Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MARUXA VILALTA
Esta edição constitui um testemunho de admiração e afeto por Maruxa Vilalta, mulher
de extraordinária atividade multifacetada, no jornalismo, na televisão, no teatro e nas
cartas. Nela está implícito o nosso agradecimento pelo invariável e sustentado incentivo
ao seu trabalho de informação e crítica para a Casa da Paz e pelo intercâmbio que o OPIC
realiza com outros povos do mundo. Nunca exagerou nas suas versões a nosso favor,
mas nunca esqueceu aquele breve cenário nas ruas de Cozumel onde a criação estética
e a cultura de outras cidades encontraram hospitalidade e aplauso. Se esta expressão
pública de reconhecimento é merecida, justa e verdadeira, a nossa decisão não se
inspirou nela, mas no valor intrínseco de uma peça dramática, feita com o plasma estrito
do diálogo, para projetar a mesquinhez sórdida do egoísmo, a numerosa “teratologia”1
da hostilidade, que, se neste trabalho se refere apenas a um casal solitário e mórbido,
pinta um mundo que se aplica tanto à solidão como a setores sociais, cidades e até
países corroídos pela negação circular a tudo e a todos. No decorrer da dramatização,
a reiteração é deliberada e, às vezes, é eloquência por meio do exagero, pois se
mergulha na existência dual que é o mínimo familiar, na verdade, alude a tempos ou
setores que foram cortando sua comunicação com a espécie, para depois gozar com o
fracasso, a ruína e o sofrimento alheio. Essas expressões monstruosas pertencem à
realidade. Não devemos nos alarmar. O choque nos abala porque é quase impossível
fixar a linha divisória entre a realidade e a paranoia; ou seja, a consequência natural do
isolamento ou da loucura distribuída na vida cotidiana. Esta é uma dolorosa radiografia
da dissidência num casamento conjugal, um diálogo de máscaras, divorciadas talvez
antes das núpcias. E é agora que o espectador descobre que o verso de López Velarde
"O amor amoroso de casais pares" não é um “logogrifo”2 nem um jogo de palavras,
porque Casimiro e Rosalía são um casal ímpar. Ninguém pode negar que eles estão ali,
unidos e ungidos, mas menos podem negar que se odeiam, se mentem e que na
1
anormalidade.
2
modalidade de charada em que se propõe a adivinhação de uma palavra pela adivinhação prévia de outras
que, em conjunto, têm as mesmas letras que aquela, combinadas de modo diferente.
1
violência que exercem contra os demais, só existe o desgosto mútuo que se professam.
Depois de rever o diálogo, será reconhecido que a convivência dessas duas sombras é o
seu próprio castigo e que a intenção de Maruxa foi cumprida.
***
Esta noite juntos, nos amando muito é uma sátira de egoísmo e ódio; Trata, portanto,
de exaltar o amor.
Os nomes de Beckett, Max Frisch, Jean Genet, Strindberg, Ionesco, Arrabal e outros
vieram à tona, comparando o seu teatro ao meu, por ocasião da estreia desta, a minha
peça mais recente. Fala-se em "vanguarda" e "teatro do absurdo". De simbolismo. E
de humor negro. Pessoalmente, prefiro não rotular. Trabalhei na linha que julguei mais
conveniente, com a ideia de que o público está cada vez menos disposto a levar a sério
um sermão instrutivo e, em vez disso, podemos alcançá-lo de forma eficaz por meio da
crítica ou da sátira. O que o melodrama não consegue, a farsa consegue. Em vez de
apresentar os infortúnios e lamentos de certos personagens que, contra a vontade do
dramaturgo, podem vir a parecer ridículos, resta pegar outros personagens totalmente
diferentes, esses negativos, "não-heróis", e ridicularizá-los, torná-los grotesco ao
mostrar que estão errados em sua maneira de pensar e sentir. Tais são, na minha obra,
"Casimiro" "Rosália": egoístas, abjetos, mesquinhos, apresentam em cena uma
caricatura tragicamente grotesca dos extremos a que pode levar o isolamento
voluntário e o ódio entre os seres humanos. Assim, comecei com personagens negativos
para obter uma mensagem positiva e construtiva. “Casimiro” e “Rosália” são velhos e
são casados, mas os mesmos poderiam não ser e serem jovens. São personagens que
podem ter qualquer idade e qualquer parentesco ou relação entre si: o que os une é o
ódio; o que importa é que eles são incapazes de sentir amor. E mais cruel do que gritar
o quanto se detestam é a determinação de afirmar que se amam para melhor
continuarem se atormentando.
2
"Ele" e "Ela" passam sua "noite agradável" destruindo-se mutuamente e alegrando-se
com o mal dos outros. Vivem isolados, lapidados no mundo de pesadelo que eles
próprios criaram, sem saudades dos "filhos que não tiveram" por que o seu próprio
egoísmo os impediu, atentos a qualquer ocasião de fazer mal ao próximo (carteiro
anônimo) e sem perder a oportunidade para machucar-se ou impedir o outro
(simbolismo do tecido e do fumo) de escapar de si mesmo. Quando alguém bate na
porta, o eco amplia aquele chamado, que os apavora, ou indigna, ou incomoda; em todo
caso, é gigantesco na imaginação de ambos ao tornar o mundo exterior presente para
eles. Quando, justamente para tentar fugir de si mesmos e escapar ao mesmo tempo
cada um da convivência com o outro, decidem abrir a "janela isolante", da rua chega
para eles algo insuportável: o amor. Eles preferem fechar novamente e continuar
sozinhos em seu inferno cotidiano.
Creio (e essa é a ideia que realizei) que os personagens de " O General "," O Policial ",
“O Carrasco”, “O Guarda do Campo de Concentração”, "O Soldado" e "O Ditador” devem
ser lineares, devem ser caricaturas, devem ser arquétipos, para que o que um
representa possa ser extensivo a muitos "generais" similares ou ditadores que já
existiram no mundo. E são. De maneira que não tratei de satirizar tais personagens-
tipo com ironia, mas os expus da forma mais óbvia que pude, como mostra, para que
"Ele" e "Ela" os admirasse e aplaudisse e é aí, nessa reação do casal desastroso que
3
entrará a ironia do autor. Os mencionados personagens-tipo (e os slides que se
projetam, aos quais estão praticamente integrados) às vezes correspondem a uma
ilustração da notícia lida no jornal (como no caso do General), ou trazem para a cena
personagens mencionados em um diálogo implícito entre "Ele" e "Ela" enquanto
permanecem imóveis (como no caso do Ditador). Em outras ocasiões (O Policial, O
Guarda do Campo de Concentração e a primeira intervenção do Soldado) , substituem
parte do texto que seria lido no jornal. E outras vezes ainda (o Carrasco) são mazela de
exposição de pensamentos de Casimiro e Rosália e substituição do texto do jornal. Em
todo o caso, dei-lhes uma forma real no palco porque faziam parte, em de certa forma,
do mundo interior, subjetivo - o único que para eles é real - de "Casimiro" e "Rosália" e,
em vez disso, representei de forma imaginária a mulher doente, que realmente entra,
mas vem diretamente do mundo exterior, sempre irreal, sempre impalpável para "Ele"
e para "Ela". Quanto aos slides, também foram escolhidos para fazer pensar não só no
ditador que representam, mas também em ditadores semelhantes e para mostrar não
só o episódio de que se fala, mas também outras cenas iguais de ódio e destruição que
aconteceram ontem e hoje e que, infelizmente, já se preparam para amanhã. Com a
peça em cena, tenho lido diariamente nos jornais notícias e descrições de
acontecimentos semelhantes aos citados na peça. Há semelhanças, por exemplo, entre
as condições higiênicas em que viveram os prisioneiros dos campos de concentração
nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e aquelas em que vivem atualmente alguns
grupos de trabalhadores de fortes empresas. Entre as fotos (documentos verídicos) que
são exibidas durante as representações, está uma das crianças mortas no bombardeio
fascista sobre a cidade de Barcelona durante a guerra civil espanhola: uma fotografia
cuja existência por si só justifica para mim ter escrito este trabalho e justificaria um
trabalho de toda a vida.
Esta noite juntos, nos amando muito: farsa trágica sem interrupção. Na verdade, não
há pausa ou trégua na tarefa de odiar "Ele" e "Ela" e de odiar os outros. Por outro lado,
no decorrer da representação, como o espectador consciente romperia esse círculo
cruel do mundo de "Casimiro" e "Rosália" para voltar depois a apoderar-se do ambiente
em que se desenrola a farsa?
4
Em resumo, é uma obra sem concessões de bilheteria e isso vai incomodar mentes
reacionárias, falando em termos de política, e a espíritos retrógrados e não menos
conservadores, falando em termos de arte.
Com tal peça recém-terminada, compreendi que não havia feito algo particularmente
atraente para nenhum empresário. Pensei, inclusive, que não chegaria a estrear. Mas
felizmente o trabalho não foi para as mãos de um “empresário” no sentido convencional
da palavra, isto é, com tudo que se soa como cebolas e batatas, mas se interessaram por
ela dois representantes de um organismo cultural: o escritor Maurício Magdaleno e o
arquiteto Ramiro González Delsordo, presidente do Conselho de Administração da
Unidade Artística e Cultural do Bosque, um e gerente geral da mesma unidade, o outro.
Eles correram com a aventura de apresentar a obra. Não tem sido (nem será) o único
caso em que a Unidade Artística e Cultural do Bosque, porta aberta, sem prejuízo às
atividades criativas, recebe autores e diretores “não comercializáveis” e até “perigosos”
no sentido de que pretendem sacudir o público, despertar potenciais adormecidos;
pretende que o espectador nunca vegete e sim que participe e dão ao espectador (como
eu entrego esta obra) um material de trabalho para que ele também crie, construa sobre
essa base e a partir desse ponto de partida imagine e pense.
Esta é a história da peça, de sua estreia e sua publicação. Queria um título irônico para
a farsa. E quanto à direção do palco, procurei aproveitar ao máximo as vantagens do
teatro círculo, fazendo com que o público aproveite ao máximo possível o espetáculo.
5
Encontrei a colaboração absoluta no trabalho dos atores, Pilar Souza, Roberto Dumont,
José Luís Castañeda e Carlos Pouliot, e dos técnicos, arquiteto Carlos Perdomo, Héctor
M. Sierra, Antonio Castillo Ledón e Adolfo Garcia. Pedi à cenógrafa Félida Medina, que
com talento captou e concretizou a minha ideia, para sublinhar a sordidez do ambiente
e reduzir ainda mais o já pequeno espaço do Teatro de “Granero”, a prisão em que se
encontram "Casimiro" e "Rosália", para o qual se tentou aproximar o chão (coberto com
jornais e fotografias dele e dela em diferentes idades) e ao teto, do qual pendiam
enormes teias de aranha feitas de novelos de lã. E, para acentuar ainda mais o tom de
irrealidade e isolamento, acrescentei música de um “harmônio” que está no palco. A
jovem pianista da Escola de Música da Universidade Nacional Autônoma do México,
Lucía Álvarez, tornou-se organista. Antes de começar os ensaios com os atores, ela e eu
passamos horas gloriosas tomando café, comendo "gruyere" e pão preto e fazendo
música: Eu herege e ela religiosamente; eu ditando a atmosfera ou efeito desejado e ela
criando-o com uma técnica brilhante.
MARUXA VILALTA
6
ESTA NOITE JUNTOS, NOS AMANDO MUITO
Sala de jantar com porta de entrada da casa, trancada com grande fechadura e saída
para os quartos interiores. Uma janela. Mesa de jantar redonda coberta e com uma
pasta descolorida. Um aparador antigo, outros móveis, todos velhos. Acúmulo de
objetos e ornamentos inúteis. Pilhas de jornais no chão, contra uma parede. Teias de
aranha. Pó. Ambiente sórdido. É como um armazém cheio de coisas velhas, entre eles os
dois únicos habitantes da casa, Ele e Ela. Ele fuma cachimbo e ela faz tricô.
ELA: Sim, esperar... Se fosse oito seria a hora do jantar, mas não são oito.
Ele: Como?
ELA: Não.
7
ELE: Não chove. Podemos verificar se você quiser. Podemos abrir a janela.
ELA: Abrir a janela que dá para a rua! E os ruídos de fora? E as pessoas, as vozes?
ELE: As risadas.
ELE: Felizmente não vamos ver. Foi uma ótima ideia instalar uma janela isolante aqui.
ELE: Sem barulho, sem chuva, sem luz, sem gente. Nada.
ELA: De areia.
ELE: De poeira.
ELA: De terra.
ELA: O silêncio. [Uma pausa.] Deveríamos instalar também uma porta isolante.
ELE: É impossível.
ELA: Quem?
8
ELE: Os outros ... as pessoas. Eles iriam começar a fazer barulho. Se não abríssemos, se
estivéssemos trancados aqui durante anos, se tivéssemos janelas isolantes, portas
isolantes …
ELA: Eles não teriam que saber disso. Ninguém nos visita. Não temos parentes.
ELA: Felizmente.
ELE: Mas se tivéssemos uma porta isolante eles descobririam. Alguém ligaria.
ELE: O vendedor.
ELE: Terrível, sim. E de qualquer maneira, alguém acabaria ligando. Eles descobririam
que temos uma porta isolante e iriam nos denunciar à polícia.
ELA: E ter que morar em prédio! ... Claro, com a sua aposentadoria não podemos morar
em casa própria. Se ao menos você tivesse se tornado chefe antes de se aposentar! ...
ELA: Muito importante, não nego isso. Mas você não chegou a chefe.
9
ELA: De cristal. Nem sequer de madeira.
ELA: Um segundo chefe não é o mesmo que um chefe de verdade. Por isso agora com
sua aposentadoria não dá para nada.
ELE: Não temos casa própria, mas nunca fizemos amizade com os vizinhos do edifício,
não pode se queixar. Nunca falo com ninguém.
ELE: Sim, é assim que começa. É assim que alguém acaba se tornando amigo.
ELE: Em quem?
10
ELE: Claro que não.
ELE: Eles não são mais crianças. Eles logo farão trinta anos.
ELA: Já faz trinta anos, os filhos que não tivemos, os nossos gêmeos!
ELE: Você está confusa, minha querida, você está confusa. As que tinham dez anos
quando você parou de vê-las eram gêmeas da sua irmã, mas isso foi há vinte anos
porque você não trata a sua irmã. Você pensou que ia ter gêmeos também.
ELA: E você insistiu que eram meninos. Até nisso você impôs sua vontade!
ELA: [Mostra o tricô, de forma indefinida e bizarra, feito de lã grossa.] Veja, o mesmo de
ontem.
ELE: Quando você acaba uma coisa é o vazio, é o fim, é o nada. É como se algo tivesse
morrido. Eu sei o que esse tricô representa para você, Rosália.
ELE: Quando menos se espera, um desfecho fatal, uma flor que murcha, um tricô que
acaba, uma ilusão que morre...
11
ELA: Acho que descansarei um pouco ... [Deixa o tricô.] Não sei o que eu faria sem o seu
amor, Casimirito!
ELE: Estão!
ELE: Não.
ELE: Porque quando chamam na frente você não ouve aqui. Nem quando chamam
embaixo também. Alguém está chamando na nossa casa.
Chamam de novo. O eco já não impressiona, embora seja insistente. O medo que Ele e
Ela sentiram se transforma em indignação.
12
Chamam outra vez. Eco.
ELE: O melhor é abrir e nos livrarmos deles o mais rápido possível. Eu irei. [Vai para a
porta da frente.]
Ela sai. Ele abre a porta com um grande barulho e não dá tempo de falar com quem
chama: um personagem absolutamente real, ainda que seja sempre representado de
forma imaginária.
ELE: Não é aqui. Você está na casa errada. Como? ... A nova vizinha? É você a nova
vizinha? ... Sim, senhora, não te conheço. [Ele se prepara para fechar.] ... Do cinco, você
diz? Você mora no cinco? ... Em frente a nós, sim, estamos próximos… [com
arrependimento ele se coloca de lado] Entre senhora, entre...
ELE: O quê? Você se sente mal? Uma aspirina? ... Não, não incomoda, mas não temos
aspirina ... Nenhuma, senhora. Nem uma única aspirina ou algo parecido em toda casa...
Era isso? [Ele corre para abrir a porta novamente.] Você já está indo? Que pena! ... Sim,
também tive muito prazer, sim, encantado ... Até mais, senhora, tchau ...
ELA: Tudo. É o cúmulo! Ousando nos pedir uma aspirina! Você fez muito bem em não
dar a ela.
ELE: Claro que fiz bem. Fazer um favor às pessoas é sempre perigoso. E se eles te
agradecem? E se com esse pretexto quiserem fazer amizade?
13
ELE: Se eu der uma aspirina hoje, amanhã ela pode voltar e pedir bicarbonato, sal,
batatas, que a gente faça comida, que a gente leve para ela.
ELA: Sim, se você faz um favor já está perdido. Por acaso, não entreguei a carta dela.
ELA: [Mostra um envelope.] Veja: "número cinco", diz aqui. É para ela. Esta manhã o
carteiro deixou, por engano, por baixo da nossa porta.
ELA: Tenho certeza de que foi ele porque ouvi. Ele chamou e disse "carteiro".
ELA: E como não fui abrir, ele jogou a carta por baixo da porta.
ELA: Sabe, mas as pessoas são egoístas! [Rasga a carta.] Isto vai para o lixo.
Procura ao seu redor e não consegue encontrar um lugar para jogar os papéis rasgados.
Ela abre o aparador, empurra-os para dentro e consegue fechá-lo novamente,
empurrando retalhos amassados de tecidos de várias cores que saíram do móvel
transbordando de coisas assim que ele abriu.
ELE: Vou reclamar. Vou escrever para o correio para fazer com que ele seja demitido.
ELA: Casimiro, que ótima ideia!
ELA: Assim aprenderá a não nos trazer mais cartas. Vou te dar o que escrever.
Ela corre para abrir o aparador novamente e remexe em objetos inúteis: recortes de
tecido, novelos de lã emaranhados, agulhas de tricô tortas, meias velhas, pedaços de
louça quebrada e, entre tudo isso, xícaras, pratos, copos e talheres. Encontra papel e
envelope, bastante amassados também, volta a colocar as outras coisas no aparador,
em desordem, empurrando para poder fechar.
14
ELA: Aqui está o papel e o envelope que trouxe para casa quando foi ao escritório.
ELA: Eu os guardei bem. Como o dinheiro da sua aposentadoria não dá para nada …
ELE: Vou dirigir-me pessoalmente ao administrador geral … com letra de forma, será
anônimo, claro. [Escreve.] Senhor Administrador ... [interrompe.] Não, "senhor" não,
direi apenas "administrador", simplesmente.
ELA: Sim, apenas administrador, para que veja que você é tão importante quanto ele.
ELE: Ou mais. [Escreve.] Administrador Geral dos Correio, Presente. Meu senhor,
lamento muito por ter de entrar em contato para chamar sua atenção para uma ofensa
grave ... [Ele interrompe.] Não, uma parecerá pouco. [Escreve] para chamar sua atenção
para faltas graves cometidas por seus subordinados...
ELA: Aquele com o número errado também pode parecer pouco. Coloque que ele rouba
as cartas. Ou que fica com objetos de valor.
ELA: Bem, Casimiro, você não vai desistir agora. É esse homem ou nós.
ELE: Não tenho problema em inventar nada. [Escreve.] Me refiro ao carteiro da nossa
rua, que perde a correspondência, a destrói ou rouba.
ELE: [Escreve.] Há pouco se extraviou sem chegar às minhas mãos um envelope com um
cheque. Não tenho provas de que o carteiro seja o responsável, mas ainda existem
outros abusos. Ainda ontem eu o vi rasgar um pacote inteiro de cartas.
ELE: [Escreve.] Vizinhos desta mesma rua me disseram também que eles
frequentemente deixam de receber sua correspondência.
ELE: Não faltará quem lhe diga que deixou de receber uma carta. [Escreve] O que vos
informo é para que sejam tomadas as medidas necessárias. Meu caso é o de menos.
Trata-se da proteção de todos os cidadãos.
15
ELE: Agora vou colocar o nome da nossa rua, para que eles identifiquem o carteiro.
[Escreve.]
ELA: Perfeito! Mas então você acha que vai funcionar? Eles vão expulsá-lo?
ELA: Claro, nossa consciência está tranquila. Eles certamente suspeitarão dele. Eles vão
desconfiar ...
ELE: O envelope ... [Ele pega o envelope e começa a escrever. Se interrompe.] Mas há
um problema. Para enviar a carta precisamos de selos.
ELA: Eu tenho. [Busca outra vez no aparador] eu os guardei uma vez que mandaram
uma propaganda. Como o dinheiro da sua aposentadoria não dá para nada ...
ELE: Não é necessário que você tenha selos, já que não escrevemos cartas.
ELA: Para você ver, nunca se sabe. [Encontra os selos e entrega a ele] aqui estão.
ELE: Sim, nunca se sabe ... [Termina de escrever o envelope e cola os selos]. Parece
impossível para mim! Escrever uma carta, eu! Dirigir-me a alguém de fora ... Claro que
o fim o justifica. Eu vou prejudicar aquele carteiro.
ELE: Até agora você não fez nada. Mas você ainda está em tempo. O problema persiste,
você terá que sair para levar a carta na caixa de correio lá embaixo.
ELE: Eu não vou. Não estou disposto a encontrar ninguém subindo a escada. Não vou
arriscar que me dirijam a palavra.
16
Abre a porta. Cautelosamente, ela coloca a cabeça para fora olhando para todos os
lados. Se decide e sai com pressa.
ELE: [fecha a porta e ri.] Corre, Rosália, corre! ... Vai passar medo pela escada. O medo
não é uma sensação agradável … [se aproxima da janela] Se não fosse por essa janela,
eu veria as pessoas lá embaixo. Eu veria todos vocês, besouros imundos. Alguém poderia
olhar para cá e sentir-se no direito de me perguntar alguma coisa. Alguém poderia ser
capaz de me dirigir a palavra; subir e bater na porta da minha casa ... Tem os que fingem
ser felizes. Mas suas vozes não vão chegar aqui. Suas palavras não me interessam ...
ELE: Sim.
ELE: Claro que não. É por isso que temos uma janela isolante.
ELA: Sempre tenho medo de que o mecanismo estrague, que a janela deixe de ser
isolante.
ELE: As janelas isolantes não estragam. Está nervosa Rosália. Você deve se controlar.
ELA: A próxima vez que tiver que sair de casa vai você.
ELA: O que vamos fazer agora? Falta muito para a hora do jantar.
17
ELA: Onde deixei meu vestido?
[Sai]
Ela entra com o manequim que veste um ridículo vestido com cores estridentes.
ELE: [Encontra um botão] Um botão rosa! O que está fazendo aqui um botão rosa?
ELA: Deixe onde estava. Algum dia poderei ter um vestido cor de rosa e precisar de um
botão rosa. Com o dinheiro da sua aposentadoria não daria para comprar um botão
rosa.
Tirou do aparador uma almofada com alfinetes e começa consertar o vestido sobre o
manequim, faz pregas, prende alfinetes etc.
ELE: Por fim, o cachimbo segue desaparecido… [o encontra] Ah, está aqui.
ELA: Teve sorte! Lembro aquela vez que você procurou a calçadeira mais de uma semana
seguida.
ELA: Mas querido, isso é problema seu. Não uso calçadeira. [Ele guarda o cachimbo] não
vai continuar fumando?
18
ELA: Fazer um vestido não é uma coisa fácil, claro, mas não podemos pagar uma
costureira com o dinheiro da sua aposentadoria… [Ele ri diante do vestido] do que está
rindo? É um vestido bonito.
Ela sai.
ELE: Como? Você também é solteira? Sim, senhorita, sim, isso se vê, isso se sente...
[belisca o manequim.] Oh, não, não, te garanto que não penso ser impertinente!... Com
promessa de casamento? Bom, não sei se chegaremos à tanto… [Vai embora com o
manequim no braço] Sim, penso fazer uma carreira brilhante, eu mereço. Passarei no
escritório próximo ao meu e depois outro e outro. Em vinte escritórios mais chegarei à
chefe. Tenho perfeitamente calculado. Sim, minha meta é ser chefe. Mandar! Dar
ordens! Isso é o que importa: dar ordens! Estou perfeitamente apto a dar ordens
senhorita, perfeitamente apto. Jante comigo esta noite e te explicarei com mais
detalhes…
Ri com o manequim e dança com ele novamente, agora uma valsa cafona.
ELE: Oh sim, sim, nada como dançar! Baile de quinze anos, baile de trinta anos, Guerra
dos Cem Anos. ... A Guerra dos Cem Anos foi muito depois da fundação de Alexandria.
Cultura, sim senhorita, isso se chama ter cultura. [Para de dançar.] Por favor, não ria,
sua risada é desagradável para mim. [Petulante.] Vamos marcar uma consulta para
amanhã às seis horas, meia hora do relógio. Tenho predileção por essa hora. Apesar das
19
verticais, sim, porque normalmente prefiro as diagonais. De qualquer forma, sempre
que chega às seis da tarde, fico feliz de me apaixonar.
ELE: Como?
ELA: Canalha ... você estava fazendo amor comigo… o manequim sou eu.
ELE: Agora já não é mais nenhuma menina. [Começa a colocar o vestido no manequim].
ELE: É seu corpo esse manequim? É por isso que os vestidos que você faz sempre caem
mal.
ELA: Trinta anos! …, Mas o amor que agora temos é muito mais verdadeiro.
ELE: Te parece?
ELA: [risos, namoradeira] Ha, há, há Vampiro ... Você me quer ...
ELE: Se te desejo?
ELE: Sim?
ELA: Libidinosos!
ELE: Te direi…
Ele ri e é perseguido pelo palco. Paquera ridícula. Ele desiste, então, Ela se aproxima
dele.
20
ELA: Por favor, Casimiro, por favor, tenha cuidado! [Sobe o vestido e mostra as pernas.]
Não, não, as pernas não! Não olhe para as minhas pernas! ...
ELE: Não, querida, eu não estou olhando para elas. [Ele termina colocando o vestido no
manequim, com grande desprezo à Ela]
ELA: Se você insiste ... [Ele ri novamente diante do manequim.] Será melhor levar
comigo.
Ela entra.
ELA: Você finge que meu corpo não é igual ao do manequim. Você finge que eu não sou
jovem.
ELE: Ainda?
21
ELE: [Sorri para ela].
ELE: Felizes?
ELA: Felizes.
ELE: casal feliz amando-se. [Se dão as mãos e giram enquanto cantam o coro].
ELE E ELA: "Doce laranja, limão partido, dê-me o abraço que te peço…”
Deixam de girar e riem. Nisso ele tira do aparador uma peruca velha e grotesca
encaracolada e coloca nela, que começa a exibir-se adotando atitudes ridículas de
mulher fatal. Ele ri alto. Sob o reflexo das luzes coloridas do teto, Eles são dois
personagens de pesadelo. Quando Rosália termina sua exibição, a luz geral volta.
22
O personagem imaginário entra.
ELE: Encontrou as aspirinas? Que bom… se sente pior? ... Você acha que não é coisa de
aspirina? ... Algo sério? ... Você está sozinha e não conhece ninguém? Bem, minha cara
senhora, não é minha culpa.
ELA: [Para o personagem imaginário.] Nem meu também ... Sim, senhora, já sei que você
é nossa vizinha. O prazer é meu.
ELE: [Pega a figura imaginária pelo braço e leva-a até a porta.] Não, não, não, não existe
"mas" que vale a pena. Vá descansar, senhora, vá descansar. Estou muito feliz com sua
visita e lamento que tenha sido tão breve. Volte quando quiser. Tchau.
ELA: Por que você disse para ela voltar? É capaz de fazer isso.
ELA: Esverdeada. Se ela se deitar dificilmente vai se levantar. Talvez ela consiga.
ELA: Esperamos.
23
ELE: [Move uma ficha]. Ganharei, como sempre.
ELA: Você não, querida. O que me interessa são as fichas. [Salta sobre outra ficha] E
uma a menos. [Eles continuam a jogar.]
ELE: Você fez isso. Você se casou comigo, que era mais rico do que você.
ELA: Nem sempre. Outro dia li que algumas mulheres negras foram presas. Me alegro.
Eu odeio mulheres negras. E os negros também.
ELA: E os amarelos?
24
ELA: [Entrega uma ficha para ele.] Não sei como você consegue. Você sempre vence.
ELE: Estou acostumado a impor a minha vontade. A mandar. A dar ordens. No escritório
dava ordens aos meus subordinados.
ELE: Duro com eles! Eu esmaguei quem estava na minha frente, o mesmo que neste
tabuleiro.
ELA: [entrega outra ficha para ele.] Casimiro ... você fica entediado na minha
companhia?
ELE: Me chateia? Nunca, minha querida, nunca! Outra e outra. Como duas fichas de
uma só vez.
ELA: E unido.
ELA: Eu te odeio.
ELA: Casimiro!
ELA: Você me tranquiliza. Casimiro, minha vida. Cheguei a pensar que não nos
amávamos …
25
ELA: Meu céu ... [Um silêncio.] E agora o que vamos fazer?
ELA: Você tem o prazer de me destruir. Todos queriam me destruir sempre, mas eu os
destruí antes.
ELE: Muito bem, querida, você fez muito bem. As pessoas devem receber o que
merecem.
ELA: Como?
ELA: Eu já preparei.
ELE: Ah!
ELA: Há trinta anos tem café com leite no jantar. Você pergunta só para me irritar.
ELA: As pessoas acham que é fácil tomar café com leite, mas poucos são os que sabem
tomar um bom café com leite.
26
ELA: Sim, falta muito.
ELE: É estranho.
ELE: No entanto, há muitos assuntos para discutir, entre dois que se amam.
ELA: Enfim!
ELE: Enfim!
ELA: Enfim!
ELA: Claro.
27
ELA: Todas.
ELE: Geometria.
ELA: Trigonometria.
ELE: Ortografia.
ELA: Seis, sete, oito, nove, dez. Também os números são todos iguais.
ELA: A mesma? Impossível! ... [Para um personagem imaginário.] Ah, muito gentil,
senhor, muito gentil! ... [Á Casimiro.] Está vendo? Um admirador. [ao Personagem
imaginário] obrigado, senhor, muito obrigado! ...
ELE: Anotações. Para fazer um desenho, às vezes, se começa com uma anotação.
ELA: Sim.
ELA: Aritmética.
ELE: Metamorfose.
ELE: Encruzilhada.
ELA: Cruzada.
ELE: Cruz.
ELA: cru.
ELE: crr.
28
ELE: As pessoas são estúpidas. As pessoas falam para se comunicar.
ELE: Comunicar.
ELA: Comum.
ELE: [Pega o cachimbo e o acende.] O tabaco é uma planta solanácea nativa das Antilhas.
ELA: [Pega o tricô]. Nas noites chuvosas, não há como se sentar e tricotar um pouco.
ELE: Mas, Rosália, o que você está fazendo! Você não se dá conta?
ELE (tira o tricô.] Mas você não vê? Olha tudo que você fez. Você já fez! Você terminou.
Você esqueceu de desfazer ontem à noite.
ELE: Eu te avisei, minha querida, te avisei. Não importa se você sempre tricota a mesma
coisa, mas você tem que desfazê-la.
ELE: Esse tricô não leva a lugar nenhum. Não é nada! Toma, veja por si mesmo. [Devolve
o tricô.] Você não pode continuar tricotando porque não sabe o que está tricotando. O
que não leva a lugar nenhum se acaba antes de começar, não existe. É inútil fingir,
Rosália. Você acabou esse tricô, não pode dar um ponto a mais.
29
ELA: Não posso dar mais um ponto. [Largue o tricô.]
ELE: Minha pobre Rosália! Você terá que pensar em outra desculpa para continuar
vivendo.
ELA: Casimiro, meu amor, o fumo que você está fumando é o mesmo de ontem, tenho
certeza. E de anteontem também.
ELA: Excelente, excelente, é o que diz sempre. As coisas sempre começam excelentes e
aí vão se tornando um hábito, uma rotina. Esse fumo é igual ao de terça feira, o mesmo
de segunda-feira, o mesmo de domingo.
ELE: O mesmo?
ELA: Você gostaria de descobrir um novo sabor, não negue. Mas você comprou sacos
inteiros desse tabaco, comprou sacos inteiros e agora é obrigado a terminar. Você fuma
porque é obrigado, mas parou de gostar. O sabor é sempre o mesmo!
ELA: Fumar o mesmo tabaco por trinta anos deve deixar você cansado.
Ele vai até a janela. Ele bate contra uma teia de aranha.
ELA: Essa teia de aranha existe há muito tempo. Você não tem direito ...
Sem ouvi-la, ele tira uma chave de fenda da gaveta e volta à janela. Afrouxa os parafusos
imaginários, que rangem. Ela observa, apavorada.
30
ELA: Não, não Casimiro, a janela não!
Como ele não se mexe, ela mesma vai à janela e, com muito esforço, consegue fechá-la.
As luzes que vêm da rua se apagam e os ruídos param. A respiração de Rosália está
agitada.
ELA: Não podemos. [Um silêncio, e volta a pegar o tricô.] Nas noites de chuva, não dá
para sentar-se e tricotar por um tempo.
ELE: Não está chovendo, Rosália, você acabou de ver. Acabei de abrir a janela.
ELA: [Deixa o tricô.] Não preciso de ajuda para viver. Não vou mais tricotar. Não vamos
mais falar sobre isso.
ELE: O que você quiser, minha vida, o que você quiser. [Pega uma tesoura e começa a
recortar um retrato.]
31
ELA: Casimiro! Esse é um retrato meu!
ELA: Se te diverte fazer pedaços do meu retrato ..., Mas te aviso que tenho mais.
ELE: Eu sei, querida, eu sei ... Agora o nariz e um pedaço da testa. Em sete, em oito, em
dez ... Este era um retrato antigo, não uma imagem pura. Só quero imagens puras de
você ... Aqui está, uma orelha a menos!
ELE: Um quebra-cabeça.
ELE: Um labirinto.
Eles se olham. Há um silêncio. E batem na porta, desta vez com golpes bem mais fracos
do que nas ocasiões anteriores, O barulho volta a se reproduzir como um eco.
ELE: incrível!
32
Vai até a porta e abre bruscamente.
ELE: Senhora, eu não estou disposto… [Mas ele se interrompe e cambaleia para trás: a
mulher desabou sobre ele.] Ei! ... Senhora, tome mais cuidado, você pode me fazer
cair!...
Ele consegue se livrar dela e a empurra para longe. Casimiro e Rosália acompanham o
personagem imaginário que tropeça e acaba caindo em uma cadeira.
ELE: Está bem, está bem, você está desculpada. Agora pode ir. Nós não recebemos
visitas.
ELA: [Para o personagem imaginário.] ... Que não tem forças para se levantar? ... Quem
está morrendo?
ELE: [certifica-se de que ninguém está do lado de fora e fecha a porta.] Não seja ridícula,
senhora, não seja ridícula.
ELA: Tudo isso é imaginação sua. Você é jovem... deve ter a minha idade.
ELA: [para Ele] O que foi que eu te disse! Minha idade exatamente!
ELE: [Para o personagem imaginário.] Como? ... Que não é imaginação? ... O coração,
você diz? Bobagem, senhora, as coisas do coração são sempre bobagens! ... Tá se
afogando? Você precisa de oxigênio?
ELE: [Para o personagem imaginário.] ... Um médico? Você quer que eu chame um
médico? Eu não conheço nenhum deles.
ELE: [Para o personagem imaginário.] Uma ambulância então? Também não posso
chamar uma ambulância, não tenho telefone.
ELA: [Para o personagem imaginário.] Vamos acompanhá-la até a porta. [Tenta levantar
a mulher da cadeira, mas ela não consegue.]
33
ELE: Vou acompanhá-la ... [Aproxima-se do personagem imaginário.] Como? Esperar?
Mas por que temos que esperar, minha cara senhora, por que temos que esperar? Vá
para casa agora mesmo.
ELA: [Para o personagem imaginário.] ... Morrendo sozinha? Você tem medo de morrer
sozinha? Somos mulheres, senhora: é preciso ter um pouco de coragem.
ELA: [Para o personagem imaginário.] ... Seu marido não está aqui?
ELE: O que isso importa? Então você terá surpresa quando voltar.
ELA: Quando se tem que morrer, não é o marido que morre no lugar dela.
ELE: Morrer! Você tem que ser corajosa para essas pequenas coisas, senhora, você tem
que ser corajosa.
ELA: Eh? ... Um copo d'água? Não Senhora. Não há empregada. Não temos copo. Não
temos água.
ELE: Você chamou embaixo e não há ninguém? E o que você quer que eu faça? Tente
acima.
ELA: Por favor, não insista! Já dissemos que não temos telefone.
ELE: Estamos muito ocupados. Rosalia, dê-me o jornal de hoje; Eu preciso das palavras
cruzadas.
ELE: Obrigado, minha vida. [Ao personagem imaginário] mas o que passa senhora, o que
há de errado? Que contorções são essas? Não seja histérica.
ELE: [Começa a levantar a mulher da cadeira] Bom, vamos de uma vez. Coloque seu
braço em volta do meu pescoço, assim... Levanta-se agora! ... [A levanta e vai levando
até a porta] isso, apoie-se em mim, sim, não tem outra escolha… Como? Outra vez isso
de ambulância! Já te disse que não podemos chamar nenhuma ambulância.
ELE: [Consegue deixar o personagem imaginário encostado na parede.] Isso mesmo ...
aqui, encostada na parede ... Tenta não cair ...
34
ELE: Sim, você desce a escada, chega na esquina, atravessa a rua e encontra um telefone.
ELE: [Para o personagem imaginário.] Eh? ... De extrema emergência? Claro que sim,
morrer é caso de extrema emergência. Mas só para quem morre. [Abre a porta] Bom,
senhora, adeus novamente. [Ele a carrega até colocá-la para fora.] Vê? Você já pode
andar sozinha ... Não se preocupe, você está perdoada; minha esposa e eu sempre
fomos generosos ... [levantando a voz] como? ... Não, a escada está do outro lado, à sua
direita ... Você não está enxergando bem? Não se preocupe, segure-se no corrimão.
ELA: Olha que atrevimento de pedir para a gente chamar uma ambulância! Como se
estivéssemos doentes!
ELE: Como se não tivéssemos mais nada para fazer. [Pega as palavras cruzadas.] Vamos
ver as palavras cruzadas ... "Rio Indiano ..." [Escreve.] Gan ... ges …
ELA: É o único rio que sempre perguntam, é por isso que você sabe.
ELA: Acontece que nunca posso ouvir música porque não temos televisão. Como o
dinheiro da aposentadoria não dá para nada.
35
ELA: Eu vou ligar.
Ela liga um rádio antigo e toca música. Uma música muito bonita. Ele continua com as
palavras cruzadas.
ELE: "Palavra de quatro letras para expressar um sentimento ou inclinação natural ..."
[Interrompe-se.] Bom, Rosália, bom, bom, você já tem o que queria. Música.
ELA: Sim.
ELE: Nada de excepcional, querida, você já está se dando conta, nada de excepcional.
ELA: Não, nada de excepcional.
ELE: Alguns acordes que estão ligados, algumas notas que se repetem …E é isso.
ELE: Existem muitas pessoas no mundo. [Volta para as palavras cruzadas.] "Amor". O
sentimento ou inclinação natural é "amor". [Escreve.]
ELE: Eu te disse.
Muda a estação. No rádio, agora se escuta transmissões cruzadas, com vozes falando
em inglês e russo.
36
RÁDIO: As vítimas do ciclone estão aumentando. Milhares de famílias ficaram sem
abrigo.
Se iniciam discursos em contraponto: segue a voz no rádio ao mesmo tempo que Ele e
Ela também continuam falando.
ELA: [Depois das últimas palavras no rádio, ela desliga.] "Ajuda!" "Ajuda!" Se fôssemos
prestar atenção no que os outros falam! ... Você nunca foi chefe, agora como sua
aposentadoria não dá para nada.
ELE: "Nome de uma dinastia chinesa ..." [Largue o jornal.] Bah! Hoje essas palavras
cruzadas estão entediantes.
ELE: (Vai até a pilha de jornais velhos.] Vou folhear alguns desses jornais ...! Este aqui,
talvez, e este ... e este ... [O pó o faz tossir.] Você poderia pôr um pouco de ordem aqui.
Os jornais estão cheios de poeira.
ELA: Acha que não limpo bem a casa? Claro, com o dinheiro da sua aposentadoria não
dá para uma empregada.
37
ELA: A gente nunca quis, mas se quiséssemos com o dinheiro da sua aposentadoria não
seria suficiente.
ELE: [Continua mexendo nos jornais] Estes jornais são de trinta anos atrás.
ELA: Há tanto tempo? Como eles vieram parar aqui? Ai, Casimirito, você está
exagerando! Sempre tomo o cuidado de jogar os jornais velhos no lixo. Ou queimá-los.
Mas é claro, às vezes sobra algum.
ELE: Algum?
ELE: Para jogar tudo isso fora, você teria que sair de casa. Ou chamar alguém para vir
tirá-los.
ELA: Acho que você não quer que as pessoas entrem aqui.
ELE: Não. Vamos deixar os jornais onde estão. Contando que não aumentem ... [escolhe
mais.] Este outro ... este é do mês passado e o outro de trinta anos atrás ... [Ele retorna
com os jornais que escolheu e sacode. Grande quantidade de poeira. Tosse.] Maldito
pó! ...
ELA: [Tosse.] Um pouco de poeira não tem jeito ... Por que você não lê o jornal de hoje?
ELE: O de hoje já li de manhã. Além disso, também tinha poeira. [Termina de sacudir
os jornais e se acomoda para lê-los.] Bem, acho que poderei lê-los agora.
ELA: [Tosse.] Claro que pode ... Não é tão ruim assim ... [Ele lê.] O que diz? Algo
interessante?
ELA: Um bombardeio? [Senta-se ao lado do Casimiro.] Vamos ver, leia para mim! ...
Quer dizer, se você não se importa.
ELA: É que ler o jornal pode nos distrair de compartilhar nosso amor.
ELE: Por algum tempo nosso amor não se prejudica nem um pouco.
ELA: Então leia sobre o bombardeio. Ou você prefere que eu leia para você?
38
ELE: Vou ler, minha querida, eu mesmo lerei, não faltava mais ... É uma notícia da
Espanha. [Lê.] O bombardeio de ontem contra a população civil deixou cinquenta mil
mortos. Homens, mulheres e crianças fugiram pela rodovia quando foram atacados
pelos esquadrões aéreos do general rebelde. O próprio general deu a ordem ...
Casimiro e Rosalía ficam imóveis. O General repete a mesma saudação e fica parado com
o braço estendido. Ruídos ferozes de ataques aéreos, com bombas e metralhadoras, e a
projeção de fotos sobrepostas mostrando, em campos e cidades, homens, mulheres e
crianças mortas. Quando cessa o fogo, Casimiro fecha o jornal, com o qual é desligada
a projeção de fotos, o General sai e Rosália também recupera o movimento.
ELE: [Fechando o jornal.] Bem, cinquenta mil mortos são muitos mortos.
ELE: Enfim, serviu de lição. Para que aprendam a não interromper o trânsito.
ELE: Mais interessante, mais interessante, deixa eu ver ... [Ele escolhe entre os jornais
que trouxe e pega outro.] Trinta anos depois ... Continuamos com Espanha. [Lê.] ... Um
estudante de dezenove anos morreu ontem em Madrid, depois de ter participado de
uma manifestação contra o regime. Ele estava em sua casa quando a polícia apareceu.
Eles permanecem imóveis, Ele lendo o jornal, ao mesmo tempo que inicia a projeção de
fotos com cenas de policiais ou militares usando força bruta contra civis; slides que vão
decorrer durante os discursos seguintes do Policial, que entra na sala, entre o público,
no início da projeção. Calça botas. Se dirige aos espectadores.
39
POLÍCIA: Onde está? Nós somos da polícia! ... Não adianta tentarem se esconder ... [Ele
sobe ao palco e se dirige a um personagem imaginário] é esse! ... Te peguei! Eu sabia
que te encontraríamos! ... Como? Então você confessa! Você ousa confessar que é um
estudante! [Bate nele, puxando-o de volta.] ... Você nunca negou ser estudante? Você
nunca tentou não ser encontrado? Vamos, ande! A resistência será inútil para você ...
Você não está tentando resistir? Bem, de qualquer maneira, anda! [Continua batendo
nele.] Então, estudante, eh! Nós vamos te ensinar a ser um estudante. Para você
aprender!
ELE: [Lê.] ... "Um acidente declarou a polícia: o aluno caiu pela janela." [Lê outra notícia.]
Madrid ... a saúde do chefe de Estado está melhor do que nunca …
ELA: Quem quer que tenha escrito aquela nota do estudante parece defendê-lo. Que
absurdo!
ELE: O regime tem sempre razão. [Lê.] Biafra3 ... Milhares de crianças ainda morrem de
fome ...
ELA: Biafra?
3
A Guerra Civil da Nigéria, também conhecida como Guerra Civil Nigeriana, foi um conflito político causado pela tentativa
de separação das províncias ao Sudeste da Nigéria, como a República autoproclamada do Biafra. Ocorreu de 6 de julho de
1967 a 13 de janeiro de 1970.
40
ELE: [Muda o jornal e lê.] Vietnã ... [Para Rosália.] As matanças continuam.
ELA: Que pena, sim ... [Pega o jornal em que Casimiro fez as palavras cruzadas.] O jornal
de hoje diz que o clima vai estar melhor.
ELA: Você tem razão. Essa notícia é inútil. [Muda o jornal.] Olha, um eletrocutado!
ELA: Agora eu vou ler para você Casimirito, Essa notícia vem de Nova York.
ELA: [Lê] Hoje o prisioneiro condenado à morte há dezessete anos foi eletrocutado.
ELA: [Lê.] ... Ele foi acusado de ter assassinado o seu médico, crime que sempre negou.
ELA: [Lê.] Ele foi capaz de adiar a sentença graças à luta obstinada de seu advogado. ELE:
Que advogado tonto! Em vez de deixar o cliente ser morto e salvar o trabalho. ELA:
[Lê.] O réu foi eletrocutado às seis da manhã.
ELA: [Lê.] Quando ele entrou no complexo onde seria executado, não aparentava
nervosismo.
ELE: Era só o que faltava. Depois de dezessete anos poderia ter se acostumado com a
ideia.
ELA: Dizem que nunca se acostumam. Eles são egoístas. [Lê.] Não provocou incidente
algum quando conduzido à cadeira elétrica. Colocaram o capacete em sua cabeça,
prenderam as alças e fixaram os eletrodos em suas pernas. Em seguida o carrasco…
Permanecem imóveis. Ela lendo o jornal. Ao mesmo tempo, entra a projeção da foto de
uma cadeira elétrica e entra o Carrasco. Calça botas. Ele dá um passo à frente e faz um
movimento para ligar a energia. Se escuta um zumbido abafado e um jogo de luzes é
41
operado sobre a cadeira elétrica. A execução foi consumada. Carrasco estende a mão
apontando para a cadeira elétrica, como um ator mostraria ao outro para compartilhar
os aplausos do público, a quem cumprimenta. Nesta posição ele permanece imóvel,
enquanto Casimiro e Rosalía recuperam o movimento e ela continua lendo.
Ela também bateu palmas. Ambos ignoram a presença do Carrasco. Ignorando, por sua
vez, a presença de Casimiro e Rosália, o Carrasco dá as mãos e levanta os braços, como
o vencedor de uma luta de boxe, acenando para um lado do palco e para o outro. Nessas
posições, o Carrasco saudando e Casimiro e Rosália em atitude de aplaudir, os três ficam
imóveis, ao mesmo tempo que a projeção da foto da cadeira elétrica muda por outras
que se sucedem: forca, guilhotina, câmara de gás, garrote, pelotão de fuzilamento e
cadeira elétrica novamente. Quando esta foto da cadeira elétrica volta a ser projetada,
os três personagens voltam a se movimentar: Casimiro e Rosália continuam a aplaudir e
o Carrasco a saudar.
ELA: Ah, aqui tem mais informações! [Lê.] Do eletrocutado saltaram os olhos.
42
A foto da cadeira elétrica é projetada novamente e, apressado, o Carrasco entra e
assume a posição em que estava saudando. Ele permanece imóvel.
ELA: Isso é o que diz. [Lê.] Nova York ... Um dos testemunhos da execução afirma que os
olhos do executado saltaram.
ELA: Terrivelmente interessante. [Lê.] ... Ainda se insiste que o homem executado era
inocente e parece que logo vão apresentar provas irrefutáveis disso.
ELA: Deveria ter vergonha! [Pega outro jornal e lê.] Relato assustador do prisioneiro que
escapou do ... [A Casimiro.] Isso tampouco soa mal. [Lê.] ... No hospital onde se encontra
acamado o prisioneiro que escapou do campo de concentração explicou hoje que
naquele campo muitos dos internos, cerca de doze mil, entre os quais há cerca de quatro
mil mulheres e duas mil crianças, se arrastam pelo chão sem conseguir caminhar devido
à falta de comida e ao tratamento brutal que recebem. Disse que os guardas ...
Eles ficam imóveis. Ela lendo o jornal, ao mesmo tempo que começa uma projeção de
slides de campos de concentração, prisioneiros, arame farpado etc.; fotos se sucedem
durante os discursos seguintes do Guarda que entra quando começa a projeção. Calça
botas. Chuta um prisioneiro imaginário no chão.
GUARDA: Proibido! Aqui não permitimos que ninguém machuque nada. Quem está
doente, morra sem reclamar. [Chuta outros prisioneiros.] Proibido! Verboten!
Défendu! Vietato! Carne de cachorro é boa demais para prisioneiros. As solas dos
sapatos são boas demais. Ratos são bons demais. Deveríamos deixar todos morrer de
43
fome. Já deveriam ter morrido na guerra. Se sobreviveram, nós cuidaremos de
remediar. Proibido!
Outro chute e em seguida fica imóvel nesta atitude, ao mesmo tempo Ele e Ela
recuperam o movimento.
ELA: [Lê.]. E acrescentou que as condições higiênicas em que vivem os prisioneiros são
deploráveis e que ...
GUARDA: [Para os presos imaginários.] Desde ontem vocês têm mais uma latrina a mais.
E outra que já tinham: duas latrinas. Vocês devem isso à generosidade de nosso chefe.
Hoje haverá uma cerimônia no pátio de agradecimento. [Outro prisioneiro recebe um
chute.] Proibido! Todo comentário é proibido! Duas latrinas para doze mil é mais que
suficiente: seis mil por latrina. Verboten!
Mais um chute e fica imóvel, ao mesmo tempo Ele e Ela recuperam o movimento.
ELA: Muito razoável. [Lê] O prisioneiro fugitivo disse que em um único dia chegou a
morrer setenta e cinco pessoas, muitas delas de doenças infecciosas.
ELE: [Continua] Setenta e cinco por dia… sete vezes três: vinte um… dois mil e pouco
por mês.
ELA: E são doze mil. Nesse ritmo, leva seis meses para eliminar todos.
44
ELA: Casimiro! Você não percebeu? Isso é terrível! É abominável!
ELA: “Doenças infecciosas", dizem aqui. Essas pessoas podem vir e nos contagiar.
ELE: Não, querida. Esse jornal é da época da Segunda Guerra Mundial. Eles não podem
vir nos infectar.
ELA: Ah, bom! Então, não tem importância... [Muda o jornal.] Vamos ver outra coisa ...
[Encontra alguma coisa.] Oh, uns enforcados! Olha que antipáticos!
ELE: (Interrompe.] Vamos ver, deixe-me ler. [Pegue o jornal e lê.] ... Os presos políticos
condenados pelo governo foram enforcados publicamente diante de uma multidão que
testemunhou este "ato de justiça", conforme descrito pelos governantes militares.
ELE: [Lê.] ... Os réus foram levados à Praça central, onde uma plataforma foi montada e
em seguida um soldado ...
Ficam imóveis, Casimiro lendo jornal. Ao mesmo tempo, projeção de uma fotografia de
dois enforcados e entra o Soldado. Calça botas. Ele se aproxima de um personagem
imaginário e faz um movimento para colocar uma corda em seu pescoço. Ele se
aproxima de outro personagem imaginário e repete o mesmo gesto: colocar uma corda
em volta do pescoço. Ele recua alguns passos e agora faz o gesto de puxar a corda. Ao
mesmo tempo, a fotografia projetada muda para outra na qual longas filas de muitos
enforcados são vistas e trombetas de vitória soam. O Soldado fica imóvel, Casimiro e
Rosália recuperaram o movimento.
ELE: [Lê] ... Os executados foram obrigados a pendurar cartazes explicando "seus
crimes".
Casimiro e Rosalía ficam imóveis. Volta a soar trombetas triunfais e o Soldado pega um
cartaz com letras ordenadas sem formar palavras, de forma inelegível. Mostra ao
público e coloca no peito de cada um dos dois personagens imaginários. Ele finalmente
fica segurando um cartaz e se imobiliza. Por sua vez, Casimiro e Rosália recuperam os
movimentos e Casimiro continua lendo.
45
ELE: [Lê] Os corpos foram exibidos na praça durante vinte e quatro horas.
ELA: Durante vinte e quatro horas os corpos na praça! Que show impressionante!
ELA: Por uma vez ... eu poderia colocar o vestido novo. Nem sempre temos a
oportunidade de ver espetáculos dessa categoria.
ELA: Que soldado corajoso. ... Que eficiência! Que força! Em poucos instantes, pronto!
Os dois foram enforcados.
ELE: Isso não é nada. Há outros soldados mais eficazes e mais fortes. Outro dia houve
um que enforcou duzentos.
ELA: Duzentos?
ELE: E na semana passada outro enforcou quinhentos. De longe. Sem sair do escritório.
ELA: Um militar?
ELE: São heróis, sim. Eles dão um jeito em todas as pessoas indesejáveis do mundo.
ELE: Eles enforcam dois, centenas, milhares. Ou eles são fuzilados ou vão para câmara
de gás.
46
ELA: Assim eliminam milhares. Bombas. Campos de extermínio. Os militares não
economizam esforços.
ELE: É admirável.
ELA: Admirável!
ELA: Admirável!
ELA: Maravilhoso!
ELE: E os golpes de Estado! O jornal de hoje diz que houve um novo golpe de Estado de
outro general.
ELA: O que faríamos sem os generais! Graças a eles, sempre ocorrem milhares de
mortes. Todas as pessoas indesejáveis.
ELE: Admirável!
ELA: Admirável!...
Ficam imóveis enquanto se inicia a projeção das fotos de Hitler, Mussolini, Franco,
Trujillo e Duvalier, que se sucedem durante os discursos seguintes do Ditador que entrará
ao iniciar-se a projeção. Botas. Um colar de medalhas. Passeia de um lado para o outro,
exibindo-se. Se adianta e fala com o público.
47
DITADOR: -Atenção ... povo! Eu sou seu salvador. Eu sou o salvador da pátria. Blá blá
blá; blá blá blá. Blá! Blá blá blá; Blá blá blá blá! Blá, blá, blá, blá ... Blá, blá, blá, blá ...
Atenção ... povo! Eu sou seu salvador ...
DITADOR: [Para o público.] Silêncio! No que vocês estão acreditando? Com quem vocês
pensam que estão falando? Sou eu que estou com as botas, com a força! [Mais uma
vez, vozes entre os espectadores]
DITADOR: [Ao público.] Silêncio! Como se atrevem a chegar aqui? Como se atrevem a
falar comigo? ... Quem são vocês? Cidadãos? E o que são cidadãos? Ratos! Eu sou
aquele com as botas, aquele que tem força! [Vira as costas para o público e dá ordens
no palco, ao mesmo tempo as mesmas fotos começam a passar de novo, agora muito
mais rápido, repetindo-se várias vezes durante os discursos e ações que se seguem]
Aviões! Tanques! Barcos! Marinheiros! Regimentos! Pelotão ... para mim! [Aponta
para o público.] Matem todos eles! Exterminem todos eles! Ousaram me contradizer!
[Ele pega uma metralhadora e aponta para os espectadores.] Eu sou o salvador da
pátria!
48
ELA: Por que parou de metralhar?
ELA: Todos? Que valente! Ele matou todos os cidadãos sozinho, com seus navios, aviões
e tanques!
ELA: Não temos nada a ver com estranhos. [A um espectador.] Ei, se você vai levar um
tiro que fique longe da minha janela; me incomoda o barulho.
ELA: [Para o mesmo espectador.] E se possível, que não seja na hora do jantar.
ELE: Ah isso sim! Que não seja na hora do jantar. Rosalia, [olha para o relógio] são quase
oito horas.
ELA: Sim, vou pôr a mesa. No mais, cada um com seus problemas.
Ela tira do aparador: toalha, dois guardanapos, duas xícaras, dois pratos e duas colheres
de chá e coloca na mesa.
49
ELA: Bem, a mesa está pronta. Eu vou esquentar o jantar.
ELE: Não demore. Você sabe que gosto de jantar na hora certa.
Ela vai para a cozinha. Batidas na porta da frente, como se alguém tivesse caído contra
ela. Eco. Casimiro escuta, sem sair do lugar. Os ruídos à porta, como se alguém estivesse
encostado nela, o barulho aumenta imediatamente em forma de eco. Casimiro se
aproxima do porto e fica atento. Barulhos e ecos. Casimiro ordena, levantando a voz.
ELE: Pare de encostar na minha porta! Está ouvindo? ... [Afasta-se, impaciente.] Era o
que me faltava! Isso vai estragar o verniz.
[Ela entra]
ELA: Como?
ELE: Parece que ela ainda não morreu. Acho que voltou novamente.
Determinado, vai abrir. Assim que o faz, a porta cede ao peso do personagem imaginário
que se apoia nela. Casimiro corre para empurrar para fechar novamente.
ELE: Ah, não, não, não, senhora, não, aqui não entra!
ELE: [Para o personagem imaginário, ainda segurando a porta.] ... Não é sua intenção
entrar? ... Você não consegue chegar até sua casa? Pois está aqui na frente, senhora,
aqui na frente, do outro lado da escada. Mais alguns passos.
ELA: [Para o personagem imaginário.] Como não pode? Sempre se pode dar mais alguns
passos!
ELE: (Ainda segurando a porta.] ... Que a ambulância não chegará a tempo?
50
ELA: Ah, então ela finalmente conseguiu dar um telefonema! Está vendo. Casimiro? Eu
falei e se a gente tivesse apostando que eu ia ganhar.
ELE: Vamos, vamos senhora, por favor, não encoste assim na minha porta; você está
estragando ela.
ELA: Ela tem mais rugas do que eu. Que bom que as esconde.
ELE: Não vamos perder mais tempo, vou levá-la para fora.
Mas a porta se abre por completo, cedendo a um último esforço da mulher, que cai no
chão aos pés de Casimiro e Rosália. Estes retrocedem. Olham agora para o lugar onde
o personagem imaginário caiu.
ELA: Que maneira de cair! [Se aproxima do corpo e o observa] que bom que não está
sangrando. Não vai me sujar o chão.
ELE: [Inclina-se para o personagem imaginário.] Agora sim, parece que não vai mais se
levantar.
ELE: Morta. [Certifica-se de que não há ninguém do lado de fora.] Temos que tirá-la
daqui.
51
ELE: Seria muito perto. Temos que arrastá-la até a porta da casa dela.
ELA: [Fica.] Tenta não fazer barulho ... [fecha a porta e volta.] Boa sorte! ... [Olha para a
mesa e dá alguns toques finais enquanto cantarola, ridículo, com voz rachada.] Com o
meu amor ... em Portugal ... Belo Sol ... de Portugal ...
Sai pela cozinha; Ainda pode ser ouvida cantarolando sua música. Depois de alguns
segundos, ele volta com uma bandeja com café, leite e açúcar.
ELA: As pessoas acham fácil tomar café com leite, mas pouquíssimas pessoas sabem
tomar um bom café com leite ... [Ela coloca a bandeja na mesa, enche as xícaras e coloca
açúcar enquanto canta outra vez.] Naquela tarde. ... com o meu amor ... Naquela tarde
... em Portugal ... Belo Sol ... de Portugal ...
ELE: Graças à janela isolante, nem vamos ouvir a sirene se chegar a ambulância.
ELA: Eu insisto em uma porta isolante. Mas, claro, com o dinheiro da sua aposentadoria…
52
ELA: Os vizinhos não nos cumprimentam mais. [Termina de misturar o café com leite
com uma colher, que ela sacode, fazendo barulho contra as xícaras.] Oito horas. O jantar
está servido.
ELE: Oh!... Este café com leite parece muito bom hoje.
ELA: Sério Casimirito?... Me alegro muito que você goste! É o mesmo café com leite de
sempre.
ELE: O mesmo de trinta anos atrás, sim. De qualquer modo, parece muito bom.
ELE: Jantamos.
ELA: [Prova o café com leite.] Hoje o café com leite estava perfeito!
ELE: [Prova.] Açúcar ... Eu acrescentaria um pouco mais de açúcar ... [adiciona e tenta
de novo.] Ah, sim, delicioso!
Eles sorriem e continuam saboreando o café com leite enquanto a cortina se fecha
lentamente.
***
53