entrevistas ou narrações, mas com Está essencialmente na estética que é construída no filme.
diálogos explícitos ou implícito»; entre pesquisador e sujei- Em finais dos anos 1980, os MacDougall passam a de-
tos e com cenas longas em que acompanhamos as ações dos senvolver projetos de pesquisa na índia e o primeiro filme
sujeitos, eles pretendem trazer para o filme a qualidade cie dessa fase é Photo Wallahs (1988-91). Nele, o foco recai
nos fazer mergulhar na experiência da relação construída sobre a questão da visualidade ou, melhor, nas formas vi-
para a pesquisa. suais do conhecei. Existe uma preocupação explícita em
A reflexividade expressa-se como estilo ou proposta trutar fílmicamente questões como a experiência, a subjeti-
porque não há como separar a .realização do filme das vidade e a intuição no processo de construção da vida coti-
preocupações epistemológicas que acompanham esse pro- diana e do conhecimento antropológico.
cesso: como o filme representa o conhecimento? que tipo de Photo Wallahs tem como tema central a questão da
conhecimento está disponível para os antropólogos/cineas- hierarquia social e também a da hierarquia estética. Não há
tas? como lerribrar aos espectadores que os filmes qualquer intenção de fixar urn significado estrito por meio
marcam um ponto de vista que é construído numa situaçãó do filme, pois ele, assim corno as fotografias, que são seu
de pesquisa que é também a própria situação fílmica? tema, permanece aberto e indeterminado. O filme está an-
Para David MacDougall a reflexividade está sutihnente corado, por um lado, em uma perspectiva temporal e, por
presente no filme e, para percebê-la, o espectador precisa outro, numa perspectiva espacial.
engajar-se de forma mais imaginativa; a reflexividade, por- Pergunta-se o significado da fotografia e de seus usos
tanto, não está na presença física dos pesquisadores ou do para pessoas de urna cidade turística nas montanhas. Mos-
aparato técnico nos enquadramentos, mas no movimento tram-se fotos que são produzidas no momento das filma-
de câmera, no enquadramento, na seleção do que está den- gens e fotos antigas apresentadas por alguns fotógrafos ve-
tro e fora do quadro, na opção da montagem, enfim, em teranos. Somos legados a outra questão, que é o vídeo,
uma grande quantidade de elementos que o próprio cineas- também se colocando corno faceta importante para enten-
ta não pode precisar, justo porque ele está intimamente der as novas e aatigas relações construídas so~bre a imagem,
envolvido na situação vivida e filmada. Essas questões vão sendo apresentadas não num discurso
••u «nuiea carnosa e togar leodoro da Cunha Antropologia e imagem 47
direlo e racional, mas numa série de justaposições de ima- O filme se configura assim como uma arena para se
gens e tempos: imagens que evocam em vez de explicitar urn exercer uma fornia de engajamento no mundo, expressan-
significado. A questão epistemológica que se coloca numa do uma relação entre filme e política, e uma forma de ques-
proposta como essa é: que tipo de conhecimento é produzi- tionamento do mundo. Ele exige um papel ativo e criativo
do quando lidamos com fotografias e filmes ou vídeos pro- do espectador, pois evoca em vez de demonstrar e o coloca
duzidos num contexto no qual seu sentido desliza? também na posição de agente, tanto quanto o sujeito e o
Interessante, também, é perceber que o ato de realizar pesquisador, na construção dos sentidos possíveis.
um filme parte de uma preocupação etnográfica em com- O filme construído com esse propósito é capaz de tor-
preender os contextos com os quais se está envolvido, o que nar-se experiência, de tornar-se parte das subjetividades
não implica necessariamente a realização de uma etnografia envolvidas na sua realização. Aqui chegamos a um ponto
escrita sobre essa mesma experiência. Embora David Mac- importante, que é o fato de David MacDougall desenvolver
Dougall escreva bastante sobre suas reflexões, o momento- em seus artigos as questões epistemológicas que mobilizam
chave para que essa etnografia aconteça é o momento da suas pesquisas/filmes e neles ter forjado o conceito de "cine-
realização do filme, pois é nessa situação que podemos com- ma intertextual" para o tipo de cinema etnográfico que ele
preender aspectos culturais que não surgiriam de outra forma. propõe e realiza. A partir desse conceito, a relação construí-
Aqui a cultura não está sendo considerada algo anterior da entre realização cinematográfica e pesquisa ou entre pes-
e que é preciso fazer o filme mostrar. A cultura é expressa quisador/realizador e sujeitos cio documentário torna-se o
nas relações que são construídas e evocadas em situações foco do problema. O cinema intertextual cria no espaço de
contextuais, como a da realização do filme. Existe nessa realização dó filme um ambiente também privilegiado para
perspectiva um certo posicionamento crítico em relação a a reflexão antropológica, pois é pensado corno o lugar do
uma noção essencializada de cultura embutida na noção de encontro, como o espaço em que "observadores" e "obser-
presente etnográfico. Nesse sentido, os filmes de MacDou- vados" não estão essencialmente separados, e em que a
gall se afastam da inspiração malinowskiana. observação recíproca e a troca estabelecida foram o centro
De maneira sintéticarpodemos dizer que as preocupa- sobre o qual recai o foco — intersubjetividades criando
ções que norteiam o trabalho de David e Juclith MacDougall intertextualidades.
caminham no sentido de colocar a noção de realidade e de Se lembrarmos que rio início do cinema e da antropo-
representação justapostas para instaurar uma possível refle- logia havia uma tendência catalogadora das diferenças, per-
xão entre essas duas instâncias sempre apresentadas em cebermos que, com o passar do tempo e com as mudanças
oposição. epistemológicas, essa preocupação cede terreno, embora
Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 49
não se esgote, para uma postura que assume a troca de olha- particular no âmbito cia antropologia. Imagem como méto-
res. O significado não é dado a priori nem espera para ser do ou técnica adotados na pesquisa de campo, dado bruto
decifrado; é antes construído a partir da interação entre os de pesquisa ou registro, expressão de um processo de pes-
sujeitos envolvidos na experiência da construção do conhe- quisa e ainda a imagem, ou narrativas visuais e audiovisuais,
cimento que, no caso das experiências aqui levantadas, é como objeto de análise para a antropologia são alguns dos
potencializada pela realização fflmica, caminhos abertos nesse sentido.
É interessante perceber que a questão da reflexividade Se é verdade que a antropologia sempre teve grande
presente nas experiências da produção de imagens no âm- interesse pelo visual, é também evidente sua dificuldade
bito da pesquisa etnográfica antecede seu aparecimento na quanto à maneira de lidar com ele na prática antropológica,
experiência etnográfica ou antropológica mais tradicional e o que se expressa na própria dificuldade em definir um
expressa na etnografia escrita que só vai ser problematizada estatuto claro para esse campo.
ao longo da década de 1980. A utilização da linguagem Historicamente, como vimos, o foco na utilização de
audiovisual "despida" de seu efeito de real, de sua naturali- imagens estava a princípio direcionado para o conteúdo,
dade, apresentou-se, assim, como um recurso fértil para incor- paia uma alternativa "mais segura" e mais "objetiva" de
porar a reflexividade no fazer etnográfico. A linguagem audio- registro das observações de campo. A câmera era considera-
visual ajudou de certa forma a evidenciar e a problematizar da quase um instrumento de precisão, mas aos poucos o
a "construção" ou o "efeito de real" das etnografias clássicas, recurso da imagem na pesquisa antropológica foi-se desco-
lando da função de registro de dados etnográficos e ganhou
outras possibilidades.
tff !^Ç
Quallblugar da imagem na
pesquisa antropológica? Produção de imagens corno método ou técnica adotado na
pesquisa de campo. Mesmo quando o propósito do uso de
Até aqui exploramos alguns aspectos-do desenvolvimento imagens na pesquisa possui um cunho mais "documental"
paralelo do cinema e da antropologia demarcando os pon- de registro de informações e situações de campo, elas po-
tos de contato e a consolidação de uma prática audiovisual dem ser utilizadas no trabalho com uma série de variações.
no campo antropológico. Olhando, porém, para esse longo A produção de imagens no âmbito da pesquisa de campo
processo de desenvolvimento, cabe perguntar acerca dos pode, nesse sentido, ater-se a urna aderência "realista", na
usos da imagem em geral e da imagem em movimento, em qual elas figuram como material comprobatório da presen-
50 Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 51
agens utilizadas com mediadores para o estabelecii sidade de distinguir essa realização das empreendidas pelos
.e vínculos com os sujeitos no campo, como ré meios de comunicação de massa ou mesmo por cineastas e
gravações em vídeo por eles solicitadas e cuja reaí jornalistas, que atuariam orientados por objetivos diversos
firma importante reciprocidade para o desenvolvimento da do projeto antropológico.
pesquisa. O primeiro elemento levantado como bandeira é a
presença de uma longa pesquisa que informa e forma o
A imagem como expressão de :>im processo de pesquisa. O filme. Não basta o tema ou o contexto de realização do filme
desenvolvimento estético do documentário influenciou ser "tipicamente" etnográfico, como grupos minoritários
profundamente os moldes do filme etnográfico. Se, por um ou tradicionais, ou conflitos sociais. Para ser classificado
lado,'os cineastas contribuem para o questionamento da como etnográfico, seu processo de realização deve ser infor-
objetividade e do realismo do registro fílmico — e desse mado poi preocupações antropológicas. A realização do filme
Armrea Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha
Antropologia e imagem 53
gens fílmicas e fotográficas podem revelar dados fundamen- Dessa forma, a problematização dos modos dever im-
tais sobre nossa própria sociedade e nosso modo de pensar. põe-se como uma tarefa que possibilita a expansão do olhar
Da mesma maneira que essas outras temáticas, abordadas e a delimitação de novos problemas, permitindo a passagem
tradicionalmente por antropólogos e sociólogos quando de um exercício de construção de conhecimento baseado na
querem ter acesso à esfera simbólica cie um coletivo social imagem como objeto para outro, em que as imagens podem
específico, também o cinema, enquanto artefato cultural, é ser pensadas como modos de ver, olhar e pensar, ampliando
uma via de acesso privilegiada para os objetivos a que a
as possibilidades de análise dos domínios do
antropologia e as ciências sociais em geral se propõem.
As imagens fílmicas, tal como mitos, rituais, vivências
e experiências, condensam sentidos e dramatizam situações
do cotidiano, descortinando a vida social e seus contextos Conclusão
de significação. Os aspectos recorrentes e inconscientes do
agir social estão igualmente presentes nas imagens fílmicas Indicando os pontos de contato e interlocução entre antro-
e fotográficas, cabendo ao pesquisador investigar as relações pologia e imagem, pretendemos trazer à luz o quanto a
que se constróem e os significados que as constituem. antropologia, disciplina dedicada ao estudo de "alterida-
Se mesmo contemporaneamente cientistas sociais des", se torna ela mesma aberta a variações no processo de
vêem com reservas uma maior aproximação com a imagem, construção do conhecimento. Graças ao fato de estar em
isso talvez seja pelo fato de eles ainda associarem a imagem permanente contato com outras formas de pensar e inven-
a signos naturais em oposição às palavras como signos con- tar o mundo, a antropologia é urna área do conhecimento
vencionais. Ufflbposição dessa ordem ignora o fato de que que necessita de engenho e criatividade para sejgghiventar
olhar não é apenas um fenómeno fisiológico — assim como em face dos novos desafios cotidianamente colocados.
imagens fíJmicas ou fotográficas não são apenas cópias do Estamos aqui utilizando o termo "invenção" no senti-
mundo visível — e também nossa capacidade de perceber do de criação, como fictio, algo construído. A antropóloga
por meio da linguagem exatamente aquilo que procuramos Marilyn Strathern, aliás, em artigo da década de 1980 —
estruturar e ordenar, sobretudo aquilo que conhecemos^X quando se viria um momento de grande questionamento
Concebemos o mundo por valores que delimitam nossa pós-moderno quanto às representações construídas nas et-
capacidade de olhar, nossa percepção e nossas possibilida- nografias clássicas —, classifica a produção etnográfica
des de apreensão de sentido. como "ficções sérias".
ou Anarea tsartjosa e Edgar Teodoro da Cunha Antropologia e imagem 61
O que esse momento crítico traz é uma provocação pológico. Vale, porém, o esforço para quem tem interesse
bastante pertinente, na medida em que toca o ponto central em enveredar por essa seara. Nos filmes os leitores poderão
da disciplina: a relação do antropólogo com o conhecimen- perceber as questões apontadas ao longo deste texto e pos-
to que produz. Essa reflexividade no interior da antropolo- sivelmente muitas outras, dado o caráter polissêmico da
gia, desencadeada naquele período e direcionada sobretudo imagem, que também foi aqui tratado.
para a crítica da representação escrita do conhecimento
etnográfico, acaba por possibilitar a abertura do enquadra-
mento e o retorno a discussões de trabalhos como os em-
preendidos por Margaret Mead, Gregory Bateson, Jean
Rouch e David e judith MacDougall que, corno sublinha-
mos, vinham sendo desenvolvidos, desde muito tempo, à
margem das grandes discussões realizadas no meio acadé-
mico antropológico. Mesmo o trabalho que Mead e Bate-
son, antropólogos de grande popularidade, desenvolvem
com as imagens permanece sem grande repercussão.
A inventividade sempre esteve presente, e a incorpora-
ção da imagem, seja ela fotográfica ou em movimento, ao
processo de construção da prática antropológica constitui,
assim, não mera questão de método, mas sobretudo uma
questão epistemológica. Não se trata, portanto, dejfei novo
meio para simplesmente produzir dados de pesquisa ou de
estabelecer contatos e vínculos no campo, mas de propor, a
partir da inclusão da imagem, novas questões e novos pro-
blemas.
Terminamos sugerindo aos leitores que assistam aos
filmes comentados ao longo do texto. É certo que nem todos
são de fácil acesso, e esta é uma séria dificuldade que ainda
temos de enfrentar: a péssima distribuição dos documentá-
rios em geral e, especificamente, daqueles de cunho antro-
Antropologia e imagem 63
-Í
Mnarea «aroosa e Edgar Teodoro da Cunha
65.
66 Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha
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68 Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha
• Luiz Thomaz Reis. Rituais e festas Bororó, 1917, 20 min. Sobre os autores
Esse e outros filmes podem ser encontrados no Museu do
índio, no Rio de Janeiro, ou em algumas videotecas univer-
sitárias.
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e cagar leodoro da Cunha
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