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Compreender

o feminismo
COMPRENDRE LE FÉMINISME
Sam Bourcier
Ilustradora I Alice Moliner
Paris, Max Milo Édition, 2012

COMPREENDER O FEMINISMO
Tradução de Patrícia Lessa e Fabiana Aparecida de Carvalho
Projeto visual: Roberta Stubs
Revisão: Helder Tiago Maia
Apresentação: Fabiana Aparecida de Carvalho, Roberta Stubs e Patrícia Lessa
Diagramação: Daniel Rebouças
Capa: grupo DOBRA
Ilustração interna: Ani Ganzala
Ilustração da capa: Kelly Salgado
Brasil, Editora Devires, 2021

CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas Lima Prof. Dr. Leandro Colling
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB Universidade Federal da Bahia – UFBA
Prof. Dr. Djalma Thürler Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Universidade Federal da Bahia – UFBA Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Profa. Dra. Fran Demétrio Afro-Brasileira – UNILAB
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
Prof. Dr. Helder Thiago Maia Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Universidade Federal Fluminense - UFF
Prof. Dr. Marcio Caetano
Prof. Dr. Hilan Bensusan Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Universidade de Brasília - UNB
Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ
Dr. Pablo Pérez Navarro
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima (Universidade de Coimbra - CES/Portugal e
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil)
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa Faculdade de Educação
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB

CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

B767c Bourcier. Sam, —

Compreender o feminismo/Sam Bourcier. 1ª edição/Salvador - BA.


Editora Devires, 2021.

94p.; 14x21 cm
ISBN 978-65-86481-20-4
1. Feminismos 2. Queer 3. Sociologia 4. História 5. Política I. Título.

CDD 300 CDU 308.13

Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que


citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA


www.editoradevires.com.br
APRESENTAÇÃO À
EDIÇÃO BRASILEIRA

Sam Bourcier esteve no Brasil, no período de 15 de


junho à 17 de julho de 2014 atuando na Universidade
Federal de Santa Catarina, na Universidade Estadual
de Maringá, na Universidade Federal da Bahia, na
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira e na Universidade do Estado da Bahia.
Foram atividades que envolveram conferências, reuniões,
oficinas e, sobretudo, o estudo de suas obras.

Na oportunidade as instituições envolvidas puderam


conhecer os atravessamentos das teorias feministas e
queer propostos em seus livros. O livro Comprendre le
féminisme de Sam Bourcier foi publicado originalmente
na França pela editora Max Milo e contou com a produção
visual de Alice Moliner. Situado no contexto francês, o
livro dialoga com os movimentos e teorias feministas
em suas disputas ao longo da história. Na trilha deste
enredo, os seus dez capítulos iniciam questionando, o
sujeito do feminismo e a construção coletiva do “nós”,
dialogam com as artes e a comunicação e, de forma bem
pontual, apontam as disputas relacionadas ao campo da
produção visual.
Como o próprio título do livro sinaliza, temos em
mãos uma introdução ao pensamento feminista que
ganha corpo a partir de resgates históricos das várias
ondas da luta feminista, de seus embates, aproximações
e distanciamentos. Fazendo referências ao universo pop,
da música ao cinema, à arte e, também, aos levantes
populares e os movimentos de resistência política, Sam
Bourcier atualiza os debates feministas e os usa como
lentes para decifrar diferentes questões culturais e
nuances de nosso cotidiano. Vale a ressalva de que
algumas dessas referências estão muito ligadas à
cultura francesa, mas várias delas aterrissam também
em território brasileiro, seja pela web, seja por sinais
radiofônicos, televisivos e/ou cibernéticos. Mídia, arte,
pornografia, espaço público... temas que, guardadas
as devidas localidades e singularidades culturais,
transversalizam muitos povos, principalmente nas
culturas ocidentais.
Para contrapor e contornar essa carga europeia
que o livro carrega, convidamos a artista e grafiteira Ani
Ganzala para criar as ilustrações que acompanham o
livro. Nascida em Salvador, Bahia, Ani aborda em sua arte
temas relativos ao gênero, às mulheres, à lesbianidade,
às culturas originárias e à diáspora africana. A potência
política de seus traços e a brasilidade de seus temas
irão criar um jogo de tensão/oposição/complementação
com o texto de Sam Bourcier. Ainda sobre as imagens do
livro, a partir de uma pintura da artista Kelly Salgado, a
capa foi desenvolvida pelo DOBRA, grupo de pesquisa
em arte, subjetividade, educação e diferença, criado e
coordenado por Roberta Stubs na Universidade Estadual
de Maringá.

De humor ácido e língua afiada, este livro carrega uma


dose de um feminismo radical que se pretende também
didático, cujo interesse está em criar aproximações e
diálogos. No decorrer da leitura, risos, pensamentos,
insights e conexões possíveis com nossa realidade
cultural e política se entrelaçam e dançam em nossa
cabeça. Como tradutoras, nosso desejo é ver o livro
circulando entre o maior número de pessoas possíveis.
É instrumentalizar as mulheres e também as corpas
dissidentes a afiarem a língua e o olhar para não deixarem
passar preconceitos, violências, descriminações e
outras naturalizações que insistem em subalternizar as
diferenças.

Nossa aposta é na potência disruptiva e inventiva


que os feminismos carregam. Acreditamos nesse DNA
de luta pela igualdade na diferença, de revolta contra
tudo que oprime e cala, de empatia por todas e todos
subalternizados, de sororidade e amizade entre as irmãs,
e de disposição a inventar modos de viver-desejar-amar
que sejam livres e potentes. Temos essa carga genética
no corpo desse livro, que é também uma máquina de
pensar e de mudar o mundo.
Patrícia Lessa, Fabiana Carvalho, Roberta Stubs.
As tradutoras e organizadoras da edição brasileira,
Grupo de Estudos das Pedagogias do Corpo e da Sexualidade
(GEPECOS).

Sam Bourcier:
É docente na Université de Lille II, na França. Possui formação
em sociologia, doutorado em sociologia, é transfeminista com
reconhecimento internacional nos estudos queer. Seu aporte
teórico envolve o feminismo radical, os estudos queer e os
estudos foucaultianos. Organizou publicações e eventos sobre
o pensamento da feminista francesa Monique Wittig.
Dentre suas obras, destacamos:
- Post-porn, Queer Zones 1, Politiques des identités sexuelles
et des savoirs, Paris, Balland, 2001, Amsterdam, 2005, 2011.
- Sexorcisme: Baise-moi, Charcot, L’Exorciste et les porn
stars, Sexpolitiques, Queer Zones 2, Paris, La Fabrique, 2005.
- Red Light district et porno durable. Un autre porno est
possible, Queer Zones 3, Paris, Amsterdam, 2011.
- Comprendre le féminisme. Paris: Max Milo, 2012.
- Homo Inc. Orporated: le triangle et la licorne qui pète. Paris:
Cambourakis, 2017.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1
QUEM SÃO ELAS? O “NÓS” DO FEMINISMO 11

CAPÍTULO 2
MAS, O QUE ELAS QUEREM? CENÁRIOS 21

CAPÍTULO 3
SEXO, PORNOGRAFIA E PROSTITUIÇÃO 31

CAPÍTULO 4
A CONQUISTA DO ESPAÇO PÚBLICO 39

CAPÍTULO 5
CULTURAS DE MULHERES, CULTURAS FEMINISTAS? 45

CAPÍTULO 6
POLÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO I: AS MÍDIAS 51

CAPÍTULO 7
POLÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO II: ARTE E FEMINISMO 59

CAPÍTULO 8
O DISCURSO DO MÉTODO 65

CAPÍTULO 9
FEMINISMO E GÊNERO 71

CAPÍTULO 10
FEMINISTAS, ATÉ QUANDO? 79

EPÍLOGO 87

UNIVERSO REFERENCIAL FEMINISTA 91


11

CAPÍTULO 1

QUEM SÃO ELAS?


O “NÓS” DO FEMINISMO

“Não me liberte, eu me encarrego”!


Slogan Feminista

O QUE É O FEMINISMO? Esta é uma questão a


ser respondida por um conjunto de datas ou por uma
história controversa. A resposta a esta pergunta será
apresentada nas páginas a seguir. Compreender o
feminismo é também se interessar pelos problemas que
ele coloca e se apresenta, por sua caixa de ferramentas,
suas mutações, suas contradições, seus limites e seus
recursos e pelas proposições de uma revolução política
e cultural maior, em marcha desde o século XIX; pela
maneira de fazer do sujeito, da política, da cultura,
da arte, do cinema, das mídias, pela fabricação da
feminilidade e da masculinidade; de mudar o sexo e sua

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contribuição para o conhecimento; de se generificar, de


se dominar ou de ter medo; de ter modificado a vida de
milhares de mulheres e não ter conseguido mudar muitas
outras; de ser uma linha divisória.
Não se nasce feminista, torna-se! Este pequeno livro
destina-se às mulheres que se tornaram feministas sem
privilegiar as mais conhecidas. Compreender o feminismo
é adentrar em suas correntes, em seus cenários e nos
seus debates. E, para começar, apresentamos uma
questão diferente da definição de feminismo, a saber:
quem faz o quê hoje? Quem são as feministas?
Mas é óbvio! As feministas são mulheres que lutam
por outras mulheres e se identificam com todas/os
aquelas/es que sofrem com a opressão patriarcal ou com
a dominação masculina. No entanto, esse “nós” feminista
está longe de ser assim tão evidente. Em sua composição,
sem a pretensão de representar as mulheres de modo
totalizante, há muitos assuntos sensíveis que estão
no coração do feminismo contemporâneo. É a mesma
questão colocada pela terceira onda feminista (nos anos
1990) aos feminismos da primeira e da segunda vaga
(as sufragistas no século XIX e o movimento lésbico-
feminista da década de 1970).
Como des-homogeneizar esse “nós” feminista que
se revelou excludente?
Não as incluindo politicamente, as feministas brancas
ocidentais tiveram que escutar as feministas negras

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que se manifestaram nos anos setenta nos Estados


Unidos. Sem falar das feministas chicanas e de muitas
outras que bateram o punho na mesa. Estes feminismos
levaram em conta as especificidades de sua opressão.
Elas assinalaram, assim, o fato de feministas brancas
e de classe média participarem ou mesmo reforçarem
a opressão. Na verdade, as opressões ligadas à raça/
etnia, à classe, à idade, à capacidade, ao gênero e
à sexualidade estão imbricadas (chamamos isso de
interseccionalidade). Logo, é abusivo hierarquizar tais
opressões com ênfase maior na opressão patriarcal como
se ela fosse a matriz ou uma categoria trans-histórica.
Como se as outras categorias opressivas viessem depois
e fossem menos importantes.

Utilizar a escravatura como metáfora da opressão


das mulheres, por exemplo, é um hábito eurocêntrico e
racista persistente no feminismo branco. Exatamente
como essa forma de resgatar o racismo, nos debates
sobre a desigualdade entre homens/mulheres, na França
atual, para insinuar que esse seria indiscutível, mais fácil
de denunciar, ou, ainda... mais visível.

Racismo: o queridinho da discriminação? Melhor


compreendido ou menos tolerado que o sexismo?
Na chamada era pós-colonial e pós-11 de setembro, a
questão não seria, antes, perguntar-se como o feminismo
deveria evitar a repetição da história da carta colonialista
do resgate da mulher velada, pelas mãos do seu marido

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violento, do estuprador árabe? Para não se apagar as


feministas muçulmanas e islâmicas, cujas existências
começam a ser reconhecidas, e admitir que nem a
modernidade nem o feminismo são exclusividades do
mundo ocidental.

É EVIDENTE QUE O ATUAL DESAFIO DO FEMINISMO


É REDUZIR OS SEUS EFEITOS EXCLUDENTES. Algumas
se ofendem com essa crítica e se refugiam nos bons
sentimentos feministas. Entretanto, o feminismo é
grande o suficiente para admitir que deve conjurar seu
eurocentrismo e seu ponto de vista de classe. Se não o
fizer, corre o risco de apontar os dedos e promover uma
visão éterea e essencializada das mulheres, podando-
as, voluntária ou involuntariamente, de sua diversidade

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e complexidade. Ademais, o feminismo também tem


dificuldade em romper com sua visão heterocêntrica,
ainda que seus alicerces tenham sido dissolvidos pelas
lesbianas feministas.

Indiretamente afetadas pela luta em prol do aborto


ou em prol da pílula, as lesbianas não pouparam esforços
desde os anos setenta. Reconhecimento político: ponto
final. Como se sentiam amarradas em um feminismo
identificado como “feminino” e não correspondente à
sua expressão. Ou do gênero masculino (como no caso
das lesbianas butch1), ou emprestado de outros registros
de feminilidade! Longe de representar reivindicações
minoritárias fragmentadas, as/os transexuais ou
personagens transgêneros feministas e o feminismo
queer nos mostram até que ponto o feminismo é
dependente da definição de mulher e de feminilidade,
bem como da concepção de diferença sexual.

O QUE SERIA, ENTÃO, ESSA NORMA DA DIFERENÇA


SEXUAL que nos é constantemente lembrada na
sinalização das portas dos banheiros? Duas portas, dois
sexos, dois gêneros. Por que razão essa seria a base de
todo cenário feminista? Resumimos: tanto para o homem
como para a mulher, haveria uma continuidade infalível
entre seu sexo biológico e seu gênero. Um sexo feminino,

1
Autodenominação para de lésbicas que apresentam uma expressão masculina
de gênero.

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órgãos genitais femininos. Idem para os rapazes.


Contudo, a existência de mulheres e de feminilidades
masculinas (esportiva, menino, butch, drag king, etc.),
de masculinidades femininas (afeminado, drag queen,
etc.) prova que as relações causais entre sexo e gênero
(o primeiro causaria o segundo) ou de expressão (o
gênero exprimiria o sexo) não têm fundamento biológico
ou natural. E a hipótese freudiana da bissexualidade
psíquica ou da existência de um terceiro gênero, como
disseram no século XIX, não altera o caso. Não é nada
mais que o assunto batido da confusão dos gêneros.
O que o feminismo tem a ver conosco? O tipo de
modelo sexo/gênero que ele endossa e que determinará a
sua política. O modelo de feminilidade e de masculinidade
que ele defende ou autoriza. O tipo de sujeito feminista
que ele abraça. O feminismo pode desempenhar o
papel de guardião do museu da diferença sexual. Pode
também considerar a existência de uma multiplicidade
de gêneros. Beneficiar-se das subculturas gay, lesbiana,
trans, queer, etc., visto que elas propõem gêneros e
papéis sexuais diferentes que podem interessar a todas
as que não queiram se conformar com as normas de
gênero culturalmente impostas.

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Certamente, essas são as mesmas normas que


acorrentaram gerações inteiras de mulheres que
distribuíram o “manual da feminilidade natural”.
Entretanto, se a feminilidade não é mais um domínio
exclusivo das mulheres biologicamente definidas, se ela é
uma construção cultural, se é móvel, então, a feminilidade
natural ou original é um mito e a produção de diferentes
feminilidades é possível. Podemos dizer o mesmo da

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produção e da transformação das masculinidades. E a


transformação da masculinidade não seria também um
objetivo feminista?

E S S A P R O L I F E R AÇÃO D E F E M I N I L I DA D E S
(FEMINILIDADES MASCULINAS INCLUÍDAS) DESDOBRA
UMA DAS FUNÇÕES DO ANTIGO FEMINISMO: revelar o
caráter puramente social e construído da feminilidade
imposta. Digamos que o restritivo modelo de
feminilidade, em nome de uma natureza que não existe,
serve sobretudo para confinar as mulheres em seus
serviços ingratos ou monótonos. A atribuição de papéis
masculinos e fronteiriços entre mulheres e homens é
porosa, e está longe de ser uma novidade. Os períodos de
guerra mostraram como a sociedade pode acomodar e
inverter a proibição do acesso de mulheres às chamadas
atividades masculinas quando a pátria está em perigo.

Durante a Segunda Guerra Mundial, nos Estados


Unidos e em outros países, as mulheres foram recrutadas
com toda sua força de trabalho pela indústria militar para
produzir armas e bombas. O esforço de guerra empurrou
as mulheres para fora do espaço doméstico e de seus
papéis convencionais. We can do it (Nós podemos fazer
isso)! Proclamava orgulhosamente Rosie, a rebitadora,
arregaçando as mangas para trabalhar na fábrica,
conforme mostrava um cartaz de propaganda americana,
que ficou famoso o suficiente para se tornar um imã de
geladeira ou uma imagem numa sacola de compras. O

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feminismo não diz mais do que isso, afirmando que as


mulheres devem ter acesso às profissões ou atividades
consideradas masculinas, da aviação aos esportes,
passando pela carreira política, artística ou intelectual.
Rosie “mostrou o muque” à condição feminina.

Não nos surpreende que ela tenha se tornado um


ícone feminista lembrado por Christina Aguilera e Pink.
Les skyboys (rebitadores de arranha-céus) tiveram
de contar com as Rosies por um longo tempo. Quando
os homens regressaram do front, as mulheres, que
haviam mostrado o bíceps e tomado gosto pelo trabalho
remunerado e pela independência, não tinham mais
vontade de retornar para seus lares e de colocar o avental
de dona de casa. O New Look, inventado em 1947 por
Christian Dior para remediar o risco de masculinização
das mulheres, impunha o retorno da cintura fina e dos
ombros pequenos e foi bastante revelador do tipo de
ansiedade suscitada pelo livre exercício do gênero pelas
mulheres.

O CENÁRIO DA PROLIFERAÇÃO DOS GÊNEROS


REDISTRIBUI AS CARTAS. Convida a uma exploração
pessoal e política, às experiências de subjetivação, e a
questionamentos que não são diferentes do feminismo
da segunda vaga e que dizem respeito a todo mundo. Ao
considerar uma multiplicidade de expressões de gênero
e de sexualidades, como faz o feminismo da terceira
onda, a vocação do feminismo multiplica-se. O paradoxo

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é importante: o sujeito e o horizonte do feminismo já


não são exclusivamente as mulheres, mas as mulheres,
as feminilidades e as masculinidades. Suas definições
podem permanecer abertas, fazendo da mulher e da
feminilidade processos. Pontos de chegada em vez de
pontos de partida fixos. O mesmo se aplica ao homem
e à masculinidade. Nessa configuração, a contribuição
do feminismo para a mulher, a sua base óbvia, é mais
complexa. Descolando-se voluntariamente de toda
reificação da mulher, da diferença sexual, mas também de
uma concepção homogênea e natural da masculinidade.
No videoclipe intitulado Raise Your Glass, a cantora Pink
aliou empoderamento (raiva e poder de ação) a um mix
de gêneros, reencarnando Rosie. Os limites de gênero
explodiram! Rosie, a santa, bem como você não deixarão
a camisa xadrez por um tailleur Chanel.

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CAPÍTULO 2
MAS, O QUE ELAS QUEREM?
CENÁRIOS

AO FIM DO SÉCULO XIX, DEBAIXO DAS PEDRAS,


O FEMINISMO. O FEMINISMO TOR NA-SE UMA
MOBILIZAÇÃO COLETIVA. A luta pela redução das
desigualdades entre homens e mulheres ganhou mais
velocidade e tomou os espaços públicos. O feminismo
vai às ruas. Na Inglaterra, as sufragistas organizaram
manifestações e ações de desobediência civil que nada
devem ao Act Up2. Prisões voluntárias, greves de fome,
greves fiscais, nada as detiveram. Algumas mulheres
perderam a vida. Em pauta, o acesso à educação, à
propriedade, ao voto e ao trabalho remunerado. Esses
e tantos outros direitos foram negados às mulheres pelo
texto da Declaração dos Direitos do Homem e da Cidadão

2
Nota de tradução (NT): Act up é um movimento internacional de ações
afirmativas contra a AIDS e conhecido por suas ações impactantes.

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de 1789, que as tornou cidadãs passivas como também o


fez com as crianças e as pessoas estrangeiras.

O feminismo dos direitos tornou-se uma das linhas


vermelhas do feminismo. É, no entanto, um feminismo
reformista, frequentemente liberal e, algumas vezes,
individualista. Suas demandas são setoriais e não
desafiam a sociedade de maneira sistêmica. Esse não
foi o caso, todavia, do Movimento de Libertação das
Mulheres (Women’s Lib nos Estados Unidos e Mouvement
de Libération des Femmes na França), que foi a fonte e o
produto de uma grande mudança social.

Como movimento social e político, o Movimento


de Libertação das Mulheres dos anos 1970 fez parte
das grandes mobilizações internacionais derivadas da
década de 1960, entre as quais: o Movimento dos Direitos
Civis nos Estados Unidos, o Movimento Pacifista contra
a guerra do Vietnã e os Movimentos Estudantis. Apesar
disso, ele também foi gestado junto ao irritante hábito
da esquerda de marginalizar as mulheres, relegando-
as às tarefas políticas subalternas ou adiando suas
reivindicações. A revolução primeiro, o feminismo
veremos depois. Sim, mas quando?

O FEMINISMO DE LIBERTAÇÃO DAS MULHERES FOI


ALÉM DO FEMINISMO REFORMISTA. Ele partilhou de uma
agenda de direitos mais ampla, porém sem negligenciar
outro objetivo igualmente importante: o advento de vidas
femininas diferentes por serem feministas. O movimento

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desenvolveu uma técnica de politização precisa com a


tomada de consciência (consciousness raising). Elas se
reuniram em grupos para colocar em prática essa famosa
conscientização, para traduzir coletiva e politicamente
a experiência pessoal das mulheres. Uma vez apertado
o gatilho, complica-se. O mundo jamais será o mesmo
e não necessariamente se tornará mais acolhedor. A
tomada de consciência é indissociável de outro slogan:
“o pessoal, ou o privado, é político”. O casamento, o
trabalho doméstico e a sexualidade não recaem somente
na esfera privada. São partes relacionais das instituições
e das formas de organização social que alimentam a
opressão das mulheres: o Estado, a família, a divisão
de trabalho, o controle da reprodução. Porém, como
podemos compreender isso se permanecemos isoladas
e pensamos que esses problemas são pessoais ou se
reduzem a conflitos individuais? O feminismo responde:
criando laços de solidariedade entre as mulheres,
decifrando o caráter sistêmico da opressão e nos
organizando.

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O feminismo gerou sua própria teoria, uma


análise crítica do patriarcado entendido como um
sistema opressivo, mas também as ferramentas para
transformar a sociedade e sermos capazes de viver nela
como feministas. Lançados no final dos anos 1960 por
membros do New York Radical Women3, os grupos de
conscientização atraíram mais de cem mil mulheres na
década de 1970, apenas nos Estados Unidos.

OUTRA GRANDE NOVIDADE DO FEMINISMO DA


SEGUNDA ONDA: A EMERGÊNCIA DO CORPO FEMININO
E DA SEXUALIDADE. Tendemos a esquecer hoje em
dia, mas o Movimento das Mulheres foi, sobretudo, um
movimento de libertação sexual. O corpo e a sexualidade
não foram somente percebidos como fontes de opressão.
Eles foram investidos de formidáveis oportunidades
de conquista da autonomia, de experimentação e de
libertação. A emancipação das mulheres não se resumiu,
portanto, a uma cruzada legislativa pela conquista dos
direitos relativos ao controle da reprodução (aborto
e contracepção). As mulheres tiveram a oportunidade
de sair da sua alienação social e cultural: de não ter
vergonha de abortar, de não desejar a maternidade,
de não se casar e, sobretudo, de aprender a gostar de
sexo. Para tal, elas precisaram mudar e dar fim a uma
série de interdições interiorizadas. O feminismo, nesse

3
NT: Grupo feminista radical da segunda onda que existiu de 1967 a 1969.

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sentido, está longe de se reduzir a uma crítica negativa


e aos lamentos das “mal comidas”, conforme disseram os
seus opositores. Ele também milita por uma feminilidade
eufórica que em todas as áreas não é mais passiva.
De objeto, a mulher deve se tornar sujeito. Ela pode e
deve aumentar seu poder de ação (empoderamento),
inclusive na sexualidade. Como privado e cultural, o sexo
é também político. A aventura do feminismo não é nada
mais do que uma transformação social radical, coletiva
e subjetiva, e que vai muito além do quadro de direitos
e de reivindicações por igualdade.

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Como todo movimento político importante dos


séculos XIX e XX, o feminismo tem sido marcado pelas
principais correntes do pensamento que lhes atravessa.
Ele também as adaptou, flexionou e criticou.

O feminismo radical se inspirou no marxismo no


mesmo ínterim que apontava seus limites. O marxismo
não priorizou a luta de classes em detrimento da luta
de classe das mulheres contra a classe dos homens?
Para as feministas materialistas, a utopia marxista e
a resolução dialética do conflito opositor da classe
trabalhadora e da burguesia foram transpostas ao
nível das classes do sexo (classe dos homens contra a
classe das mulheres), para permitir a abolição do seu
antagonismo. Na França, o foco maior foi na questão
do trabalho e do capitalismo em detrimento das trocas
culturais (alta e baixa cultura, cultura popular, práticas
da vida cotidiana), menos negligenciadas nos países
anglo-saxões. Como o milagre marxista ou feminista
materialista não aconteceu, o feminismo materialista
continuou sua crítica do capitalismo, com as variantes
anarquistas ou separatistas, dentro de seu quadro de
organizações informais autogeridas.

Nos anos 1990, o pós-estruturalismo reforçou as


concepções sócioconstrutivistas de gênero (feminilidade
e masculinidade) adicionando uma forte dimensão
discursiva: os gêneros não são simplesmente uma
construção social que se opõem ao sexo biológico

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considerado “natural”. Os gêneros e os sexos


tornaram-se construções discursivas ou performativas
abusivamente naturalizadas. Para descobri-los,
precisamos expor seus funcionamentos. Para ultrapassá-
los, precisamos lhes confrontar com práticas alternativas
de gênero. Não basta mais afirmar que os gêneros
são construídos. É necessário demonstrar que essas
construções não são tão rígidas e infalíveis assim.

Emergiram, portanto, novas formas de ação e novos


paradigmas.

Qual a diferença entre a feminilidade exigida e a


feminilidade de uma drag-queen? Esta é uma questão
provocativa, e uma resposta desarmante que toda
mulher se preparando durante horas para uma noite
ou para um casamento sabe de cor: a questão do salto
é uma diferença de grau e não da natureza. É uma
questão de ritual e de repetição. Os gêneros normativos
precisam dessa encenação para existir e para se impor.
Passamos boa parte de nosso tempo a performar os
gêneros como devem ser. Não há nada de natural nisso.
Não é por acaso que o gender fucking4 dos anos 1990
derivou-se da teoria feminista lesbiana e é vivenciado,
ao mesmo tempo, no cotidiano das culturas gay, lesbiana
e queer. Não se trata mais de internalizar as normas de

4
Literalmente, a prática que consiste em “foder” seu gênero.

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gênero e nem de fornecer a chave da sua desconstrução.


Instrutiva para todos.

Esse cenário da proliferação de gêneros é diferente


do cenário abolicionista do feminismo materialista e
do feminismo legalista. Para essas duas correntes, a
finalidade é abolir os gêneros que designam as classes
sexuais como formas de exploração capitalista ou como
marcas que desaparecerão com o advento de uma
igualdade verdadeira.

Marxista ou não, o horizonte abolicionista é um


exemplo clássico da tradição francesa universalista, bem
anterior ao feminismo do século XIX. A outra face: a dos
direitos para todos. Continuamos à espera e sabemos
que as mulheres não fizeram parte da Declaração de 1789
apoiada pela Constituição Francesa. Progredimos, dizem!
Isso virá, dizem os que acreditam na política do passo a
passo. Brinquem de Penélopes, dizem outras pessoas.
Entretanto, esperar faz parte de um jogo viciado. O outro
lado da moeda: a democracia emergente da Revolução
Francesa carbonizou a exceção. Está no seu DNA.
Universalismo rima com excepcionalismo.

O ABOLICIONISMO É UMA FORMA DE IMAGINÁRIO


POLÍTICO-SEXUAL QUE SE CONSTRÓI PELA EXCLUSÃO
E NÃO PELA ACUMULAÇÃO. Porém, a eliminação do
problema é a solução? Ao contrário, o cenário proliferativo
baseia-se num tumulto não hierarquizado e não
controlado entre as expressões de gênero, certamente

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entre as que já existem e as demais que estão por vir.


Nessa perspectiva, não se trata de erradicar os gêneros,
mas de lhes transformar, de adicionar em vez de subtrair.
Desse modo, a guilhotina ou a revolução de gênero? O
gender fuck ou um mundo neutro, considerando que esse
seja possível? O gênero triste ou a extinção do domínio
de gênero? A supressão do gênero “1” e do gênero “2” da
Previdência Social? Sim, mas, por quê? Para se chegar
a “10” é necessário mais gêneros, porque “1” e “2” são
insuficientes, dizem as feministas queer.
CRITICADO POR NÃO CONSIDERAR AS REALIDADES
MATERIAIS E ECONÔMICAS, O FEMINISMO DA TERCEIRA
ONDA, cujo feminismo queer é uma ramificação, propõe
cenários mais centrados na resistência às normas de
gênero e na micropolítica do que na mera denúncia da
opressão e da dominação masculina. Está na família dos
feminismos afirmativos e não vitimistas. Essa mudança
de perspectiva não se deve ao acaso ou a uma tendência
otimista. É resultante de uma concepção diferente de
poder. Desde a modernidade, o poder não se exerce mais
somente a partir de lugares institucionais clássicos como
o Estado, a lei, tampouco a partir de um só endereço, nem
de uma forma vertical. Ele se exerce por meio de uma
miríade de práticas, de saberes e de significações. Além
disso, envolve cada vez mais e mais os corpos e a vida
(aquilo que chamamos de biopolítica). Em contrapartida,
os depósitos de resistência devem também se multiplicar
para combater não uma opressão compacta, mas um

S a m B o urci er
30

poder descentralizado. Por esta razão, os estudos


culturais feministas dedicam particular atenção aos
fenômenos de resistência corporal e cultural, rastreando-
os nas mídias, na arte, na filosofia, na psicanálise, na
literatura, na cultura popular e nas práticas da vida
cotidiana.
A ideia de uma política feminista articulada sob o
prisma das diferenças ganhou terreno nos anos 1990.
Sexuais, étnicas, geoculturais, essas diferenças situam-
se em um nível social e não psicológico ou biologizante.
Nesse contexto, a política da diferença não tem nada a
ver com o feminismo diferencialista francês, embebido
de psicanálise freudiana e lacaniana, que celebrou a
autoridade radical e ontológica da mulher e da mulher-
mãe. Essa corrente, aliás, também se recusou a se
identificar como feminismo, reivindicando a constituição
de uma “Ciência da mulher”, “a feminologia”5, e mais
atrapalhou do que colaborou com o projeto feminista.
A política da diferença colocou um desafio a essa
corrente, mas também ao feminismo universalista e
ao feminismo da igualdade, pois ambos relutam em
considerar a diferença e a tratam unicamente como um
particularismo ameaçador.

5
NT: A feminologia (la féminilogie) é um neologismo francês utilizado pelo
teórico Edmund Char e por Antoniette Fouque para designar um campo
epistemológico que descreve a condição feminina e o lugar das mulheres na
sociedade, definido, às vezes, como a ciência das mulheres.

Comp re en der o feminismo


31

CAPÍTULO 3
SEXO, PORNOGRAFIA
E PROSTITUIÇÃO

Sexo = poder. Logo, a sexualidade como espaço de


poder e de luta é central no feminismo. Poderíamos até
mesmo dizer que o feminismo inventa políticas sexuais
ao olhar como o gênero é perpassado pelas relações de
poder e ao tentar repará-las. O feminismo explodiu a
definição de sexualidade. Ela nunca mais ficará restrita
ao quarto de dormir e ao ato sexual.

S a m B o urci er
32

O FEMINISMO TORNOU-SE UM MOVIMENTO DE


LIBERTAÇÃO SEXUAL NOS ANOS 1970. A primeira
onda abordou a sexualidade sob um ângulo moralista
e higienista: ainda não era pessoal e político. Se a
sexualidade cristaliza a opressão das mulheres, ela deve
ser criticada em seus usos alienantes, mas também deve
ser reconquistada e reapropriada. Nesse embate, o sexo
é o tema central. Ele tornou-se uma arma feminista
por excelência na contestação da sexualidade fálica
e na busca de uma experiência corporal diferente.
A crítica e a denúncia vieram acompanhadas de um
verdadeiro fervor sexual, exploratório e lúdico cujo
desafio foi a redescoberta da sexualidade e a sua
própria transformação. A crítica ao patriarcado gerou
uma cartografia alternativa do corpo e dos prazeres
femininos. Os workshops são dedicados à prática
da masturbação e à redescoberta do clitóris para
combater a “grande penetração”, “o mito do orgasmo
vaginal” ou para valorizar “o ponto G” (“a próstata
feminina”) como o corpo cavernoso da mulher. A
“desgenitalização” da sexualidade possibilitará o fim do
sexo puramente coital, com a reprodução sexual e suas
ligações com o capitalismo. A lesbianidade torna-se a
prática da teoria feminista, pois permite uma fuga da
cultura heterossexual e os encontros entre mulheres.
Com raras exceções, essa política dos prazeres,
afirmativa e criativa, desapareceu gradualmente do

Comp re en der o feminismo


33

movimento atual, cedendo espaço às críticas negativas


sobre a sexualidade e ao enfoque na violência sexual.

A LUTA CONTRA O ESTUPRO E AS CAMPANHAS


CONTRA A PORNOGRAFIA MOBILIZARAM O FINAL DOS
ANOS 1970. No entanto, apenas em meados da década de
1980 é que a guerra contra o sadomasoquismo lesbiano e
contra a pornografia tomará um rumo radical e decisivo.
A guerra sexual foi declarada. Contra a pornografia
e também entre algumas correntes feministas.
Anteriormente, as campanhas de mobilização contra
as imagens degradantes das mulheres não tinham
necessariamente um substrato sexual. Esse será o caso
das campanhas contra a pornografia, que a aproximarão
sistematicamente do estupro: a pornografia é a teoria,
o estupro é a prática. As feministas anti-pornografia
organizaram piquetes em frente aos cinemas pornôs ou
contra os peep-shows da 42nd Street em Nova Iorque,
exibindo imagens de bondages sadomasô para denunciar
a pornografia.

Violenta ou não, uma relação de causa e efeito


estabelece-se entre a pornografia e as violências
contra as mulheres, mesmo que essa relação nunca
tenha sido provada na prática. Um passo adiante é dado
quando certas feministas afirmaram que a pornografia
é, em si, uma violência contra as mulheres, justificando,
assim, o uso da lei para sua interdição, como ocorreu
em dois estados nos Estados Unidos antes mesmo

S a m B o urci er
34

dessas medidas jurídicas terem sido declaradas


inconstitucionais.
Essa concepção de pornografia dividiu e ainda
divide as feministas. Embora poucas feministas apoiem
a pornografia como representação (pois ela dificilmente
permite que as mulheres se identifiquem e se excitem)
ou como indústria, elas são contrárias à censura e ao
caráter anti-sexo do movimento anti-pornô. De fato,
isso se focaliza unicamente sobre aspectos negativos
da sexualidade e sobre a sexualidade dominada. Para
o movimento feminista sex-positive americano6, o
objetivo não é tanto reivindicar a liberdade de expressão
em si, mas propor uma defesa feminista do direito à
expressão sexual e uma concepção mais complexa da
pornografia e das representações sexuais explícitas. Em
contraponto à solução jurídica, que teve o efeito colateral
de censurar as publicações eróticas sadomasoquistas
feministas e não apenas a pornografia misógina, por que
não criar uma pornografia feminista e diferente?
Como reação à guerra sexual, as diretoras
americanas lançaram-se, com considerável sucesso, na
produção de filmes pornográficos feitos por mulheres.
A partir da França, o feminismo pós-pornô tomou
conta dos anos 1990 sonhando quebrar os códigos da

6
NT: Nascido nos anos 1980, o Movimento Sex-positive apregoa que a liberdade
sexual é um componente da emancipação feminina.

Comp re en der o feminismo


35

pornografia dominante. Contra todas as expectativas,


na era do pornô na internet, os espectadores retornam
aos cinemas para assitirem os festivais de filmes
pornográficos feministas.

O problema nunca foi, portanto, a pornografia


em si, mas o seu conservadorismo ao representar as
práticas sexuais. As mulheres “exóticas”, “os garanhões
negros” e seu sexo excessivo são comuns na pornografia
de massa, que difunde esteriótipos racistas bem
conhecidos sobre a suposta “hipersexualidade” bestial
das pessoas negras e das mulheres vadias.

Por outro lado, o movimento anti-pornô reiterou


uma posição binária e essencialista dos gêneros (a
mulher inocente e subordinada de um lado e os homens
dominantes e violentos do outro), confirmada por sua
guerra contra as subculturas sadomasoquistas e butch/
femme dos anos 1990, assimilada às culturas dos machos
ou masculina culpável.

Por efeito, a lesbianidade não vale como prática


política feminista se apenas for sinômimo de “sexo
entre duas mulheres femininas”. Contudo, essa é
uma das muitas combinações na cultura lesbiana
que incorpora diversas formas de masculinidades
femininas a desempenhar um papel na atração sexual.
As lesbianas masculinas foram acusadas de colaborar
com o patriarcado. E a erotização do poder nos jogos
sadomasoquistas consentidos foi denunciada com o

S a m B o urci er
36

argumento de que o poder é essencialmente masculino.


Assim, o retorno ao sexo penetrativo e a chegada do sexo
protético, com as várias metamorfoses e reapropriações
do vibrador nos anos 1990, passaram a ser interpretados
como traições ou uma regressão.

A réplica das feministas sexo-positivas e


posteriormente pró-sexo 7? Elas evidenciaram a
“consensualidade” como regra nas trocas e nos jogos
sexuais, lembrando-nos que o sexo é tudo, menos natural.
Esse feminismo também insistiu no empoderamento
proporcionado pela apropriação da masculinidade pelas
mulheres ou mesmo na produção de novas formas de
masculinidades não patriarcais e não biológicas, uma vez
que essas independem do corpo masculino.

O debate sobre a prostituição tem pontos em


comum com a questão da pornografia. Para algumas
feministas, tanto a prostituição quanto a pornografia
tornaram-se uma violência contra as mulheres ou mesmo
um estupro, considerando que a atividade da atriz pornô
ou da prostituta não pode ser exercida sem que seja
de modo coercitivo. Nesse sentido, a exploração não é
simplesmente econômica. Ela é também moral: o comércio
sexual, mesmo consentido, implica na mercantilização
do corpo, o que seria inaceitável. Ademais, a prostituição
teria sempre uma origem traumática. Isso seria explicado

7
Declinação hexagonal do movimento sex-positive datada de 2001.

Comp re en der o feminismo


37

pelas violências sexuais sofridas durante a infância


(particularmente, os estupros) e se traduziriam por
problemas psicológicos tais como a dissociação psíquica
ou descorporalização. Todavia, esse discurso médico
e psicológico patologizou as prostitutas e lhes negou
toda a capacidade de ação. Em relação à venda do corpo,
algumas feministas insistem em afirmar a continuidade
existente entre certos tipos de relação homens/
mulheres: o casamento e a prostituição, por exemplo,
cujo ponto em comum é a procura de compensações
financeiras em troca de serviços sexuais. Elas são
contrárias a todas as formas de exploração econômica
ou outras (indústria do sexo e o tráfico de mulheres) e
militam pelo exercício do trabalho sexual independente
e por um estatuto correspondente (sem proxeneta,
incluindo o Estado).

As abolicionistas que se mobilizaram para além da


divisão direita/esquerda e da esfera puramente feminista
defenderam uma interdição da prostituição que deveria
efetuar o seu desaparecimento. O Estado interviria para
punir os proxenetas, seus clientes e salvar as prostitutas
da prostituição.

Para as trabalhadoras do sexo e para as putas (para


retomar a sua autodenominação), que se organizaram
desde os anos 1970 (na forma de movimentos sociais
ou sindicais), a urgência, sobretudo, é descriminalizar
a prostituição. O trabalho sexual deveria ser retirado

S a m B o urci er
38

de seu status de ilegalidade, o que é uma conseqüência


da regulamentação estatal da prostituição. Onde as
feministas abolicionistas viram uma exploração sexual
e econômica inequívoca, as trabalhadoras do sexo e
as putas feministas vêem um trabalho que deveria ser
reconhecido sócio, jurídica e culturalmente falando. O
não reconhecimento de sua atividade e a ausência de
um estatuto originam-se na base de violência contra
as prostitutas e, nominadamente, do assédio policial
cotidiano. Além disso, as trabalhadoras do sexo dispõem
de conhecimentos específicos, de recursos feministas
e culturais que são trunfos na luta contra a prostituição
forçada, contra o tráfico de mulheres e contra o abuso da
indústria do sexo, bem como trunfos no combate ao HIV/
Aids Desde que as feministas abolicionistas não falem
por elas. Feminismo e prostituição, portanto, não são
incompatíveis. Ao contrário: muitas trabalhadoras do
sexo insistem no fato de as diferentes atividades ligadas
à indústria do sexo, do trabalho sexual ao strip-tease,
serem fontes significativas de empoderamento e de
afirmação sexual. Já dizia o célebre slogan feminista
da década de 1970: “Meu corpo, minhas regras”! Logo
complementado por outro menos conhecido, advindo das
primeiras mobilizações das “putas” de São Francisco: “A
bunda é minha, o cu é meu”.

Comp re en der o feminismo


39

CAPÍTULO 4
A CONQUISTA DO
ESPAÇO PÚBLICO

A França é um dos países ocidentais onde as


resistências à presença das mulheres na esfera do espaço
público (político, cultural, artístico e intelectual) são mais
fortes. O peso da tradição republicana universalista em
todo o feminismo francês reforça a imposição de uma
democracia abstrata e irreal. Isso explica em grande
medida o particularismo e o déficit democrático.
De fato, o espaço público é generificado: pertence
tradicionalmente aos homens que nele praticam o
comércio e a política. As mulheres foram e continuam
sendo designadas ao reduto doméstico e privado. A
conotação negativa da expressão “mulher pública” diz
muito sobre o fato do espaço público ser um lugar de
privilégios masculinos.

S a m B o urci er
40

O acesso à esfera profissional e à representação


política cristalizou, assim, o esforço das feministas
desde a primeira onda. Para simbolizar suas exclusões
do direito ao voto, as sufragistas inglesas ocuparam
fisicamente o espaço público, acorrentando-se às grades
do Parlamento no início do século XX. Em 1918, foram
parcialmente bem sucedidas, precedidas pela Nova
Zelândia e pela Austrália, que concederam às mulheres

Comp re en der o feminismo


41

o direito de votar e de ocupar posições políticas,


respectivamente em 1893 e 1895. Se as mulheres
nos Estados Unidos conquistaram o voto em 1919, foi
necessário esperar até 1945 para que pudessem votar
na França. O problema: o direito ao voto não resolveu
a questão da representação política que permaneceu
majoritariamente masculina.

A PARTIR DE 1945, O FEMINISMO DA IGUALDADE


DOS SEXOS E DOS DIREITOS DAS MULHERES SE
INTERNACIONALIZOU E SE INSTITUCIONALIZOU por
meio de organismos internacionais como a ONU, à
época europeus, como o Conselho da Europa. Um
novo registro político se impôs: o da luta contra a
discriminação direcionada às mulheres, requerendo o
uso de ferramentas, como a ação afirmativa, que deveria
permitir o fim da igualdade formal e das desigualdades
reais.

Doravante, essas desigualdades foram constatadas


e são mensuradas com a instauração de estatísticas
e de boas práticas. Os Estados foram encorajados a
implementar legislações e medidas preferenciais a fim
de garantir a igualdade homem/mulher.

Algumas feministas francesas originárias do


Movimento de Libertação das Mulheres aprofundaram
sua relação com a prática do poder institucional e do
feminismo de Estado. Elas engrossaram as fileiras

S a m B o urci er
42

do feminismo reformista que vê nos meios legais a


embreagem para a mudança.

No entanto, a cultura universalista francesa, como


sabemos, é alérgica a todas as formas de ação afirmativa
ou correlatas, mesmo que temporárias, pois são vistas
como ataques ao princípio de igualdade baseado no
tratamento não diferenciado dos indivíduos. As feministas
optaram, portanto, por uma adaptação francesa da noção
de “paridade” para solucionarem as sub-representações
das mulheres na política. Embora essa estratégia tenha
sido concebida para evitar a acusação de estabelecer
cotas ou medidas “discriminatórias no estilo anglo-
saxão”, ela não conseguiu resolver o problema: em 2012,
a França ficou para trás e todos os partidos políticos
preferiram pagar as sanções financeiras aplicáveis
em caso de desrespeito à Lei da Paridade aprovada
em 2002.

Como todo cenário feminista, o da paridade implica


uma definição e um papel para a diferença sexual. O
trabalho das historiadoras feministas mostrou que o
universalismo abstrato corresponde, na verdade, a um
universalismo masculino, e que a exclusão das mulheres
da esfera pública, desde a Revolução francesa, não
é nem um acidente nem um preconceito, mas sim
parte fundamental do funcionamento democrático
derivado do Iluminismo. A ideia das feministas
paritaristas reformistas é remediar essa disfunção

Comp re en der o feminismo


43

crônica, fazendo da paridade um princípio de acesso à


uma forma de igualdade compensatória, que permitiria
realizar a igualdade total, incluindo-a na outra metade
do mundo, as mulheres. Somente essa reintegração
permitiria alcançar a verdade universal, levando em
conta a dimensão sexuada da humanidade, para passar,
posteriormente, a uma igualdade ideal e neutra. Com
essa concepção de igualdade e de diferença sexual, a
paridade, mais do que apenas uma simples ferramenta,
adquiriu um valor transcendental, fundante e atemporal.
O problema, contudo, não reside apenas no fato de ela
não ter provado sua eficácia, mas também no fato dessa
concepção de democracia suprema carregar em seu
seio a potência excludente que ela mesma denuncia. Ela
impõe o primado político da diferença sexual como fonte
de desigualdade social e como um modelo naturalizante
e binário que excede os gêneros reais. Essa primazia
como fonte primária da desigualdade é ainda mais
questionável, pois introduz uma hierarquia entre as
formas de opressão (em comparação à racialização, por
exemplo).
Na sua versão absolutista, a paridade articulada
apenas em torno do eixo da diferença sexual reaviva,
portanto, uma forma de excepcionalismo democrático.
A renovação de seu universalismo é incompleta e não
considera os outros esquecidos da democracia moderna,
que os são os pobres, as minorias racializadas e/ou
sexuais. Essa estratégia também instituiu uma sequência

S a m B o urci er
44

de ações políticas. Ao propor uma versão enxuta da


paridade reduzida a dois termos, as mulheres estão
em primeiro lugar, embora a paridade em si não seja
necessariamente binária e possa ser compreendia
culturalmente de várias maneiras.
Em um país universalista e anti-multiculturalista,
esse sequenciamento e essa forma de paridade entram
diretamente em conflito com as reivindicações atuais de
“diversidade”, que estão bem longe de se limitar apenas
aos homens. Para além de sua eficácia, as medidas de
afirmação positivas flexibilizaram-se ao longo do tempo
e favoreceram a coexistência, ao invés da competição,
entre ações em direção aos excluídos do espaço público.
Elas não necessitam estar consagradas nas clausuras
pétreas da Constituição, já que isso não é garantia da
verdadeira transformação social e da representação
política. Então, a paridade à francesa: uma falsa amiga
da igualdade?

Comp re en der o feminismo


45

Capítulo 5
CULTURAS DE MULHERES,
CULTURAS FEMINISTAS?

EXISTE UMA CULTURA DE MULHERES? Ela foi


interditada? Ou essa cultura existe, mas foi invisibilizada
ou não foi reconhecida como tal? Durante muito tempo, o
status de escritor, por exemplo, foi reservado aos homens,
enquanto as mulheres foram taxadas de rabiscadoras
sentimentais desde que ousaram reivindicar uma carreira
literária. Mas tudo ainda depende da definição de cultura
adotada e das estratégias escolhidas. Se cultura rima
com a ideia de adotar a noção de estética da alta cultura
(as artes nobres), e partindo da observação do feminismo
de segunda onda de que a cultura da mulher é feita
no interior do patriarcado, como poderíamos escapar
dessa definição? Como poderemos ter a certeza de
que forjamos ou encontramos culturas de mulheres
que não estejam determinadas pela cultura masculina
dominante? Existiria, no passado e no presente, uma
cultura fora da cultura patriarcal suscetível de estar

S a m B o urci er
46

investida por diferentes práticas femininas? A resposta


do feminismo diferencialista é: sim, considerando sua
definição de mulher, que seria radicalmente diferente
da definição de homem do ponto de vista biológico e/
ou psicológico. A chegada das mulheres na escrita
conduziram a uma escritura diferente tanto em forma
como no conteúdo. Reconectadas ao seu eu feminino,
à sua função materna diferenciadora, a um estado pré-
simbólico e pulsional, a escritora reencontraria o caminho
de sua própria criatividade.

Comp re en der o feminismo


47

Nos anos 1970 e 1980, surgiram afirmações literárias


e artísticas a celebrar a irredutível feminilidade das
mulheres, como, por exemplo,  a escrita feminina à
francesa de Hélène C ixous. D enunciamos o
funcionamento falogocêntrico da linguagem graças a
Freud e a Lacan. Defendemos uma escritura experimental
autenticamente feminina, que valoriza a evocação dos
fluxos corporais femininos e uma desestruturação da
narrativa sintática antiedipiana. O limite dessa estratégia,
além de seu elitismo, foi ter se debruçado numa visão
re-naturalizante, para não dizer essencialista, da
feminilidade; foi defender a pureza da subversão literária
e uma concepção a-histórica e universalista da mulher, e
ter sido dependente de uma fixação de diferença sexual
rígida, binária e biológica.
Uma definição mais ampla e mais sociológica da
cultura, no entanto, conduz a realidades bem mais
complexas, bem menos heroicas e pouco elitistas. A
cultura popular e as práticas da vida cotidiana, em
uma palavra: o modo de vida, e o universo referencial
de um grupo, a sua relação com o “nós” de classe, de
raça, de história e de nação, são partes integrantes da
cultura. A questão, então, passa a ser entender como
as mulheres e as feministas, assim como outras
culturas subordinadas, podem ou não agir como
resistência. Sabendo que uma das características do
feminismo é manter um relacionamento problemático
com a feminilidade dominante ou imposta, uma vez

S a m B o urci er
48

que essa é também uma ramificação do sistema


patriarcal. O principal inimigo do feminismo, ainda
que não lhe seja dado muita ênfase, notadamente no
feminismo que se baseia em formas de solidariedade
intrínsecas e de solidariedade entre as mulheres (A
sororidade é poderosa, conforme dissemos nos anos
1970: A sororidade é a nossa força), também não seria as
mulheres resistentes ao feminismo ou as mulheres que
abraçam formas alienantes de feminilidade divulgadas
pelas revistas femininas?

As feministas concentraram-se naquilo que as une


politicamente e relutam debater suas diferenças por
uma questão de eficiência. Ao mesmo passo, o feminismo
tem de enfrentar suas contradições, suas variantes e
sua genealogia. Os estudos históricos, os trabalhos das
culturalistas anglo-saxãs, qualificaram a divisão entre a
alienação feminina e as resistências feministas.

As culturas da feminilidade nos séculos XVII e


XVIII, por exemplo, não reuniam apenas grupos de
mulheres subdeterminados por sua condição, seja ela
doméstica ou profissional. As mulheres estão longe de
formar um todo homogêneo que reuniria, de um lado,
sujeitos passivos, e de outro, homens econômica e
culturalmente ativos. Suas formas de resistência não
coincidem com os estandartes da ideologia feminista do
século XX. Portanto, é necessário levar em consideração
um repertório mais amplo e ambíguo dos modos de

Comp re en der o feminismo


49

resistência. A mesma coisa deve ser feita quando


se confrontam esses modos com formas de leituras
opostas ou compensatórias que empregam mulheres
consumidoras da cultura popular. Assim sendo, fãs de
sabonetes da televisão ou de romances cor-de-rosas não
são enganos culturais, nem mesmo as adolescentes que
investem na Madonna como figura feminina porque ela
representa empoderamento. Se assim fossem, as fãs
de Star Trek não conseguiriam reivindicar modificações
no cenário da série para que os papéis femininos fossem
mais autônomos e menos estereotipados. Sem cair no
populismo ou na romantização das formas de resistência
feminina, essa não passividade cultural mostra que
a consciência feminista não é a única forma de
protesto feminista. Vemos que ela pode ser útil para
romper a narrativa linear do Iluminismo (tão esquecida
das mulheres), que gostaria que avançássemos
inexoravelmente em direção às melhoras na condição
feminina ou na libertação das mulheres. Romper a
ideia de que são as mulheres das classes burguesas
e ociosas que estão na origem do feminismo desde o
século XVIII. Nos Estados Unidos, por exemplo, a cultura
da luta feminista foi transmitida pelas mulheres negras
às feministas burguesas brancas, que não hesitaram,
posteriormente, em sacrificar o direito ao voto das
mulheres negras em suas batalhas sufragistas.
É inegável que o feminismo contemporâneo forneceu
as armas de produção subjetivas e culturais de uma

S a m B o urci er
50

consciência feminista coletiva, original e poderosa.


Todavia, priva de seus meios o questionamento sobre
as bases da hierarquia, priorizando certas formas e
figuras da resistência feminista: as mulheres militantes e
reconhecidas. Como somos feministas e por que algumas
mulheres não o são? Afinal, a verdadeira questão a
afligir o feminismo, como qualquer pensamento e
movimento político, não seria a da alienação e da
servidão voluntária?

Comp re en der o feminismo


51

CAPÍTULO 6

POLÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO I:
AS MÍDIAS

A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO NÃO SE LIMITA À


DA REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA. A representação
das mulheres também é feita na literatura, nas mídias,
no cinema ou na publicidade. A opressão das mulheres se
expressa em termos econômicos e culturais. A produção
e a difusão de representações estereotipadas
de feminilidade mantêm o sistema patriarcal ou a
dominação masculina, impondo-os como naturais.
Passivas, histéricas, obcecadas por compras ou por
moda, o duplo padrão aplicado quando as mulheres
gostam de sexo: vagabundas ou prostitutas, bem ao
contrário dos homens. Nesse sentido, a opressão
das mulheres também se faz pelas imagens. O
feminismo da segunda onda e o feminismo anglo-
saxão conscientizaram-se disso e multiplicaram as
estratégias em termos de políticas de representação.

S a m B o urci er
52

Primeiramente, interessam-nos os conteúdos.


Colocamos em evidência o caráter cultural e construído
das representações negativas e dos estereótipos, e
esperamos desencadear a tomada de consciência e a
mudança. O desafio, portanto, é incentivar a produção e a
circulação de diferentes imagens que mostrem mulheres
fortes e propõem modelos a serem seguidos (de Marie
Curie à Sojouerner Truth, passando pela Mulher
Maravilha armada com seu escudo). Ou reverter os
rótulos estigmatizantes. “Chame-me de cachorra em vez
de madame” é o título de uma famosa revista feminista.
Ou me chame de Amazona, Feiticeira ou de Sapatão.
Nos anos 1970, longe de serem redefinições
superficiais, essas designações desafiaram a cultura
dominante e se referiram às mudanças drásticas e
utópicas de vida: as mulheres abandonaram seus maridos
e carreiras, experimentando a vida em comunidade
e novas formas de sexualidade, trabalharam para se
tornarem independentes, para se imporem e para viverem
de maneira diferente. O feminismo é uma contracultura
de pleno direito.

Comp re en der o feminismo


54

NESTA BATALHA, AS MÍDIAS SÃO OBJETOS DE


ESPECIAL ATENÇÃO. As primeiras ações foram tomadas
contra os jornais para contestar as publicidades sexistas,
mas também para questionar o conteúdo editorial e a
composição masculinista da redação. As campanhas
ferozes com colagens de adesivos nas propagandas
publicitárias e em locais públicos denunciaram as
representações sexistas ou as dissuadiram. Esse tipo
de pressão teve resultado em alguns países e favoreceu
a contratação de repórteres e jornalistas mulheres na
grande imprensa. Paralelamente, foram criados festivais
internacionais de filmes realizados por mulheres, que
se constituíram em uma forte e essencial identificação
para outras mulheres. Com o desenvolvimento da
teoria feminista e da análise cinematográfica (Estudos
de cinema e Estudos de Gênero), o cinema passou a
ser visto como um discurso que avança para além
da questão dos estereótipos e do debate sobre as
imagens positivas e negativas das mulheres.
Entretanto, a questão da influência das imagens
sexistas e das estratégias para combatê-las é muito
mais complexa. Como podemos alcançar produções
representativas da diversidade de experiências das
mulheres? Isso é possível? Se há imagens que deturpam
as mulheres, qual é a parte consciente e inconsciente
dos homens nessas produções? E como explicar a
persistência e o poder que eles continuam a exercer,
ou mesmo o prazer e o fascínio que eles procuram,

Comp re en der o feminismo


55

mesmo quando esses são desmistificados, inclusive em


produções direcionadas para o público feminino? Em que
medida elas participam na formação das identidades
de gênero feminino e masculino? Esse é também o
problema da recepção, que surge quando a transmissão
da mensagem fílmica não segue um esquema de
comunicação linear e simplista, mas é passível de gerar
várias leituras.
Os Estudos de Cinema ofereceram respostas a
essas questões e estratégias para renovar a linguagem
cinematográfica. Deslocaram o questionamento sobre
a representação. Já não se trata mais de saber se os
filmes constituem ou não um reflexo fiel da realidade
social das mulheres. Eles devem ser abordados como
discursos, narrativas que estruturam formas de ver,
apresentadas como universais, naturais ou neutras,
ainda que essas resultem de relações de poder que
atravessam nossa sociedade. As críticas e as teóricas
feministas mobilizarão uma ampla gama de ferramentas
teóricas, do marxismo à semiótica e à psicanálise, para
tentar compreender como os filmes funcionam. A análise
psicanalítica da posição da espectadora e do repertório
restrito de identificações à sua disposição deram um
novo significado ao objetivo, que consiste em fazer
com que as mulheres não sejam mais objetos, mas sim
sujeitos da representação. O cinema irá impor, de fato,
uma estrutura patriarcal na qual a mulher é o objeto
do olhar tanto para o herói masculino do filme como

S a m B o urci er
56

para o diretor. Seu corpo é fetichizado, como os planos


fixos de um Sternberg no rosto e nas pernas de Marlene
Dietrich. Somente o homem faz avançar a narração e a
ação. Todo o prazer visual é construído por um emissor
masculino e direcionado para um público masculino.
Nesta configuração, a mulher não poderá jamais se
identificar com o que vê na tela.
PARA SAIR DESSE ENGESSAMENTO IDEOLÓGICO E
NARRATIVO, muitas cineastas feministas optaram por
um cinema experimental não contaminado pelas formas
do cinema tradicional. A desvantagem é que a aridez
e a recusa da figuração característica desse tipo de
cinema dificilmente permite proporcionar prazer na sua
recepção ou na identificação alternativa. Além disso, a
análise e a denúncia do cinema patriarcal não funcionam
para todos os filmes, mesmo no cinema hollywoodiano e,
por força maior, em outros gêneros cinematográficos.
Outras críticas feministas têm mostrado, contra todas
as probabilidades, como os slashers movies8 (a saber,
o  Massacre da serra elétrica) reservaram-nos muitas
surpresas. Há o motivo recorrente da final girl9 que
sempre vence no final. As séries B americanas, por
mais machistas que sejam, igualmente comportam

8
NT: Sem correspondência para o português, mas pode ser compreendido
como um subgênero de filme de terror com assassinos psicopatas ou em série.
9
NT: Sem correspondência para o português, refere-se à mulher sobrevivente
em um filme de terror, à mulher que se torna heroína, que enfrenta o assassino
e se torna testemunha da história.

Comp re en der o feminismo


57

razões feministas para o empoderamento, mesmo


considerando que sejam majoritariamente realizadas
por homens (tais como os filmes de estupro e vingança
como Doce vingança). Muito estrutural, a concepção do
olhar masculino (do olhar patriarcal masculino) projeta os
lugares da espectadora, mas não considera a realidade
empírica da recepção, conforme demonstram as análises
culturalistas do cinema.
Muitas das figuras femininas na tela deixam de ser tão
passivas e os registros de identificação das espectadoras
são bem mais complexos e mais inesperados. Vejamos,
eles não mais se articulam apenas ao redor da diferença
sexual biologicamente definida. Mulheres e homens
podem praticar identificações cruzadas de gênero,
identificando-se uma mulher com um personagem
masculino, por exemplo, e a esquematização do cinema
patriarcal não considera outros parâmetros que entram
em jogo na identificação: a raça e a classe. Esse cinema
está endereçado à mulher branca e privilegia a diferença
sexual. Os pontos cegos são as lesbianas e o gays, mas
também as mulheres e os homens negros, que não
possuem o mesmo relacionamento com o chamado olhar
masculino.
A batalha das mídias está longe de terminar. Promete
ser mais difícil que o previsto e deverá progredir em
várias frentes, sem jamais se contentar em ser reativa.

S a m B o urci er
59

CAPÍTULO 7

POLÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO II:


ARTE E FEMINISMO

EM PAÍSES, LUGARES E INTERSTÍCIOS ONDE UM


FEMINISMO AFIRMATIVO PODE DESENVOLVER-SE, ele
marcou a segunda metade do século XX e impactou a
sociedade, as instituições e a arte. Exposições recentes
têm sido dedicadas à arte feminista. Suas missões
expostas, sua cenografia e sua vocação são um arquivo
vivo a contrastar com a relutância francesa e seu
tímido questionamento sobre as mulheres artistas, e
sobre as artes das mulheres que a universalidade da
arte preservaria de qualquer particularismo. A arte
feminista é indissociável de uma forma de ativismo
que pode ser explicada por seu ponto de partida:
a ausência de mulheres no mundo da arte e sua
esmagadora presença como objeto de representação,
segundo os códigos masculinos, cuja nudez é apenas
um exemplo. De acordo com esse ponto de vista, para a
arte feminista, as manifestações artísticas tradicionais

S a m B o urci er
60

precisam ser investigadas, e elas serão (na pintura e a na


escultura, por exemplo), bem como as grandes correntes
artísticas (body art, arte ambientalista, instalações, arte
conceitual). Porém, elas já não são mais importantes do
que a crítica de arte, a ocupação dos espaços públicos,
o fanzine, um show de riot grrrl10 ou mais que os vídeos.

10
Movimento punk rock alternativo, foi uma reação ao machismo e ao
antifeminismo presentes no punk rock.

Comp re en der o feminismo


61

O campo de intervenção da arte feminista é imenso.


Consiste em se distanciar das leituras e das imagens
de mulher e de feminilidade criadas pelas mídias e pelos
meios de comunicação social. Para tal, a intervenção
deve investir em representações que solucionem a
invisibilidade de partes da realidade da experiência
feminina, ou mesmo se adaptar, em uma ótica pós-
moderna, à inexistência do original e à superioridade
da cópia. As mídias de comunicação em massa são um
poço de estereótipos, talvez uma das fontes mais
visíveis e importantes de objetificação e fetichização
da mulher e de seu corpo.

É por isso que a arte feminista se apoderou de fotos


da moda, da publicidade, das representações eróticas
ou pornográficas e de filmes para criticá-los, sequestrá-
los, denunciá-los, reapropriando-se ou visibilizando seus
signos não naturais, restritivos ou opressivos. Sob essa
ótica, garantiu-se rapidamente que a feminilidade
é uma máscara, uma performance codificada,
cuja eficácia reside no seu caráter repetitivo,
desmontável, que pode ser invertida por meio de
uma descontextualização e de uma reapropriação que
permite evidenciar o seu caráter construído. Essa é
uma das razões pelas quais a performance, como forma
de expressão artística, esteve tão presente na arte
feminista da década de 1970 até o final do século XX.

S a m B o urci er
62

A PERFORMANCE FAZ PARTE DAS EXPRESSÕES


ARTÍSTICAS QUE NÃO ESTÃO RELACIONADAS À ALTA
CULTURA. Proporcionalmente, interessará menos
às artistas feministas, salvo algumas incursões no
cinema ou no vídeo experimental e na arte abstrata.
A performance, no entanto, é conveniente para
a expressão feminista assim como para outras
abordagens artísticas minoritárias. Ela é apropriada
para borrar as fronteiras entre o privado e o público,
a arte e a política, a arte e a vida cotidiana. Quer
seja um happening11 ou uma atuação, a performance
nos permite explorar o famoso elo entre o pessoal e o
político via algumas reorientações. Quando inspiradas
nos grupos de tomada de consciência12, por exemplo.
Essa é uma preocupação com a qual pouco se ocupavam
os artistas masculinos que confundiam mulheres com
pincéis, tais como Klein e suas antropometrias em azul.
A outra vantagem da performance é que ela permite
que você saia de qualquer narrativa, seja ela romântica
ou teatral, pois trabalha sem um texto fixo ou original.
Sobretudo, ela pode ser realizada com um baixo custo, o
que é importante para que a prática artística cumpra sua
vocação de permitir que um maior número de pessoas

11
NT: Nome de um tipo de performance ou ação que acontece em tempo real.
NT: Grupos de conscientização que criaram um tipo de ativismo, popularizado
12

pelas feministas norteamericanas no final dos anos 1960.

Comp re en der o feminismo


63

possa recriar a vida cotidiana ou mesmo remover a


fronteira entre arte e vida.
Não é uma coincidência que as obras feministas
mais marcantes sejam coletivas e abordem a
domesticidade do corpo. É o caso do famoso projeto
da Womanhouse13, desenvolvido por Judy Chicago em
Los Angeles no ano de 1972, exemplo de um trabalho
artístico feminista na fronteira entre privado e o público.
Redecorando completamente uma casa, as vinte e quatro
participantes da performance propuseram uma dupla
crítica à domesticidade: pela escolha da decoração
a reinvestir as funções femininas e corporais e por
transformar o espaço privado sufocante num espaço
público onde se realizam performances que encenam a
vida feminina (Waiting, por exemplo, com a performance
de Faith Wilding14).
Com a performance In Mourning and in Rage15 de
Lacy, Labowitz e Lowe, encenada em 1977, a arte e a
política sexual feminista fundiram-se. Setenta mulheres
vestidas de preto e uma de vermelho mostraram sua raiva
em frente à Prefeitura de Los Angeles, num protesto
contra o assassinato de mulheres pelo estrangulador
de Hillside e contra a cobertura sensacionalista realizada

13
https://www.womanhouse.net/.
14
https://vimeo.com/36646228.
15
https://www.youtube.com/watch?v=idK02tPdYV0.

S a m B o urci er
64

pela mídia. Nesse sentido, a arte serve para denunciar


a característica generificada do espaço público, pelo
fato de as mulheres, ao contrário dos homens, não
estarem seguras nele. Uma mulher que anda sozinha
à noite tem que se interrogar ou impor restrições a si
própria por medo de agressão. As marchas contra o
estupro e a reapropriação de um espaço público que
permanece inseguro às mulheres - como no Take Back
The Night e na Marcha das Vadias (Slutwalk) – são
diretamente inspiradas nessa constatação.

Nesse caso, é a repetição da performance artística


que garante a sua durabilidade e a transmissão feminista.
Isso é ainda muito mais precioso, pois trata-se de uma
expressão efêmera que não deixa vestígios ao menos
que seja filmada. Sua outra grande qualidade para a
arte feminista é que ela não existe sem a interação com
o público minoritário. Enfim, a performance favorece
a encenação e a utilização do corpo, um dos temas
recorrentes da arte feminista, marcada pela exploração
de gênero, incluindo a performance da masculinidade.
Por todas essas razões, a performance foi e continua
sendo um dos meios privilegiados de expressão da
arte feminista e não simplesmente feminina. Poucos
vestígios disso podem ser encontrados no mercado
de arte e nas coleções permanentes que expõem suas
“grandes mulheres artistas” em muitos outros cavaletes.

Comp re en der o feminismo


65

CAPÍTULO 8
O DISCURSO DO MÉTODO

NO BOJO ANOS 1970, A REFLEXÃO FEMINISTA


ATINGIU TODAS AS CIÊNCIAS, tanto as humanas como
as duras.

S a m B o urci er
66

As mulheres foram afastadas do campo científico


e o conhecimento científico sobre as mulheres foi
produzido a partir de uma perspectiva masculina. No
entanto, a questão também se encontra em um nível
epistemológico: que papel desempenham os gêneros
nas relações de poder inerentes à construção e à
validação do saber científico? A produção dos saberes
é política a partir do momento em que alguns deles
são desqualificados ou medidos em termos de uma
concepção de objetividade, que as feministas se
esforçarão em desconstruir ao mostrar seu caráter
social e historicamente construído e generificado. Não
se trata nem mais e nem menos que uma inversão da
neutralidade da verdade científica.
A teoria e o método experimental, com seus lotes de
procedimentos de validação, e a vida nos laboratórios,
serão objetos de investigações críticas para evidenciar
que a objetividade científica, tal como foi construída e
reivindicada, é um saber situado e parcial. Se o método
científico não se apresenta assim, é para melhor
reivindicar-se como neutro, universal ou transcendental.
A verdadeira ciência baseia-se tanto na exclusão das
mulheres como em práticas codificadas masculinas.
A posição científica de um Boyle, por exemplo, o pai
da química e da ciência experimental, foi construída
em um jogo de oposições e de exclusões de gênero: o
verdadeiro cientista é um homem branco, objetivo, sério,
técnico abstrato e transparente. Ele é o ventríloquo do

Comp re en der o feminismo


67

mundo e dos objetos. Separado do corpo, está do lado


da mente. Ao deixar de exercer a profissão de cientista,
as mulheres de um determinado nível social foram até
dignas de assistir as exibições públicas de seus célebres
experimentos com bomba de ar, mas elas não puderam,
de maneira alguma, servir de testemunhas científicas
válidas. O acúmulo das funções de espectador e de
testemunha foi de exclusividade da parcela masculina
do público, conforme os procedimentos estabelecidos
na verdade científica inventada por Boyle. Isso porque as
mulheres foram codificadas como subjetivas, ridículas
e concretas. Elas estão arraigadas ao corpo e não à
razão.
Os science studies feministas e os estudos
tecnológicos procuraram, portanto, destacar os
preconceitos da objetividade científica e restaurar a
contingência da ciência tal como ela é feita. Reavaliaram
a separação entre objetividade e subjetividade e
propuseram novos cenários para a produção do
conhecimento.

S a m B o urci er
68

Nesse sentido, a objetividade feminista é uma


denúncia da separação fictícia entre a objetividade,
construída a partir de um ponto de vista masculino,
e a política. Ela nos convida a considerar a rede de
atores subalternos que participam da produção das
verdades, sejam realizadas por mulheres ou por coletivos
localizados na base da produção científica, mascarada
pela narrativa individualista da descoberta do gênio
erudito.

Comp re en der o feminismo


69

Em uma perspectiva empirista marxista, a


objetividade é aperfeiçoável e ainda assim continua
sendo o objetivo, mas carece de ser complementada
para melhorá-la do ponto de vista feminista. Nas ciências
humanas, a promoção dos saberes situados requer
uma maior reflexão que considere o suporte discursivo
e a importância das teorias do ponto de vista. Se para
algumas feministas se trata de reiterar pontos de vista e
os saberes marginalizados, para outras é necessário, de
preferência, negociar com os benefícios proporcionados
pela visão parcial, evitando, assim, a armadilha do
relativismo.
Ao longo dos últimos 20 anos, a caixa de
ferramentas da epistemologia feminista foi testada
e complementada. As preocupações suscitadas por
essas novas práticas do saber e por esse tipo de ação-
reflexão foram abordadas. A valorização dos saberes
situados não se debruçou em um idealismo mais feliz
do que aquele que a inocentou de toda a suspeita. A
consideração de opiniões minoritárias não desencadeou
solidificações identitárias ou comunitárias. Nos países
realmente impactados pela revolução feminista em
todas as suas dimensões, incluindo suas implicações em
termos de políticas do saber, foram desenvolvidas novas
éticas em pesquisa visando a justiça e a transformação
social. Tais éticas levaram em consideração os saberes
apresentados como subalternos ou minoritários, na
medida em que esses emanavam de grupos específicos

S a m B o urci er
70

(minorias raciais, por exemplo), tentando reduzir o gesto


objetificador dos pesquisadores, inclusive nas ciências
sociais. Sobretudo, em pesquisas que mobilizaram as
pessoas estudadas, que não foram consideradas simples
objetos de pesquisa, mas parceiras ativas, atores com
pleno direito, em todos os projetos que produzem a
teoria social. A noção de “posicionalidade”, que consiste
em avaliar os próprios privilégios e os pertencimentos
geoculturais e políticos, contribuiu também para a
vontade de fazer “com” e não “sobre”. Enfim, a “política
do cânone científico”, em outras palavras, o fato de se
questionar o universo referencial praticado em locais de
saber, nas universidades por exemplo, tornou possível
deixar de privilegiar os saberes e os atores dominantes
em detrimento de outros minoritários. Nesse sentido,
as políticas feministas do saber conduziram a
importantes consequências epistemológicas. E, longe
de se limitarem à transmissão do(s) feminismo(s),
propuseram um campo interdisciplinar e um
discurso do método em constante evolução, no qual
a perspectiva feminista é transversal.

Comp re en der o feminismo


71

CAPÍTULO 9
FEMINISMO E GÊNERO

E QUANTO À RELAÇÃO ENTRE GÊNERO E FEMINISMO?


A questão é bem interessante, ainda mais porque
as feministas francesas, que agora lutam por gênero e
não pelos gêneros, eram as mesmas que, há dez anos,
viam isso apenas como uma invasão linguística anglo-
saxã inútil e ficavam irritadas pelo fato de não falarmos
em “redes sociais de sexo”. É verdade que a simples
menção do termo permite recorrer a subsídios europeus
e nacionais para pesquisas que diferem do feminismo
excessivamente político. Nas políticas públicas do
gênero mainstreaming, ao nível europeu, por exemplo (a
abordagem integrada das políticas de igualdade homem/
mulher), a noção de “gênero” refere-se agora a apenas
um indicador burocrático, de acordo com uma definição
tradicional de gênero e da diferença sexual: “gênero” é
sinônimo de “homem” e de “mulher”
“A teoria do gênero” apareceu recentemente na
mídia francesa como uma novidade. Ela figurou como

S a m B o urci er
72

uma arma considerável para se opor aos ensinamentos


adversários, aplicados no ensino médio, que mencionam
a homossexualidade como se gênero e orientação sexual
fossem a mesma coisa. Todavia, não existe apenas
uma única teoria do gênero como também esta não é
exclusividade do feminismo. A noção de “gênero” é
anterior às teorizações feministas. Os antropólogos já
a utilizavam, nos anos 1940, para se referir à construção
social dos papéis masculinos e femininos, depois foram
seguidos pelos psiquiatras e psicólogos. Ela não é
progressiva em si mesma e tem sido usada para endireitar
os homens “afeminados” e para justificar intervenções
cirúrgicas discutíveis sobre as pessoas intersexuais e
transexuais. Somente quando as teorias feministas se
apoderaram dela é que essa noção foi considerada do
ponto de vista político e inaugurou uma franca crítica
aos gêneros tais como são impostos.
O feminismo da segunda onda enfatizou a crítica à
construção normativa da feminilidade que encerra as
mulheres em papéis e em expressões de gênero limitadas.
Ele denunciou as opressões de gênero instauradoras
de assimetrias entre “masculino” e “feminino”. Quando
se destina reduzir as desigualdades entre homens/
mulheres, o termo “gênero” refere-se, então, ao casal
biológico “homem/mulher”

Comp re en der o feminismo


73

O feminismo da terceira onda, em sua mobilização


queer , propõe uma crítica dos gêneros com um
espectro diferente. O binarismo homem/mulher
favorece uma indexação na diferença sexual (homem/
mulher). Reveala-se demasiadamente restrito para
compreender outras identidades de gênero, tais
como as masculinidades femininas e as feminilidades
masculinas, e as masculinidades e as feminilidades que
não correspondem ao sexo biológico. Esse feminismo
está sempre interessado nos efeitos opressivos
gerados por concepções de gênero proibidas, mas
também nos efeitos positivos gerados pela existência
e pela possibilidade de diferentes gêneros resistentes
aos modelos normativos. Dessa feita, os gêneros são
considerados de maneira relacional e a circulação da
masculinidade e da feminilidade não dependem mais

S a m B o urci er
74

do sexo biológico. Essa evolução deve-se ao fato de o


feminismo queer dar importância a uma multiplicidade
de gêneros outrora (e ainda hoje) considerados desvios
patológicos. O feminismo da terceira onda integrou
positivamente as identidades de gênero diferentes,
especialmente aquelas que floresceram nas subculturas
gay, lesbiana, trans e queer dos anos 1990, com as
butch, as neobutch, as drag queens e as drag kings,
as transexuais e as transgêneras. O feminismo da
segunda onda explorou mais a feminilidade do que a
masculinidade. O feminismo queer, em contraponto,
trabalha a feminilidade, mas também se aventura pelo
campo da produção de identificações masculinas
(lesbianas masculinas, FtM16, MtF17, masculinidades
heterossexuais). Ele critica a masculinidade normativa
de outras maneiras.
O ponto em comum entre o feminismo da segunda
onda e o feminismo queer da terceira onda é, justamente,
a quebra do engessamento naturalista do gênero
indexado à diferença sexual, ao propor uma utilização
crítica e política dos gêneros. O feminismo da segunda
onda buscou a transformação do modelo dominante
de feminilidade. O feminismo queer busca pluralizar
os modelos de feminilidade e de masculinidade. Busca
identificar e possibilitar novas formas de masculinidades
e de sexualidades e, por conseguinte, novos corpos e

16
Trans Mulher para Homem.
17
Trans Homem para Mulher.

Comp re en der o feminismo


75

novas práticas. Mais uma vez, o ponto de encontro


entre essas diferentes abordagens críticas é a sua
concepção anti-naturalista de gênero e a sua visão
política sobre os efeitos discursivos do sistema
dominante sexo/gênero.
Com a explosão dos cursos universitários dedicados
aos estudos de mulheres e aos estudos feministas nos
países anglo-saxões no decurso dos anos 1980, com a
difusão dos gêneros como categorias de análise em
todas as disciplinas e nos estudos culturais nos anos
1990, os gêneros fizeram uma entrada esmagadora e
frutífera na teoria crítica. A entrada tardia da noção de
“gênero” no feminismo francês – que havia se recusado a
investi-lo no campo acadêmico, e seu atual confinamento
a uma sociologia das normas, contribuíram para uma
desvitalização de seu potencial crítico e político.
O exame em peso das “normas de gênero”, quando
não se trata de “gênero”, contrasta com os interesses
das feministas e dos estudos de gênero no que diz
respeito às formas de resistência aos gêneros e aos
gêneros diferentes ou alternativos. Quando o “gênero”
simplesmente se refere a diferença “homem/mulher”,
tal como entendido nas instituições internacionais que
impuseram a concepção de gênero mainstreaming18,
ou no feminismo reformista da igualdade de direitos, o
termo torna-se novamente sinônimo de “homem” ou de
“mulher” e o ganho é nulo. Na verdade, essa concepção

18
O gênero mainstreaming defende uma abordagem integrada de igualdade.

S a m B o urci er
76

contribui para a despolitização do feminismo e para o


apagamento da diversidade de gênero. Isso retarda o
reconhecimento da importância dos comprovadamente
diferentes, mas também a compreensão de uma
maleabilidade, de uma plasticidade de gênero, que diz
respeito e pode interessar não apenas às minorias
sexuais e de gênero, mas a todas as pessoas.

Destarte, o enfoque no sexo e no gênero como


uma construção cultural e social, muitas vezes, conduz
ao esquecimento da sexualidade. Na opinião de
algumas teóricas queer, o gênero não deve ser o
único parâmetro de análise porque não permite uma

Comp re en der o feminismo


77

abordagem satisfatória das sexualidades. Por efeito, a


modificação dos gêneros como fonte de transformação
social geralmente ofusca outras manifestações como,
por exemplo, a emergência de novas práticas sexuais.
É o caso das práticas sadomasoquistas onde os
gêneros não são discriminatórios. Contudo, o feminismo
abandonou rapidamente a sexualidade para se dedicar
exclusivamente à opressão de gênero (com as discussões
sobre filiação, sistema de parentesco assentado na
reprodução e na troca de mulheres, a saber) e não nas
sexualidades em suas dimensões afirmativas e não
normativas. As feministas em guerra contra a pornografia,
contra o estupro e o sadomasoquismo perderam de vista
a transformação sexual e praticaram um feminismo
“monogênero” (focado apenas nas mulheres).
Desprovida de suas ancoragens feministas e
minoritárias e de seu impacto no cotidiano, a ferramenta
teórica e política do gênero serve mais para retificar
e reforçar a visão normativa de gênero do que para
desafiá-la. Isso levanta a questão dos efeitos da
institucionalização do feminismo e dos chamados
Estudos de Gênero; das ligações entre Universidade,
movimentos sociais e as subculturas. Essa questão
é mais premente na França, onde a transmissão do
feminismo parece não ter tido o seu lugar.

S a m B o urci er
79

CAPÍTULO 10

FEMINISTAS, ATÉ QUANDO?

C O M O C O N T I N UA R Á O M OV I M E N T O DAS
MULHERES? Qual o futuro do feminismo quando seu
progresso pode parecer lento? O quanto suas realizações
(direito ao aborto e a contracepção) estão sendo
desafiadas atualmente? A causa das mulheres não foi
definitivamente adotada por instituições internacionais,
como a ONU e a União Europeia, que defendem a
incorporação de gênero mainstreaming?

No século XIX, o feminismo tomou as ruas. Um bando,


uma multidão histérica para alguns, uma felicidade e uma
celebração coletiva para outros. Com a incorporação do
gênero mainstreaming, o feminismo alcança o apoio dos
escritórios das organizações internacionais. Isso se faz,
principalmente, em parceria com os poderes públicos e o
Estado. Em termos de estratégia e da agenda feminista,
é o cenário do feminismo pela igualdade dos direitos
que se impõe em detrimento de outras correntes
(do feminismo radical e do feminismo socialista,

S a m B o urci er
80

por exemplo), e ao preço de um sério ajuste em seus


objetivos. Essa redistribuição de tarefas e da agenda
vem acompanhada de reorientações mais importantes:
uma diluição do feminismo na luta generalizada contra
as discriminações que o alocam, assim como outras
políticas públicas, no papel de protetor das pessoas;
um estreitamento de seu espectro de intervenção,
que coincide agora com a luta pelos direitos; a perda
de sua dimensão de protesto em favorecimento de um
posicionamento reformista.

Esse cenário favorece a vitimização em detrimento


das estratégias de empoderamento e do uso de
recursos microculturais, em suma, da cultura feminista.
Por exemplo, na luta contra as violências cometidas
contra as mulheres, a identificação como vítima tornou-
se condição sine qua non, tal como a intervenção do
Estado, dos poderes públicos, da sociedade civil e
jurídica. Essa condição de vítima implica numa intensa
psicologização que serve simultaneamente de análise
e de medicalização. As mulheres vítimas do estupro são,
particularmente, descritas como dissociadas ou tomadas
por um estupor que remove suas capacidades de ação
ou reação.

Assim, surgem outras questões: A generalização


dessa agenda é um progresso ou um entrave para o
feminismo? Que grau de cumplicidade mantém essa
hiper-institucionalização do feminismo com a democracia

Comp re en der o feminismo


81

neoliberal? Ainda mais, compreendemos que se a política


do gênero mainstreaming está minando o feminismo
é porque ela também supõe uma definição mínima de
gênero. O gênero: é muito mais apresentável e menos
político do que o palavrão “feminismo”. A gestão do
gênero, assim como a gestão da diversidade, suplantou
a pluralidade de cenários feministas e de identidades de
gênero. A entrada de estudantes mulheres, nos cursos
universitários especializados em gênero, que não se
consideram feministas, mas são desejantes de fazer
carreira de “femocratas”, sinaliza o fosso que separa o
feminismo do gender mainstreaming.

Podemos perguntar em que medida gerenciamento


integral dos gêneros participa de uma forma de
“pós-feminismo”. Nos países ocidentais, o pós-
feminismo assinala o fim do feminismo. Falar de
pós-feminismo significa dizer que as reinvindicações
das feministas das décadas de 1970 e 1980, incluindo a
igualdade, foram alcançadas, para, em seguida, serem
substituídas por uma política pró-mulher. A Media-
friendly é diferente do backlash19, o pós-feminismo
defende o retorno aos valores feministas tradicionais,
pois o feminismo teria privado as mulheres solteiras
e atrasado o seu “relógio biológico”. Ou melhor, o

Reação antifeminista que suscitou e favoreceu a visibilidade do feminismo.


19

NT:  Blacklash é um termo também utilizado para designar atitudes reacionárias


contra os movimentos sociais.

S a m B o urci er
82

pós-feminismo é totalmente compatível com a gestão


individual de problemas causados pelo feminismo por
meio da autoajuda ou do coaching: “é a Síndrome de
Bridget Jones”. Na era pós-feminista, o casamento e a
maternidade, mas também, fofoca e a domesticidade,
tornam-se as principais preocupações das Desperate
housewives   (Donas de casa desesperadas) e das
novaiorquinas liberadas de Sex and the City.

Comp re en der o feminismo


84

O D E S E N V O LV I M E N T O DO FEMINISMO
TRANSNACIONAL É UMA RESPOSTA CRÍTICA AO
FEMINISMO NACIONAL DE ESTADO no qual o gender
mainstreaming é a expressão. Partindo dos feminismos
das Mulheres Negras, das feministas do Terceiro
Mundo, dos feminismos multiculturais e internacionais,
ele propõe uma prática consciente de sua localização
histórica, geográfica e política. Esse feminismo aborda
a globalização de maneira diferente das políticas
feministas praticadas na Euro-América, no Ocidente ou no
Norte Global. É uma resistência aos contratos políticos
e intelectuais impostos pelo feminismo internacional
atual e à sua propensão a homogeneizar as opressões
das mulheres no mundo, negligenciando os contextos
coloniais e neocoloniais e disseminando representações
de mulheres nos países emergentes como se elas fossem
vítimas passivas. Sob o pretexto do universalismo, o
Feminismo Nacional de Estado pratica uma política
das diferenças que avalia com critérios e quadros de
referência externos aos países envolvidos. O feminismo
transnacional, no entanto, oferece conhecimentos e
ferramentas para contrariar a lógica e as práticas de
globalização, que são formatadas pela racialização e pela
classe, bem como pelo modo como reordenam as relações
coloniais e neocoloniais de dominação e de subordinação.
A imposição do modelo de direitos é substituída por
uma meta de solidariedade transnacional fundada nas

Comp re en der o feminismo


85

políticas e nas agendas colaborativas. A ancoragem


nas comunidades de ativistas feministas locais deve nos
permitir questionar as relações de poder implícitas ou
explícitas dentro da ação feminista e romper com um
conhecimento a priori sobre aquilo que poderia definir o
feminismo numa determinada época ou contexto.

Em seus pensamentos, ações e agendas, o Feminismo


Transnacional desafia o papel central do Estado-Nação
e o quadro nacionalista das políticas feministas globais
atuais. Ele convida a reconsiderar a tensão entre Estado
e as minorias racializadas, percebidas como ameaça ao
espaço nacional à medida que propõem novas formas
de etnicidade. Permite decifrar as políticas conjuntas
de retirada do véu e promoção da saia como símbolos
da modernidade sexual em relação às mulheres árabes
e mulçumanas.

Para combater a negação do papel de racialização


na formação da identidade europeia desde o século
XVI, é legitimo falar em feminismo pós-colonial ou,
simplesmente, em pós-colonialismo? Não seria
mais relevante questionar o racismo que moldou
nossa concepção eurocêntrica de conhecimento e
modernidade? Se perguntar o que está por trás da defesa
da laicidade bradada pelas feministas francesas? Um
“Civilizacionismo”? Uma forma de nacionalismo sexual?
Nutrido por uma islamofobia destinada a promover a
pseudo exemplariedade de nossa democracia sexual,

S a m B o urci er
que se torna pouco feminista contra os novos “bárbaros”
sexuais? Um dos principais desafios do feminismo
atual é, portanto, combater o aparelhamento estatal e
neocolonial dos direitos das mulheres.
87

EPÍLOGO

Você não era feminista. Mas um dia, em frente à sua


TV transmitindo em cadeia nacional a “novela DSK20”, após
um Manifesto ou cansada de levar pedradas em “seu
teto de vidro”, você se tornou uma. Parabéns! Você deu
o primeiro passo: superou os estereótipos pelos quais
as feministas vêm sendo tratadas: “feias, agressivas,
frustradas, castradas, anti-homens, mal-comidas,
fanchonas”, etc. Agora, avante! Um problema: você vive na
França, um dos países ocidentais que mais visceralmente
se opõem e que tem assistido à sua revolução. O doce
país da sedução onde o alcance feminista tem menos
de cinquenta centímetros nas prateleiras das livrarias e
bibliotecas. Pior ainda: este pequeno livro parece dizer
que o feminismo oficial se desfaz sozinho, enredado
em seu universalismo, em seu essencialismo e em sua
“branquitude”. No entanto, há a grande aventura dos
direitos e do feminismo sem fronteiras! Salvo que ele

NT: Escândalo envolvendo ex-Diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI),


20

Dominique Strauss-Kahn, denunciado por crimes de prostituição e estupro.

S a m B o urci er
88

veio para resumir os feminismos e se embaraça em


suas vias expansionistas. Os tecnocratas do gender
maintsreaming deslocalizam o feminismo. Os amigáveis
funcionários do Partido Socialista (“Nem Putas, Nem
Submissas” e “Osez le degré zéro du féminisme”21)
moldam o feminismo como uma agenda de igualdade
com questões muito mais importantes do que a opressão
sistêmica das mulheres e de seu empoderamento.

Acrescente a esse falso feminismo (que coloca


em cena falsas feministas), uma maravilhosa exceção
francesa queridinha dos meios de comunicação de
qualidade (sobretudo, os da esquerda) e das revistas
femininas onde se publicam páginas de campanhas
contra a circuncisão, um artigo sobre as mulheres afegãs
e o anúncio do rímel da Dior.

A história do feminismo se apresenta mal. Sobretudo,


porque ela não foi contada a você. Entre a mitologia
universalista do Iluminismo e o estranho pós-feminismo
francês, encontra-se o feminismo com sua criatividade e
em sua radicalidade que está, inclusive, sendo esquecida.
O “pessoal” do feminismo tornou-se a política deles.
Seu corpo pertence a eles. O feminismo está cheio de
adoçantes. Sendo invisibilizado aos poucos, ele tem o
direito à cidadania desde que se tornou o feminismo
dos idiotas: dos ministros, senadores, machos, mulheres

21
NT: Movimento universalista e abolicionista na França.

Comp re en der o feminismo


89

e homens políticos movidos pela falta de respeito aos


direitos das mulheres, sobretudo, das não francesas.
Tão monocultural e antifeminista quanto a sociedade
francesa, a Universidade bloqueada não se abriu: apenas
mudou sua estratégia. A desvitalização do feminismo e
sua não transmissão são garantidas copiosamente pelos
mandarins que se recusam, em uma editora, a codirigir
uma coleção com a participação de uma mulher, mas
frequentemente vão às TVs para dar suas lições. Uma
coleção feminista: é uma questão muito séria ficar ao
encargo de uma mulher, ainda mais feminista. Mas, aqui
não há multas para as grandes mídias, importam-se mais
com a professora do que com a feminista. Portanto, o seu
acesso ao espaço público...
Então, por que não deixa de ser feminista e se cala?
Claro que não. O atual desmantelamento da política e
da cultura feminista tem sucesso com a substituição
das feministas por outros atores sociais para difundir
o projeto expansionista, que nada tem a ver com o
projeto de transformação social feminista. Somente as
feministas por meio de formas de ativismo reverterão
esse “feminismo sem feministas” que não é mais do
que uma política neoliberal de uma identidade feminina
padronizada. Este é o momento para regressar a um
feminismo afirmativo, transnacional e não conformista.
O feminismo nunca foi um longo rio silencioso, mas
sim um road movie.

S a m B o urci er
91

UNIVERSO REFERENCIAL FEMINISTA


As anônimas do movimento, a feminista vizinha, as militantes,

Alárcon, Norma Feinberg, Leslie

Alexander, M. Jacqui Firestone, Shulamith

Anzaldúa, Gloria Fox Keller, Evelyn

Atkinson, Ti-Grace Fraisse, Geneviève

Bacchetta, Paola Freeman, Jo

Barret, Michele Friedan, Betty

Beauvoir, Simone de Grewal, Inderpal

Bitch, Manifesto Guillaumin, Colette

Brooks, Shiobhan Hammer, Barbara

Burch, Nöel Haraway, Donna

Butler, Josephine Harding, Sandra

Butler, Judith Hartsock, Nancy

Carby, Hazel Hill Collins, Patricia

Carthonnet, Claire Hooks bell

Chicago, Judy In Mourning and in Rage


Clover, Carol Kaplan, Caren

Collin, Françoise Kergoat, Danièle

Cambahee River Manifesto Labowitz, Leslie

Corinne, Tee Lacy, Suzanne

Cottingham, Laura Lauretis, Teresa de

Crenshaw, Kimberlé Lorde, Audre

Davis, Angela Lowe, Lia

Dworkin, Andrea Lucretia, Mott

Export, Valie MacKinnon, Catherine

Faludi, Susan Madonna

Fausto-Sterling, Anne Susan Maillett, Chantal

Mathieu, Nicole-Claude Tabet, Paola

Millet, Kate Take Back the Night

S a m B o urci er
92

Minh-ha, Trinh T. Treut, Monika

Mohanty, Chandra Talpade Truth, Sojourner

Moraga, Cherrie Varikas, Eleni

Mulvey, Laura Wilding, Faith

Newton, Esther Wittig, Monique

Noble, Bobby Wollstonecraft, Mary

Nouvelles Questions Féministes Womanhouse project


Ono, Yoko Wonder Woman...

Paglia, Camille

Pankhurst, Christabel

Pankhurst, Emmeline

Pankhurst, Sylvia

Phelan, Peggy

Pheterson, Gail

Piper, Adrian

Pollock, Gridelda

Rainer, Yvonne

Redstocking Manifesto
Rich, Adrienne

Riot grrrl
Rosler, Martha

Rubin, Gayle

Saint James, Margot

Sellier, Geneviève

Shohat, Ella

Solanas, Valerie

Spivak, Gayatri Chakravorty

Stanton Elizabeth Cady

Stella

Stone, Sandy

Strass (A)

Sufragetes (As)

Comp re en der o feminismo


2021 © Editora Devires

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