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GRUPO PANDORA DE TEATRO

TRADUÇÃO DE GABRIELA GHETTI


27 DE AGOSTO DE 2021

A escova de dentes
ou
Náufragos no parque de diversões

ELA
ELE
ANTONA
UMA VOZ
Primeiro ato
Entra Ela. Jovem e bonita. Veste um pijama de seda sobre o qual leva um roupão. Pantufas.
Traz uma bandeja. Debaixo do braço, um jornal e uma revista. Deixa tudo sobre a mesa. Ao
fazer isso, deixa cair descuidadamente um garfo. Busca outra emissora no rádio. Nesse
momento, deixa de soar a música de harpa. Ela consegue, finalmente, encontrar um jazz.
Satisfeita, segue o compasso com o corpo e sai novamente em direção à cozinha.

Um momento, a cena vazia. O jazz toca muito alto.

Ela volta a entrar. Desta vez com a cafeteira e o leite. Deixa-os sobre a mesa. Dá os últimos
toques na mesa do café da manhã. Só agora observa que um dos garfos está no chão. Recolhe-
o e fica olhando para ele fixamente.

ELA
A noite passada… sim, a noite passada sonhei com um garfo. Bom, isso não tem nada de
estranho. Deve ser um símbolo sexual inconsciente… (Franze o cenho.) Mas o estranho é que
o garfo dizia que queria ser uma colher. O pobre tinha complexo de colher… de colher de
sobremesa. Uau!
Ah! Não sei por que sou tão complicada. O psiquiatra também não. Ele me disse para
falar em voz alta de manhã, que isso era bom para a saúde mental. Serve para se desintoxicar
depois da noite. “Imagine — me disse — que você está em um palco iluminado, em frente a

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grandes personalidades que estão te olhando, e você não se importa com nada, nada, nada.
Bem, nada. Aham…” (Dirige-se ao público com desenvoltura e desinibição na boca de cena.)
“Excelentíssimo senhor presidente, excelentíssimo ministro consuetudinário, membros do
Corpo Diplomático e de outros corpos, senhorita Agregada Escultural… Oh, monsenhor!” (Faz
uma genuflexão. Repentinamente se põe a cantar com energia e sem a menor inibição um
trecho de Madame Butterfly. Do banheiro, vem o inconfundível barulho de uma pessoa
fazendo gargarejo. Ela tenta encobrir o barulho cantando mais alto e lançando olhares
furiosos em direção ao banheiro, mas ao fim se interrompe e de forma rancorosa aponta ao
quarto.) Vivo, vivo com um homem. Pelo menos todos chamam assim esse ser de pés grandes
que faz gargarejo nos momentos mais inesperados, na noite de núpcias, por exemplo.
Oh, eu sou uma mulher. Isso quer dizer que devo ser feminina. O que não é fácil. Tem
que se sentir frágil, deixar os olhos brilhantes para que o ser dos pés grandes a proteja; ah,
também devo ser atrativa. Não posso permitir que meu bigode cresça nem que os dentes caiam.
Além disso, devo recordar que os ravioles alargam as cadeiras e os aspargos diminuem o busto.
(Dando um grande suspiro.) Ah, mas a verdade, a verdade é que estou cansada, terrivelmente
cansada de ser a esposa feminina desse animal masculino que se coça, perde o cabelo
sistematicamente e, oh, e canta tangos fora de moda! (Sonhadora) Oh, eu queria… queria
engordar, fumar um charuto ou enviuvar de uma maneira indolor e elegante.
O monólogo, como psicoterapia, também serve para ter ideias, bom, ideias inocentes
como… enviuvar sem anestesia. Hoje, como todos os dias, tenho algumas surpresas
preparadas. Para começar, o café não é café. Não. Também não é Nescafé. É veneno. Veneno
com gosto de café descafeinado.
As torradas… parecem torradas, não é? Ninguém diria que não são. Bom, de certo modo
são, mas eu as torrei com gás hidrogênio de modo que produzem efeitos fatais ao ser digeridas
(encantada). Ah… e o açúcar! O açúcar tem um pouco de raticida granulado. Este último é um
virtuosismo de especialista que muitos considerarão exagerado, mas que é próprio de meu
senso de responsabilidade.

Escuta-se um cantarolar que provém do quarto.

ELE
Onde está minha gravata, Marta?

A ESCOVA DE DENTES 2
ELA
(Com uma risada sinistra.) É hora de atuar! Sei, sei (gritando em direção ao dormitório)
Filhinho, o café está servido! (Ela se senta e começa a passar manteiga em uma torrada.
Pausa. Mais alto.) O café está servido!

Ele entra terminando de dar um nó na gravata. Leva uma jaqueta na mão. Parece ter pressa.
Ela aumenta o volume no rádio, que segue transmitindo um jazz. Ele se senta e abre o jornal.
O jazz toca muito alto. Ele deixa o jornal e fala com Ela, mas só se vê o movimento de seus
lábios, porque a música impede que se escute o que fala. Este jogo monológico do qual não se
escuta uma palavra dura um tempo.

ELA
(Gritando) O que você disse? Não tô ouvindo nada!
ELE
(Gritando) Desliga esse rádio!
ELA
(Gritando) Egoísta!

Ela põe um fone de ouvido e o conecta ao rádio. A música cessa. Agora as vozes são normais.

ELE
O veneno, por favor (Ela não escuta). Um pouco de café, querida. Ei, o que você disse?
Ei (Ela o faz calar com um gesto. Evidentemente está concentrada no que escuta pelo fone de
ouvido.)
ELA
(Com um tom misterioso.) É a previsão.
ELE
De que?
ELA
(Quase confidencial.) Do tempo.
ELE
E o que diz?
ELA
Ahn?
ELE
O que diz?
ELA

A ESCOVA DE DENTES 3
(Escutando primeiro.) “Nebulosidade parcial no resto no território…”
ELE
(Assombrado) Oh, oh, será possível?
ELA
Sim, sim, parece incrível, não? Mas é verdade.
ELE
Me serve o café, querida. (Ela pega a cafeteira, mas em vez de servir o café começa a
seguir com o objeto o compasso da música, que se nota pela cara absorta e os olhos em branco.
Ele, distraído com o jornal, não se deu conta de que Ela não serviu o café. Mexe
tranquilamente sua xícara vazia.) O que você está escutando agora?
ELA
“Café da manhã no seu lar”. Conselhos para começar o dia. (Escuta primeiro e depois
fala.) Hoje é o feliz aniversário da revolução sangrenta de outubro. Comecemos, pois, o dia
com otimismo e energia… Vamos respirar fundo… Ah (Ela respira fundo)… e dizer: “Hoje
posso fazer o bem a meus semelhantes…”.
ELE
(Que não a escutou) Me serve o café.
ELA
“Pensando nos demais nos livraremos de nossas próprias preocupações…”. E agora, você
se levanta e
… um, dois, três, quatro…
… um, dois, três, quatro…
…um, dois…

Ela fica de pé e começa a mover a cabeça em círculos e depois joga os ombros para frente e
para trás e mexe as mãos como epilética.

ELE
Você tá bem?
ELA
Um… dois… três, quatro, um, dois…
ELE
(Batendo na mesa e dando um grito.) O café!

A ESCOVA DE DENTES 4
ELA
(Sobressaltada) É pra você que tá fazendo falta uma ginástica de relaxamento. Escuta, a
melhor ginástica de relaxamento é rolar no chão, primeiro sobre a nádega direita e depois sobre
a nádega esquerda. Oh, é delicioso… Quer provar?
ELE
Quero provar o café. Me serve imediatamente que estou atrasado! (Ela dá um suspiro e
tira os fones.)
ELA
Bem, hoje não posso fazer o bem aos meus semelhantes… Filhinho, quer leite?
ELE
Não me chame de filhinho! Menos ainda quando me oferece leite. É nojento.
ELA
Faz pouco tempo, você gostava.
ELE
Do leite? Claro.
ELA
(Amuada) Você gostava que eu te chamasse assim.
ELE
Isso já faz muitos anos, quando nos casamos; mas agora eu cresci… e envelheci.
ELA
Bom, e como você quer que eu te chame, então?
ELE
Pelo meu nome.
ELA
Eu me esqueci completamente, mas tenho certeza que terminava com… Bom, você
precisa me mostrar na lista telefônica hoje mesmo, sem falta. (Ela imediatamente levanta a
vista e olha para o público. Tem um sobressalto.) Feche as cortinas que estão nos olhando!
ELE
É que a gente gosta. Somos exibicionistas para… E aproveitando a oportunidade vou
dizer algumas palavras… (Diretamente ao público.) Como presidente do Partido Cristão
Familiar Unido, já reiterei em muitas ocasiões que a maturidade cívica será expressada com o
repúdio aos demagogos profissionais. Assim se tornará mais robusto nosso sistema de
convivência, que é o reflexo do científico sistema de convivência individual e familiar…

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ELA
(Interrompendo e lendo na revista feminina.) “Aplique técnicas novas no casamento…”
ELE
(Indiferente) Divulgação erótico-científica?
ELA
Capricórnio.
ELE
Quê?
ELA
Capricórnio.
ELE
Quê?
ELA
É o horóscopo. Meu signo é capricórnio: “Aplique técnicas novas ao casamento. O amor
conjugal não deve ser cego. A lucidez mental não faz mal a ninguém. A senhora está capacitada
para desenvolver um ativo intercâmbio social. No primeiro dia da semana, estará brilhante e
imaginativa. (Encantado com o descobrimento.) Hoje estou brilhante e imaginativa!
ELE
(Lendo) “Por viagem ao exterior, vendo móveis de sala de jantar muito finos, camas e
colchões”.
ELA
(Sem levantar os olhos da revista.) Ah, não sabia que você ia pro exterior, mas os
colchões não vou permitir que venda por nenhum motivo. A mesa de jantar tanto faz.
ELE
(Distraído) Pra mim também. Deixaremos os colchões. (Reagindo) Mas eu não vou
viajar.
ELA
Ah, pensei que você ia embora de casa.
ELE
Por que está dizendo isso?
ELA
Bom, ultimamente você anda fazendo coisas muito suspeitas. Por exemplo, ontem cortou
o cabelo.

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ELE
Foi um erro. Entrei acreditando que era um farmácia. O pior de tudo é que ficou muito
curto.
ELA
(Sem levantar os olhos da revista.) Deixa eu ver… Não, não, não, não, não. Pra mim
parece que está bom.
ELE
(Aliviado.) É um peso que você tira das minhas costas.

Ele volta a afundar em seu jornal.

ELA
Qual é seu signo?
ELE
Uma maquininha…
ELA
Quê?
ELE
Que engenhoso! “Uma maquininha, do tamanho de uma caixa de sapatos, especial para
cortar as unhas sem tesoura…” Hum…
ELA
Não, não, não, não, não, seu signo astral! Ah, já sei: sagitário, sagitário, sagitário, os
nascidos entre 1o de janeiro e 31 de dezembro… “Você será acusado de estar distante. É
verdade que o céu não favorecerá seus sentimentos, mas você pode colaborar com mais
pessimismo. Semana benéfica para resolver litígios pendentes. Existe o perigo de
superficialidade espiritual, frivolidade e presunção. Pensamentos depressivos nublarão seu
rosto…” (Deixando de ler.) Deixa eu ver, olha pra mim, olha pra mim, olha pra mim…

O rosto dele está inteiramente coberto pelo jornal. Ela se esforça para ver sua cara.

ELE
(Lendo o jornal e sem mostrar a cara.) “Massacre no Vietnã.”
ELA
Quê?
ELE
“Massacre no Vietnã.”
ELA

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Eu já vi esse filme antes, a dublagem é péssima. Eu amo os filmes de guerra! São tão
instrutivos.
ELE
(Abaixando o jornal e mostrando a cara.) Sim, mas estão fazendo muita propaganda
desses filmes. E você acaba nem sabendo o que acontece no mundo. (Pegando a manteigueira.)
Quer mais café? Manteiga?
ELA
(Com rancor.) Ah, você fala de propósito para me provocar. Sabe que isso me engorda.
ELE
É que você não come cientificamente. Só isso.
ELA
Ah, você é o sabe-tudo. Come cientificamente, mas os botões da calça estão pulando pra
fora.
ELE
Sabe qual é o animal mais forte e mais bem alimentado?… A hiena. Suponho que não
seja necessário explicar pra você o que ela come; come carne podre igual que as demais feras
porque já está meio digerida. É assim que as hienas se mantêm fortes e sorridentes.
ELA
Você quer dizer que isso tem alguma coisa a ver comigo?
ELE
Tudo depende do ponto de vista.
ELA
(Lendo na revista feminina.) Oh… “Os ovos e seu fígado” ou “A importância dos ovos
na vida da mulher”.

De repente, Ele, que também mergulhou no jornal, lança uma exclamação.

ELE
Finalmente!
ELA
O que deu em você?
ELE
(Lendo) “Senhorita estrangeira, francesa, busca quarto mobiliado com café da manhã para
alugar.” (Levanta-se rapidamente e vai até o telefone.)
ELA
Você conhece ela?

A ESCOVA DE DENTES 8
ELE
(Com o telefone na mão, começa a discar.) Não, mas pensei que poderíamos alugar o
quarto de hóspedes para ela.
ELA
Você sabe perfeitamente que não temos quarto de hóspedes.
ELE
E se colocássemos uma cama no escritório?
ELA
Você sabe perfeitamente que não temos escritório.
ELE
E se colocássemos um biombo no nosso quarto?
ELA
É muito pequeno.
ELE
E na nossa própria cama?
ELA
Mas se mal cabemos nós dois.

Ele coloca o telefone no gancho e se senta novamente à mesa.

ELE
É verdade. Embora não dê para negar que seria uma renda extra. Claro que você sempre
se opõe a diminuir os gastos! (Sonhador) Além do que… era francesa!
ELA
E o que tem a ver que seja francesa?
ELE
(Confuso) Bem, a França é tudo… o que não conhecemos. O que todo mundo sonha. É o
país dos tam-tam, dos testículos de porco ao xerez, das flores de lótus.
ELA
(Seca) Ah, não, não, não. Não combinaria com a gente. Nossos móveis são da linha
dinamarquesa.
ELE
Esses serão teus móveis. Os meus têm estilo.
ELA
Arcaico!
ELE

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Antisséptica!
ELA
Mórbido!
ELE
Escandinava!
ELA
Quê?!

Silêncio breve. Ele bebe seu café.

ELA
(Sinistra) O café não está como todos os dia, não é?
ELE
(Abatido) Teresa, você, quando acaba de levantar, dá medo. Chegou a, pelo menos, lavar
a cara?
ELA
Por favor, vamos deixar de romantismo, queridinho. Lembra que hoje é meu dia de
lucidez mental, segundo meu horóscopo.
ELE
Então, talvez seja o momento de falar honestamente e sem hipocrisia.
ELA
Oh!
ELE
(Decidido) Tenho que te dizer uma coisa que me tortura.
ELA
Sim, sim, sim, sim. (Comendo com a boca cheia e lendo sua revista.) Sou toda ouvidos.
ELE
Faz dias que penso nisso sem parar. Talvez seja chocante confessar isso, mas… estou
decidido.
ELA
Seja o que for, serei indulgente.

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ELE
(Buscando as palavras.) É verdade que somos marido e mulher, e que me acostumei a
viver com você. Parecia que tudo estava bem, no entanto um dia qualquer, algo surgiu no
caminho e mudou tudo. No princípio, claro, a gente luta e resiste. Nada deve turvar a paz
alcançada, mas no final o sentimento triunfa e você se vê preso.

Ele se senta na cadeira de balanço.

ELA
Bem, fala de uma vez.
ELE
Acho…
ELA
Sim…
ELE
Acho que estou começando a me apaixonar.
ELA
(Com pena) Oh, coitado.
ELE
Acredite em mim, resisti até o último momento.
ELA
E por que mulherzinha, posso saber?
ELE
Não chame ela assim.
ELA
Por quê? Por quem você se apaixonou?
ELE
(Vacilante) Por… você.
ELA
Que besteira.
ELE
Quando caminhamos de braços dados pela rua, olho pra você de canto de olho. É
completamente estúpido, mas gosto muito de você.

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ELA
Descarado! Não te dá vergonha se apaixonar pela própria mulher? Me rebaixar a esse
ponto! Esquece isso que eu também esqueço.

Ela começa a niná-lo mexendo a cadeira de balanço. Ela cantam uma canção de ninar. Ele
parece um inválido ou um menino.

ELE
(Sincero.) Vai ser difícil esquecer de você.
ELA
Ah, pensa em outra coisa, filhinho, pensa em outra coisa.
ELE
(Com cara de estúpido.) Em que?
ELA
Em qualquer coisa… na vizinha gorda.
ELE
Já pensei nela ontem à noite, enquanto tirava a roupa. Já pensei em todas as coisas que
escolhemos para hoje.
ELA
Bem, então pensa… no colesterol.
ELE
E o que é o colesterol?
ELA
Um… um inseticida.
ELE
Mas se vem no xampu.
ELA
Ai, se vem no xampu então é para a dor de cabeça.
ELE
(Pensando de forma concentrada.) Colesterol! Colesterol! (Levantando da poltrona
desanimado.) Ah, é inútil. Você é muito mais importante para mim do que o colesterol. Você
é diferente. Não é como todas!
ELA
(Lendo a revista feminina.) “Ah, a senhora é como todas… sem iniciativa? Siga o
exemplo de Dora Zamudio; até pouco tempo uma modesta funcionária em uma loja de lingerie,
hoje ganha três mil escudos mensais como técnica de laboratório de cálculos biliares. Nosso

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sistema a capacita para progredir e ser alguém na vida. Esta é lista de nossos cursos: Controle
mental, Respiração vibratória, Eloquência sagrada, Inseminação artificial, Personalidade
radial, Taquigrafia plástica, Inglês ao tato, Recontagem hormonal. E 35 especialidades
femininas! O destino é para a mulher independente! Inscreva-se hoje mesmo! (Reflete.) Eu
gosto, gosto do curso de Controle mental. Ai, sou capaz de me concentrar extraordinariamente.
Ontem, completei três cruzadinhas na missa do meio-dia… Agora se concentra você também
para me transmitir seus pensamentos.

Ela fecha os olhos de forma patética, como uma médium. Ele, de repente, olha fixamente o
público e fala de modo desolado.

ELE
Senhor diretor, faz tempo que eu queria me dirigir ao senhor para manifestar o
desconforto que me causa passar na frente do parque, no setor compreendido entre a praça e a
estação. Notei com crescente temor que dia a dia algo desaparece. Hoje é a caixa de correio,
amanhã a grade do esgoto ou uma árvore, mas sobretudo, senhor diretor, estão desaparecendo
esses casais apaixonados que davam esses imorais exemplos. É uma pena! Eu me dirijo ao
senhor para fazer minha voz chegar às autoridades.
ELA
(Ainda com os olhos fechados e calando a voz dele com a sua de médium.) Farei o que
puder, farei o que puder, mas… não me chame de senhor diretor.
ELE
(Voltando à realidade.) Me serve o café da manhã.

Ela, ao mudar de lugar, consegue ficar atrás d’Ele e coloca suas mãos estendidas sobre a
cabeça d’Ele, como se fosse uma bola de cristal.

ELA
(Ainda com os olhos fechados.) Imundo! Agora ficou tudo claro. Sim, agora vejo por que
queria hospedar a francesa!
ELE
(Lendo.) “Macaquinho sagui, muito habilidoso, especial para onde há crianças, vendo…”
Poderíamos ter bebês, Consuelo. Poderíamos comprar coisas tão divertidas. Imagina só ter um
macaquinho sagui. Teremos que pensar nisso quando decidirmos não ter filhos.

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ELA
(Indiferente) Você sabe perfeitamente que não me chamo Consuelo. (Abrindo os olhos.)
Oh, esse curso de Controle mental não é meu forte. Me deixa enjoada. Mas continuarei outro
curso por correspondência. Hoje em dia a gente pode fazer até… uma cirurgia plástica por
correspondência.
ELE
(Oferencendo) Mais café, querida?
ELA
Com dois cubos, por favor.
ELE
Com creme ou sem?
ELA
Ah, isso é só nos filmes, meu amor.
ELE
O quê?
ELA
O creme.
ELE
Que creme?
ELA
O que você acabou de me oferecer.
ELE
Eu? Do que você tá falando?
ELA
Do creme.
ELE
O creme para o rosto?
ELA
Que rosto? Eu nem uso creme.
ELE
Nem eu.
ELA
E o de barbear?

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ELE
É sabonete.
ELA
Mas te serve muito bem.
ELE
Bom, servir, serve… como as aranhas no jardim.
ELA
Para que?
ELE
Elas comem os insetos daninhos. Não sabia?
ELA
Não, não, ninguém acredita nisso… É como as ventosas.
ELE
O que as ventosas têm a ver com o jardim?
ELA
Muito simples. Do que estávamos falando?
ELE
Não sei.

Os dois comem silenciosamente por um momento. Ela, de repente, dá um grito.

ELA
Ahhhh… Era sobre o sabonete de barbear!
ELE
O quê?
ELA
Que estávamos falando antes.
ELE
Acho que não. É um assunto idiota. (Um silêncio tenso. Ela em sua revista. Ele em seu
jornal.)
ELA
(Lendo) “Ideias inovadoras para essa semana: o que fazer com esse incômodo sótão que
ninguém usa?” (Ela se levanta e olha com desdém o canto com os móveis de estilo espanhol.)
ELE
(Lendo) “Oportunidade única. Vendo por viagem…”

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ELA
(Continuando com o anterior.) “…basta ter engenho, três rolos de papel e um frasquinho
de esmalte…”
ELE
(Olhando os móveis d’Ela.) “…móveis para sala de jantar nórdicos… Muito finos.”
ELA
“Vamos começar tirando as teias de aranha…”
ELE
“…um rádio de pilhas de frequência imoderada e uma caixa de sopa em pó.
ELA
(Repentinamente lúgubre) Do pó viemos e sopa em pó nos tornaremos! Você tem algo
grave sobre sua consciência?
ELE
(Sem levantar os olhos do jornal.) Não, mas tenho no Consultório Sentimental cartas para
a “Mãe Aflita” e “Flor Silvestre”… “Quer viver intensamente junto a uma alma terna? Escreva
para mim na Caixa Postal. Por favor, que seja apaixonada, independente, sem preconceitos,
com boa situação econômica e bom físico. Fins absolutamente sérios e apostólicos. Envio
cumprimentos cheios de ansiedade, Lutador Solitário”.
ELA
(Com simplicidade.) Eu sempre assino: “Esperançosa”.
ELE
Você não tem preconceitos, certo?
ELA
Está me perguntando com fins sérios?
ELE
(Triste.) Sou um Lutador Solitário.
ELA
Por enquanto não posso responder nada, mas… me escreva na Caixa Postal.
ELE
É uma boa ideia. Eu gostaria de conhecê-la.
ELE
(Escrevendo em um papel.) Ai, “Esperançosa”: desconhecendo seu nome, me vejo na
obrigação de imaginar tudo. Seu anúncio foi um grito em meio a minha ruína cinza. Tenho a
impressão de que nos completaremos para sempre. Se você tem algum defeito físico visível ou
alguma doença invisível, rogo não ser informado. É imprescindível enviar foto. Eu sou tímido,

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mas dizem que simpático, e sem compromisso. Envio cumprimentos cheios de ansiedade,
Lutador Solitário.

Ambos estão de frente para o público. Ele dobra a carta e a desliza para Ela sub-repticiamente,
como se fosse um ato imoral. Ela pega a carta mesmo assim. Lê ansiosamente e em seguida
ambos dialogam sem se olhar, como se estivessem separados por uma grande distância.

ELA
Não quero aventuras. Busco uma alma gêmea.
ELE
Sou um industrial estrangeiro que quer criar raízes.
ELA
Prometo compreensão.
ELE
Vamos nos encontrar logo.
ELA
Não sou mulher de um dia.
ELE
Tenho cultura quase universitária.
ELA
Ohhh, tem tanta maçã podre no mundo.
ELE
Te prometo absoluta discrição.
ELA
E como nos encontraremos?
ELE
Estarei com a cabeça inclinada em frente ao túmulo do soldado desconhecido.
ELA
(Com angústia) E se não nos reconhecermos nunca?
ELE
Levemos algum sinal inconfundível!
ELA
Eu… eu levarei uma orquídea que mastigarei dissimuladamente.

A ESCOVA DE DENTES 17
ELE
(Com entusiasmo.) E eu vou deixar isso estacionado na direção oposta!
ELA
Isso o quê?
ELE
Meu avô paralítico.
ELA
(Intensa.) Oh! Me escreva na Caixa Postal!
ELE
(Intenso.) Me escreva na Caixa Postal! (Depois de uma pausa interrompendo o clima de
intensidade romântica, Ele amassa a folha do jornal e a joga no chão com desespero.) É inútil.
O jornal não é de hoje. É de depois de amanhã.
ELA
(Amassando a carta e jogando-a no chão.) Ah, se eu tivesse respondido ontem!
ELE
Ah, se pudéssemos alugar para alguém o quarto de hóspedes!

Ele caminha distraidamente pelo palco. Depara-se com o gramofone e acaricia suave e
longamente a enorme tuba. Cantarola quase para si o início do tango Yira-yira e, em seguida,
canta suavemente os dois versos.

ELA
Ai, hum que espanto!
ELE
“Buscando un pecho fraterno
para morir abrazado…”

Com um disco velho na mão, Ele fala com Ela.

Dançamos este tango, meu bem? Para nós dois apenas.


ELA
Obsceno.
ELE
Por quê?
ELA
O tango não é uma dança. É quase uma coisa fisiológica.

A ESCOVA DE DENTES 18
ELE
Gardel está morto. Ninguém vai nos ver.
ELA
Não se faça de besta. Há uma grande olho que está nos vigiando.
ELE
(Suplicando.) Faz isso por mim, meu bem!
ELA
A única coisa que posso fazer por você é um minuto de silêncio.
ELE
(Cantando suavemente e desiludido.)
“No esperes nunca una mano,
ni una ayuda,
ni un favor…”

Ele se senta de novo à mesa. Longa pausa. Ela o observa fixamente.

ELA
Estão te escutando. (Muito carinhosa.) Amorzinho…
ELE
Sim, meu amor?
ELA
Por favor…
ELE
Humm.
ELA
Presta um pouco mais de atenção.
ELE
No quê?
ELA
Não suje a toalha de mesa.
ELE
Não me diga isso todo dia!
ELA
(Subindo o tom.) Não faça barulho ao comer!
ELE
Não faça barulho com a colher!

A ESCOVA DE DENTES 19
ELA
Não molhe o açúcar!
ELE
Não fique franzindo a sobrancelha ao morder as torradas!
ELA
Não arraste o pés!
ELE
(Gritando.) Não leia na mesa!
ELA
(Gritando.) Não grite comigo!
ELE
Não cuspa em mim!
ELA
(Uivando.) Não vou permitir grosserias na minha própria casa!
ELE
(Uivando.) Eu não vou permitir que você me humilhe na frente do cachorro!
ELA
De que cachorro você tá falando?

Já não se entende nada do que falam porque gritam ao mesmo tempo sem dar trégua. Quase
latem. Bruscamente os dois se calam. Agora bruscamente iniciam os gritos simultâneos e
voltam a ficar quietos. Silêncio carregado de tensão. Cada um mergulha em sua leitura. Lendo.

ELE
Quê?
ELA
Nada.
ELE
“Gaiolas individuais, as melhores com bebedouros inquebráveis Rosatex.”
ELA
(Irritada.) Não precisamos disso.
ELE
Talvez sim.
ELA
Você diz por nós dois?
ELE

A ESCOVA DE DENTES 20
(Ingênuo.) Pensei que seria bom que tivéssemos ovos frescos em casa.
ELA
E o que isso tem a ver com as gaiolas?
ELE
Ouvi dizer que os ovos saem daí.
ELA
Mas, filhinho, você não sabe que as galinhas…
ELE
(Gritando enfurecido.) Não me chame de “filhinho”, senão eu faço xixi aqui mesmo!
ELA
(Nervosa.) Melhor comprar uma gaiola dessas pra você.
ELE
(Nervoso.) Com certeza ela seria ocupada pela sua mãe, que necessita urgentemente de
uma.
ELA
(Furiosa.) Grosso! Limpa a boca antes de falar da mamãe!
ELE
É exatamente o que eu teria que fazer, mas depois de falar da sua mãe; só que hoje de
manhã eu não encontrei minha escova de dentes.
ELA
Com certas comidas… Dentol depois das refeições (Sorrindo de forma automática.) “O
dentífrico com gostinho de whisky escocês!” “Eu, assim como Susan Hayward e milhares de
artistas de Hollywood, uso somente… dentadura postiça!”
ELA E ELE

Em uníssono cantam um jingle

“Um centímetro basta


na escova familiar,
com a mesma pasta
dá muito mais, mais, mais…”
ELE
(Reagindo.) Eu só disse que não consegui encontrar minha escova de dentes hoje de
manhã!
ELA

A ESCOVA DE DENTES 21
Ai como você é descuidado. (Ela abre a revista feminina e lê.) Olha, olha o que a Miss
Helen, “a amiga da mulher na frente do espelho”, diz: “A cútis, o cabelo, os dentes, qualquer,
qualquer que seja seu traço mais belo, vamos começar desde já a dar esse toque mágico de
arrumação extra que enfeitiça. Sobretudo, mantenha os dentes livres do tártaro, da nicotina e
das partículas de porco ou bacalhau, mediante o uso constante da soda cáustica. Assim seu
noivo dirá, seu noivo dirá…”
ELE
(Noivo fascinado) Tem algo indefinível que me atrai! Ah… (reagindo) Basta! Só disse
que não pude encontrar minha escova de dentes hoje de manhã!
ELA
(Com simplicidade) Podemos perguntar à Missa Helen. Vou escrever pra ela. Ela traz de
volta até a virgindade.
ELE
Não! Quero que você me diga onde está minha escova de dentes.
ELA
(Com amável condescendência) Mas, filhinho, onde mais pode estar? No lugar de
sempre: jogado em qualquer canto.
ELE
Não, não. Hoje de manhã não estava ali.
ELA
Já pensou que pode estar no copo das escovas de dentes?
ELE
Não! Também não estava.
ELA
Estranho. Será que você não levou para o escritório?
ELE
E para quê?
ELA
Para escrever à máquina.
ELE
Mas se eu tenho outra lá para isso.
ELA
Ai, então, não entendo. Quer que eu vá ver?
ELE

A ESCOVA DE DENTES 22
Vai ser inútil. É o cúmulo que meu único objeto pessoal, o refúgio da minha
individualidade, também tenha desaparecido.
ELA
Vou lá ver. Enquanto isso, faz gargarejo com sal. (Ela coloca água e sal em um copo e
sai em seguida. Imediatamente a mulher grita. Ele, sobressaltado, engasga com a água
salgada e tosse.) Aí! Encontrei! Encontrei! Aqui está! Aqui está! Sim (Com cara aflita mostra
uma escova de dentes terrivelmente inutilizada com tinta branca para sapatos.)
ELE
Não! Não! Não!
ELA
(Timidamente.) Sim, eu… eu usei ela para limpar meus sapatos.
ELE
(Espantado.) Como?
ELA
(Confusa.) Meus sapatos… meus sapatos brancos precisavam com urgência de uma
demão de preto e…
ELE
Não encontrou nada melhor para usar do que minha escova de dentes!
ELA
Não, não, não, não, não, não. Primeiro tentei usar o pincel de barbear, mas fazia espuma.
ELE
(Furioso.) Quem vai soltar espuma pela boca serei eu.
ELA
(Ingênua.) Mas se o gargarejo era de sal.
ELE
(Patético.) Esta é a cruel realidade: na minha casa não há uma escova de dentes. Parece
incrível, não é mesmo? Mas é verdade. (Enquanto ele fala para o público esbanjando pena de
si mesmo, Ela sai um momento ao banheiro.) Quero começar meus trabalhos devotadamente,
mas não… não é possível, minha escova de dentes desapareceu! Eu trabalho como um
condenado a semana toda, e quando no fim do dia chego em casa em busca de alguma distração,
como, como é escovar os dentes ou tecer um pouco… Não, não é possível! Ou usam minha
escova, ou escondem o tecido! Não, não penso escovar os dentes todos os dias, nem penso que
a vida seja uma farra… mas um dia de festa é uma dia de festa e até os monges se permitem

A ESCOVA DE DENTES 23
esse tipo de lazer! Mas para mim, não. Para mim não é possível. Eu devo fazer gargarejo de
salmoura e esconder meu dentes com vergonha… é quase um problema de dignidade humana.
ELA
(Ri.)
ELE
Até as hienas sorriem sem temor!
ELA
(Encantada com a ideia.) Mas você tem uma escova de dentes!
ELE
E qual, posso saber?
ELA
(Triunfante.) A minha. Foi presente de casamento do meu pai.
ELE
Você não quer que eu escove os dentes com a sua escova!
ELA
E que mal faria? Por acaso, não somos marido e mulher?
ELE
Não se trata disso. Não diga besteira.
ELA
Não é besteira. É o casamento. A divisão de tudo: tristezas, angústias, alegrias. E, bom,
escova de dentes! Por acaso, não nos amamos?
ELE
Sim, mas não a esse ponto.
ELA
(Chorosa.) Nunca pensei que fosse escutar isso! (Para o público.) Ah, claro, claro… pode
dividir nosso quarto com uma francesa, mas não pode dividir um simples e inofensivo utensílio
doméstico com sua mulher…
ELE
(Teimoso.) Quero ter meu próprio e inofensivo utensílio doméstico.
ELA
Você não dizia isso quando estávamos noivos.
ELE
(Para o público.) Nunca te prometi usar sua escova de dentes quando estávamos noivos.
ELA
Teria dito. Você me amava.

A ESCOVA DE DENTES 24
ELE
Mas não se trata disso. Se trata de higiene.
ELA
(Fazendo-se de coitada.) Quando eu machucava um dedo, não pensava na higiene. Não,
eu chupava a ferida e dizia: “O que arde cura, o que aperta segura”.
ELE
Ai, me cansa… me cansa escutar você, Mercedes!

Ele, em completo desespero, se mete debaixo da mesa até desaparecer completamente coberto
pela toalha que chega até o chão. Ela esvazia a mesa e bate com os punhos sobre o tampo.

ELA
Não me chame mais de Mercedes… Não quero que me chame de nenhuma forma.
Escutou? De nenhuma forma.
ELE
(Falando debaixo da mesa sem que seja visto em nenhum momento.) Posso dar um jeito
de não te ver, mas tenho que te ouvir. É verdade que você tem fone de ouvido e eu tenho meus
discos velhos, mas mesmo assim te ouço! O único lugar onde encontro um pouco de
tranquilidade é aqui e no meu banheiro. Onde tudo é funcional. Onde reinam o desodorante e
o talco em pó. Onde é preciso. Onde você não pode entrar… mas entrou e roubou minha escova
de dentes.
ELA
(Repentinamente olhando para o público.) Fecha as cortinas que dá pra escutar tudo!
ELE
(Botando a cabeça para fora da toalha de mesa.) Não estou nem aí que escutem tudo.
Foi pra isso que pagaram.
ELA
Se quer solidão, fica com seu querido reservado… eu, por minha vez, vou para a casa da
minha mãe.
ELE
Não me venha com melodrama, querida. Você sabe perfeitamente que sua mãe mora aqui
com a gente.

A ESCOVA DE DENTES 25
ELA
(Gritando.) Ai, não te suporto mais! Eu te odeio! Estou cansada da marca dos seus
cigarros e do barulho das suas tripas quando você toma Coca-Cola! Vai embora! Nunca mais
vamos poder viver como antes!
ELE
Pequena mulherzinha histérica.
ELA
Sádico!
ELE
Orgânica!
ELA
Visco!
ELE
Mandrágora!
ELA
Tóxico!
ELE
Crustáceo!
ELA
Vou começar a gritar…
ELE
Grita e explode!

Ela começa a gritar como uma louca. Ele sai de debaixo da mesa e fica em pé enfurecido.

ELE
Cala a boca, Marta!

Ele se aproxima d’Ela. Pega o rádio da mesa e com um rápido movimento passa a longa alça
do aparelho pelo pescoço da mulher. Em seguida, começa a apertar até silenciá-la. A mulher
cai no chão. O homem a olha um momento. Está ofegante. Depois a pega pelas axilas e a
arrasta com dificuldade em direção ao quarto. O palco vazio por um momento. Ele aparece.
Já não está nada ofegante. Assobia um tango. Traz nas mãos uma gravata preta. Olha para
ela reflexivamente e tira a colorida que veste, trocando-a pela de luto. Assobia uma melodia.
Senta-se e serve-se mais café. Enquanto bebe, lê em voz alta as manchetes de um jornal de
formato menor que o anterior.

A ESCOVA DE DENTES 26
ELE
“Colegial abusada por sinistro professor de línguas mortas.” “Dois atores socam
violentamente nosso crítico teatral.” Bem feito. “Uma mulher estrangulada por um marido
furioso…” (Presta mais atenção a esta última e segue lendo.) “Foi encontrado ontem o cadáver
de uma bela mulher maltratada covardemente. Ela apresentava sinais evidentes de
estrangulamento com a alça de couro de um rádio de pilhas. A situação se nota bastante confusa
apesar de sua aparente simplicidade. Os fatos são os seguintes: às oito e meia da manhã, a
mulher que fazia faxina no apartamento e diz se chamar Antona tocou a campainha repetidas
vezes. Como ninguém abriu, ela usou sua própria chave e entrou. Perguntou se havia alguém
na casa para não importunar e ouviu uma voz que dizia: “Entra, Antona…”. Ela encontrou o
senhor preparando uma torrada e no quarto o cadáver da pobrezinha. As declarações do marido
à polícia foram confusas… (Ele deixa o jornal e fala diretamente ao público. Afrouxa a gravata
e adota o ar cansado de um acusado em um interrogatório policial.) Sim, eu a matei. Pelo
menos, a pessoa que está ali jogada no quarto é a que eu matei. E sei muito bem por que fiz
isso. Os senhores teria feito o mesmo ao encontrar um estranho tomando conta de sua casa,
desde o pijama até a escova de dentes. Sabem, senhores? Ela estava em todas as partes.
Inexplicavelmente eu a encontrava na mesa do café da manhã, comendo minhas torradas; eu a
encontrava na banheira; ao me barbear, no espelho, encontrava sua cara passando creme ou
tirando a sobrancelha. Eu a encontrava, eu a encontrava algumas vezes de noite, eu a
encontrava em minha própria cama. Era algo irritante. Mas, senhoras e senhores… quem eu
matei? A mulher do espelho? A mulher que eu encontrava algumas vezes na minha cama e que
se parecia tanto com a mulher com quem me casei há vinte e cinco anos? A mulher da banheira?
A mulher do rádio a pilha? A mulher por quem eu estava começando a me apaixonar agora?
Ou era simplesmente a “Esperançosa”, a quem eu havia escrito na Caixa Postal? Não sei. Tenho
medo do que é estranho, e o que estava acontecendo agora, como encontrar minha dentadura
postiça dentro da pantufa de uma desconhecida, superou o limite de minhas forças. Os senhores
viram: meus discos de Gardel ficavam cheios de pó porque ela se negava a dançar tango. Eu
posso chorar por horas a fio escutando essas músicas. Mas ela não. Ela sofria somente com o
Quarteto de “Jazz” Moderno. E o que se pode fazer quando uma pessoa fica nostálgica com o
bandoneon e a outra só com o trompete? E se duas pessoas não podem chorar juntas pelas
mesmas coisas, o que se pode fazer? Os senhores e as senhoras têm a palavra! Mas lembrem-
se de que todos, todos temos uma escova de dentes.

A ESCOVA DE DENTES 27
Ele volta a sentar e a ajeitar a gravata. Adota o aspecto anterior, despreocupado, quase
sorridente. Toma o jornal e lê em voz alta e indiferente.)

ELE
“Essas foram suas declarações. A polícia pensa que se trata de um caso típico de crime
passional. Está sendo procurada uma terceira pessoa, possivelmente francesa. Amanhã
divulgaremos mais informações.” (Ele larga o jornal.) Oh, o mesmo de sempre. Esta imprensa
sensacionalista está ficando cada vez mais mórbida. É o ópio do povo… a realidade, a vida é
muito mais tediosa.

Começa a passar geleia em uma torrada. A campainha do apartamento toca. Um silêncio.


Novamente a campainha de forma insistente. Um silêncio. Barulho característico de uma
chave na fechadura e, em seguida, o rangido de uma porta abrindo. Passos.

UMA VOZ
Licença.
ELE
Entra, Antona, o cadáver, está no lugar de sempre!

As cortinas de fecham.

FIM DO PRIMEIRO ATO

***

Segundo ato
O segundo ato começa no mesmo momento em que terminou o primeiro.

Ele, com o gesto detido no ar e parte da torrada com geleia na boca.

O cenário foi invertido, ou seja, girou em 180o em um eixo imaginário. Tudo o que se via à
esquerda está à direita e vice-versa.

A campainha da porta toca. Um silêncio. Novamente a campainha. Um silêncio. A porta se


abre e se escutam os passos de alguém.

UMA VOZ
Licença.

A ESCOVA DE DENTES 28
ELE
Entra, Antona, o cadáver, está no lugar de sempre!

Entra Antona. É Ela, mas vestida com um vestido barato, peruca e brincos. Em suas mãos um
balde, um esfregão, panos e uma vassoura. Antona é decidida e enérgica, embora ingênua.
Deixa o balde no chão e coloca um pano na cintura como se fosse avental.

ANTONA
Bom dia, senhor…
ELE
Bom dia, Antona.
ANTONA
Só se for para o senhor… Ah que manhã estou tendo. Só me falta encontrar um morto
debaixo do tapete…
ELE
(Sobressaltado.) E por que está dizendo isso, Antona?
ANTONA
Por que tem dias que a gente não sabe o que é melhor: se tomar uma aspirina ou cortar a
cabeça.
ELE
(Indiferente.) Ah, mas não tenha dúvida. Corta a cabeça.
ANTONA
Comecei pelo apartamento 18, fui recebida pelo dono completamente pelado. “Cobre
isso”, eu disse, e ele respondeu: “Deixa de frescura que hoje eu estou com o diabo no corpo,
cheirando à inferno!”.
ELE
(Perplexo.) Antona, me diz… eu cheiro a inferno?
ANTONA
(Distraída.) Sim, senhor.
ELE
Obrigado.
ANTONA
Depois, no 25 quebrei o aspirador, escorreguei no sabão e quebrei um espelho. A dona
ficou uma arara.

A ESCOVA DE DENTES 29
ELE
Mas depois, graças a Deus, você chegou aqui.

Antona varre ativamente o chão com a vassoura.

ANTONA
Ah, sim. Enquanto eu subia a escada, vinha pensando: “Finalmente vou chegar em uma
casa decente e tranquila, ai, onde esses senhores vivem como pombinhos.
ELE
Tem certeza de que é assim que os pombos vivem?
ANTONA
Olha, trabalhar para gente distinta e educada, sei lá, mas pra mim a alma até volta pro
corpo.
ELE
E como faz para que a alma volte para o corpo, Antona? (Ele fica imóvel com o olhar fixo
em direção ao quarto.)
ANTONA
Senhor, senhor. O senhor tá bem?
ELE
(Reagindo.) Ah, sim, sim. Completamente purificado. Como um corpo glorioso. É
curioso, mas esta manhã tão viúvo quanto o Cardeal Richelieu.
ELA
Ah, e a sua esposa?
ELE
Resquiescat en pace.
ANTONA
Como é?
ELE
Que dorme como uma morta.
ANTONA
Ai, não diz isso, senhor, que chama azar. Um tio meu, coitado, foi deitar cantando… e
amanheceu afônico. (Antona põe algumas coisas sobre a bandeja.) Eh, terminou seu café,
senhor?
ELE
Sim, alguma coisa me tirou o apetite.

A ESCOVA DE DENTES 30
ANTONA
Bom, então vou levar o café para a senhora. (Antona faz menção de se dirigir ao quarto.
Ele se levanta e se coloca entre ela e o quarto.)
ELE
Não! Você não vai conseguir fazer ela engolir nada, Antona. Ai (tirando a bandeja das
mãos dela), com essa pressa você estraga tudo, Antona. Por isso você escorrega no sabão e
quebra os espelhos… (Aproximando-se muito dela.) Parece que tá fugindo de alguma coisa. O
pior de tudo é fugir, Antona, mesmo que tenha matado alguém… Ai, não, isso faz mal para a
pressão e os nervos. Tudo tem seu tempo. (Ele põe uma mão na cintura.) Gostei disso que você
falou de “viver como pombinhos”. Quer repetir outra vez? (Antona se separa dele.)
ANTONA
(Em voz baixa.) Que isso, tome jeito que sua esposa pode aparecer!
ELE
(Sorrindo.) Não, não vai aparecer não.
ANTONA
Sim, o senhor sempre diz a mesma coisa. Ela teria que estar morta pra não escutar como
eu fujo e grito todas as manhãs para me livrar dessas agarradas. Me solta!
ELE
Você é tonta demais, mas… mas tem um encanto animal.
ANTONA
(Feliz.) Sério?
ELE
Juro. Ah, Antona, me diz uma coisa, você tá apaixonada?
ANTONA
Que isso?
ELE
Vai me dizer que nunca ouviu falar de amor?
ANTONA
(Perplexa.) Talvez.
ELE
Não é possível, Antona.
ANTONA
Juro.

A ESCOVA DE DENTES 31
ELE
Mas é que isso é tão importante, ou mais ainda, que a brilhantina para o cabelo, os cupons
premiados ou os supositórios.
ANTONA
Sério?
ELE
Lógico. Isso se ensina na escola.
ANTONA
Bom, o negócio é que não estudei.
ELE
Mas basta ler as enciclopédias, Antona. (Ele vai até um móvel baixo e pega um grosso
livrão.) Vejamos, vejamos, vejamos… Amor… amor, amor, amor; aqui está, amor, amor,
amor: “Afeto por meio do qual o homem busca o bem verdadeiro…” E cuidado para não se
confundir, Antona, porque tem muitos. Olha só: “Amor seco: Nome que se dá nas Canárias a
uma planta herbácea cujas sementes grudam na roupa”, nem com o “Amor ao uso”: Arbusto,
árvore, “Arbusto malváceo de Cuba parecido com o abelmosco”… muito menos com a bardana
nem com “amor-perfeito”, nem com o amor-agarradinho, planta perene com crescimento
rápido.
ANTONA
O senhor não tem moral.
ELE
(Consultando o dicionário.) Moral… Moral, moral, moral, moral, moral: “Árvore
morácea de folhas ásperas, em formato de coração e folhas verdes, cujo fruto é a amora”.
ANTONA
O senhor deveria ter vergonha, não acha?
ELE
(Consultando o dicionário.) Vergonha… Vergonha, vergonha, vergonha, vergonha,
vergonha, vergonha, vergonha: vamos ver, vergonha; aqui está vergonha: Perturbação do
ânimo que costuma despertar a cor do rosto. “Usa-se também a expressão de cobrir as
vergonhas referindo-se às partes pudendas do homem e da mulher”.
ANTONA
Eu não sei nada dessas coisas.

A ESCOVA DE DENTES 32
ELE
Ah, pelo menos deveria saber que as relações amorosas são classificadas segundo sua
intensidade e suas circunstâncias em: condicionais, consecutivas, continuativas, disjuntivas,
defectivas, dubitativas… dubitativas e copulativas.
ANTONA
Ai, meu Deus! E eu que sou analfabeta, faço o quê? (Ele a agarra novamente pela cintura
e tenta puxá-la para perto de si.)
ELE
Antona, Antona, diz pra mim, diz pra mim, você já teve amantes?
ANTONA
Eita, que continua a ladainha!
ELE
Não te solto enquanto não me disser a verdade.
ANTONA
E como é que eu vou saber isso de amantes…
ELE
Bom, mas… mas uma mulher sempre sabe… se é que sim ou que não!
ANTONA
Ai, eu não, juro por tudo que é mais sagrado. Eu me distraio. Quando me dou conta, já
estão se abotoando. Me solta!
ELE
Você é uma completa idiota e insensível!
ANTONA
É que me criaram com leite de burra. É uma porcaria, vou logo dizendo. Eu penso como
meu tio, que dizia: “Quando tem mulher por perto, deixa que as burras levem”.
ELE
Mas você é um animal premiado em qualquer feira, Antona.
ANTONA
Ah, sim. Isso é o que minha mãe dizia: “Antona, Antona, ninguém vai poder te chamar
de mulher ruim, o que já é muito, mas de mulher da vida, sim.
ELE
Palavras carinhosas e sábias.
ANTONA
Ai, sim. Bom, vou acordar a senhora. (Ele tenta segurá-la pelo braço e detê-la.)
ELE

A ESCOVA DE DENTES 33
Não, não, não, não, não. Espera! Aconteceram algumas coisas…
ANTONA
Me deixa, que o senhor é cheio das histórias.

Ele instantaneamente começa a contar uma história em tom paternal. Antona escuta fascinada.

ELE
Mas essa história você ainda não conhece. É a história do rei Abdula, de quando perde
sua armadura: “Era uma vez um rei que tinha o mau costume de roer as unhas. Um dia
descobriu que sua esposa, a rainha, se deitava com um plebeu, dentro da própria armadura e
debaixo da própria cama. A partir desse dia, o rei parou de roer as unhas e começou a roer o
chifre…”
ANTONA
(Fascinada.) Oh! E o príncipe?
ELE
E o príncipe? Que príncipe?
ANTONA
O príncipe.
ELE
Que príncipe?
ANTONA
Sempre tem um príncipe. Tem príncipe ou não tem príncipe?
ELE
Oh, sim, sim, sim, o príncipe… É que não quis te contar dele por delicadeza, porque esse
príncipe tinha um vício secreto: passava a língua pelo palácio todo.
ANTONA
Por quê?
ELE
Era filatélico!
ANTONA
(Com admiração.) Meu Deus, mas como o senhor sabe das coisas! O que é a falta de
ignorância da gente… (Antona se dirige de novo ao quarto. Nova interposição d’Ele.)
ELE
Não, não entre no quarto, Antona!
ANTONA
E por que não?

A ESCOVA DE DENTES 34
ELE
É que está tudo uma bagunça aí dentro. Tem um monte de coisa jogada: minha roupa
suja, minha mulher… você sabe, coisa de todo dia.
ANTONA
Bom, mas esse é meu trabalho, não é verdade?
ELE
Eu te proíbo, Antona!
ANTONA
Ah, aí vou pensar que o senhor está escondendo alguma coisa, hein.
ELE
E como você adivinhou?
ANTONA
Quê?
ELE
É verdade. Estou escondendo uma coisa e preciso te contar. Vem, senta aqui.
ANTONA
Ah pronto, chega disso! Outra história? Não! Vou eu mesma descobrir.
ELE
(Em um grito.) Antona, me escuta! (Antona, antes de entrar no quarto, vira-se para ele.)
ANTONA
Quê?
ELE
É que eu… eu…
ANTONA
Ahn, você o quê?
ELE
Eu, eu já não sou o mesmo de antes, faz meia hora que eu sei disso.
ANTONA
Ah, não entendo.
ELE
Mas eu te expliquei de forma detalhada durante todo esse tempo e você se nega a
entender. Como pode ser tão tonta?
ANTONA
Mas entender o quê? (Pausa comovida d’Ele.)
ELE

A ESCOVA DE DENTES 35
(Sem conseguir se conter.) Eu vou ser mãe!
ANTONA
O que o senhor tá falando?
ELE
Que eu vou ter um bebê, sim.
ANTONA
Se, ai, bebê, não, não. Não pode ser!
ELE
Sim. Um bebê que é fruto de sua irresponsabilidade e egoísmo.
ANTONA
Ah, e de que jeito o senhor quer jogar a culpa dessa cria pra cima de mim?
ELE
(Fazendo-se de coitado.) Ah, não vai querer negar tudo agora, Antona… Não é possível
ser tão desnaturada!
ANTONA
Mas como? Se tudo que fizemos foi dar umas beliscadas e umas passadas de mão na
cozinha.
ELE
(Com pudor.) Está vendo, assim é a natureza… (Baixando o olhar.) Vou ter um bebê.
ANTONA
Não, não, não, não, não. Não acredito.
ELE
(Digno e sofredor.) Ah, Antona, não me venha pedir provas agora! Mas você sabe melhor
do que ninguém tudo que aconteceu entre nós dois… Mas eu te juro que você foi a primeira!
ANTONA
(Confusa.) Olha só, isso não passa de uma confusão. Eu venho aqui só pra limpar o chão
e não pra resolver os pepinos do senhor (Antona já se esqueceu do quarto e está no meio da
sala.)
ELE
(Fazendo bico.) Claro, para você é fácil, não passa de um remorso… mas para mim… (A
voz embargada.) Jamais poderei contar pra minha mãe!

A ESCOVA DE DENTES 36
ANTONA
Sua mãe? Mas que diabo ela tem a ver com isso?
ELE
Ela vai me odiar.
ANTONA
E o que dirá a sua esposa, já pensou?
ELE
(Digno.) Espero que ela dê seu sobrenome, pelo menos.
ANTONA
Seja lá o que estiver tramando ou armando, eu não tenho nada a ver com isso.
ELE
Antona, você não pode me virar as costas agora, depois de ter se aproveitado de mim! Ai,
ai, ai! (Ele sofre um pequeno desmaio.)
ANTONA
(Alarmada.) Vem, senta, senta e deixa de pensar besteira. Também não é nada de outro
mundo. Todas nós passamos por isso mais cedo ou mais tarde. Vou trazer um copo d’água para
o senhor. (Antona arrasta Ele até uma cadeira e corre para buscar um copo na cozinha. Grita
de lá.) Fica tranquilo! Isso acontece só nos primeiros meses. (Aparece novamente e lhe entrega
o copo de água. Ele bebe a água e logo começa a ter soluços.)
ELE
Por um momento de prazer, acabei virando um pária. Fui desonrado.
ANTONA
Não, não seja tonto. Agora a sociedade é muito mais compreensiva do que antes. Imagina
que lá na minha cidadezinha, meu avô era tão puritano que, quando a égua pariu, ele foi atrás
do cavalo culpado e, quando encontrou, capou o bicho.
ELE
(Espantado.) Por que ele fez isso?
ANTONA
Porque disse que era um mal exemplo para minha mãe, que estava solteira. (Ele, ao ouvir
a história, volta a soluçar.)
ANTONA
Pronto, e agora o que foi?
ELE
(Fazendo bico.) Seu avô puritano me dá medo.
ANTONA

A ESCOVA DE DENTES 37
Não, ele já tá enterrado lá no interior.
ELE
Ah, sim, eu também nasci no interior.
ANTONA
Ah, sim.
ELE
Sim, por isso sempre fui muito ignorante em todas essas coisas. Eu acreditava que as
crianças eram feitas misturando três partes de farinha, duas de leite e uma de fermento.
ANTONA
E por que não vai pro interior por um tempo? Lá as crianças crescem saudáveis. E
ninguém vai ficar sabendo.
ELE
Claro, a reação típica: se livrar de mim. Agora não pensa nem de longe em casamento.
ANTONA
Nunca, nunca propus casamento ao senhor. Além disso, o senhor está casado. Deveria
contar tudo para sua mulher. Ela deveria ficar sabendo da situação… Eu mesma vou contar!
Se ela não tiver um infarto, é sinal de que vai acabar reconhecendo a cria. (Antona se dirige ao
quarto, mas Ele a detém com um grito.)
ELE
(Com um demente.) Antona, se você entrar nesse quarto, me mato! Vou começar agora
mesmo comendo esse jornal até morrer.

Ele morde ferozmente o jornal. Antona, assustada, tenta tomar o papel dele. No estica e puxa,
eles acabam rasgando-o completamente.)

ELE
(Patético.) Isso, amanhã você vai ter que explicar a toda a opinião pública: morto e
desonrado por intoxicação de imprensa marrom. A autópsia vai revelar tudo! (Antona dá uns
passos para trás.)
ANTONA
O senhor é um homem perigoso.
ELE
Sou uma vítima.

A ESCOVA DE DENTES 38
ANTONA
Aqui se faz, aqui se paga.
ELE
Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza.
ANTONA
Trair e coçar é só começar.
ELE
Devagar se vai ao longe.
ANTONA
Seguro morreu de velho.
ELE
Cada cabeça, uma sentença.
ANTONA
Pela boca morre o peixe.
ELE
Filho de peixe peixinho é.
ANTONA
O bom filho à casa torna.
ELE
De pequenininho é que se torce o pepino.
ANTONA
Mais vale um na mão que dois voando.
ELE
Quem anda com porcos farelo come.
ANTONA
Ajoelhou, tem que rezar.
ELE
Gato escaldado tem medo de água fria.
ANTONA
Quem casa quer casa.
ELE
Antona, Antona. Quando um te deixa, outro te toma.

Antona começa a desfolhar tristemente uma rosa do vaso.

A ESCOVA DE DENTES 39
ANTONA
Bem me quer, mais ou menos me quer, mal me…
ELE
Não, não perca as esperanças de se casar, Antona. Você ainda está muito bem apesar da
sua cicatriz da operação de apendicite.
ANTONA
(Desiludida.) Não, estou muito judiada. Já estou virando uma solteirona. É horrível. Vou
engordar, ficar cheia de rugas e quando menos esperar, pá! Amanheço tão inútil e fora de moda
como um espartilho cheirando à naftalina.
ELE
Mas você ainda tem tempo de escolher um desse monte de sem-vergonha que anda solto
por aí.
ANTONA
Não, não tem jeito. Sou o esfregão de todo mundo. Quem vai me querer para alguma
coisa que não seja dar uma esfregada?
ELE
Ah, mas é cada ideia que você tem, Antona!
ANTONA
Claro, porque descobrem meu gosto por… e se aproveitam.
ELE
Nesse sentido, você é verdadeiramente apaixonante.
ANTONA
Não, eu tentei de tudo. Até escrevi para uma coluna sentimental. Assinei “Esperançosa”
e o único que me respondeu foi um cara nojento que deve ser casado e barrigudo. Não entendi
nada do que ele disse. “Lutador solitário”. Deve ser um viciado.
ELE
(Estupefato.) Então… você é a “Esperançosa”?
ANTONA
Sim, sim. Sei que o senhor vai rir de mim.
ELE
(Para si.) Era você que estava procurando uma alma gêmea.
ANTONA
(Orgulhosa.) Eu escutei essa frase em Flor de Fango.

A ESCOVA DE DENTES 40
ELE
Hum?
ANTONA
Em Flor de Fango. Vai me dizer que o senhor não escuta Flor de Fango?
ELE
Não.
ANTONA
Como não escuta Flor de Fango se é terrivelmente apaixonante? Eu escuto primeiro uma
dessas músicas que arrepiam e depois a voz do locutor meio boiola, mas muito simpático, que
diz: “Nós sabemos que Fibronailon nos acaricia! Fibronailon remercerizado, seu náilon de
confiança, o náilon que é quase um confessor… apresenta Flor de Fango”. Ai, só de pensar já
começo a me tremer toda. Ai.
ELE
(Para si.) “Esperançosa, tenho a impressão de que não nos completaremos para sempre…
Se você tem algum defeito físico visível ou alguma doença invisível, consulte um especialista.
Não precisa mais mandar foto… Eu, tímido, mas dizem que uma irremediável neurastênico.
Mando meus cumprimentos e esqueço para sempre… Luis.”
ANTONA
Não sei o que o senhor quer dizer, mas já é hora de terminar meu trabalho. (Antona se
dirige ao quarto de forma decidida.)
ELE
Não vá embora agora!
ANTONA
Vou acordar a patroa.
ELE
Seria bom agora as trombetas do Juízo Final.
ANTONA
Não quero mais brincar de charadas, e se o senhor continuar me dificultando a vida eu
me mando pro estrangeiro.
ELE
Ah, não, não, não, isso não…
ANTONA
Hoje em dia eu ando muito solicitada, o senhor nem acredita.

A ESCOVA DE DENTES 41
ELE
(Impressionado.) Ai, Antona, Antona. Você sabe que nós somos gente de bem, sem
antecedentes penais… (Apaixonado.) Olha, se quiser, a gente casa você com meu chefe que é
alcoólatra ou com o filho do vizinho que é numismático, ou com meu diretor espiritual que é
pastor luterano ou, em último caso, comigo mesmo… Qualquer coisa, mas não vá embora!
ANTONA
E a patroa vai querer isso?
ELE
Isso o quê?
ANTONA
Bom, esse casamento tão precipitado.
ELE
Mas é claro. Ela não vai dizer nem uma palavra. É só você regar e passar o espanador
nela de vez em quando. (Carinhoso.) Vamos envelhecer os três juntos de frente para a televisão.
ANTONA
Vou poder usar a roupa da patroa também?
ELE
Claro. Até a escova de dentes dela.
ANTONA
Ah, ah. Vou pensar. De todo modo, me traga referências, recomendações e radiografias.
ELE
(Implorando.) Antona, Antona, você sabe que eu tenho bons antecedentes bancários.
Olha, se quiser eu aprendo alemão para você se sentir no estrangeiro. Qualquer coisa… mas
não vá embora!
ANTONA
Não, não, não, não. Acho que não vai ser possível me casar com o senhor nesse momento.
E não é que o senhor seja besta, mas seria chocante que sua esposa, o senhor e eu… o senhor
me entende, né? Existe a moral e os bons costumes. Eu posso ter me rebaixado bastante, mas
isso de dividir a televisão e a escova de dentes com um homem casado pelas duas leis aí já é
demais.
ELE
Mas tem o gosto do desconhecido, Antona.
ANTONA
As fantasias têm limite. Não vamos forçar a natureza.
ELE

A ESCOVA DE DENTES 42
Você ultrapassa seus próprios limites, Antona!
ANTONA
E o senhor não tem nada mais pra me oferecer? Só isso?
ELE
Vou tornar você sócia da loja de discos.
ANTONA
Não adianta.
ELE
Eu contrato um seguro para você.
ANTONA
Não (Antona está a ponto de entrar no quarto.)
ELE
Antona, por você eu vou até o fim!
ANTONA
(Fascinada.) Não, o fim, não.
ELE
Sim, o fim. Vamos dançar um tango a cada dia.

Ele coloca no velho gramofone um disco de Gardel. Antona joga para o alto o esfregão e o
balde.

ANTONA
Será capaz de tudo isso?
ELE
Cuqui! Nessa maldita prisão, um tango depois de oito anos de silêncio!

Dançam apaixonadamente. Parecem transportados dali. Quase no fim do tango, o disco


começa a girar em falso. Ele se solta dela e vai até o gramofone. Antona, enquanto isso,
arruma o avental e entra no quarto dizendo em um risinho nervoso:

ANTONA
Me solta. Não, não, não, não, a patroa.
ELE
Vamos continuar dançando.
ANTONA
Não, não. Senhora, não vai pensando nada de mau… eu juro que jamais faltaria com o
respeito… Ah!

A ESCOVA DE DENTES 43
Antona se detém. Escuta-se um grito penetrante de Antona de dentro do quarto. Antona sai
cambaleando pela impressão. Ele, abstraído, parece quase feliz. No gramofone toca um
acompanhamento de violão para o canto dele.

ANTONA
Ai, meu Deus! O que aconteceu?
ELE
(Cantando o conhecido tango de Gardel)
Sus ojos se cerraron
Y el mundo sigue andando,
Su boca que era mía
Ya no me besa más…
ANTONA
(Espantada ao ver a insensibilidade d’Ele, que canta tangos.) Ficou louco? Esqueceu
que sua mulher está largada no quarto? Não tem compaixão por ninguém?
ELE
(Canta.)
Y ahora que la evoco
sumido en mi quebrando
las lágrimas prensadas
se niegan a brotar
y no tengo el consuelo
de poder llorar
ANTONA
(Retorcendo as mãos.) Por que você fez isso? Por quê?
ELE
Por qué sus alas
tan cruel quemó la vida.
Por qué esta mueca
Siniestra de la suerte…
Quise abrigarla
y más pudo la muerte
ANTONA
Claro, em um momento a polícia estará aqui…
ELE

A ESCOVA DE DENTES 44
Yo sé que ahora
vendrán caras extrañas
con su limosna
de alivio a mi tormento…
ANTONA
Vão arrancar a verdade do senhor! Eu posso atestar a verdade!
ELE
Todo es mentira,
mentira este lamento,
Hoy está solo mi corazón…
ANTONA
Não se iluda, aqui se faz aqui se paga.
ELE
En vano yo alentaba
febril una esperanza.
Clavó en mi carne viva
Sus garras el dolor
ANTONA
Não sei por que o senhor está explicando tudo isso. Vou abrir as janelas e começar a gritar
como louca a todo mundo que passar na rua.
ELE
Y mientras el na calle
en loca algarabía
el carnaval del mundo
gozaba y se reía
burlándose el destino
me robó su amor…

Antona, fora de si, pega o disco de Gardel e o quebra. Em seguida o enfrenta.

ANTONA
(Frenética.) Por que… por que… por que… por que, por quê?

Ele a olha fixamente um momento, quase dolorosamente, e logo explode.

ELE

A ESCOVA DE DENTES 45
Porque sim! Porque tenho cinco milhões de glóbulos vermelhos e ela tem somente quatro
milhões duzentos mil; porque os hormônios dela são distintos dos meus; porque eu calço 42, e
ela 37; porque as lentilhas me dão gases e a ela não; porque eu fumo tabaco escuro e ela claro;
porque eu gosto de mulher e ela gosta de homens; porque eu acredito em Deus e ela também;
porque somos diferentes como o dia e a noite; mas, sobretudo, porque sim, porque sim!
ANTONA
(Voltando a si pouco a pouco.) Era… era tão boa a pobrezinha. Toda Quarta-feira de
Cinzas me dava de presente suas meias-calças rasgadas. Ai, meu Deus! Como o senhor foi
capaz? O que ainda tá fazendo aqui? Com certeza quer me envolver, quer me botar no meio
desse pesadelo… Mas eu vou dizer a verdade! Eles vão acreditar em mim! Eles têm que
acreditar em mim! Eu não sei de nada! Não sei de nada! (Gritando.) Não sei de nada!

Quase todos o refletores se apagam até sobrar uma sombra. Ele focaliza o rosto de Antona
com uma potente lanterna. A luz crua da lanterna acerta em cheio o rosto assustado de Antona.
Ele fala dentro da sombra. Antona está imobilizada. O diálogo é seco e rápido.

ELE
Nome?
ANTONA
Antona nos dias de trabalho. Cuqui nas horas vagas.
ELE
Idade?
ANTONA
E eu vou lá saber…
ELE
Domicílio?
ANTONA
Ao fundo, à direita.
ELE
Profissão?
ANTONA
O que aparecer.

A ESCOVA DE DENTES 46
ELE
Religião?
ANTONA
Homeopata.
ELE
Estado?
ANTONA
Um dia sim, outro não.
ELE
Vítima
ANTONA
A senhora do 36: uma santa!
ELE
Arma do crime?
ANTONA
Rádio transmissor de alta infidelidade.
ELE
Fulcro de lamentável sucesso.
ANTONA
Olha, vamos parar com os palavrões que eu sou decente, tá certo?
ELE
Existem provas de roubo e profanação do cadáver.
ANTONA
(Choramingando.) Eu me visto com a roupa dela porque ela mesma me dava. Se peguei
uma correntinha de ouro ou um anel, foi só para ter uma lembrancinha. Ela era como uma mãe
para mim. Mamãããããe!
ELE
Chega! (Antona para de choramingar.) Um álibi?
ANTONA
Quê?
ELE
Seja objetiva! O que você fez na noite de 25 de julho?
ANTONA
O que o corpo me pedia, senhor delegado.
ELE

A ESCOVA DE DENTES 47
Ah, então a senhora confessa?
ANTONA
Não, sou inocente como um recém-nascido. Posso assegurar que na hora do crime estava
fazendo amor com o senhor enquanto comia um sanduíche e via um concurso pela televisão.
Bem, eu gosto assim, sabe?

A luz do palco se acende novamente. Ele passa a apresentador de TV usando a lanterna como
microfone. Antona, nervosa e sorridente como uma participante. Ambos falam diretamente ao
público. Ele faz as perguntas com um tom brilhante e enjoativo próprio dos apresentadores de
TV.

ELE
Atenção, vou dar a última chance. Se a senhora não responde minhas perguntas, perderá
a grande oportunidade oferecida pela Bic ou Gillete, a única fibra de homologação texilor.
Vamos ver: Quem matou a mulher do apartamento 25?
ANTONA
Hum, hum, o… o… o Manco de Lepanto!
ELE
Tcham tcham tcham tcham. Frio, frio… Quem é o culpado? Sim, adiante, senhorita, por
favor, por favor, adiante, vamos ver quem matou a mulher do apartamento 25.
ANTONA
Caim.
ELE
Tcham tcham tcham. Quase, quase. Pense, pense, que a senhora está sendo vista por 150
milhões de telespectadores através de nosso sistema de televisão. Vamos ver: Quem matou a
francesa do quarto de hóspedes?
ANTONA
Hummm, Benito.
ELE
Não.
ANTONA

La del manojo de rosas.


ELE
Não.

A ESCOVA DE DENTES 48
ANTONA
Meu tio Onofre.
ELE
Não.
ANTONA
(Forçando a concentração.) Hummmmmm…
ELE
Faz mais um esforço.
ANTONA
(Continua pensando com esforço.) Hummmm…
ELE
Chega, pare de forçar a cabeça! Porque Bic ou Gillete pensa por você!
ANTONA
Mas eu peço uma última oportunidade.
ELE
Damos a ela a última oportunidade? Damos a ela a última oportunidade? Bem, damos a
ela a última oportunidade. Quem matou a mulher radio-transistorizada?
ANTONA
Bom, sim… está aqui na ponta da língua.
ELE
Diga.
ANTONA
(Triunfante.) Deixa ver, ai, já sei, o gás líquido!
ELE
Tcham tcham tcham! Sim, sim, sim, sim, sim, sim.
ANTONA
(Sorrindo maliciosamente.) Já sei… Mas era tão fácil.
ELE
Tcham, tcham, tcham, tcham, tcham.
ANTONA
(Empurrando ele em clima de paquera.) O senhor!
ELE
Tcham, tcham, tcham, tcham, tcham. Infelizmente a senhorita perdeu a última
oportunidade. O Jurado está me dizendo que a resposta para a pergunta é: San Inocencio Abad!
1235 a 1303! (Bruscamente, Ele se senta e fala com um tom grave e sacerdotal. A vista baixa.

A ESCOVA DE DENTES 49
As mãos postas. Antona se ajoelha ao lado dele. Como padre.) A senhorita tem algo mais a me
dizer, minha filha?
ANTONA
(Arrependida e envergonhada.) Não, padre, acredito que não. Não, não, padre, não.
ELE
Tem certeza, minha filha? Nada mais?
ANTONA
(Muito envergonhada.) Ai, sim, padre. Falta o mais cabeludo. O cavalheiro me belisca
todos os dias. Nós temos muito cuidado para não pecar, claro. Inclusive, ele busca as partes
mais neutras e menos pecaminosas — os cotovelos, por exemplo —, mas mesmo assim é
completamente desmoralizante. Já beliscaram o senhor alguma vez, padre?
ELE
Sim. Não, não, filha. Não. Não. Não.
ANTONA
Te juro, é terrível. Isso me deixa arrasada. Passei por esse mundo como uma mártir, de
beliscão em beliscão.
ELE
(Começando com tom inquisidor e continuando com um progressivo tom libidinoso.)
Culpados de alta concupiscência… Concupiscência… Concupischencha. (Mimoso,
acariciando o queixo de Antona.) Cocupichencha… Cocupichenchinha… Cocupichenchinha.

Antona reage, morde o dedo dele e fica de pé.

ANTONA
Chega, senhor, que eu não vou seguir com esta comédia. Tudo bem que eu sou um pouco
ignorante e algo diabética, mas isso de guardar seus mortinhos debaixo da cama, não, não, não,
não, não, aí já é pedir demais.
ELE
(Mimoso.) Ai, Antona, não vai ficar cheia de escrúpulos agora.
ANTONA
Não, eu vou avisar a polícia. Conheço um general aposentando que vem correndo assim
que eu dou um assobio.
ELE
Faz isso, eu adoro os generais aposentados!

Antona põe os dedos na boca e solta um assobio penetrante.

A ESCOVA DE DENTES 50
ANTONA
Ah sim, esse general sempre entra pelas janelas quebrando os vidros.
ELE
Temos pouco tempo, então.
ANTONA
Ai, não, não encosta em mim! Não chega perto!
ELE
Ai, Antona! Sim, Antona!

Barulho de vidros quebrando nas coxias. Ele se aproxima de Antona com paixão.

ELE
(Intensamente.) Antona, olha, seu cheiro de detergente me comove, me enlouquece, me
rejuvenesce. Viu, só de me deixar olhar para você pela fechadura da porta eu já fico feliz. Se
me deixar apreciar seu decote com uma lente grande angular teleobjetiva de dois milímetros e
meio, eu morro de prazer, Antona.

Antona se solta do abraço.

ANTONA
Para com isso, senhor, que o cadáver da patroa pode pegar a gente no pulo.

Ele, com mais intensidade e paixão ainda.

ELE
Amarra minhas mãos se quiser. Me enforca, me arranha, me mutila, mas me deixa tirar
essa remela do seu olho.
ANTONA
(Entregando-se.) Chega! Chega! Não posso mais resistir… Eu também sou de carne de
osso… (Desmaiada.) Oh, luxúria, luxúria, aqui estou!
ELE
E que o mundo se acabe ao nosso redor!

Aproximam-se e iniciam uma grotesca paródia da aproximação ou do abraço amoroso. Toda


a pantomima de grotesca incomunicação física se desenvolve seguindo uma música distorcida.
Seria preferível usar música concreta e não eletrônica.

A ESCOVA DE DENTES 51
Dá a impressão de um pesadelo. Esta espécie de absurda luta amorosa frustrada leva a uma
progressão que culminará com a destruição de objetos. Jarras, cadeiras, quadros caem no
chão.

Alguma parede do quarto tombará para trás. Do teto caem objetos diversos que quebram no
chão. O casal está alheio a tudo isso. Ambos, ofegantes e enlaçados, rolam pelo chão e se
separam. Não conseguem falar por um instante. Antona se levanta com dificuldade depois de
um momento e muda seu modos e sua voz pelos de Ela, ou seja, a esposa do primeiro ato. Ele
fala a Ela deitado no chão. Nenhum dos dois parece se dar conta da destruição geral.

ELE
Isabel, Mercedes, Soledad… é realmente necessário que a gente tenha que repetir isso
todos os dias?
ELA
Do que você tá falando, querido?
ELE
Você sabe perfeitamente do que estou falando. É esgotante.
ELA
Minha parte também não é nada fácil. Se pelo menos você pensasse em alguma coisa
nova.
ELE
Isso é o mais assustador. Que sempre tem alguma coisa nova! Para fazer amor, vamos ter
que contratar um assessor.
ELA
Acho que as ideias iniciais não eram ruins, mas é que mandamos tão bem que agora elas
estão praticamente esgotadas.
ELE
O que podemos fazer?
ELA
Nada, vamos deixar as coisas em seu lugar.
ELE
É verdade, se não te estrangulo todos os dias, você não fica tranquila.
ELA
Bom, isso é muito comum. Que esposa decente não deseja ser estrangulada de vez em
quando?

A ESCOVA DE DENTES 52
A ESCOVA DE DENTES 53
ELE
Não, não estou te criticando. Mas também não vai jogar na minha cara que eu tenho
algumas debilidades.
ELA
Não, eu não te critico em nada, só não entendo por que não vive logo com a Antona e
pronto.
ELE
Isso já me passou pela cabeça. Mas só se a Antona aceitar se fantasiar de você. Bem,
vamos deixar cada coisa em seu lugar.
ELA
Nada (Um silêncio.)
ELE
E se a gente fizer amor em latim?
ELA
É uma língua morta.
ELE
E em sânscrito?
ELA
Em quê?
ELE
Em sânscrito. É a língua dos surdo-mudos, não sabia?
ELA
Não, não tinha ideia.
ELE
Podia ter dito isso quando nos casamos.
ELA
Não me atrevi.
ELE
Essa sim foi boa. Estamos feitos! Você não conhece sânscrito.
ELA
Bom, mas conheço umas palavras em aramaico.
ELE
E eu conheço uns slogans de propagando em tcheco.

A ESCOVA DE DENTES 54
ELA
(Apaixonada.) “Cravina el Mutara.”
ELE
(Apaixonado.) “Mirkolavia Elbenia kol.”

Um silêncio.

ELA
“Alaba del Tamara jaín.”
ELE
“Eskoliava prinka Voj.”
ELA
O que aconteceu com você?
ELE
Nada.
ELA
Certeza?
ELE
Sim.
ELA
Comigo também não.
ELE
Que horrível.
ELA
O quê?
ELE
Tudo.
ELA
Não tinha pensado nisso.
ELE
Pois é.
ELA
Ah, vamos deixar de besteira, meu amor. É verdade que sua mãe embalsamada enche um
pouco o saco, que você tá ficando careca e o repolho me dá gases, mas mesmo com tudo isso
a gente vive extraordinariamente bem. Temos nosso apartamento do ladinho do parque de

A ESCOVA DE DENTES 55
diversões. Todas as noites temos à mão um bingo com prêmios, tiro ao alvo, túnel do amor e
surpresas… Que mais podemos pedir?

Ele se aproxima d’Ela e a abraça suavemente afundando a cara em seu pescoço.

ELE
Talvez você tenha razão.

Ele beija o pescoço d’Ela. Começa a soar um som de harpa que sugere a música de carrossel
em um parque.

ELA
Está escutando? É a música do carrossel! É a hora que começa a girar… Os brinquedos
estão começando a funcionar. (Ela beija Ele.)
ELE
Que cheirosa você está!
ELA
(Paquerando.) Sei que você fica louco. É o superdetergente tamanho gigante Bimpo.
ELE
(Carinhoso.) Não fala besteira, querida… Você sabe que só perco o controle com Tersol,
“que brilha em sua cozinha como um sol…”.
ELA
(Impaciente.) Deixa de ser teimoso… “Só Bimpo cheira a Bimpo”.
ELE
“Faz tempo que decidi: prefiro Tersol”.
ELA
(Incomodada.) “Bimpo é mais branco e contém Fenol 32.”
ELE
(Ficando bravo.) Idiota! “Tersol não é um substituto, é o detergente definitivo.”
ELA
Ignorante! Bimpo é a fórmula alemã para a roupa branca do mundo.
ELE
(Gritando.) Tersol branqueia mais!
ELA
Bimpo produz milionários e não precisa esfregar!
ELE
(Uivando.) Tersol é a vida em seu lar!

A ESCOVA DE DENTES 56
ELA
(Uivando.) Bimpo cuida das suas mãos!
ELE
(Uiva com a cara colada na d’Ela.) Tersol!!
ELA
(Uiva com a cara colada na d’Ele.) Bimpo!! (Os dois gritam ao mesmo tempo os nomes
várias vezes. Subitamente, Ela pega um garfo da mesa. Ele, instintivamente, pega uma faca.
Ambos estão frenéticos. Olham-se fixamente nomeando seus detergentes favoritos em voz
baixa. Ambos se agridem de modo selvagem em uma espécie de duelo de morte. Aproveitando
o movimento em falso d’Ele, Ela enterra o garfo em sua barriga. Ele se dobra sobre si mesmo.
Ela, ainda histérica, crava o objeto várias vezes mais no corpo repetindo como uma louca.)
Bimpo, Bimpo, Bimpo!! (Ele cai pesadamente ao chão. Ela o arrasta ao quarto. Sai quase
imediatamente dali com o garfo completamente ensanguentado na mão. Olha o talher
fixamente por um momento, parando no meio do palco.) Essa noite eu sonhei com um garfo.
Bom, isso não tem nada de extraordinário porque “todas as noites” sonho com um garfo…

Ela limpa o garfo cuidadosamente com um guardanapo. Senta-se à mesa e prepara uma
torrada com geleia. Toca a campainha. Ela não liga. A campainha toca novamente.

ELA
Essa noite sonhei com um garfo. Bom, isso não tem nada de estranho porque todas as
noites sonho com um garfo.
VOZ D’ELE
Posso?
ELA
Entra, o cadáver está no lugar de sempre!

Uma pausa. Ele entra cambaleando. Sua camisa branca banhada de sangue. Com uma mão,
aperta convulsivamente a barriga.

ELE
Não, o cadáver não está no lugar de sempre!
ELA
(Levantando-se) Pai!!
ELE
Isabel, é preciso dizer algumas palavras antes de terminar… O mundo deve nos escutar!

A ESCOVA DE DENTES 57
Seus joelhos se dobram e Ele cai no chão, mas ainda tem forças para se arrastar até as luzes
de ribalta. Ela, horrorizada, corre até Ele.)

ELE
(Em um supremo esforço.) Te perdoo por esse dia. Buscamos a felicidade
equivocadamente e fracassamos.
ELA
(Geme.) Sim, nós nos destruímos… Por que matamos sempre os que mais amamos?
ELE
Só… o amor… é fecundo.
ELA
O que será de nós?
ELE
Depois do juízo dos homens… nos levantaremos… de nossos próprios túmulos.
ELA
(Patética.) Somente agora, que já é tarde demais, vejo claramente a verdade: a
incomunicabilidade… a incomunicabilidade… é produzida pelas más condições atmosféricas!
ELE
(A ponto de morrer.) Minha última palavra…
ELA
Sim?
ELE
… é…
ELA
Sim?
ELE
(Em um estertor.) Paz… paz!
ELA
(Contendo as lágrimas estoicamente.) Vou gravar isso em meu coração para não esquecer
nunca mais: paz, paz!
ELE
Espera… não terminei ainda… Minha última palavra é paz… ciência… paciência.
ELA
Oh! É uma palavra simples, reveladora, uma palavra macia como uma mordaça e
tolerável como uma espinha.

A ESCOVA DE DENTES 58
ELE
(Com um fio de voz.) Calainha.
ELA
(Sem olhá-lo.) Espinha.
ELE
Calainha.
ELA
Espinha.
ELE
Calainha.
ELA
Espinha
ELE
Ai, não, calainha.
ELA
(Insistindo.) Es-pi-nha. (Levantando-se e deixando-se levar por sua própria exaltação.)
Obrigada por sacrificar sua vida! Juro que não será em vão. (Ao público e em tom
transcendental.) Se cada um de nós levamos a guerra em nosso próprio coração, como
evitaremos a conflagração mundial?
ELE
(Aumentando o tom de moribundo.) Ah!
ELA
(Exaltada.) No menor cantinho de cada lar está em jogo o futuro da Humanidade.
ELE
(Perdendo o tom de moribundo.) Josefina!
ELA
(Adiantando uns passos em direção ao público.) Quando no segredo de nossa intimidade
não se levantar uma só voz agressiva… o mundo estará salvo!
ELE
(Levantando a cabeça e uivando.) Caladinha!
ELA
(Virando-se com naturalidade.) Quê?
ELE
(Depois de uma pausa e deixando-se cair morto.) Adeus.

A ESCOVA DE DENTES 59
Neste momento, os bastidores que fazem parte do cenário, ou qualquer outro elemento que
tenha sido usado, começam a se mover desaparecendo, uns virados para cima e outros para o
lado. Deslocam-se lentamente. Ficam apenas os móveis. Ao fundo se verá a parede do palco
manchada e cheia de paus e suportes inconclusos. Os móveis e os atores parecem flutuar em
um âmbito incongruente e absurdo. Ela olha ao redor muito desconcertada.

ELA
Adeus. Escuta, escuta, escuta, mas ainda não terminamos. Deixem as coisas como estão.
Não terminamos.
ELE
(Incorporando-se.) Ai, o que está acontecendo?
ELA
Estão desfazendo nosso campo de batalha.
ELE
(De pé.) Todo dia a mesma coisa! (Gritando para as coxias.) Deixem tudo como está,
que não terminamos ainda. (Um silêncio. E depois o último suporte ou elemento retirado.)
ELA
Oh, você deveria reclamar com alguém.
ELE
Sim, um dia desses faço isso.
ELA
(Desolada.) Um dia desses… Não adianta. Além do mais, isso não tinha como durar, era
divertido demais e não está certo.
ELE
O que não está certo?
ELA
Se divertir sem remorso.
ELE
Bom, mas não tínhamos terminado e isso que importa!
ELA
Nunca vi algo mais terminado do que a gente.
ELE
Mas não vão levar meu gramofone nem meus discos velhos. (Vai até a mesa e pega o
enorme fone. Seu aspecto segurando o gramofone é grotesco.)

A ESCOVA DE DENTES 60
ELA
E eu não vou permitir que levem minha luminária chinesa de papel de arroz. (Ele pega
um balão de papel que está pendurado em um canto. Ambos ficam na metade do palco sem
atinar aonde ir com seus respectivos carregamentos. De repente acabam olhando um para o
outro.)
ELE
Você tá ridícula.
ELA
Você tá grotesco. (Neste momento se apagam alguns focos.) Estão apagando as luzes do
nosso teleteatro do amor.
ELE
(Gritando ao fundo da sala.) Não apaguem, que não terminamos ainda!
ELA
(Apagam-se quase todos os focos.) Em pouco tempo estaremos no escuro.
ELE
Como sempre. (Apagam-se os últimos focos. Fica somente um, elipsoidal, no meio do
palco.) Me sinto quase melhor assim, nessa escuridão sem nada ao redor.
ELA
Sim, pelo menos é uma sensação nova que não tínhamos experimentado. Ai, vou embora.
ELE
(Sincero.) Não vá ainda, é importante.
ELA
Para quê?
ELE
Larga esse balão absurdo em qualquer canto e me dá a mão.
ELA
Primeiro você tem que soltar essa vitrola espantosa. (Ambos deixam seus respectivos
objetos no chão.) E?
ELE
Bom, eu estava pensando que talvez não fosse tão difícil…
ELA
O quê?
ELE
Tudo.
ELA

A ESCOVA DE DENTES 61
O que você quer dizer?
ELE
Que talvez se tratasse só de dizer uma única palavra. Uma palavra bem simples que
explique tudo… Uma palavra precisa no momento preciso…
ELA
Uma palavra?
ELE
Sim… eu vou dizer qual!
ELA
(Sincera.) Sim, diz, por favor! (Se juntam no meio do palco sob o único foco elipsoidal.
Suas mãos estão a ponto de se tocar.)
ELE
Bom, eu… (Apaga-se o foco elipsoidal. Escuridão completa. Um longo silêncio
expectante.)
ELA
(Uivando na escuridão.) Merda! Dá um pouco de luz pra gente! (Um longo silêncio
expectante na mais completa escuridão.)
ELA
(Na escuridão e com uma voz sussurrante.) Ah, me dá a mão. Não te vejo. Estou com
medo.
ELE
(Com a mesma voz.) Cadê você?
ELA
Talvez acendendo um fósforo.
ELE
Sim, os círios de nosso último velório.
ELA
Podíamos tentar… (Ambos riscam um fósforo e acendem as velas de dois candelabros
mortuários que não haviam sido vistos no palco, mas que agora estão no chão. O palco nu é
visto com a frágil e tremulante luz dos círios. Ela pega a harpa que estava em um canto durante
toda a peça e Ele, um longo tricô por terminar. Com isso nas mãos, senta-se na cadeira de
balanço. Ela começa a tocar a harpa. Interpreta o “leitmotiv” da obra: o sugestivo e reiterada
música do carrossel do parque de diversões. Ele, sem nem um pingo de inibição ou piada,

A ESCOVA DE DENTES 62
começa a tecer, balançando. Ambos sorriem serenamente. Ela, sem deixar de tocar a harpa.)
O dia foi maravilhoso!

A ESCOVA DE DENTES 63
ELE
Sim, mas não sobrou nada do nosso parque de diversões.
ELA
Só até amanhã, quando inventaremos outro.
ELE
Cada dia é uma maravilhosa caixinha de surpresas com prêmios, um longo túnel do amor.
ELA
Falando sério… como conseguimos sobreviver?
ELE
A quê?
ELA
A tanto carinho assim.
ELE
Somos fortes!
ELA
Invulneráveis!
ELE
Inseparáveis!
ELA
Intoleráveis!
ELE
In-to-le-rá-veis!
AMBOS
In-to-le-rá-veis!

As cortinam se fecham enquanto ele segue tricotando e balançando e Ela continua tocando
harpa.

A ESCOVA DE DENTES 64

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