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RESSO

‘Tratar bem detento?’ ‘Indenizar parente?’ Como entender o papel do Estado


em meio à crise dos presídios
 João Paulo Charleaux

 
09 Jan 2017 
(atualizado 10/Jan 19h31)

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/09/%E2%80%98Tratar-bem-detento%E2%80%99-
%E2%80%98Indenizar-parente%E2%80%99-Como-entender-o-papel-do-Estado-em-meio-%C3%A0-
crise-dos-pres%C3%ADdios

Defensores de direitos humanos e um professor de direito penal respondem a questões levantadas a partir dos massacres de Manaus e Boa
Vista

FOTO: MICHAEL DANTAS/REUTERS - 08.01.2017

 MULHER CHORA AO TENTAR TER NOTÍCIA DE PARENTE PRESO APÓS MASSACRE EM MANAUS

 
Os massacres ocorridos em prisões de Manaus (1º) e de Boa Vista (6) no início de 2017 levaram a reações diversas na sociedade.

De um lado, emergiram sentimentos de solidariedade com as famílias das vítimas e cobranças por um sistema carcerário que respeite a dignidade das
pessoas que cumprem as chamadas “penas privativas de liberdade” no Brasil.

De outro, houve comemoração pelas mortes. O caso mais emblemático foi o do agora ex-secretário nacional de Juventude do governo Michel Temer,
Bruno Júlio (PMDB), obrigado a pedir demissão depois de ter dito, na sexta-feira (6), que “tinha era que matar mais [presos]”.

A linha que divide essas duas reações passa pela compreensão do papel do Estado e do que significa exatamente a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que, em 1948, codificou os padrões mínimos de respeito à vida e à dignidade.

Tomando como base algumas das reações de aprovação aos massacres, o Nexo formulou cinco perguntas para cinco especialistas que acompanham
os temas de direito penal e de direitos humanos no Brasil.

O que é uma pena de prisão?


Edson Knippel
Professor de direito penal

“Tradicionalmente no direito penal, a pena deve punir e prevenir crimes. A vertente da prevenção especial do crime é a que traz consigo também a ideia
de ‘ressocialização’ do preso. A ressocialização deve ser mínima, evitando que o preso volte a praticar crime. Esse conceito é perigoso, pois o que
significa ‘ressocializar’ uma pessoa numa sociedade tão diversa? Qual o modelo ao qual ele vai se ‘ressocializar’, do ponto de vista antropológico,
religioso, social mesmo? O melhor exemplo disso talvez esteja no filme ‘Laranja Mecânica’ [ficção na qual o personagem principal é submetido a uma
reprogramação mental].

'Se o Estado não dá as condições, como pode pretender ressocializar minimamente o preso?'
Porém, podemos falar numa ressocialização mínima, que visa a evitar que o preso volte a praticar crimes. Para que isso aconteça, o Estado deve dar as
condições de instalação, educação, trabalho e saúde para que ele saia como uma pessoa melhor. Se o Estado não dá essas condições, como pode
pretender ressocializar minimamente esse preso? Já na vertente da punição, essa punição tem de estar restrita ao que diz a Constituição: estão
proibidas as práticas cruéis, desumanas e degradantes, para que a pena fique circunscrita aos termos da lei. Sobretudo nesse contexto de crise, é
importante que o Estado invista em penas alternativas, deixando a pena privativa de liberdade apenas para os crimes mais graves. Do contrário,
estaremos construindo mais e mais presídios, eternamente.”

Por que o Estado indeniza a família de um preso morto em rebelião carcerária, mas não
indeniza o cidadão que morre nas mãos do crime?
Juana Kweitel
Diretora-executiva da ONG Conectas Direitos Humanos

“O Estado deve indenizar quem morre sob sua custódia. Em caso de crimes comuns, a indenização deve vir do autor do crime, e o papel prioritário do
Estado é garantir uma investigação eficaz e uma justiça que atue em tempo razoável. Tendo o monopólio do uso da força, o Estado também tem a
obrigação de criar e implementar uma política de segurança pública eficaz.

'A vítima de um crime poderia requerer indenização do Estado. Nos tribunais brasileiros, porém, essa tese não tem prevalecido'
Em tese, alguém que for vítima de um crime poderia requerer uma indenização do Estado alegando uma omissão na política de segurança pública, da
mesma forma que as mulheres vítimas de zika estão questionando a omissão estatal na prevenção da doença. Haverá um enorme desafio para provar
essa omissão do Estado e suas consequências, mas não é uma tese impossível juridicamente. Nos tribunais brasileiros, porém, essa tese não tem
prevalecido até hoje.”

Por que o governo gasta tanto dinheiro mantendo presos que não contribuem com a
sociedade?
Ivan Marques
Diretor-executivo do Instituto Sou da Paz

“Um dos grandes avanços da civilização humana foi a troca do direito de vingança pessoal - olho por olho, dente por dente, onde só o mais forte
consegue impor consequência pelo dano sofrido - pelo monopólio da força pelo Estado, que é uma instituição movida pela promoção da justiça e da
racionalidade. Isso significa que o valor do preso no Brasil – ou em qualquer lugar do mundo - não deve ser medido por quanto ele custa ao Estado, mas
pela capacidade do Estado promover justiça, tanto em relação aos criminosos quanto às vítimas.

'Alternativa ao monopólio da força pelo Estado é o retorno à barbárie'


O grande problema é que, no nosso país, há distorções nesse sistema, que impedem que o ciclo de justiça aconteça, o que gera na sociedade a
sensação de impunidade: o crime na maioria das vezes compensa, e o criminoso quando é condenado pelo sistema de justiça criminal é um ‘custo
inútil’, pois o sistema prisional, em vez de ressocializar, só abastece o crime. É por isso que corrigir essas distorções é tão necessário, até porque a
outra opção é o retorno à barbárie.”

Por que o Estado é culpado se os presos decidem se matar entre si?


Guilherme Pontes
Advogado e pesquisador da ONG de direitos humanos Justiça Global na área de Violência Institucional e Segurança Pública

“Pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos prisionais estão sob a custódia do Estado, tornando-o responsável pela preservação de todos os
direitos que não foram restritos ou suspensos, nos termos do artigo 3° da Lei de Execução Penal, notadamente o direito à vida.

'Superlotação e condições degradantes fazem do sistema bomba-relógio, cuja explosão pode acontecer a qualquer momento'
Para além disso, também é dever do Estado zelar pela proibição constitucional às penas cruéis (CF/88, art. 5°, XVLII, “e”). Ademais, no tocante às
chamadas facções criminosas, é importante que seja destacada a responsabilidade do Estado, haja vista que sua omissão e ineficiência na
administração prisional tem relação direta com o surgimento, fortalecimento e expansão dessas organizações no território nacional.

A política de superencarceramento implementada pelo Estado brasileiro, com a consequente superlotação das unidades prisionais, somada às
condições degradantes a que estão submetidas as pessoas privadas de liberdade no Brasil, faz do sistema carcerário brasileiro uma verdadeira bomba-
relógio, cujas explosões podem acontecer a qualquer momento, como recentemente em Manaus e Boa Vista.”

Por que organizações de direitos humanos falam sobre a morte de presos, mas não falam
sobre as mortes de policiais?
Cézar Munõz
Pesquisador sênior da ONG de direitos humanos Human Rights Watch, especialista em condições prisionais e em abusos policiais

“Toda pessoa tem direitos fundamentais, sejam presos ou policiais, e as organizações de direitos humanos devem defender todos eles. Algumas
pessoas têm aplaudido a morte de presos. Essa visão é profundamente equivocada.

'Organização também denuncia vulnerabilidade dos policiais, precárias condições de trabalho e códigos disciplinares que
violam direitos'
Obviamente, o assassinato de um detento é uma violação do direito mais básico, o direito à vida, e uma falha do Estado, que tem a obrigação de
proteger todas as pessoas sob sua custódia. Mas esse apoio a mortes de pessoas presas também é uma visão que ignora o que os massacres
realmente significam: são uma demonstração do poder das facções criminosas e da negligência dos sucessivos governos, de esquerda e de direita, de
manter o controle dentro das prisões.

O poder das facções é uma ameaça direta à vida da nossa polícia. Por exemplo, traficantes mataram em 2014 a policial militar Alda Castilho, de 27
anos, no Rio de Janeiro. A mãe dela me disse que “sua morte foi em vão”. Ela lutava por receber a pensão do Estado pela morte da filha. A Human
Rights Watch tem denunciado a vulnerabilidade dos policiaismilitares no Brasil, as precárias condições de trabalho, e os códigos disciplinares que violam
direitos fundamentais.”

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