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ESTA NOITE JUNTOS, NOS AMANDO MUITO (farsa trágica sem interrupção)

MARUXA VILALTA

[Tradução: Rita de Cassia Cunha Ferreira]

Esta edição constitui um testemunho de admiração e afeto por Maruxa Vilalta, mulher
de extraordinária atividade multifacetada, no jornalismo, na televisão, no teatro e nas
cartas. Nela está implícito o nosso agradecimento pelo invariável e sustentado incentivo
ao seu trabalho de informação e crítica para a Casa da Paz e pelo intercâmbio que o OPIC
realiza com outros povos do mundo. Nunca exagerou nas suas versões a nosso favor,
mas nunca esqueceu aquele breve cenário nas ruas de Cozumel onde a criação estética
e a cultura de outras cidades encontraram hospitalidade e aplauso. Se esta expressão
pública de reconhecimento é merecida, justa e verdadeira, a nossa decisão não se
inspirou nela, mas no valor intrínseco de uma peça dramática, feita com o plasma estrito
do diálogo, para projetar a mesquinhez sórdida do egoísmo, a numerosa “teratologia”1
da hostilidade, que, se neste trabalho se refere apenas a um casal solitário e mórbido,
pinta um mundo que se aplica tanto à solidão como a setores sociais, cidades e até
países corroídos pela negação circular a tudo e a todos. No decorrer da dramatização,
a reiteração é deliberada e, às vezes, é eloquência por meio do exagero, pois se
mergulha na existência dual que é o mínimo familiar, na verdade, alude a tempos ou
setores que foram cortando sua comunicação com a espécie, para depois gozar com o
fracasso, a ruína e o sofrimento alheio. Essas expressões monstruosas pertencem à
realidade. Não devemos nos alarmar. O choque nos abala porque é quase impossível
fixar a linha divisória entre a realidade e a paranoia; ou seja, a consequência natural do
isolamento ou da loucura distribuída na vida cotidiana. Esta é uma dolorosa radiografia
da dissidência num casamento conjugal, um diálogo de máscaras, divorciadas talvez
antes das núpcias. E é agora que o espectador descobre que o verso de López Velarde
"O amor amoroso de casais pares" não é um “logogrifo”2 nem um jogo de palavras,
porque Casimiro e Rosalía são um casal ímpar. Ninguém pode negar que eles estão ali,
unidos e ungidos, mas menos podem negar que se odeiam, se mentem e que na

1
anormalidade.
2
modalidade de charada em que se propõe a adivinhação de uma palavra pela adivinhação prévia de outras
que, em conjunto, têm as mesmas letras que aquela, combinadas de modo diferente.

1
violência que exercem contra os demais, só existe o desgosto mútuo que se professam.
Depois de rever o diálogo, será reconhecido que a convivência dessas duas sombras é o
seu próprio castigo e que a intenção de Maruxa foi cumprida.

MIGUEL ÁLVAREZ ACOSTA Diretor Geral da OPIC

***

Esta noite juntos, nos amando muito é uma sátira de egoísmo e ódio; Trata, portanto,
de exaltar o amor.

Os nomes de Beckett, Max Frisch, Jean Genet, Strindberg, Ionesco, Arrabal e outros
vieram à tona, comparando o seu teatro ao meu, por ocasião da estreia desta, a minha
peça mais recente. Fala-se em "vanguarda" e "teatro do absurdo". De simbolismo. E
de humor negro. Pessoalmente, prefiro não rotular. Trabalhei na linha que julguei mais
conveniente, com a ideia de que o público está cada vez menos disposto a levar a sério
um sermão instrutivo e, em vez disso, podemos alcançá-lo de forma eficaz por meio da
crítica ou da sátira. O que o melodrama não consegue, a farsa consegue. Em vez de
apresentar os infortúnios e lamentos de certos personagens que, contra a vontade do
dramaturgo, podem vir a parecer ridículos, resta pegar outros personagens totalmente
diferentes, esses negativos, "não-heróis", e ridicularizá-los, torná-los grotesco ao
mostrar que estão errados em sua maneira de pensar e sentir. Tais são, na minha obra,
"Casimiro" "Rosália": egoístas, abjetos, mesquinhos, apresentam em cena uma
caricatura tragicamente grotesca dos extremos a que pode levar o isolamento
voluntário e o ódio entre os seres humanos. Assim, comecei com personagens negativos
para obter uma mensagem positiva e construtiva. “Casimiro” e “Rosália” são velhos e
são casados, mas os mesmos poderiam não ser e serem jovens. São personagens que
podem ter qualquer idade e qualquer parentesco ou relação entre si: o que os une é o
ódio; o que importa é que eles são incapazes de sentir amor. E mais cruel do que gritar
o quanto se detestam é a determinação de afirmar que se amam para melhor
continuarem se atormentando.

2
"Ele" e "Ela" passam sua "noite agradável" destruindo-se mutuamente e alegrando-se
com o mal dos outros. Vivem isolados, lapidados no mundo de pesadelo que eles
próprios criaram, sem saudades dos "filhos que não tiveram" por que o seu próprio
egoísmo os impediu, atentos a qualquer ocasião de fazer mal ao próximo (carteiro
anônimo) e sem perder a oportunidade para machucar-se ou impedir o outro
(simbolismo do tecido e do fumo) de escapar de si mesmo. Quando alguém bate na
porta, o eco amplia aquele chamado, que os apavora, ou indigna, ou incomoda; em todo
caso, é gigantesco na imaginação de ambos ao tornar o mundo exterior presente para
eles. Quando, justamente para tentar fugir de si mesmos e escapar ao mesmo tempo
cada um da convivência com o outro, decidem abrir a "janela isolante", da rua chega
para eles algo insuportável: o amor. Eles preferem fechar novamente e continuar
sozinhos em seu inferno cotidiano.

Mundo angustiante e obsessivo, com diálogos, portanto, intencionalmente repetitivos


e aparentemente simples, é então, este de "Casimiro" e "Rosália". O círculo destrutivo
se inicia na primeira frase e se fecha no final da obra. Mas eu quis, e entendo que foi
ousadia da minha parte, fragmentar este círculo fechado dos dois com o contraponto
das constantes “irrupções” do exterior (chamadas frequentes da vizinha) e também
aludir ao mundo exterior através da leitura de jornais com notícias de guerra e violência
ou lembrando que a humanidade tem sofrido (e ainda sofre, então não faz mal insistir
nisso) a opressão de ditadores criminosos. Nessas ocasiões, quando se trata de negar
ajuda, festejar o mal dos outros, aplaudir crimes, "Casimiro" e "Rosália" se unem e se
solidarizam. Para voltar imediatamente a se atormentar quando estiverem novamente
sozinhos, frente a frente, sem o recurso nem mesmo da imaginação que, para celebrar
o mal, saia daquela odiosa casa.

Creio (e essa é a ideia que realizei) que os personagens de " O General "," O Policial ",
“O Carrasco”, “O Guarda do Campo de Concentração”, "O Soldado" e "O Ditador” devem
ser lineares, devem ser caricaturas, devem ser arquétipos, para que o que um
representa possa ser extensivo a muitos "generais" similares ou ditadores que já
existiram no mundo. E são. De maneira que não tratei de satirizar tais personagens-
tipo com ironia, mas os expus da forma mais óbvia que pude, como mostra, para que
"Ele" e "Ela" os admirasse e aplaudisse e é aí, nessa reação do casal desastroso que

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entrará a ironia do autor. Os mencionados personagens-tipo (e os slides que se
projetam, aos quais estão praticamente integrados) às vezes correspondem a uma
ilustração da notícia lida no jornal (como no caso do General), ou trazem para a cena
personagens mencionados em um diálogo implícito entre "Ele" e "Ela" enquanto
permanecem imóveis (como no caso do Ditador). Em outras ocasiões (O Policial, O
Guarda do Campo de Concentração e a primeira intervenção do Soldado) , substituem
parte do texto que seria lido no jornal. E outras vezes ainda (o Carrasco) são mazela de
exposição de pensamentos de Casimiro e Rosália e substituição do texto do jornal. Em
todo o caso, dei-lhes uma forma real no palco porque faziam parte, em de certa forma,
do mundo interior, subjetivo - o único que para eles é real - de "Casimiro" e "Rosália" e,
em vez disso, representei de forma imaginária a mulher doente, que realmente entra,
mas vem diretamente do mundo exterior, sempre irreal, sempre impalpável para "Ele"
e para "Ela". Quanto aos slides, também foram escolhidos para fazer pensar não só no
ditador que representam, mas também em ditadores semelhantes e para mostrar não
só o episódio de que se fala, mas também outras cenas iguais de ódio e destruição que
aconteceram ontem e hoje e que, infelizmente, já se preparam para amanhã. Com a
peça em cena, tenho lido diariamente nos jornais notícias e descrições de
acontecimentos semelhantes aos citados na peça. Há semelhanças, por exemplo, entre
as condições higiênicas em que viveram os prisioneiros dos campos de concentração
nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e aquelas em que vivem atualmente alguns
grupos de trabalhadores de fortes empresas. Entre as fotos (documentos verídicos) que
são exibidas durante as representações, está uma das crianças mortas no bombardeio
fascista sobre a cidade de Barcelona durante a guerra civil espanhola: uma fotografia
cuja existência por si só justifica para mim ter escrito este trabalho e justificaria um
trabalho de toda a vida.

Esta noite juntos, nos amando muito: farsa trágica sem interrupção. Na verdade, não
há pausa ou trégua na tarefa de odiar "Ele" e "Ela" e de odiar os outros. Por outro lado,
no decorrer da representação, como o espectador consciente romperia esse círculo
cruel do mundo de "Casimiro" e "Rosália" para voltar depois a apoderar-se do ambiente
em que se desenrola a farsa?

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Em resumo, é uma obra sem concessões de bilheteria e isso vai incomodar mentes
reacionárias, falando em termos de política, e a espíritos retrógrados e não menos
conservadores, falando em termos de arte.

Com tal peça recém-terminada, compreendi que não havia feito algo particularmente
atraente para nenhum empresário. Pensei, inclusive, que não chegaria a estrear. Mas
felizmente o trabalho não foi para as mãos de um “empresário” no sentido convencional
da palavra, isto é, com tudo que se soa como cebolas e batatas, mas se interessaram por
ela dois representantes de um organismo cultural: o escritor Maurício Magdaleno e o
arquiteto Ramiro González Delsordo, presidente do Conselho de Administração da
Unidade Artística e Cultural do Bosque, um e gerente geral da mesma unidade, o outro.
Eles correram com a aventura de apresentar a obra. Não tem sido (nem será) o único
caso em que a Unidade Artística e Cultural do Bosque, porta aberta, sem prejuízo às
atividades criativas, recebe autores e diretores “não comercializáveis” e até “perigosos”
no sentido de que pretendem sacudir o público, despertar potenciais adormecidos;
pretende que o espectador nunca vegete e sim que participe e dão ao espectador (como
eu entrego esta obra) um material de trabalho para que ele também crie, construa sobre
essa base e a partir desse ponto de partida imagine e pense.

O público e a crítica responderam muito favoravelmente e outra instituição cultural,


que atua a nível internacional como o próprio nome indica, a Organização Internacional
de Promoção da Cultura (OPIC), passou a integrar a Unidade Artística e Cultural do
Bosque: aos senhores Magdaleno e González Delsordo se uniram espiritualmente o
diretor geral do referido Organismo, Embaixador Miguel Alvarez Acosta, que decidiu
editar a peça. Álvarez Acosta, advogado e também escritor, considerou que seria
interessante levar a obra do palco à leitura. E aqui, uma coincidência: anos atrás o
advogado Alvarez Acosta, então diretor de Belas Artes e os arquitetos Ramírez Vázquez
e González Delsordo criaram - na época do Ministro Ceniceros - os teatros da Unidade
do Bosque e entre eles o do "Granero", agora convertido naquele "armazém cheio de
coisas velhas" que é a casa- prisão de “Casimiro" e "Rosalía ".

Esta é a história da peça, de sua estreia e sua publicação. Queria um título irônico para
a farsa. E quanto à direção do palco, procurei aproveitar ao máximo as vantagens do
teatro círculo, fazendo com que o público aproveite ao máximo possível o espetáculo.

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Encontrei a colaboração absoluta no trabalho dos atores, Pilar Souza, Roberto Dumont,
José Luís Castañeda e Carlos Pouliot, e dos técnicos, arquiteto Carlos Perdomo, Héctor
M. Sierra, Antonio Castillo Ledón e Adolfo Garcia. Pedi à cenógrafa Félida Medina, que
com talento captou e concretizou a minha ideia, para sublinhar a sordidez do ambiente
e reduzir ainda mais o já pequeno espaço do Teatro de “Granero”, a prisão em que se
encontram "Casimiro" e "Rosália", para o qual se tentou aproximar o chão (coberto com
jornais e fotografias dele e dela em diferentes idades) e ao teto, do qual pendiam
enormes teias de aranha feitas de novelos de lã. E, para acentuar ainda mais o tom de
irrealidade e isolamento, acrescentei música de um “harmônio” que está no palco. A
jovem pianista da Escola de Música da Universidade Nacional Autônoma do México,
Lucía Álvarez, tornou-se organista. Antes de começar os ensaios com os atores, ela e eu
passamos horas gloriosas tomando café, comendo "gruyere" e pão preto e fazendo
música: Eu herege e ela religiosamente; eu ditando a atmosfera ou efeito desejado e ela
criando-o com uma técnica brilhante.

MARUXA VILALTA

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ESTA NOITE JUNTOS, NOS AMANDO MUITO

Sala de jantar com porta de entrada da casa, trancada com grande fechadura e saída
para os quartos interiores. Uma janela. Mesa de jantar redonda coberta e com uma
pasta descolorida. Um aparador antigo, outros móveis, todos velhos. Acúmulo de
objetos e ornamentos inúteis. Pilhas de jornais no chão, contra uma parede. Teias de
aranha. Pó. Ambiente sórdido. É como um armazém cheio de coisas velhas, entre eles os
dois únicos habitantes da casa, Ele e Ela. Ele fuma cachimbo e ela faz tricô.

ELE: Hoje também.

ELA: Igual a ontem.

ELE: O mesmo que amanhã. Estamos sozinhos em casa.

ELA: Sozinhos com o nosso amor.

ELE: Com nosso grande amor! Podemos desfrutar a noite.

ELA: O que faremos até a hora do jantar?

ELE: Esperar, querida, esperar até a hora do jantar.

ELA: Sim, esperar... Se fosse oito seria a hora do jantar, mas não são oito.

ELE: Vai demorar muito para as oito horas.

ELA: Sim, vai demorar. [Silêncio.] Está chovendo.

Ele: Como?

ELA: Está chovendo.

ELE: Acho que não.

ELA: Tenho certeza.

ELE: Enfim, que diferença isso faz.

ELA: Sim, que diferença isso faz.

ELE: Quer chova ou não, não estamos debaixo da chuva.

ELA: Não.

ELE: Aqueles que estão na chuva, lá estão.

ELA: Lá estão eles. [Um silêncio.] Então, admite que chove.

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ELE: Não chove. Podemos verificar se você quiser. Podemos abrir a janela.

ELA: O que você está dizendo? Abrir a janela!

ELE: Eu estava brincando.

ELA: Nunca abrimos. Nunca abrimos esta janela!

ELE: Eu estava brincando.

ELA: Casimiro, não me assuste de novo assim.

ELE: Não era minha intenção assustar você, Rosália.

ELA: Abrir a janela que dá para a rua! E os ruídos de fora? E as pessoas, as vozes?

ELE: As risadas.

ELA: Sim, seria terrível. Ouviríamos as risadas.

ELE: Não se preocupe, não vamos ouvir.

ELA: Veríamos as pessoas.

ELE: Felizmente não vamos ver. Foi uma ótima ideia instalar uma janela isolante aqui.

ELA: Foi uma ótima ideia.

ELE: Sem barulho, sem chuva, sem luz, sem gente. Nada.

ELA: Nada. Graças à janela.

ELE: De vidro isolante.

ELA: De seda isolante.

ELE: De pedra isolante.

ELA: De areia.

ELE: De poeira.

ELA: De terra.

ELE: Está ouvindo agora? ... O silêncio.

ELA: O silêncio. [Uma pausa.] Deveríamos instalar também uma porta isolante.

ELE: É impossível.

ELA: Por quê?

ELE: Eles reclamariam.

ELA: Quem?

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ELE: Os outros ... as pessoas. Eles iriam começar a fazer barulho. Se não abríssemos, se
estivéssemos trancados aqui durante anos, se tivéssemos janelas isolantes, portas
isolantes …

ELA: Eles não teriam que saber disso. Ninguém nos visita. Não temos parentes.

ELE: Nem amigos, felizmente.

ELA: Felizmente.

ELE: Mas se tivéssemos uma porta isolante eles descobririam. Alguém ligaria.

ELA: Sim, sempre tem alguém ligando.

ELE: O leiteiro, por exemplo.

ELA: Eu posso despedi-lo.

ELE: O vendedor.

ELA: Eu também o despediria.

ELE: Aí teríamos que sair de casa para comprar comida.

ELA: Sair de casa? Isso seria terrível.

ELE: Terrível, sim. E de qualquer maneira, alguém acabaria ligando. Eles descobririam
que temos uma porta isolante e iriam nos denunciar à polícia.

ELA: Você acha?

ELE: As pessoas são capazes de tudo.

ELA: E ter que morar em prédio! ... Claro, com a sua aposentadoria não podemos morar
em casa própria. Se ao menos você tivesse se tornado chefe antes de se aposentar! ...

ELE: Um escritório do governo é um lugar importante para se trabalhar. Nem todo


mundo pode trabalhar em um escritório do governo.

ELA: Mas você não chegou a chefe.

ELE: Tinha funcionários a quem mandar.

ELA: Bah! uma secretária.

ELE: Todas as manhãs eu a mandava apontar os lápis do escritório: todos os que eu ia


usar e também os que não ia usar. Todas as manhãs, arquivávamos os arquivos que
precisavam ser arquivados e retirávamos os que precisavam ser revisados e depois eram
arquivados novamente. Foi um trabalho muito importante.

ELA: Muito importante, não nego isso. Mas você não chegou a chefe.

ELE: Eu fui segundo chefe. Fazia meu despacho privado.

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ELA: De cristal. Nem sequer de madeira.

ELE: Mão firme com os subordinados! Sempre soube mandar.

ELA: Um segundo chefe não é o mesmo que um chefe de verdade. Por isso agora com
sua aposentadoria não dá para nada.

ELE: Não temos casa própria, mas nunca fizemos amizade com os vizinhos do edifício,
não pode se queixar. Nunca falo com ninguém.

ELA: Eu também não.

ELE: Quando ia ao escritório nunca cumprimentava se encontrasse alguém pela escada.

ELA: Se você os cumprimenta, você está perdido.

ELE: Sim, é assim que começa. É assim que alguém acaba se tornando amigo.

ELA: - Que horror!

ELE: Catastrófico! [Um silêncio]

ELA: [Suspira] Às vezes, à noite, quando chove, penso neles.

ELE: Em quem?

ELA: Nos filhos que não tivemos.

ELE: Sim, também penso neles. Às vezes.

ELA: Muitas vezes?

ELE: Não. Poucas.

ELA: Eu só quando chove. Como agora.

ELE: Agora não está chovendo.

ELA: Não me arrependo de não tê-los.

ELE: Eu também não.

ELA: Se não tivemos foi porque não podíamos.

ELE: Porque não queríamos.

ELA: O Rh e outras coisas.

ELE: Você, dizia que ia arruinar seu corpo.

ELA: Você, que não tinha tempo de criar filhos.

ELE: Rh nunca foi discutido.

ELA: De qualquer forma, não importa.

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ELE: Claro que não.

ELA: No fim, uns filhos mais ou menos...

ELE: Eles não são mais crianças. Eles logo farão trinta anos.

ELA: Já faz trinta anos, os filhos que não tivemos, os nossos gêmeos!

ELE: Sim, trinta anos.

ELA: Como passa o tempo!

ELE: Como passa!

ELA: Eu poderia jurar que eles tinham apenas dez anos.

ELE: Você está confusa, minha querida, você está confusa. As que tinham dez anos
quando você parou de vê-las eram gêmeas da sua irmã, mas isso foi há vinte anos
porque você não trata a sua irmã. Você pensou que ia ter gêmeos também.

ELA: E você insistiu que eram meninos. Até nisso você impôs sua vontade!

ELE: Eu? De maneira nenhuma!

ELA: E agora nossos filhos estão fazendo trinta anos!

ELE: Ainda bem que não os tivemos.

ELA: Menos mal [Silêncio.] um direito, basta, um contrário...

ELE: O que você está tricotando hoje?

ELA: [Mostra o tricô, de forma indefinida e bizarra, feito de lã grossa.] Veja, o mesmo de
ontem.

ELE: E você vai terminar?

ELA: Não. Falta muito ainda.

ELE: Quando você acaba uma coisa é o vazio, é o fim, é o nada. É como se algo tivesse
morrido. Eu sei o que esse tricô representa para você, Rosália.

ELA: Não representa nada. É o meu tricô e nada mais.

ELE: Te ajuda a viver, seria terrível se você terminasse.

ELA: Não preciso dele para me ajudar a viver.

ELE: De qualquer forma, você deve estar prevenida.

ELA: Terei cuidado.

ELE: Quando menos se espera, um desfecho fatal, uma flor que murcha, um tricô que
acaba, uma ilusão que morre...

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ELA: Acho que descansarei um pouco ... [Deixa o tricô.] Não sei o que eu faria sem o seu
amor, Casimirito!

ELE: O que faria eu, minha Rosália, sem o seu amor! …

Batidas na porta. Alguém chama. O barulho é reproduzido várias vezes,


exageradamente, na forma de um eco impressionante. Ele e Ela se entreolham,
assustados.

ELA: Estão chamando?

ELE: Estão!

ELA: Não pode ser.

ELE: Nós dois já ouvimos.

ELA: Será na frente. Ou embaixo.

ELE: Não.

ELA: Por que não?

ELE: Porque quando chamam na frente você não ouve aqui. Nem quando chamam
embaixo também. Alguém está chamando na nossa casa.

ELA: Na nossa casa? Mas isso é terrível.

ELE: Teremos que enfrentar.

ELA: Você se dá conta? Teremos que abrir, conversar com as pessoas.

ELE: Suponho que sim.

Chamam de novo. O eco já não impressiona, embora seja insistente. O medo que Ele e
Ela sentiram se transforma em indignação.

ELA: Como ousa! Não responda, eles vão se cansar.

ELE: Vai ser chato ouvi-los.

ELA: Devíamos instalar uma porta isolante.

ELE: Já te disse que não é possível.

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Chamam outra vez. Eco.

ELA: Quem poderia ser?

ELE: Que estranho!

ELA: Muito estranho.

ELE: O melhor é abrir e nos livrarmos deles o mais rápido possível. Eu irei. [Vai para a
porta da frente.]

ELA: Vou para a cozinha.

Ela sai. Ele abre a porta com um grande barulho e não dá tempo de falar com quem
chama: um personagem absolutamente real, ainda que seja sempre representado de
forma imaginária.

ELE: Não é aqui. Você está na casa errada. Como? ... A nova vizinha? É você a nova
vizinha? ... Sim, senhora, não te conheço. [Ele se prepara para fechar.] ... Do cinco, você
diz? Você mora no cinco? ... Em frente a nós, sim, estamos próximos… [com
arrependimento ele se coloca de lado] Entre senhora, entre...

O personagem imaginário entra, Casimiro o observa em atitude de reprovação.

ELE: O quê? Você se sente mal? Uma aspirina? ... Não, não incomoda, mas não temos
aspirina ... Nenhuma, senhora. Nem uma única aspirina ou algo parecido em toda casa...
Era isso? [Ele corre para abrir a porta novamente.] Você já está indo? Que pena! ... Sim,
também tive muito prazer, sim, encantado ... Até mais, senhora, tchau ...

Feche a porta atrás do personagem imaginário e tranca novamente. Entra Rosália.

ELE: Você ouviu?

ELA: Tudo. É o cúmulo! Ousando nos pedir uma aspirina! Você fez muito bem em não
dar a ela.

ELE: Claro que fiz bem. Fazer um favor às pessoas é sempre perigoso. E se eles te
agradecem? E se com esse pretexto quiserem fazer amizade?

ELA: Sim, é perigoso.

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ELE: Se eu der uma aspirina hoje, amanhã ela pode voltar e pedir bicarbonato, sal,
batatas, que a gente faça comida, que a gente leve para ela.

ELA: Sim, se você faz um favor já está perdido. Por acaso, não entreguei a carta dela.

ELE: Que carta?

ELA: [Mostra um envelope.] Veja: "número cinco", diz aqui. É para ela. Esta manhã o
carteiro deixou, por engano, por baixo da nossa porta.

ELE: O carteiro? Como se atreve!

ELA: Tenho certeza de que foi ele porque ouvi. Ele chamou e disse "carteiro".

ELE: Que atrevimento!

ELA: E como não fui abrir, ele jogou a carta por baixo da porta.

ELE: Sabe perfeitamente que não recebemos cartas.

ELA: Sabe, mas as pessoas são egoístas! [Rasga a carta.] Isto vai para o lixo.

Procura ao seu redor e não consegue encontrar um lugar para jogar os papéis rasgados.
Ela abre o aparador, empurra-os para dentro e consegue fechá-lo novamente,
empurrando retalhos amassados de tecidos de várias cores que saíram do móvel
transbordando de coisas assim que ele abriu.

ELE: Aquele carteiro cometeu um erro imperdoável.

ELA: Imperdoável, sim.

ELE: Vou reclamar. Vou escrever para o correio para fazer com que ele seja demitido.
ELA: Casimiro, que ótima ideia!

ELE: Assim ele aprenderá a não cometer erros.

ELA: Assim aprenderá a não nos trazer mais cartas. Vou te dar o que escrever.

Ela corre para abrir o aparador novamente e remexe em objetos inúteis: recortes de
tecido, novelos de lã emaranhados, agulhas de tricô tortas, meias velhas, pedaços de
louça quebrada e, entre tudo isso, xícaras, pratos, copos e talheres. Encontra papel e
envelope, bastante amassados também, volta a colocar as outras coisas no aparador,
em desordem, empurrando para poder fechar.

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ELA: Aqui está o papel e o envelope que trouxe para casa quando foi ao escritório.

ELE: Que bom que você os encontrou.

ELA: Eu os guardei bem. Como o dinheiro da sua aposentadoria não dá para nada …

ELE: Vou dirigir-me pessoalmente ao administrador geral … com letra de forma, será
anônimo, claro. [Escreve.] Senhor Administrador ... [interrompe.] Não, "senhor" não,
direi apenas "administrador", simplesmente.

ELA: Sim, apenas administrador, para que veja que você é tão importante quanto ele.

ELE: Ou mais. [Escreve.] Administrador Geral dos Correio, Presente. Meu senhor,
lamento muito por ter de entrar em contato para chamar sua atenção para uma ofensa
grave ... [Ele interrompe.] Não, uma parecerá pouco. [Escreve] para chamar sua atenção
para faltas graves cometidas por seus subordinados...

ELA: Aquele com o número errado também pode parecer pouco. Coloque que ele rouba
as cartas. Ou que fica com objetos de valor.

ELE: Isso é mentira.

ELA: Bem, Casimiro, você não vai desistir agora. É esse homem ou nós.

ELE: Não tenho problema em inventar nada. [Escreve.] Me refiro ao carteiro da nossa
rua, que perde a correspondência, a destrói ou rouba.

ELA: Muito bom! Ele rouba.

ELE: [Escreve.] Há pouco se extraviou sem chegar às minhas mãos um envelope com um
cheque. Não tenho provas de que o carteiro seja o responsável, mas ainda existem
outros abusos. Ainda ontem eu o vi rasgar um pacote inteiro de cartas.

ELA: Você viu?

ELE: Como vou ver se não saímos de casa e a janela é isolante!

ELA: Sim, claro, como você vai ver.

ELE: [Escreve.] Vizinhos desta mesma rua me disseram também que eles
frequentemente deixam de receber sua correspondência.

ELA: E se eles perguntarem?

ELE: Não faltará quem lhe diga que deixou de receber uma carta. [Escreve] O que vos
informo é para que sejam tomadas as medidas necessárias. Meu caso é o de menos.
Trata-se da proteção de todos os cidadãos.

ELA: Isso mesmo, fale sobre os cidadãos! Assim, parecemos patriotas.

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ELE: Agora vou colocar o nome da nossa rua, para que eles identifiquem o carteiro.
[Escreve.]

ELA: E se houver dois carteiros na nossa rua?

ELE: Melhor! Assim, matamos dois pássaros numa pedrada só.

ELA: Perfeito! Mas então você acha que vai funcionar? Eles vão expulsá-lo?

ELE: Não sei. Pelo menos teremos feito o possível.

ELA: Claro, nossa consciência está tranquila. Eles certamente suspeitarão dele. Eles vão
desconfiar ...

ELE: O envelope ... [Ele pega o envelope e começa a escrever. Se interrompe.] Mas há
um problema. Para enviar a carta precisamos de selos.

ELA: Eu tenho. [Busca outra vez no aparador] eu os guardei uma vez que mandaram
uma propaganda. Como o dinheiro da sua aposentadoria não dá para nada ...

ELE: Não é necessário que você tenha selos, já que não escrevemos cartas.

ELA: Para você ver, nunca se sabe. [Encontra os selos e entrega a ele] aqui estão.

ELE: Sim, nunca se sabe ... [Termina de escrever o envelope e cola os selos]. Parece
impossível para mim! Escrever uma carta, eu! Dirigir-me a alguém de fora ... Claro que
o fim o justifica. Eu vou prejudicar aquele carteiro.

ELA: "Vamos" prejudicá-lo.

ELE: Até agora você não fez nada. Mas você ainda está em tempo. O problema persiste,
você terá que sair para levar a carta na caixa de correio lá embaixo.

ELA: Como? Sair de casa? De maneira nenhuma!

ELE: Eu não vou. Não estou disposto a encontrar ninguém subindo a escada. Não vou
arriscar que me dirijam a palavra.

ELA: Mas, querido, por favor ...

ELE: Inútil. Prefiro não reclamar.

ELA: E para aquele homem ficar impune? Isso não!

ELE: Toma então. [Ele dá a carta]

ELA: Mas, Casimirito, e se eu encontrar alguém? E se eles falarem comigo? E se eles


sorrirem para mim?

ELE: É difícil. Seu rosto nos convida a sorrir.

ELA: Está bem! Se não houver outra escolha…

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Abre a porta. Cautelosamente, ela coloca a cabeça para fora olhando para todos os
lados. Se decide e sai com pressa.

ELE: [fecha a porta e ri.] Corre, Rosália, corre! ... Vai passar medo pela escada. O medo
não é uma sensação agradável … [se aproxima da janela] Se não fosse por essa janela,
eu veria as pessoas lá embaixo. Eu veria todos vocês, besouros imundos. Alguém poderia
olhar para cá e sentir-se no direito de me perguntar alguma coisa. Alguém poderia ser
capaz de me dirigir a palavra; subir e bater na porta da minha casa ... Tem os que fingem
ser felizes. Mas suas vozes não vão chegar aqui. Suas palavras não me interessam ...

Ela entra apressadamente, fecha a porta e verifica a fechadura.

ELA: Pronto! Deixei a carta na caixa de correios e não encontrei ninguém.

ELE: Bom, assunto encerrado. A pedra foi lançada. Podemos comemorar.

ELA: Fizemos algo útil hoje.

ELE: Sim. Fizemos algo útil.

ELA: Você estava olhando pela janela?

ELE: Sim.

ELA: Viu alguma coisa?

ELE: Claro que não. É por isso que temos uma janela isolante.

ELA: Sempre tenho medo de que o mecanismo estrague, que a janela deixe de ser
isolante.

ELE: As janelas isolantes nunca estragam. Quando instaladas é para sempre.

ELA: Se quebrasse, a gente veria a rua e ouviria as pessoas.

ELE: As janelas isolantes não estragam. Está nervosa Rosália. Você deve se controlar.

ELA: A próxima vez que tiver que sair de casa vai você.

ELE: Na próxima vez, vamos ver. É difícil a gente sair.

ELA: Por que eu tive que ir?

ELE: Se acalme, querida, se acalme.

ELA: O que vamos fazer agora? Falta muito para a hora do jantar.

ELE: Sim, falta muito.

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ELA: Onde deixei meu vestido?

ELE: Você está vestida, querida, está vestida.

ELA: Este não. O que estou fazendo. O do manequim.

ELE: O do manequim deve estar no manequim.

ELA: Vou buscá-lo.

[Sai]

ELE: Onde diabos deixei o cachimbo? [Busca por toda casa]

Ela entra com o manequim que veste um ridículo vestido com cores estridentes.

ELA: Tinha razão: o vestido do manequim estava no manequim.

ELE: Tem ideia de onde deixei meu cachimbo?

ELA: [Admira o vestido no manequim] Que te parece? Não é precioso?

ELE: [Encontra um botão] Um botão rosa! O que está fazendo aqui um botão rosa?

ELA: Deixe onde estava. Algum dia poderei ter um vestido cor de rosa e precisar de um
botão rosa. Com o dinheiro da sua aposentadoria não daria para comprar um botão
rosa.

Tirou do aparador uma almofada com alfinetes e começa consertar o vestido sobre o
manequim, faz pregas, prende alfinetes etc.

ELE: Por fim, o cachimbo segue desaparecido… [o encontra] Ah, está aqui.

ELA: Teve sorte! Lembro aquela vez que você procurou a calçadeira mais de uma semana
seguida.

ELE: E você não me ajudou a encontrar.

ELA: Mas querido, isso é problema seu. Não uso calçadeira. [Ele guarda o cachimbo] não
vai continuar fumando?

ELE: Não. Por enquanto não.

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ELA: Fazer um vestido não é uma coisa fácil, claro, mas não podemos pagar uma
costureira com o dinheiro da sua aposentadoria… [Ele ri diante do vestido] do que está
rindo? É um vestido bonito.

ELE: Um papagaio, querida! Vestida isso parecerá um papagaio velho.

ELA: Não vamos discutir moda agora.

ELE: Claro que não.

ELA: Eu tenho que preparar o jantar.

ELE: Sim, querida, vá...

Ela sai.

ELE: [risos] Exatamente um papagaio velho! ...

De repente ele pára de rir e arranca o vestido do manequim.

ELE: Ah, assim está melhor, muito melhor! ...

Ele acaricia o corpo do manequim, com movimentos lascivos e grotescos, e começa a


dançar um tango com ele. Ele termina de dançar e fala com o manequim.

ELE: Como? Você também é solteira? Sim, senhorita, sim, isso se vê, isso se sente...
[belisca o manequim.] Oh, não, não, te garanto que não penso ser impertinente!... Com
promessa de casamento? Bom, não sei se chegaremos à tanto… [Vai embora com o
manequim no braço] Sim, penso fazer uma carreira brilhante, eu mereço. Passarei no
escritório próximo ao meu e depois outro e outro. Em vinte escritórios mais chegarei à
chefe. Tenho perfeitamente calculado. Sim, minha meta é ser chefe. Mandar! Dar
ordens! Isso é o que importa: dar ordens! Estou perfeitamente apto a dar ordens
senhorita, perfeitamente apto. Jante comigo esta noite e te explicarei com mais
detalhes…

Ri com o manequim e dança com ele novamente, agora uma valsa cafona.

ELE: Oh sim, sim, nada como dançar! Baile de quinze anos, baile de trinta anos, Guerra
dos Cem Anos. ... A Guerra dos Cem Anos foi muito depois da fundação de Alexandria.
Cultura, sim senhorita, isso se chama ter cultura. [Para de dançar.] Por favor, não ria,
sua risada é desagradável para mim. [Petulante.] Vamos marcar uma consulta para
amanhã às seis horas, meia hora do relógio. Tenho predileção por essa hora. Apesar das

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verticais, sim, porque normalmente prefiro as diagonais. De qualquer forma, sempre
que chega às seis da tarde, fico feliz de me apaixonar.

Ela aparece há alguns instantes e assistiu ao final da cena. Parece encantada.

ELA: Casimiro, sou eu!

ELE: Como?

ELA: Canalha ... você estava fazendo amor comigo… o manequim sou eu.

ELE: Sim. Você trinta anos atrás.

ELA: Trinta anos já! Como passa o tempo!

ELE: Agora já não é mais nenhuma menina. [Começa a colocar o vestido no manequim].

ELA: Não, não, deixe assim, nu! É meu corpo.

ELE: É seu corpo esse manequim? É por isso que os vestidos que você faz sempre caem
mal.

ELA: Trinta anos! …, Mas o amor que agora temos é muito mais verdadeiro.

ELE: Te parece?

ELA: [risos, namoradeira] Ha, há, há Vampiro ... Você me quer ...

ELE: Se te desejo?

ELA: Constantemente tenho que colocar freios nos teus impulsos.

ELE: Sim?

ELA: Libidinosos!

ELE: Não é para tanto.

ELA: Porque você não me beija.

ELE: Te direi…

ELA: Não, não!...

Ele ri e é perseguido pelo palco. Paquera ridícula. Ele desiste, então, Ela se aproxima
dele.

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ELA: Por favor, Casimiro, por favor, tenha cuidado! [Sobe o vestido e mostra as pernas.]
Não, não, as pernas não! Não olhe para as minhas pernas! ...

ELE: Não, querida, eu não estou olhando para elas. [Ele termina colocando o vestido no
manequim, com grande desprezo à Ela]

ELA: Mas o que você está fazendo?

ELE: Vestindo o seu corpo, as crianças iriam ver.

ELA: Que crianças?

ELE: Nossos filhos.

ELA: Em breve farão trinta anos. Além disso, não os tivemos.

ELE: Se os tivéssemos, eles poderiam ver. É melhor assim.

ELA: Se você insiste ... [Ele ri novamente diante do manequim.] Será melhor levar
comigo.

ELE: Por quê? Você ainda não está trabalhando no vestido?

ELA: Não. Não estou. Vou guardá-lo no lugar.

Ele sai com o manequim.

ELE: Lástima! Era divertido… [Risos] muito divertido!...

Ela entra.

ELA: Você finge que meu corpo não é igual ao do manequim. Você finge que eu não sou
jovem.

ELE: Não finjo nada, querida, não finjo nada.

ELA: Casimiro ... Você acha que ainda sou bonita?

ELE: Ainda?

ELA: Quer dizer, na minha idade.

ELE: Na sua idade? Mas, querida, o que são sessenta anos!

ELA: Então eu ainda estou bonita.

ELE: Luz, é a mesma de sempre, querida, a mesma de sempre.

ELA: [Glamour.] Obrigada …

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ELE: [Sorri para ela].

ELA: [Sorri para ele].

ELE: Felizes?

ELA: Felizes.

ELE: Casal feliz.

ELA: casal feliz amamos.

ELE: casal feliz amando-se. [Se dão as mãos e giram enquanto cantam o coro].

ELE E ELA: "Doce laranja, limão partido, dê-me o abraço que te peço…”

Deixam de girar e riem. Nisso ele tira do aparador uma peruca velha e grotesca
encaracolada e coloca nela, que começa a exibir-se adotando atitudes ridículas de
mulher fatal. Ele ri alto. Sob o reflexo das luzes coloridas do teto, Eles são dois
personagens de pesadelo. Quando Rosália termina sua exibição, a luz geral volta.

ELA: É uma peruca linda.

ELE: Muito bonita, sim ...

ELA: E me faz parecer jovem.

ELE: Sim, muito jovem …

Batidas na porta, com menos insistência do que da vez anterior. Eco.

ELA: [Tira a peruca.] Você ouviu?

ELE: Sim. Chamaram na porta.

ELA: Será aquela mulher de novo?

ELE: Muito provavelmente.

ELA: As pessoas são egoístas!

ELE: Vamos expulsá-la em alguns segundos. Eu cuido dela.

Ele vai até a porta e abre.

ELE: Ah, senhora, você de novo!

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O personagem imaginário entra.

ELE: Encontrou as aspirinas? Que bom… se sente pior? ... Você acha que não é coisa de
aspirina? ... Algo sério? ... Você está sozinha e não conhece ninguém? Bem, minha cara
senhora, não é minha culpa.

ELA: [Para o personagem imaginário.] Nem meu também ... Sim, senhora, já sei que você
é nossa vizinha. O prazer é meu.

ELE: Se você está doente, não se preocupe. Vá para casa e descanse.

ELA: Vamos, não perca tempo, vá descansar.

ELE: [Pega a figura imaginária pelo braço e leva-a até a porta.] Não, não, não, não existe
"mas" que vale a pena. Vá descansar, senhora, vá descansar. Estou muito feliz com sua
visita e lamento que tenha sido tão breve. Volte quando quiser. Tchau.

Ele fecha a porta e tranca novamente.

ELE: É isso aí! Nós nos livramos dela.

ELA: Por que você disse para ela voltar? É capaz de fazer isso.

ELE: Acho que não. Ele parecia muito mal.

ELA: Amarela, sim.

ELE: Prefiro dizer branca.

ELA: Esverdeada. Se ela se deitar dificilmente vai se levantar. Talvez ela consiga.

ELE: Ao melhor. Nunca se pode estar tranquilo.

ELA: A mulher é jovem. Parece forte, infelizmente.

ELE: De qualquer forma, espero que ela não consiga se levantar.

ELA: Esperamos.

ELE: [Traz um tabuleiro com fichas.] Vamos terminar o jogo de damas?

ELA: Para quê?

ELE: Para terminar. Deixamos começado.

ELA: Como queira.

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ELE: [Move uma ficha]. Ganharei, como sempre.

ELA: [Avança uma ficha] Você faz isso de propósito.

ELE: Claro que faço de propósito.

ELA: Você faz isso para me irritar.

ELE: Quando se joga, é para ganhar.

ELA: Você faz isso para me irritar.

ELE: [Come fichas] Te como, te como, te como.

ELA [Coquete.] Ai! Ai! ... Você me come?

ELA: Você não, querida. O que me interessa são as fichas. [Salta sobre outra ficha] E
uma a menos. [Eles continuam a jogar.]

ELA: Me derrotar te dá prazer.

ELE: Enfim ...

ELA: E pensar que eu poderia ter me casado com um homem rico!

ELE: Você fez isso. Você se casou comigo, que era mais rico do que você.

ELA: Você acabou com uma aposentadoria miserável.

ELE: Não se culpe, querida, você não poderia saber.

ELA: No entanto, faço todo o possível para sermos felizes.

ELE: E você consegue, querida, você consegue.

ELA: As brancas avançam.

ELE: Ganharão as pretas. As pretas sempre vencem.

ELA: Nem sempre. Outro dia li que algumas mulheres negras foram presas. Me alegro.
Eu odeio mulheres negras. E os negros também.

ELE: E também os brancos.

ELA: E os amarelos?

ELE: Abominável a todos.

ELA: Felizmente não temos contato com ninguém.

ELE: Menos mal. Dama.

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ELA: [Entrega uma ficha para ele.] Não sei como você consegue. Você sempre vence.
ELE: Estou acostumado a impor a minha vontade. A mandar. A dar ordens. No escritório
dava ordens aos meus subordinados.

ELA: Bah! uma secretária.

ELE: Duro com eles! Eu esmaguei quem estava na minha frente, o mesmo que neste
tabuleiro.

ELA: Bah! Você acabou de esmagar alguns.

ELE: Fiz o que pude. Outra dama.

ELA: [entrega outra ficha para ele.] Casimiro ... você fica entediado na minha
companhia?

ELE: Me chateia? Nunca, minha querida, nunca! Outra e outra. Como duas fichas de
uma só vez.

ELA: Você e eu estamos sempre juntos, Casimiro.

ELE: Juntos, sim.

ELA: E unido.

ELE: Muito unidos.

ELA: Eu te odeio.

ELE: [Come fichas] Eu gostaria de te ver morta.

ELA: Casimiro!

ELE: Rosália. Parece que nos equivocamos no tom.

ELA: Equivocamos o tom?

ELE: Sim, querida, meu amor.

ELA: Você me tranquiliza. Casimiro, minha vida. Cheguei a pensar que não nos
amávamos …

ELE: Não nos amarmos, você e eu? Que bobagem!

ELA: Você queria me ver morta.

ELE: Existem pequenas diferenças de opinião em todos os casamentos. Não têm


nenhuma importância.

ELA: Não, nenhuma.

ELE: Minha rainha!

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ELA: Meu céu ... [Um silêncio.] E agora o que vamos fazer?

ELE: Continuar jogando, minha querida, continuar jogando.

ELA: Não posso continuar. Eu fiquei sem fichas.

ELE: Então eu ganhei, como sempre.

ELA: Você tem o prazer de me destruir. Todos queriam me destruir sempre, mas eu os
destruí antes.

ELE: Muito bem, querida, você fez muito bem. As pessoas devem receber o que
merecem.

ELA: Tenho certeza de que ainda está chovendo!

ELE: Não pode continuar chovendo.

ELA: Por que não?

ELE: Porque não choveu o dia todo.

ELA: De qualquer forma, não importa.

ELE: Não tem importância. E o jantar?

ELA: Como?

ELE: Você disse que ia fazer o jantar.

ELA: Eu já preparei.

ELE: O que tem para o jantar?

ELA: Café com leite.

ELE: Ah!

ELA: Você sabe perfeitamente; Você pergunta só para me irritar.

ELE: Estou perguntando por que você não me contou.

ELA: Há trinta anos tem café com leite no jantar. Você pergunta só para me irritar.

ELE: De maneira nenhuma.

ELA: As pessoas acham que é fácil tomar café com leite, mas poucos são os que sabem
tomar um bom café com leite.

ELE: Nós sabemos. Temos trinta anos de prática.

ELA: As pessoas não têm paladar.

ELE: De qualquer forma, falta muito para a hora do jantar.

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ELA: Sim, falta muito.

ELE: Podemos sentar-nos. [senta-se]

ELA: Sim, sentemo-nos[senta-se]

ELE: Vamos pensar em algo.

ELA: Sim, vamos pensar.

ELE: Vamos conversar sobre algo.

ELA: Sim, vamos conversar [Silêncio.] Não me ocorre nada.

ELE: É estranho.

ELA: Muito estranho.

ELE: No entanto, há muitos assuntos para discutir, entre dois que se amam.

ELA: Muitos assuntos para discutir, sim.

ELE: Muitas ideias para compartilhar.

ELA: Entre dois que se amam.

ELE: Como nós nos amando... [Um silêncio.] Enfim! ...

ELA: Enfim!

ELE: Está quente.

ELA: Eu sinto bastante frio.

ELE: Enfim!

ELA: Enfim!

ELE: Total, as palavras ...

ELA: São apenas palavras.

ELE: Elas não têm grande importância.

ELA: Não tem.

ELE: Podemos usar as palavras que quisermos.

ELA: Sempre que quisermos.

ELE: No sentido que quisermos.

ELA: Claro.

ELE: Afinal, todas as palavras são iguais.

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ELA: Todas.

ELE: Geometria.

ELA: Trigonometria.

ELE: Ortografia.

ELA: Seis, sete, oito, nove, dez. Também os números são todos iguais.

ELE: Que chatice!

ELA: Que chatice!

ELE: Física e geografia.

ELA: De onde está vindo isso?

ELE: Lembrei-me das disciplinas que estudei na escola.

ELA: Já faz muito tempo!

ELE: O mesmo tempo que você. Temos a mesma idade.

ELA: A mesma? Impossível! ... [Para um personagem imaginário.] Ah, muito gentil,
senhor, muito gentil! ... [Á Casimiro.] Está vendo? Um admirador. [ao Personagem
imaginário] obrigado, senhor, muito obrigado! ...

ELE: Anotações. Para fazer um desenho, às vezes, se começa com uma anotação.

ELA: Sim.

ELE: Também podemos fazer anotações para falar.

ELA: Aritmética.

ELE: Metamorfose.

ELA: Eu digo encruzilhada.

ELE: Encruzilhada.

ELA: Cruzada.

ELE: Cruz.

ELA: cru.

ELE: crr.

ELA: Não vale a pena.

ELE: Não vale a pena!

ELA: A linguagem não é a nossa praia.

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ELE: As pessoas são estúpidas. As pessoas falam para se comunicar.

ELA: Sim, para se comunicar. Eles acreditam que o principal é se comunicar.

ELE: Comunicar.

ELA: Comum.

ELE: Pois é, Rosália, sim, é sempre interessante conversar com você.

ELA: É sempre interessante ouvir você. [Silêncio.]

ELE: [Pega o cachimbo e o acende.] O tabaco é uma planta solanácea nativa das Antilhas.

ELA: [Pega o tricô]. Nas noites chuvosas, não há como se sentar e tricotar um pouco.

ELE: Mas, Rosália, o que você está fazendo! Você não se dá conta?

ELA: O que está acontecendo?

ELE (tira o tricô.] Mas você não vê? Olha tudo que você fez. Você já fez! Você terminou.
Você esqueceu de desfazer ontem à noite.

ELA: Sim ... É terrível! Esqueci de desfazer.

ELE: Eu te avisei, minha querida, te avisei. Não importa se você sempre tricota a mesma
coisa, mas você tem que desfazê-la.

ELA: Não sei como isso pode acontecer.

ELE: Por trinta anos você desfaz o tricô todas as noites.

ELA: Desfazer o tricô é um método antiquado. Posso administrar sem desfazer.

ELE: Talvez. Mas agora está terminado.

ELA: O que eu faço, Casimiro, o que eu faço?

ELE: Lamento muito.

ELA: Você tem que me ajudar.

ELE: Como? Eu não sei tricotar.

ELA: Tem que haver uma solução.

ELE: Nenhuma. Você não pode continuar tricotando.

ELA: Por que não?

ELE: Esse tricô não leva a lugar nenhum. Não é nada! Toma, veja por si mesmo. [Devolve
o tricô.] Você não pode continuar tricotando porque não sabe o que está tricotando. O
que não leva a lugar nenhum se acaba antes de começar, não existe. É inútil fingir,
Rosália. Você acabou esse tricô, não pode dar um ponto a mais.

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ELA: Não posso dar mais um ponto. [Largue o tricô.]

ELE: Minha pobre Rosália! Você terá que pensar em outra desculpa para continuar
vivendo.

ELA: Casimiro, meu amor, o fumo que você está fumando é o mesmo de ontem, tenho
certeza. E de anteontem também.

ELE: É um excelente tabaco.

ELA: Excelente, excelente, é o que diz sempre. As coisas sempre começam excelentes e
aí vão se tornando um hábito, uma rotina. Esse fumo é igual ao de terça feira, o mesmo
de segunda-feira, o mesmo de domingo.

ELE: Tem um gosto muito bom.

ELA: O mesmo de trinta anos atrás.

ELE: O mesmo?

ELA: Você gostaria de descobrir um novo sabor, não negue. Mas você comprou sacos
inteiros desse tabaco, comprou sacos inteiros e agora é obrigado a terminar. Você fuma
porque é obrigado, mas parou de gostar. O sabor é sempre o mesmo!

ELE: Sim. Sempre o mesmo. [Abaixa o cachimbo. Silêncio.]

ELA: Espero que você não guarde rancor de mim.

ELE: De maneira nenhuma.

ELA: Sinto muito, querido, mas você tinha que aceitar.

ELE: Sair daqui, é isso que importa.

ELA: Fumar o mesmo tabaco por trinta anos deve deixar você cansado.

ELE: O que importa é sair daqui. Eu vou abrir a janela.

Ele vai até a janela. Ele bate contra uma teia de aranha.

ELA: Essa teia de aranha existe há muito tempo. Você não tem direito ...

Sem ouvi-la, ele tira uma chave de fenda da gaveta e volta à janela. Afrouxa os parafusos
imaginários, que rangem. Ela observa, apavorada.

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ELA: Não, não Casimiro, a janela não!

Ele começa a abrir, como se fosse a porta pesada de um compartimento de segurança


fechado há muito tempo. Rangidos correspondentes. Ela empurra com força e abre a
janela. Ela se retira imediatamente. Da rua chegam luzes deslumbrantes e ruídos atrozes
e discordantes: vozes, risadas, buzina e motor de carro, mas predominam vozes e
risadas. Não se entende o que as vozes dizem. São luzes e sons exagerados, distorcidos:
um verdadeiro caos de pesadelo em contraste com o qual se ouve ao mesmo tempo,
quieto, suave, repetindo muitas vezes, como um eco, a palavra "amor". Casimiro e
Rosália ficam horrorizados, olhando para a janela. Finalmente Rosália grita.

ELA: Fecha de novo! ... Fecha de novo! …

Como ele não se mexe, ela mesma vai à janela e, com muito esforço, consegue fechá-la.
As luzes que vêm da rua se apagam e os ruídos param. A respiração de Rosália está
agitada.

ELA: Por que você fez isso, Casimiro? Por quê?

ELE: Verdadeiramente, foi terrível. [Volte para apertar os parafusos.]

ELA: Não abra mais, por favor, nunca mais.

ELE: Não. Nunca mais abriremos. Não podemos ir.

ELA: Não podemos. [Um silêncio, e volta a pegar o tricô.] Nas noites de chuva, não dá
para sentar-se e tricotar por um tempo.

ELE: Não está chovendo, Rosália, você acabou de ver. Acabei de abrir a janela.

ELA: [Deixa o tricô.] Não preciso de ajuda para viver. Não vou mais tricotar. Não vamos
mais falar sobre isso.

ELE: Não vamos conversar mais.

ELA: Sobre o que vamos conversar então?

ELE: Do que você quiser, querida.

ELA: O que vamos fazer agora?

ELE: O que você quiser, minha vida, o que você quiser. [Pega uma tesoura e começa a
recortar um retrato.]

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ELA: Casimiro! Esse é um retrato meu!

ELE: É por isso que eu estou recortando com essa tesourinha.

ELA: Você está destruindo tudo.

ELE: Primeiro um olho ... depois a boca …

ELA: Se te diverte fazer pedaços do meu retrato ..., Mas te aviso que tenho mais.

ELE: Eu sei, querida, eu sei ... Agora o nariz e um pedaço da testa. Em sete, em oito, em
dez ... Este era um retrato antigo, não uma imagem pura. Só quero imagens puras de
você ... Aqui está, uma orelha a menos!

ELA: O que você ganha com isso?

ELE: São imagens falsas! Eu prefiro te amar como você realmente é.

ELA: Olha o que você fez!

ELE: Um quebra-cabeça.

ELA: Muito engraçado!

ELE: Um labirinto.

ELA: Você está zombando?

ELE: Os labirintos te pegam, enredam, envolvem. Você se encontra repentinamente


neles, sem ver a entrada ou a saída; apenas trilhas, caminhos, arestas ... como estas.
Pedaços que não são nada, como esses. Pedaços Repugnantes! Eu odeio eles!

ELA: Eu também, há coisas que odeio especialmente. Existem pessoas que eu


particularmente odeio.

Eles se olham. Há um silêncio. E batem na porta, desta vez com golpes bem mais fracos
do que nas ocasiões anteriores, O barulho volta a se reproduzir como um eco.

ELE: Chamam de novo!

ELA: Sim, chamam.

ELE: incrível!

ELA: Deve ser a doente de novo.

ELE: Vou dar o que ela merece.

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Vai até a porta e abre bruscamente.

ELE: Senhora, eu não estou disposto… [Mas ele se interrompe e cambaleia para trás: a
mulher desabou sobre ele.] Ei! ... Senhora, tome mais cuidado, você pode me fazer
cair!...

Ele consegue se livrar dela e a empurra para longe. Casimiro e Rosália acompanham o
personagem imaginário que tropeça e acaba caindo em uma cadeira.

ELA: Cuidado, senhora, tenha mais cuidado com minhas cadeiras!

ELE: Está bem, está bem, você está desculpada. Agora pode ir. Nós não recebemos
visitas.

ELA: [Para o personagem imaginário.] ... Que não tem forças para se levantar? ... Quem
está morrendo?

ELE: [certifica-se de que ninguém está do lado de fora e fecha a porta.] Não seja ridícula,
senhora, não seja ridícula.

ELA: Tudo isso é imaginação sua. Você é jovem... deve ter a minha idade.

ELE: [Para o personagem imaginário.] ... Trinta anos?

ELA: [para Ele] O que foi que eu te disse! Minha idade exatamente!

ELE: [Para o personagem imaginário.] Como? ... Que não é imaginação? ... O coração,
você diz? Bobagem, senhora, as coisas do coração são sempre bobagens! ... Tá se
afogando? Você precisa de oxigênio?

ELA: Claro! Todos nós precisamos de oxigênio.

ELE: [Para o personagem imaginário.] ... Um médico? Você quer que eu chame um
médico? Eu não conheço nenhum deles.

ELA: Não temos nada a ver com os de fora.

ELE: [Para o personagem imaginário.] Uma ambulância então? Também não posso
chamar uma ambulância, não tenho telefone.

ELA: [Para o personagem imaginário.] Vamos acompanhá-la até a porta. [Tenta levantar
a mulher da cadeira, mas ela não consegue.]

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ELE: Vou acompanhá-la ... [Aproxima-se do personagem imaginário.] Como? Esperar?
Mas por que temos que esperar, minha cara senhora, por que temos que esperar? Vá
para casa agora mesmo.

ELA: [Para o personagem imaginário.] ... Morrendo sozinha? Você tem medo de morrer
sozinha? Somos mulheres, senhora: é preciso ter um pouco de coragem.

ELE: Morrer sozinha! Todos nós morremos sozinhos!

ELA: [Para o personagem imaginário.] ... Seu marido não está aqui?

ELE: O que isso importa? Então você terá surpresa quando voltar.

ELA: Quando se tem que morrer, não é o marido que morre no lugar dela.

ELE: Morrer! Você tem que ser corajosa para essas pequenas coisas, senhora, você tem
que ser corajosa.

ELA: Eh? ... Um copo d'água? Não Senhora. Não há empregada. Não temos copo. Não
temos água.

ELE: Você chamou embaixo e não há ninguém? E o que você quer que eu faça? Tente
acima.

ELA: Por favor, não insista! Já dissemos que não temos telefone.

ELE: Os telefones recebem chamadas. Eles fazem conexões com as pessoas.

ELA: E não queremos saber nada das pessoas.

ELE: Estamos muito ocupados. Rosalia, dê-me o jornal de hoje; Eu preciso das palavras
cruzadas.

ELA: Sim, querido, aqui está. [Entrega o jornal a ele.]

ELE: Obrigado, minha vida. [Ao personagem imaginário] mas o que passa senhora, o que
há de errado? Que contorções são essas? Não seja histérica.

ELA: Até para morrer as pessoas incomodam.

ELE: [Começa a levantar a mulher da cadeira] Bom, vamos de uma vez. Coloque seu
braço em volta do meu pescoço, assim... Levanta-se agora! ... [A levanta e vai levando
até a porta] isso, apoie-se em mim, sim, não tem outra escolha… Como? Outra vez isso
de ambulância! Já te disse que não podemos chamar nenhuma ambulância.

ELA: Que mulher estúpida!

ELE: [Consegue deixar o personagem imaginário encostado na parede.] Isso mesmo ...
aqui, encostada na parede ... Tenta não cair ...

ELA: [Para o personagem imaginário.] Se quiser, na esquina tem um telefone público.

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ELE: Sim, você desce a escada, chega na esquina, atravessa a rua e encontra um telefone.

ELA: Instalado lá especialmente para esses casos de emergência.

ELE: [Para o personagem imaginário.] Eh? ... De extrema emergência? Claro que sim,
morrer é caso de extrema emergência. Mas só para quem morre. [Abre a porta] Bom,
senhora, adeus novamente. [Ele a carrega até colocá-la para fora.] Vê? Você já pode
andar sozinha ... Não se preocupe, você está perdoada; minha esposa e eu sempre
fomos generosos ... [levantando a voz] como? ... Não, a escada está do outro lado, à sua
direita ... Você não está enxergando bem? Não se preocupe, segure-se no corrimão.

[Fecha a porta e tranca a fechadura]

ELE: Ela foi fazer uma ligação.

ELA: Pessoa teimosa.

ELE: Não vai chegar.

ELA: Acho que sim, chega. Vamos apostar?

ELE: Não, para quê.

ELA: Que pena. Eu iria vencer.

ELE: A mulher está morrendo de qualquer maneira.

ELA: Sim, é questão de horas.

ELE: Minutos, sim.

ELA: Olha que atrevimento de pedir para a gente chamar uma ambulância! Como se
estivéssemos doentes!

ELE: Como se não tivéssemos mais nada para fazer. [Pega as palavras cruzadas.] Vamos
ver as palavras cruzadas ... "Rio Indiano ..." [Escreve.] Gan ... ges …

ELA: É o único rio que sempre perguntam, é por isso que você sabe.

ELE: Nada como desfrutar o silêncio resolvendo palavras cruzadas.

ELA: Por que desfrutar o silêncio? Eu quero ouvir música.

ELE: Por que ouvir música? Você nunca gostou.

ELA: Acontece que nunca posso ouvir música porque não temos televisão. Como o
dinheiro da aposentadoria não dá para nada.

ELE: Temos um rádio.

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ELA: Eu vou ligar.

ELE: Cuidado: logo vêm as desilusões. Você nunca gostou de música.

Ela liga um rádio antigo e toca música. Uma música muito bonita. Ele continua com as
palavras cruzadas.

ELE: "Palavra de quatro letras para expressar um sentimento ou inclinação natural ..."
[Interrompe-se.] Bom, Rosália, bom, bom, você já tem o que queria. Música.

ELA: Sim.

ELE: E o que você acha?

ELA: Faz tanto tempo… quase tinha esquecido o que é música.

ELE: Nada de excepcional, querida, você já está se dando conta, nada de excepcional.
ELA: Não, nada de excepcional.

ELE: Alguns acordes que estão ligados, algumas notas que se repetem …E é isso.

ELA: É isso aí.

ELE: Tudo se repete sempre: as notas, os ruídos, as pessoas ...

ELA: Tudo se repete.

ELE: Existem muitas pessoas no mundo. [Volta para as palavras cruzadas.] "Amor". O
sentimento ou inclinação natural é "amor". [Escreve.]

ELA: A música é entediante.

ELE: Eu te disse.

ELA: A música não vale a pena.

Muda a estação. No rádio, agora se escuta transmissões cruzadas, com vozes falando
em inglês e russo.

ELE: Parece que estes não se entendem.

ELA: É que eles falam línguas diferentes.

ELE: Que bom que você e eu falamos a mesma língua.

ELA: Menos mal. [Mudanças de estação.]

36
RÁDIO: As vítimas do ciclone estão aumentando. Milhares de famílias ficaram sem
abrigo.

Se iniciam discursos em contraponto: segue a voz no rádio ao mesmo tempo que Ele e
Ela também continuam falando.

ELE: “Nome de uma dinastia chinesa …” RÁDIO: [Continua.] A velocidade do ar


ELA: Você nunca sequer ouviu falar de não diminui e o mar cobre ruas e casas.
dinastia chinesa. O número de vítimas está aumentando.
Pedimos ajuda àqueles que ouvem isso.
ELE: Claro que eu já ouvi falar delas. Sou
Continuaremos recebendo roupas e
um homem culto.
remédios de quem quiser doar,
ELA: Você nunca fez faculdade. ajudando assim para amenizar a
ELE: Você nem terminou a primeira situação em que se encontram os
série. habitantes da região atingida. Por eles
ELA: Sou autodidata. pedimos ajuda ... Pedimos ajuda ...

ELE: Ignorante apenas, querida,


ignorante.

ELA: [Depois das últimas palavras no rádio, ela desliga.] "Ajuda!" "Ajuda!" Se fôssemos
prestar atenção no que os outros falam! ... Você nunca foi chefe, agora como sua
aposentadoria não dá para nada.

ELE: "Nome de uma dinastia chinesa ..." [Largue o jornal.] Bah! Hoje essas palavras
cruzadas estão entediantes.

ELA: O que acontece é que você não sabe como resolver.

ELE: Ainda não é hora de jantar.

ELA: Ainda não.

ELE: (Vai até a pilha de jornais velhos.] Vou folhear alguns desses jornais ...! Este aqui,
talvez, e este ... e este ... [O pó o faz tossir.] Você poderia pôr um pouco de ordem aqui.
Os jornais estão cheios de poeira.

ELA: Acha que não limpo bem a casa? Claro, com o dinheiro da sua aposentadoria não
dá para uma empregada.

ELE: Nunca quisemos uma empregada.

37
ELA: A gente nunca quis, mas se quiséssemos com o dinheiro da sua aposentadoria não
seria suficiente.

ELE: [Continua mexendo nos jornais] Estes jornais são de trinta anos atrás.

ELA: Trinta anos já? Como passa o tempo!

ELE: De quarenta, cinquenta, cem anos ... [Tosse.]

ELA: Há tanto tempo? Como eles vieram parar aqui? Ai, Casimirito, você está
exagerando! Sempre tomo o cuidado de jogar os jornais velhos no lixo. Ou queimá-los.
Mas é claro, às vezes sobra algum.

ELE: Algum?

ELA: E tenho mais na cozinha.

ELE: Para jogar tudo isso fora, você teria que sair de casa. Ou chamar alguém para vir
tirá-los.

ELA: Acho que você não quer que as pessoas entrem aqui.

ELE: Não. Vamos deixar os jornais onde estão. Contando que não aumentem ... [escolhe
mais.] Este outro ... este é do mês passado e o outro de trinta anos atrás ... [Ele retorna
com os jornais que escolheu e sacode. Grande quantidade de poeira. Tosse.] Maldito
pó! ...

ELA: [Tosse.] Um pouco de poeira não tem jeito ... Por que você não lê o jornal de hoje?

ELE: O de hoje já li de manhã. Além disso, também tinha poeira. [Termina de sacudir
os jornais e se acomoda para lê-los.] Bem, acho que poderei lê-los agora.

ELA: [Tosse.] Claro que pode ... Não é tão ruim assim ... [Ele lê.] O que diz? Algo
interessante?

ELE: Regular ... Um bombardeio.

ELA: Um bombardeio? [Senta-se ao lado do Casimiro.] Vamos ver, leia para mim! ...
Quer dizer, se você não se importa.

ELE: Por que devo me importar?

ELA: É que ler o jornal pode nos distrair de compartilhar nosso amor.

ELE: Por algum tempo nosso amor não se prejudica nem um pouco.

ELA: Sério? Tem certeza, Casimirito, minha vida?

ELE: Com certeza, querida, com certeza absoluta.

ELA: Então leia sobre o bombardeio. Ou você prefere que eu leia para você?

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ELE: Vou ler, minha querida, eu mesmo lerei, não faltava mais ... É uma notícia da
Espanha. [Lê.] O bombardeio de ontem contra a população civil deixou cinquenta mil
mortos. Homens, mulheres e crianças fugiram pela rodovia quando foram atacados
pelos esquadrões aéreos do general rebelde. O próprio general deu a ordem ...

Eles permanecem imóveis. Ao mesmo tempo, entra a projeção de slides de aviões de


guerra, ruído de motor e o General. Calça botas. Bate o calcanhar e faz uma saudação
com o braço estendido. Projeção de outra foto, agora de bombardeio e barulho de um
ataque aéreo que parece ser feito na sala, sobre os espectadores. O general permanece
imóvel, o braço levantado. Quando o fogo cessa, Casimiro e Rosália recuperam o
movimento e Casimiro continua lendo.

ELE: [Lê] As primeiras bombas mataram centenas... Mataram milhares... Os pilotos


perseguiram os sobreviventes, metralhando-os...

Casimiro e Rosalía ficam imóveis. O General repete a mesma saudação e fica parado com
o braço estendido. Ruídos ferozes de ataques aéreos, com bombas e metralhadoras, e a
projeção de fotos sobrepostas mostrando, em campos e cidades, homens, mulheres e
crianças mortas. Quando cessa o fogo, Casimiro fecha o jornal, com o qual é desligada
a projeção de fotos, o General sai e Rosália também recupera o movimento.

ELE: [Fechando o jornal.] Bem, cinquenta mil mortos são muitos mortos.

ELA: Muitos, sim.

ELE: Enfim, serviu de lição. Para que aprendam a não interromper o trânsito.

ELA: Algo mais interessante?

ELE: Mais interessante, mais interessante, deixa eu ver ... [Ele escolhe entre os jornais
que trouxe e pega outro.] Trinta anos depois ... Continuamos com Espanha. [Lê.] ... Um
estudante de dezenove anos morreu ontem em Madrid, depois de ter participado de
uma manifestação contra o regime. Ele estava em sua casa quando a polícia apareceu.

Eles permanecem imóveis, Ele lendo o jornal, ao mesmo tempo que inicia a projeção de
fotos com cenas de policiais ou militares usando força bruta contra civis; slides que vão
decorrer durante os discursos seguintes do Policial, que entra na sala, entre o público,
no início da projeção. Calça botas. Se dirige aos espectadores.

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POLÍCIA: Onde está? Nós somos da polícia! ... Não adianta tentarem se esconder ... [Ele
sobe ao palco e se dirige a um personagem imaginário] é esse! ... Te peguei! Eu sabia
que te encontraríamos! ... Como? Então você confessa! Você ousa confessar que é um
estudante! [Bate nele, puxando-o de volta.] ... Você nunca negou ser estudante? Você
nunca tentou não ser encontrado? Vamos, ande! A resistência será inútil para você ...
Você não está tentando resistir? Bem, de qualquer maneira, anda! [Continua batendo
nele.] Então, estudante, eh! Nós vamos te ensinar a ser um estudante. Para você
aprender!

Continua golpeando o personagem imaginário e empurrando-o para trás. Logo lhe dá


um empurrão definitivo. Ruído de vidro quebrado. O policial, satisfeito, sacode as mãos.
Ele permanece imóvel nessa atitude enquanto Casimiro e Rosália recuperam o
movimento e Casimiro continua lendo.

ELE: [Lê.] ... "Um acidente declarou a polícia: o aluno caiu pela janela." [Lê outra notícia.]
Madrid ... a saúde do chefe de Estado está melhor do que nunca …

Vira a página do jornal, depois a projeção se apaga e o policial sai.

ELE [continua.] Bem, aí estão eles com seus problemas.

ELA: Quem quer que tenha escrito aquela nota do estudante parece defendê-lo. Que
absurdo!

ELE: Se jogaram pela janela, ele mereceu.

ELA: Claro que sim, bem-merecido por protestar contra o regime.

ELE: O regime tem sempre razão. [Lê.] Biafra3 ... Milhares de crianças ainda morrem de
fome ...

ELA: Biafra?

ELE: Um lugar onde tem muitas crianças pelo visto...

ELA: Então morrem por sua culpa, por serem tantos.

3
A Guerra Civil da Nigéria, também conhecida como Guerra Civil Nigeriana, foi um conflito político causado pela tentativa
de separação das províncias ao Sudeste da Nigéria, como a República autoproclamada do Biafra. Ocorreu de 6 de julho de
1967 a 13 de janeiro de 1970.

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ELE: [Muda o jornal e lê.] Vietnã ... [Para Rosália.] As matanças continuam.

ELA: Muito bom! Os assassinatos são muito necessários.

ELE: Pena que já lemos isso outro dia! [Larga o jornal.]

ELA: Que pena, sim ... [Pega o jornal em que Casimiro fez as palavras cruzadas.] O jornal
de hoje diz que o clima vai estar melhor.

ELE: Onde fará bom tempo?

ELA: Na zona sul.

ELE: Não é a nossa.

ELA: Você tem razão. Essa notícia é inútil. [Muda o jornal.] Olha, um eletrocutado!

ELE: Um eletrocutado? Isso não é ruim. ...

ELA: Agora eu vou ler para você Casimirito, Essa notícia vem de Nova York.

ELE: Irei para Nova York algum dia...

ELA: [Lê] Hoje o prisioneiro condenado à morte há dezessete anos foi eletrocutado.

Ele: Pelo menos o tempo não foi perdido.

ELA: [Lê.] ... Ele foi acusado de ter assassinado o seu médico, crime que sempre negou.

ELE: Como tem gente teimosa.

ELA: [Lê.] Ele foi capaz de adiar a sentença graças à luta obstinada de seu advogado. ELE:
Que advogado tonto! Em vez de deixar o cliente ser morto e salvar o trabalho. ELA:
[Lê.] O réu foi eletrocutado às seis da manhã.

ELE: Nada mal para começar o dia.

ELA: [Lê.] Quando ele entrou no complexo onde seria executado, não aparentava
nervosismo.

ELE: Era só o que faltava. Depois de dezessete anos poderia ter se acostumado com a
ideia.

ELA: Dizem que nunca se acostumam. Eles são egoístas. [Lê.] Não provocou incidente
algum quando conduzido à cadeira elétrica. Colocaram o capacete em sua cabeça,
prenderam as alças e fixaram os eletrodos em suas pernas. Em seguida o carrasco…

Permanecem imóveis. Ela lendo o jornal. Ao mesmo tempo, entra a projeção da foto de
uma cadeira elétrica e entra o Carrasco. Calça botas. Ele dá um passo à frente e faz um
movimento para ligar a energia. Se escuta um zumbido abafado e um jogo de luzes é

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operado sobre a cadeira elétrica. A execução foi consumada. Carrasco estende a mão
apontando para a cadeira elétrica, como um ator mostraria ao outro para compartilhar
os aplausos do público, a quem cumprimenta. Nesta posição ele permanece imóvel,
enquanto Casimiro e Rosalía recuperam o movimento e ela continua lendo.

ELA: (Lê.] ... E os médicos declararam que o prisioneiro havia morrido.

ELE: Muito bem! Aquele carrasco fez muito bem! [Aplaude.]

ELA: Sim, muito bem!

Ela também bateu palmas. Ambos ignoram a presença do Carrasco. Ignorando, por sua
vez, a presença de Casimiro e Rosália, o Carrasco dá as mãos e levanta os braços, como
o vencedor de uma luta de boxe, acenando para um lado do palco e para o outro. Nessas
posições, o Carrasco saudando e Casimiro e Rosália em atitude de aplaudir, os três ficam
imóveis, ao mesmo tempo que a projeção da foto da cadeira elétrica muda por outras
que se sucedem: forca, guilhotina, câmara de gás, garrote, pelotão de fuzilamento e
cadeira elétrica novamente. Quando esta foto da cadeira elétrica volta a ser projetada,
os três personagens voltam a se movimentar: Casimiro e Rosália continuam a aplaudir e
o Carrasco a saudar.

ELE: Que técnica tão moderna!

ELA: Que maestria!

ELE: Que escola!

ELA: Bravo! ...

Eles param de bater palmas. O Carrasco permanece imóvel, acenando.

ELE: Que maneira perfeita de matar!

ELA: Cem por cento profissional.

Volta a página do jornal e ao mesmo tempo a projeção se apaga e o Carrasco sai.

ELA: Ah, aqui tem mais informações! [Lê.] Do eletrocutado saltaram os olhos.

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A foto da cadeira elétrica é projetada novamente e, apressado, o Carrasco entra e
assume a posição em que estava saudando. Ele permanece imóvel.

ELE: (Continua.] Seus olhos saltaram? Tem certeza?

ELA: Isso é o que diz. [Lê.] Nova York ... Um dos testemunhos da execução afirma que os
olhos do executado saltaram.

ELE: [Em êxtase.] Eu teria gostado de ver isso.

ELA: [Mesmo tom.] Eu também.

ELE: Deve ter sido interessante.

ELA: Terrivelmente interessante. [Lê.] ... Ainda se insiste que o homem executado era
inocente e parece que logo vão apresentar provas irrefutáveis disso.

Fecha o jornal, ao mesmo tempo a projeção se apaga e o Carrasco sai.

ELA: [Continua.] Bem, se era inocente, lá está ele.

ELE: Tanto trabalho para matá-lo e no final, ser inocente.

ELA: Deveria ter vergonha! [Pega outro jornal e lê.] Relato assustador do prisioneiro que
escapou do ... [A Casimiro.] Isso tampouco soa mal. [Lê.] ... No hospital onde se encontra
acamado o prisioneiro que escapou do campo de concentração explicou hoje que
naquele campo muitos dos internos, cerca de doze mil, entre os quais há cerca de quatro
mil mulheres e duas mil crianças, se arrastam pelo chão sem conseguir caminhar devido
à falta de comida e ao tratamento brutal que recebem. Disse que os guardas ...

Eles ficam imóveis. Ela lendo o jornal, ao mesmo tempo que começa uma projeção de
slides de campos de concentração, prisioneiros, arame farpado etc.; fotos se sucedem
durante os discursos seguintes do Guarda que entra quando começa a projeção. Calça
botas. Chuta um prisioneiro imaginário no chão.

GUARDA: Proibido! Aqui não permitimos que ninguém machuque nada. Quem está
doente, morra sem reclamar. [Chuta outros prisioneiros.] Proibido! Verboten!
Défendu! Vietato! Carne de cachorro é boa demais para prisioneiros. As solas dos
sapatos são boas demais. Ratos são bons demais. Deveríamos deixar todos morrer de

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fome. Já deveriam ter morrido na guerra. Se sobreviveram, nós cuidaremos de
remediar. Proibido!

Outro chute e em seguida fica imóvel nesta atitude, ao mesmo tempo Ele e Ela
recuperam o movimento.

ELE: De qualquer forma, os chutes são necessários para a disciplina.

ELA: [Lê.]. E acrescentou que as condições higiênicas em que vivem os prisioneiros são
deploráveis e que ...

Ficam imóveis, Rosália com os olhos no jornal, enquanto o Guarda recupera o


movimento.

GUARDA: [Para os presos imaginários.] Desde ontem vocês têm mais uma latrina a mais.
E outra que já tinham: duas latrinas. Vocês devem isso à generosidade de nosso chefe.
Hoje haverá uma cerimônia no pátio de agradecimento. [Outro prisioneiro recebe um
chute.] Proibido! Todo comentário é proibido! Duas latrinas para doze mil é mais que
suficiente: seis mil por latrina. Verboten!

Mais um chute e fica imóvel, ao mesmo tempo Ele e Ela recuperam o movimento.

ELE: Seis mil latrinas… Parece razoável.

ELA: Muito razoável. [Lê] O prisioneiro fugitivo disse que em um único dia chegou a
morrer setenta e cinco pessoas, muitas delas de doenças infecciosas.

Ela fecha o jornal, ao mesmo tempo a projeção se apaga e o Guarda sai.

ELE: [Continua] Setenta e cinco por dia… sete vezes três: vinte um… dois mil e pouco
por mês.

ELA: E são doze mil. Nesse ritmo, leva seis meses para eliminar todos.

ELE: Esses guardas não estavam bem-organizados.

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ELA: Casimiro! Você não percebeu? Isso é terrível! É abominável!

ELE: O que aconteceu, querida? Onde você vê o abominável?

ELA: “Doenças infecciosas", dizem aqui. Essas pessoas podem vir e nos contagiar.

ELE: Não, querida. Esse jornal é da época da Segunda Guerra Mundial. Eles não podem
vir nos infectar.

ELA: Ah, bom! Então, não tem importância... [Muda o jornal.] Vamos ver outra coisa ...
[Encontra alguma coisa.] Oh, uns enforcados! Olha que antipáticos!

ELE: [Olha o jornal.] Sim, eles têm cara feia.

ELA: [Lê.] Enforcaram os presos políticos em...

ELE: (Interrompe.] Vamos ver, deixe-me ler. [Pegue o jornal e lê.] ... Os presos políticos
condenados pelo governo foram enforcados publicamente diante de uma multidão que
testemunhou este "ato de justiça", conforme descrito pelos governantes militares.

ELA: Claro que foi um ato de justiça. Continue, continue!

ELE: [Lê.] ... Os réus foram levados à Praça central, onde uma plataforma foi montada e
em seguida um soldado ...

Ficam imóveis, Casimiro lendo jornal. Ao mesmo tempo, projeção de uma fotografia de
dois enforcados e entra o Soldado. Calça botas. Ele se aproxima de um personagem
imaginário e faz um movimento para colocar uma corda em seu pescoço. Ele se
aproxima de outro personagem imaginário e repete o mesmo gesto: colocar uma corda
em volta do pescoço. Ele recua alguns passos e agora faz o gesto de puxar a corda. Ao
mesmo tempo, a fotografia projetada muda para outra na qual longas filas de muitos
enforcados são vistas e trombetas de vitória soam. O Soldado fica imóvel, Casimiro e
Rosália recuperaram o movimento.

ELA: Oh, que rápido, que bem-feito!

ELE: [Lê] ... Os executados foram obrigados a pendurar cartazes explicando "seus
crimes".

Casimiro e Rosalía ficam imóveis. Volta a soar trombetas triunfais e o Soldado pega um
cartaz com letras ordenadas sem formar palavras, de forma inelegível. Mostra ao
público e coloca no peito de cada um dos dois personagens imaginários. Ele finalmente
fica segurando um cartaz e se imobiliza. Por sua vez, Casimiro e Rosália recuperam os
movimentos e Casimiro continua lendo.

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ELE: [Lê] Os corpos foram exibidos na praça durante vinte e quatro horas.

Deixa o jornal e ao mesmo tempo a projeção se apaga e o Soldado sai.

ELA: (Continua.] Ei, e quais foram os crimes?

ELE: Você não sabe de nada! Os cartazes diziam muito claramente.

ELA: Durante vinte e quatro horas os corpos na praça! Que show impressionante!

ELE: Muito impressionante, sim.

ELA: Se fizer aqui, você tem que me levar.

ELE: Rosália! Você sairia de casa? Você seria capaz?

ELA: Por uma vez ... eu poderia colocar o vestido novo. Nem sempre temos a
oportunidade de ver espetáculos dessa categoria.

ELE: Sim, são coisas que não se pode perder.

ELA: Você acha que eles vão fazer aqui em breve?

ELE: Por que não? Os espetáculos de categoria se internacionalizam.

ELA: Que soldado corajoso. ... Que eficiência! Que força! Em poucos instantes, pronto!
Os dois foram enforcados.

ELE: Isso não é nada. Há outros soldados mais eficazes e mais fortes. Outro dia houve
um que enforcou duzentos.

ELA: Duzentos?

ELE: E na semana passada outro enforcou quinhentos. De longe. Sem sair do escritório.

ELA: Um militar?

ELE: Sim, um militar.

ELA: O que faríamos sem os militares?

ELE: São heróis, sim. Eles dão um jeito em todas as pessoas indesejáveis do mundo.

ELA: Que é todo mundo, praticamente.

ELE: Eles enforcam dois, centenas, milhares. Ou eles são fuzilados ou vão para câmara
de gás.

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ELA: Assim eliminam milhares. Bombas. Campos de extermínio. Os militares não
economizam esforços.

ELE: É admirável.

ELA: Admirável!

ELE: Os alemães em Stalingrado.

ELA: O generalíssimo na Espanha.

ELE: Hiroshima. Admirável!

ELA: Admirável!

ELE: A bomba de dor, de A à Z. Admirável!

ELA: Maravilhoso!

ELE: E os golpes de Estado! O jornal de hoje diz que houve um novo golpe de Estado de
outro general.

ELA: O que faríamos sem os generais! Graças a eles, sempre ocorrem milhares de
mortes. Todas as pessoas indesejáveis.

ELE: Milhões de mortos.

ELA: O que faríamos sem os ditadores!

ELE: Você se lembra?

ELA: Anos atrás.

ELE: Hoje mesmo. Esta manhã.

ELA: Você se lembra?

ELE: Você se lembra?

ELA: Você se lembra?

ELE: Admirável!

ELA: Admirável!...

Ficam imóveis enquanto se inicia a projeção das fotos de Hitler, Mussolini, Franco,
Trujillo e Duvalier, que se sucedem durante os discursos seguintes do Ditador que entrará
ao iniciar-se a projeção. Botas. Um colar de medalhas. Passeia de um lado para o outro,
exibindo-se. Se adianta e fala com o público.

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DITADOR: -Atenção ... povo! Eu sou seu salvador. Eu sou o salvador da pátria. Blá blá
blá; blá blá blá. Blá! Blá blá blá; Blá blá blá blá! Blá, blá, blá, blá ... Blá, blá, blá, blá ...
Atenção ... povo! Eu sou seu salvador ...

[Ele é interrompido por assobios e vozes na sala.].

VOZES: Fora! Fora! Assassino!

DITADOR: [Para o público.] Silêncio! No que vocês estão acreditando? Com quem vocês
pensam que estão falando? Sou eu que estou com as botas, com a força! [Mais uma
vez, vozes entre os espectadores]

VOZES: Assassino! Fora!

DITADOR: [Para o público.] Milhões de mortos? E o que são milhões de mortos?


Milhões de ratos! Eu sou o único cuja vida vale a pena!

VOZES: Saia! Assassino!

DITADOR: [Ao público.] Silêncio! Como se atrevem a chegar aqui? Como se atrevem a
falar comigo? ... Quem são vocês? Cidadãos? E o que são cidadãos? Ratos! Eu sou
aquele com as botas, aquele que tem força! [Vira as costas para o público e dá ordens
no palco, ao mesmo tempo as mesmas fotos começam a passar de novo, agora muito
mais rápido, repetindo-se várias vezes durante os discursos e ações que se seguem]
Aviões! Tanques! Barcos! Marinheiros! Regimentos! Pelotão ... para mim! [Aponta
para o público.] Matem todos eles! Exterminem todos eles! Ousaram me contradizer!
[Ele pega uma metralhadora e aponta para os espectadores.] Eu sou o salvador da
pátria!

Simula metralhar o público. Barulho de metralhadoras, canhões e bombas. Casimiro e


Rosália aplaudem, ignorando a presença do Ditador, que, por sua vez, ignorou a deles.

ELE: Admirável! Bravo! …

ELA: Bravo! Admirável! ...

Barulho final de forte explosão da bomba. A projeção fotográfica permanece fixa e os


três personagens imóveis, Ele e Ela em atitude de aplauso e o Ditador com a
metralhadora. Imediatamente a projeção de fotos é desligada, o ditador sai e Ele e Ela
recuperam o movimento e ainda aplaudem. Então ela pergunta.

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ELA: Por que parou de metralhar?

ELE: Matou todos eles.

ELA: Todos? Que valente! Ele matou todos os cidadãos sozinho, com seus navios, aviões
e tanques!

ELE: Com os seus e com os outros ele pegou emprestado.

ELA: Que grande homem!

ELE: Nada como os ditadores!

ELA: Se esses cidadãos morreram, eles tinham merecido.

ELE: Muito merecido, por contradizer o salvador da pátria.

ELA: Além disso, isso aconteceu há muitos anos.

ELE: Hoje mesmo. Esta manhã.

ELA: Muitos morreram, sim.

ELE: E vão continuar morrendo, já se sabe.

ELA: Já se sabe. Não é assunto nosso.

ELE: Não posso me dar ao luxo de sentir pena de ninguém.

ELA: Não temos nada a ver com estranhos. [A um espectador.] Ei, se você vai levar um
tiro que fique longe da minha janela; me incomoda o barulho.

ELE: Não se preocupe, querida, temos uma janela isolante.

ELA: [Para o mesmo espectador.] E se possível, que não seja na hora do jantar.

ELE: Ah isso sim! Que não seja na hora do jantar. Rosalia, [olha para o relógio] são quase
oito horas.

ELA: Sim, vou pôr a mesa. No mais, cada um com seus problemas.

ELE: Que morram sem incomodar.

ELA: Que respeitem a privacidade da casa ...

Ela tira do aparador: toalha, dois guardanapos, duas xícaras, dois pratos e duas colheres
de chá e coloca na mesa.

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ELA: Bem, a mesa está pronta. Eu vou esquentar o jantar.

ELE: Não demore. Você sabe que gosto de jantar na hora certa.

Ela vai para a cozinha. Batidas na porta da frente, como se alguém tivesse caído contra
ela. Eco. Casimiro escuta, sem sair do lugar. Os ruídos à porta, como se alguém estivesse
encostado nela, o barulho aumenta imediatamente em forma de eco. Casimiro se
aproxima do porto e fica atento. Barulhos e ecos. Casimiro ordena, levantando a voz.

ELE: Pare de encostar na minha porta! Está ouvindo? ... [Afasta-se, impaciente.] Era o
que me faltava! Isso vai estragar o verniz.

[Ela entra]

ELA: O jantar vai chegar logo.

ELE: Tem alguém à nossa porta.

ELA: Como?

ELE: Parece que ela ainda não morreu. Acho que voltou novamente.

ELA: Será possível?

ELE: Mas dessa vez não conta.

Determinado, vai abrir. Assim que o faz, a porta cede ao peso do personagem imaginário
que se apoia nela. Casimiro corre para empurrar para fechar novamente.

ELE: Ah, não, não, não, senhora, não, aqui não entra!

ELA: Nossa! Ainda é incapaz de ficar de pé.

ELE: [Para o personagem imaginário, ainda segurando a porta.] ... Não é sua intenção
entrar? ... Você não consegue chegar até sua casa? Pois está aqui na frente, senhora,
aqui na frente, do outro lado da escada. Mais alguns passos.

ELA: [Para o personagem imaginário.] Como não pode? Sempre se pode dar mais alguns
passos!

ELE: (Ainda segurando a porta.] ... Que a ambulância não chegará a tempo?

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ELA: Ah, então ela finalmente conseguiu dar um telefonema! Está vendo. Casimiro? Eu
falei e se a gente tivesse apostando que eu ia ganhar.

ELE: Vamos, vamos senhora, por favor, não encoste assim na minha porta; você está
estragando ela.

ELA: Para quem está morrendo tem muita força.

ELE: É o desespero dos últimos minutos.

ELA: Já não fala mais nada.

ELE: Olha as caretas que ela está fazendo agora!

ELA: Ela tem mais rugas do que eu. Que bom que as esconde.

ELE: Não vamos perder mais tempo, vou levá-la para fora.

ELA: Deixa-me te ajudar. Vamos abrir a porta juntos.

ELE: Bem, no três. Um, dois…

Mas a porta se abre por completo, cedendo a um último esforço da mulher, que cai no
chão aos pés de Casimiro e Rosália. Estes retrocedem. Olham agora para o lugar onde
o personagem imaginário caiu.

ELE: Que custo!

ELA: Que maneira de cair! [Se aproxima do corpo e o observa] que bom que não está
sangrando. Não vai me sujar o chão.

ELE: [Inclina-se para o personagem imaginário.] Agora sim, parece que não vai mais se
levantar.

Tome o seu pulso. E escuta o coração.

ELA: Está morta?

ELE: Morta. [Certifica-se de que não há ninguém do lado de fora.] Temos que tirá-la
daqui.

ELA: Ainda podemos empurrá-la com a porta. [Faz.] é difícil ...

Ajuda chutando o corpo para fazê-lo rolar.

ELE: Não podemos simplesmente deixá-la aqui fora.

ELA: Por que não?

51
ELE: Seria muito perto. Temos que arrastá-la até a porta da casa dela.

ELA: Agora é a sua vez de sair. Depressa …

ELE: Não se preocupe. Um cadáver não é difícil de tratar.

Comece arrastando o personagem imaginário. Deixa cair e se certifica de que ninguém


de fora os veja. Arraste o cadáver novamente e sai com ele.

ELA: [Fica.] Tenta não fazer barulho ... [fecha a porta e volta.] Boa sorte! ... [Olha para a
mesa e dá alguns toques finais enquanto cantarola, ridículo, com voz rachada.] Com o
meu amor ... em Portugal ... Belo Sol ... de Portugal ...

Sai pela cozinha; Ainda pode ser ouvida cantarolando sua música. Depois de alguns
segundos, ele volta com uma bandeja com café, leite e açúcar.

ELA: As pessoas acham fácil tomar café com leite, mas pouquíssimas pessoas sabem
tomar um bom café com leite ... [Ela coloca a bandeja na mesa, enche as xícaras e coloca
açúcar enquanto canta outra vez.] Naquela tarde. ... com o meu amor ... Naquela tarde
... em Portugal ... Belo Sol ... de Portugal ...

Ele entra e corre para fechar a porta e trancar novamente.

ELE: Assunto resolvido! Está na porta da casa dela.

ELA: Atendimento domiciliar. Não pode reclamar.

ELE: Graças à janela isolante, nem vamos ouvir a sirene se chegar a ambulância.

ELA: Nada como uma janela isolante.

ELE: E se baterem na porta, não abriremos até depois do funeral.

ELA: Eu insisto em uma porta isolante. Mas, claro, com o dinheiro da sua aposentadoria…

ELE: Veremos. Teremos que pensar sobre isso.

ELA: Enfim, se aquela mulher deu de morrer, não é problema nosso.

ELE: Não temos amigos, felizmente.

52
ELA: Os vizinhos não nos cumprimentam mais. [Termina de misturar o café com leite
com uma colher, que ela sacode, fazendo barulho contra as xícaras.] Oito horas. O jantar
está servido.

ELE: Oh!... Este café com leite parece muito bom hoje.

ELA: Sério Casimirito?... Me alegro muito que você goste! É o mesmo café com leite de
sempre.

ELE: O mesmo de trinta anos atrás, sim. De qualquer modo, parece muito bom.

ELA: Preparei esse jantar especialmente para te agradar.

ELE: Você sempre pensando em me agradar.

ELA: Meu amor!

ELE: Minha vida!

ELA: E depois do jantar, o que vamos fazer?

ELE: Continuar aproveitando a noite, minha querida. Continue aproveitando a noite.


ELA: Igual a ontem.

ELE: O mesmo que amanhã.

ELA: Mais uma vez estamos juntos esta noite.

ELE: Esta noite juntos, nos amando muito.

ELA: Vamos jantar?

ELE: Jantamos.

Eles se sentaram à mesa.

ELA: [Prova o café com leite.] Hoje o café com leite estava perfeito!

ELE: [Prova.] Açúcar ... Eu acrescentaria um pouco mais de açúcar ... [adiciona e tenta
de novo.] Ah, sim, delicioso!

ELA: Simplesmente delicioso!

Eles sorriem e continuam saboreando o café com leite enquanto a cortina se fecha
lentamente.

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