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Ana, Meu Amor 

- Ana, mon amour

Pablo Villaça

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filme/8407/ana-meu-amor

Ana, Meu Amor


Dirigido por Cãlin Peter Netzer. Roteiro de Cãlin Peter Netzer, Cezar Paul-Badescu e Iulia Lumânare. Com: Diana Cavallioti,
Mircea Postelnicu, Carmen Tanase, Vasile Muraru, Adrian Titieni, Tania Popa.

A depressão só é romântica para quem não sofre da doença nem convive com quem sofre. A ideia do artista atormentado, que alterna
períodos de imensa e rica produtividade com outros de prostração e pensamentos suicidas, é sedutora como conceito narrativo, mas a
realidade é bastante diferente, envolvendo sofrimento intenso e contínuo para quem a experimenta e um terrível sentimento de
impotência (e também sofrimento) para quem vê uma pessoa amada passando por aquilo.

O romeno Ana, Meu Amor é uma obra que entende isso maravilhosamente bem. Dirigido por Cãlin Peter Netzer (do excelente  Instinto
Materno) a partir de roteiro co-escrito com Cesar Paul Badescu e Iulia Lumânare, ele acompanha vários anos na vida do casal Toma
(Postelnicu) e Ana (Cavallioti) desde que os dois se conhecem num dormitório da faculdade. Vítima de constantes ataques de pânico, a
moça se torna cada vez mais reclusa e deprimida, sendo amparada pelo namorado, que a incentiva a buscar ajuda profissional e se
mantém ao seu lado em momentos devastadores – algo pelo qual é criticado por seus pais, que o julgam explorado pela companheira.

Observação delicada da dinâmica emocional e psicológica entre Toma e Ana, o filme ancora a trajetória dos dois em uma estrutura
narrativa complexa que começa a se revelar de maneira inesperada quando, numa elipse abrupta, vemos o protagonista sem sua vasta
cabeleira e conversando com um psicanalista (Adrian Titieni, que considero o Ricardo Darín romeno e que esteve em obras como A
Morte do Sr. Lazarescu, Ilegítimo e Graduation). A partir daí, a excepcional montagem de Dana Bunescu conduz o espectador a vários
pontos da vida do casal, permitindo que nos situemos sem que, para isso, precise tornar a cronologia óbvia: aqui, surge um ferimento
sob o olho do rapaz que, deduzimos, será explicado em outro instante (e é); ali, a mudança no estilo do figurino sugere uma condição
profissional distinta. (E, claro, o design de produção auxilia o trabalho de Bunescu.)

Esta falta de linearidade não é mera questão de estilo, porém, exercendo uma função fundamental: quando um momento especialmente
difícil do namoro é contraposto pela imagem, anos depois, do casal com o filho pequeno, compreendemos ao mesmo tempo como a
perseverança na relação trouxe frutos felizes e lembramos de que, mesmo com dificuldades no casamento, eles têm uma história antiga
que não se descarta facilmente. Além disso, esta contraposição constante entre passagens diferentes da história da dupla inspira
paralelos interessantes que muito revelam sobre aquela relação: é curioso, por exemplo, como a primeira transa de Ana e Toma ocorre
quando ele tenta acalmá-la durante uma crise de pânico, o que, de certa forma, já estabelece toda a dinâmica de codependência que se
formará nos anos seguintes.

Fortalecido por duas performances fabulosas, Ana, Meu Amor é uma apresentação e tanto para o desconhecido Mircea Postelnicu, que,
com um olhar sempre gentil, vive Toma como um homem que jamais hesita em correr em auxílio à amada – e a forma preocupada com
que a observa durante uma ida à ópera é tocante por indicar como ele já a conhece o suficiente para antecipar a chegada de uma crise
e como isto inspira cuidado, não impaciência ou frustração. Além disso, Postelnicu é hábil ao retratar o envelhecimento do sujeito, que
aos poucos vai se tornando mais seco e irritadiço. Enquanto isso, Diana Cavallioti é o puro retrato da ansiedade que toma conta de
alguém não só durante as crises emocionais, mas antes destas por temê-las. Enriquecendo a trajetória de Ana ao incluir, por exemplo,
sutis tiques em uma das fases mais intensas da doença, a atriz vai da vulnerabilidade completa a uma força inesperada, soando sempre
convincente e jamais cedendo a muletas de interpretação ou a elementos caricaturais tão comuns em composições envolvendo
personagens depressivos.

Com um olhar apurado para detalhes que contribuem para ancorar suas narrativas na realidade (ou no “naturalismo”, que se aplica
melhor ao Cinema), o diretor Cãlin Peter Netzer traz uma dimensão extra ao longa em cenas como aquela que retratam a conversa de
uma ginecologista com Ana (e cujas pausas e hesitações dizem muito), no ruído de moedas que caem de um casaco quando Toma o
veste ou de como este reclama das pernas adormecidas ao assumir uma posição desconfortável enquanto se confessa para um padre
(e mais tarde, quando ele esfrega as pernas em outra cena, já deduzimos o que havia acabado de fazer).

Profundamente comovente e humano, Ana, Meu Amor é um dos melhores filmes sobre depressão que já tive a oportunidade de ver – e,
como alguém que tem sua parcela de experiência com a doença, devo acrescentar que também é um dos que a melhor compreende.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2017.

18 de Fevereiro de 2017

Sobre o autor da crítica:


Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que
criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em
periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de
Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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