Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
APRESENTA:
PERSONAGENS: NANÁ
COSTA - 1º ESPOSO DE NANÁ
MIGUEL - ESPOSO ATUAL DE NANÁ
CENA 1
NANÁ (Sem se desviar da leitura) Chegou cedo, querido. Não teve reunião
hoje?
COSTA Reunião?
NANÁ (Sem olhar para o Costa) Você me disse que teria uma reunião e que
chegaria bem tarde. Não se lembra?
NANÁ (Sempre atenta ao livro) Quem não está entendendo sou eu. você até
me mandou ir pra casa da titia... Deixa pra lá! Quer um café?
NANÁ (Levantando-se, sem olhar para o Costa) Está bem, querido. Eu vou
buscar o licor. É de ameixa; o único que temos em casa. Como você não
gosta... ou melhor, não gostava de licor... Volto já.
Naná sai. Costa afasta-se da penumbra. Anda pelo quarto, observando tudo.
Apanha o livro e coloca-se à frente do palco, folheando as páginas. Naná volta
com o licor, cuja garrafa e copos, numa bandeja, são colocados sobre a
penteadeira. Quando Naná volta-se para o Costa, olhando-o de frente...
-2-
NANÁ (Reanimando-se) Não é possível, Costa. Você está morto! (desmaia)
NANÁ (Medrosa) Não está vivo não! Tá bem mortinho. Você é um fantasma!
COSTA Fantasma porra nenhuma! Estou vivo, pomba! Não dá pra perceber?
COSTA Que bosta de motivos? Faz cinco anos que não nos vemos, Naná.
Desgraça? Não posso compreender essa sua reação. Eu pensei...
NANÁ Sinto muito, Costa. Mas a sua volta é a desgraça da minha vida.
COSTA (Revoltado) Eu jamais pensei ouvir tal coisa da sua boca, Naná.
Jamais. Pode me dar uma explicação, pelo menos? Explique e eu vou
embora, para nunca mais voltar.
COSTA E daí?
NANÁ (Choramingando) E agora, com sua volta, vou Ter que devolver
tudinho... Que desgraça!
-3-
COSTA Bem, eu não tenho culpa se não morri...
NANÁ (Agressiva) Pois devia Ter ficado morto, Costa! Todo mundo pensa que
você morreu... Fizeram missa de sétimo dia... Foi tão bonito... E agora
você volta e estraga tudo. (Chora)
COSTA (Confuso) Eu não tenho culpa se andaram por aí dizendo que eu tinha
morrido, droga!
NANÁ Claro que não. Eles não acharam o seu corpo. E como é que eles
poderiam tirar uma fotografia de você morto? Droga!
NANÁ (Irritada) É aquela fotografia que você tirou em cima duma árvore,
imitando Tarzan, seu bobo.
COSTA Ora, Naná, deixe prá lá tudo isso! Eu estou de volta. Isso não é melhor
que tudo?
NANÁ Não!
NANÁ Ora, não seja melodramático! Fazia algum tempinho que você tinha
morrido.
-4-
COSTA Não podia me esperar! Não tinha esperança de me encontrar de novo?
NANÁ Aonde? Só se fosse num centro espírita! Você estava morto, lembre-se!
NANÁ Você pensa que eu sou o que? Alguma debilóide! Ficar esperando por
trezentos anos que o meu marido um dia resolvesse levantar do túmulo?
COSTA (Pensativo) Bem... Talvez você tenha razão... E quem é ele, posso
saber?
COSTA Desgraçado!
NANÁ Ele é industrial. Podre de rico! (Revoltada) Você não podia ter
ressuscitado Costa!
COSTA Eu não ressuscitei, Naná. Eu não morri, Enfia isso na tua cabeça!
COSTA Espera um pouco, Naná. Você não vai me culpar pela sua infelicidade.
NANÁ Ah, não, queridinho! Não vou, não. Exatamente porque, a partir deste
minuto, você vai dar o fora. E boa viagem.
NANÁ Você disse que assim que eu desse as explicações, você iria embora.
COSTA De jeito nenhum. Você pode Ter sido honesta, mas as explicações foram
desonestas.
-5-
NANÁ Como, explicações desonestas?
COSTA Primeiro: Você disse que comprou este apartamento com o dinheiro do
seguro.
COSTA Mas o negócio foi desonesto. Principalmente, porque o seguro foi pago
pela minha morte.
COSTA Segundo: Você disse que se casou a segunda vez. Foi um casamento
desonesto porque estou vivo.
NANÁ E daí?
NANÁ (Ri) Ah, essa é boa! Aqui você não tem nada! Se manda, vai!
COSTA Eu paguei a apólice do seguro durante anos. Logo, você comprou este
apartamento com meu dinheiro. Somos sócios.
NANÁ Sócios coisa nenhuma. Eu não tenho mais nada com você. Adeus!
COSTA Que se dane seu marido! Aliás, o seu marido sou eu. Eu não morri, sua
bígama!
NANÁ (Agressiva) Bígama? Você está morto. Toda imprensa noticiou a sua
morte, meu caro. E eu casei de novo, legalmente.
NANÁ Fim de papo digo eu. (Empurrando o Costa) Vai, vai se mandando!
COSTA (Irritado) Não empurra. Estou começando a ficar puto com essa situação.
-6-
NANÁ (Também muito irritada) Pois eu já estou ficando puta faz tempo!
NANÁ Eu? Foi você quem criou esta situação, queridinho. Resolva você!
COSTA Não quero saber. Você é minha mulher e este apartamento também é
meu.
COSTA Quero!
COSTA Muito bem. Eu já sei o que vou fazer. É assim que você quer, não é?
COSTA Pretendo, não. Eu vou fazer, minha querida. Amanhã cedinho, depois de
me levantar do primeiro banco de jardim...
COSTA Vou a seguradora e conto tudo. Depois, vou aos jornais. E ao Cartório de
Registro Civil. E a Polícia!
COSTA É claro que vou me cansar. Me cansar de meter a boca da minha ex-
mulher!
NANÁ (Mudando de tática) Ex? Mas eu ainda sou sua mulher, Costa! (Tenta se
aproximar, com um sorriso malicioso).
COSTA (Interrompe agressivo) Faz sim! Mas trato é trato! Bem, vou me
despedindo...
-7-
NANÁ (Agarra-o) Você não tem para onde ir!
NANÁ De jeito nenhum. Afinal, foi com a sua morte que eu comprei este
apartamento.
COSTA Pois pode ficar com ele, se a seguradora deixar. Adeus! (mas não sai do
lugar) Adeus, já disse! (Naná está estática) Porra, você não vai me
impedir?
NANÁ (De imediato) Ah, sim! (dramática) Não, querido! Fique! Este é o teu lar.
Não nos abandone, amor da minha vida!
NANÁ Com você aqui dentro? Ele fica violento quando sente ciúmes.
NANÁ Ora, não vamos recomeçar. O mar não está pra peixe.
COSTA E o pior é que a isca sou. É ele (Aponta prá porta) quem tem a vara! (A
campainha soa com insistência).
COSTA Onde?
-8-
COSTA Tá bem. (corre em direção a saída; volta) E onde fica o quarto da
empregada?
NANÁ Vá logo, homem. Ela está de folga, hoje. Rápido, ou ele derruba a porta!
Costa corre para fora do palco. Naná, ajeitando-se, dirige-se para o lado
contrário à saída de Costa. E volta em companhia do Miguel.
CENA 2
MIGUEL Não pensei encontrá-la em casa, querida. Foi uma surpresa. Você não
ia à casa da sua tia?
NANÁ (Nervosa) É... Eu ia... (Disfarçando) Mas me deu uma dor de cabeça...
NANÁ Sim...
MIGUEL Pois é, ainda bem que a reunião demorou pouco. Não via a hora de
chegar em casa. Tomar café?
MIGUEL (Tira o paletó, jogando-o sobre a cama) Se não tem café, paciência.
Aliás, não devo beber café hoje. Estou um bocado irritado.
-9-
MIGUEL Pois é. Disse que você era muito boa. Quase lhe quebrei a cara. Só não
o fiz porque o presidente estava lá.
MIGUEL Você sabe que eu só elogio quando considero a situação dos fatos.
MIGUEL Pois ouça: estávamos num bar tomando um café quando apareceu um
garotinho. Pedia esmolas, para tomar um lanche. Eu não lhe dei nem um
tostão... Acho que ele deveria se ocupar com alguma coisa para ganhar
dinheiro...
MIGUEL Você sabe o que eu penso sobre dar esmolas. Ah, mas o Presidente
deu. O tal garoto tinha algum dinheiro nas mãos. O Presidente então,
bondoso, contou pacientemente os tostões do menino e completou com
oitenta centavos o dinheiro certo para um café. Foi emocionante.
MIGUEL Só isso, não. Era a quantia que o menino precisava para completar o
dinheiro.
NANÁ Nossa! E por que o Presidente não deu o dinheiro todo, para um bom
lanche?
- 10 -
MIGUEL A governador do Estado.
MIGUEL São ossos do ofício! Não sei e pronto! (Caminhando) Eu vou ao quarto
da Joana...
MIGUEL Não se preocupe, querida. Eu sei onde eles estão. Pode deixar. Num
instantinho, estarei de volta. (E sai).
NANÁ Ai, meu Deus! Que confusão. Por que esse desgraçado foi aparecer logo
agora. O Miguel é terrível... Pode até matar o Costa. Aí o desgraçado
morre de verdade.
Miguel reaparece, com uma pasta na mão. Sob os olhares surpresos de Naná,
coloca a pasta sobre a cama, abre-a e retira uns papéis.
- 11 -
MIGUEL (Bem calmo) Eu tenho que levar esses papéis amanhã. É uma
documentação confidencial.
MIGUEL Isso mesmo. Uma documentação como esta pode me deixar numa
situação bem difícil. Imagine isso aqui nas mãos de um inimigo. Eu
estaria perdido.
MIGUEL Não é uma questão de desonestidade, Naná. Todo mundo tem suas
Pequenas fraquezas... Não se preocupe querida.
MIGUEL Claro.
MIGUEL O quê?
MIGUEL Não seria muito fácil... A Joana, não sei porque, trocou-a de lugar...
MIGUEL Júlia a encontrou pra mim. Aliás, bem que você podia Ter me avisado...
MIGUEL De Júlia. Eu não sabia que a irmã de Joana viria passar esta noite em
casa...
NANÁ Complicar?
- 12 -
MIGUEL (Perturbado) Casal? Quem falou em casal?
MIGUEL Ah, sim . O casal, quer dizer, eu e a Júlia. Você não estaria em casa... A
Joana de folga... O que iriam pensar as pessoas? ...
COSTA (Aparece, vestido de mulher - com peruca e tudo; traz uma bandeja com
duas xícaras de café) Olha o cafezinho! (Naná desmaia) Nossa, como a
patroa da minha irmã é sensível!
MIGUEL (Larga os papéis e, afoito, tenta reanimar Naná) Querida! O que está
acontecendo com o meu amorzinho?
COSTA Eu quero saber é se vão ou não vão tomar o café. Estou cansada de
ficar com esta bandeja na mão.
COSTA Minha mãe me ensinou a fazer café. Eu sempre fui muito dedicada às
coisas da cozinha. (dá uma olhada nos papéis sobre a cama): Aliás,
minha avó também cozinhava muito bem. Quanta papelada, "seu"
Miguel. Era isso que estava naquela pasta?
NANÁ (Dissimulando) É... Uma dor de cabeça muito forte... Chego a desmaiar.
MIGUEL Júlia, não é hora para brincadeiras. Precisamos cuidar bem dela. Afinal,
ela é a patroa da sua irmã...
NANÁ Eu me cuido sozinha, podem deixar. Aliás, era muito bom que vocês
dois deixassem de se preocupar tanto comigo.
- 13 -
MIGUEL Mas eu a amo, Naná.
MIGUEL Viu, Naná, que simpática é a Júlia? Ela também a ama. Nós dois a
amamos intensamente.
MIGUEL Pois enquanto eu vou comprar cigarros no bar aí em baixo, a Júlia vai
me fazer um favor. Telefone pro doutor Maurício. O número do telefone
está na agenda, lá na sala. Peça que ele venha imediatamente examinar
a minha Naná. (Põe-se de saída)
NANÁ (Preocupada) Não tem necessidade, Miguel. Olha, a dor até já passou.
MIGUEL (Saindo) De jeito nenhum, querida. Vamos, Júlia, faça o que lhe pedi,
imediatamente. (Sai)
COSTA Se ele gosta tanto de você, por que ele mesmo não telefonou pro tal
médico?
NANÁ Fico impressionada com o seu humor num momento como este.
NANÁ Deixe de ser ridículo, Costa. Que idéia maluca foi essa de se vestir de
mulher?
COSTA Dizem que todo homem tem seu lado feminino. Até já cantaram isso
numa música...
COSTA Não foi bem pra cabeça, queridinha. Foi mais pro bolso, sabe?
Atualmente, estou sem grana nenhuma...
- 14 -
NANÁ (Desconfiada) Não fique tramando coisas. Acho melhor você ir pensando
num jeito de se mandar daqui, antes que na coisa fique preta.
COSTA A coisa já tá preta. E eu quero ver como é que você vai se sair desta.
NANÁ Bosta! Nunca pensei em coisa parecida. Tá vendo o que você fez? Vou
acabar ficando louquinha.
COSTA Só quero que saiba duma coisa. Vou tentar quantas vezes forem
necessárias pra te reconquistar. Quero você de volta.
COSTA Não é não. Você foi minha mulher. E será de novo. Vou provar pra você
que sou melhor que esse calhorda do Miguel.
COSTA (Voltando a imitar mulher): Bem, vou para a cozinha terminar o meu
serviço... (Começa a sair; olha para os papéis sobre a cama, na
passagem...) Quanta papelada, dona Naná! (e sai).
CENA 3
Naná recolhe os papéis, guardando-os na pasta. Apanha a pasta e a
Coloca sobre a penteadeira.
MIGUEL (Voltando à cena) Você me deixou tão preocupado, que fui de chinelos
ao bar. Sorte, querida. Se perco tempo pondo os sapatos, encontraria o
bar fechado. (Abre o maço de cigarros) Sabe, Naná, acho Júlia uma
simpatia. Tão prestativa!...
- 15 -
MIGUEL (Rindo) Você pensou que eu estava dando em cima dela. Foi realmente
muito divertido...
NANÁ Eu nunca entendi como ela veio parar aqui, no nosso apartamento,
exatamente na noite em que fui visitar titia.
NANÁ Você já me explicou... Só não entendo por que o tal amante marcou
encontro com ela aqui...
NANÁ Amigo que nunca o procurou. Que não consta da sua agenda. Que você
nem se lembra direito o nome dele.
MIGUEL (Beija Naná) Que mulherzinha preocupada com seu maridinho! Ah, por
falar em preocupação, será que a Júlia já telefonou para o Maurício?
Costa retorna ainda vestido de Júlia; traz uma mala de viagem às mãos.
MIGUEL Não vá. Fique aqui esta noite. Joana não virá e você poderá dormir na
cama dela...
NANÁ Pode ir, Júlia. (Para Miguel) Deixe que ele vá.
- 16 -
MIGUEL É só um exame preventivo...
NANÁ Está bem, Miguel. Se você acha que estou doente e que a vinda do tal
médico é importante, tudo bem. (Pequena pausa) O empresário voltou
hoje.
MIGUEL (Grave) Você não vai pensar nada. Já discutimos esse assunto.
MIGUEL Não tem tempo nenhum. Você agora é minha mulher e não se toca mais
nisso.
NANÁ O meu... falecido marido não se importava com o meu trabalho.
NANÁ (Agressiva) Não fale assim dele. Ele não era gigolô coisa nenhuma. Era
um homem bom, carinhoso... E compreensivo o que você não é.
- 17 -
NANÁ Não volto porque não posso. Eu sonho com ele quase todas as noites...
Tenho a sensação que ele está ao meu lado, na minha cama...
NANÁ É assim que você se preocupa comigo? Sujando o chão desse jeito?
MIGUEL Aquele calhorda era um duro. Com ele você vivia num barraco...
MIGUEL Pois trate de matá-lo. Agora, você é só minha. (A campainha soa) Deve
ser o médico. (Sai).
NANÁ (Apanha um licor, pondo-se a bebê-lo) Mas essa agora. Ter que aturar
um médico.
- 18 -
Naná volta-se e, ao ver o Costa, desmaia. Ambos correm para socorrê-la.
MIGUEL Nenhum, amorzinho. O doutor Castro deixará você boa logo, logo.
MIGUEL (Para Naná) Calma, Naná! O doutor Castro nada tem a ver com nossos
problemas... (para o Costa) Está vendo, doutor? Acho que são
alucinações. Agora, o senhor é o problema...
COSTA Senhor Miguel, diga-me: que tipo de alucinações dona Naná tem?
MIGUEL Bem... Hoje, por exemplo, lembrou-se do finado marido... Disse-me que
sonha com ele todas as noites...
COSTA (Feliz) Não, de jeito nenhum... Eu sou um médico... Preciso saber das
coisas... íntimas...
MIGUEL Acho bom o senhor dar um jeito nessa doença, doutor. Não gosto de ver
minha mulher sonhando com alguém...
- 19 -
NANÁ (Tentando "quebrar" a discussão) Sim, ele está vivo somente na minha
lembrança...
COSTA Está vendo, senhor Miguel? É assim mesmo que ficam quando estão
perturbados. É sintomático, senhor.
MIGUEL Eu já tinha dito isso. Aliás, eu já havia percebido algo de errado nesta
noite...
COSTA Gravíssimo!
NANÁ (Hesita um pouco, põe-se pensativa sob os olhares curiosos dos dois, e
muda de tática) Está bem. Se é isso que vocês querem... (Fica em pé,
de costas para a platéia e de frente para os dois e tira a camisola sob os
olhares orgulhosos do Miguel e cobiçadores do Costa). Pronto, doutor.
Pode me examinar à vontade.
- 20 -
MIGUEL (Meio desconfiado) Sem, sim... tá certo...
COSTA (Vai apalpando todo o corpo de Naná) Aqui não tem nada... Aqui
também não... não... também não... (Toca os seios, Naná faz cara de
quem ta gostando) Aqui tem! E como tem!
MIGUEL Condignamente?
COSTA Condignamente...
MIGUEL Só mandei chamá-lo porque não quero ter responsabilidades com uma
eventual crise orgânica de minha mulher.
MIGUEL Força de expressão? O senhor foi bem claro, doutor. E não era hora
para força de expressão.
- 21 -
MIGUEL Não exatamente... Mas o que é meu, é meu.
COSTA Bem, certeza eu não tenho. Mas não... sinto minha mulher há muito
tempo...
MIGUEL Não sente? Por isso... procura sentir suas pacientes, não é doutor?
COSTA Não é bem assim. É que todos os corpos passaram a ser iguais para
mim. Eu os examino pensando na minha mulher...
COSTA
E NANÁ (Juntos) Bolinação?
NANÁ Sabe, doutor, o senhor tem as mãos tão macias quanto às do meu
falecido marido.
COSTA Deixe ela, senhor Miguel. São os efeitos do delírio... E daqui há pouco
quem vai delirar sou eu...
MIGUEL Mas é claro que deve dizer. Preciso saber o que ela tem, oras!
- 22 -
COSTA É a conclusão que cheguei. A crise orgânica que o senhor temia é essa.
NANÁ Miguel tem tantas reuniões noturnas, que acabam tão tarde...
COSTA Eu não tenho que compreender nada. Sua mulher é quem tem que
compreendê-lo. Só que eu acho que ela não está muito disposta a
compreender, senhor Miguel. Bem, se me dão licença...
COSTA Se ele morreu, problema seu. Vire-se! Não posso fazer nada... Por
enquanto. (Vai saindo).
- 23 -
CENA 4
NANÁ (Visivelmente irritada, desliga o toca-fitas) Lógico! Não foi no teu corpo
que ele tocou.
NANÁ (Decidida) É pra irritar mesmo. Pelo menos, depois de tanto tempo, eu
pude sentir mãos de homem me acariciando...
MIGUEL (Quase fora de si) Pára com essa conversa, ou te parto a cara, sua puta!
NANÁ (Decidida) Vai bater mais uma vez? Que bom, Miguel. É só assim que
posso sentir sua mãos em cima de mim. (Miguel "murcha", sentando-se
de novo na cama) Por que você não me pega nos braços como fazem os
maridos? Hein? Me leva pra cama! Me consome! Me faz sentir mulher.
Por que não, hein? Você é um brocha! E ainda acha ruim que eu sonhe
com o meu marido. Aquele sim era homem. Eu vibrava nas mãos dele.
na língua dele. Nós nos consumíamos, como dois verdadeiros amantes.
Era sexo que fazíamos, Miguel. Sexo. Não esses atos mecânicos que
você propunha só pro teu prazer. Por isso é que você perdeu a vontade.
MIGUEL Bobagens.
NANÁ Não calo, não! É pra você saber o quanto te odeio! Só estou contigo
Porque me acostumei com o teu dinheiro.
- 24 -
Pequena pausa. Naná senta-se na cama, ao lado do Miguel. Ambos estão
pensativos, cabisbaixos. Até que...
MIGUEL É pouco, Naná. Quero chegar a presidente. Você já pensou ser a esposa
do presidente das indústrias...
MIGUEL Um homem e tanto! Mas está para deixar o cargo. Tem idéias de se
preparar com bastante antecedência para a campanha política...
COSTA Deus esteja convosco e muito mais comigo. (Naná percebe o Costa e,
sorrindo, se aproxima) estou aqui de passagem. Aliás, todos nós
estamos de passagem.
NANÁ Estou feliz por ter vindo Padre. Chegou bem na hora.
- 25 -
MIGUEL Você acha, Naná, que esta hora da noite é boa hora para um padre nos
visitar?
NANÁ É que o diabo estava querendo fazer a minha cabeça, quando o senhor
apareceu, Padre.
COSTA Mas eu não vim aqui até aqui para presenciar as brigas do casal.
COSTA Nem mas, nem... mas. Estou aqui recolhendo uns santinhos que foram
distribuídos na missa de domingo passado...
MIGUEL Está bem, padre. Não precisa dar sermão por causa disso... Na
realidade, eu nem ligo pro relógio...
- 26 -
MIGUEL (Bondoso) Eu o corrigi.
COSTA Mas como eu ia falando, nos santinhos estava impresso que o Santo
Bento tinha morrido.
COSTA Pois eu falei errado! O Santo Bento não morreu, acreditem. O Santo
Bento Costa, graças a Deus, está bem vivo!
MIGUEL Narcisismo?
COSTA É que o Santo Bento é meu xará. É como se u fosse ele, entendeu?
COSTA Também não foram na missa de domingo, estou certo? (Miguel e Naná
confirmam, com gestos) É por isso que estão num inferno. (Para Naná)
Filha, você precisa freqüentar mais a igreja. Se confessar mais...
- 27 -
COSTA Todos nós temos, meu caro. E ela tá precisando conhecer a minha
sacristia. É uma pecadora que precisa de absolvição.
MIGUEL Pecadora?
COSTA Depois de cinco anos, é como se fosse uma pecadora nova, entendeu
filha?
NANÁ Hein? Ah, sim... Eu me lembro do padre Bento... Desde que meu finado
marido morreu, nunca mais fui à sacristia do padre Bento.
MIGUEL (Depois de alguns segundos, ri) Até que a piada foi boa.
COSTA Meu caro, as igrejas são feitas somente com tijolos e cimento. Elas
podem ser grandes ou pequenas, dependendo do coração das pessoas.
Eu, por exemplo, tenho uma enorme igreja dentro do meu peito.
MIGUEL Bem, o senhor já viu que não temos os santinhos... Não acha que está
na hora de nos deixar descansar?
NANÁ Oh, não! Ainda é cedo... Quem sabe o padre gosta de licor...
- 28 -
COSTA Mas vou começar uma agora.
COSTA Já lhe falei sobre os relógios! (para Naná) Vem, filha, tenho que benzer
você.
COSTA Então não enche o saco! Vem, Naná, o mal está enraizado em você.
Vem pros braços do profeta.
MIGUEL Bem, padre, estou nos limites da minha paciência. Tudo bem, o senhor
veio buscar os santinhos... Benzeu minha mulher... mas isso não lhe dá
o direito de... de... exagerar nos fatos.
- 29 -
MIGUEL (Nervoso) Deixo não! Pronto. Já me encheu o saco. Chega aqui tarde da
noite, invade a minha casa e, com conversa fiada de benzimento, fica
passando a mão na minha mulher!
COSTA Não quero licor, obrigado. Senhor Miguel, aceite um conselho: Cuidado
com os chifres do concorrente na sua cabeça. (Sai)
MIGUEL Que padrezinho mais atrevido! Assim que tiver tempo, vou à paróquia
queixar-me dele. Diabos!
MIGUEL Que Deus me perdoe? Não fiz nada de mal. Apenas não gostei do jeito
desse padre. Se é que era mesmo um padre... Tenho minhas dúvidas.
Aliás, estou tendo muitas dúvidas nesta noite. É muito pra minha cabeça.
(Movimentando-se) Acho que vou tomar um banho. Pra refrescar a cuca.
NANÁ (Já refeita das emoções) Não acha que é um pouco tarde?
MIGUEL E daí?
NANÁ Logo você terá que ir pro escritório... O tempo passa rápido...
MIGUEL (Olhando a pasta) E por falar nisso, não posso esquecer da pasta. Logo
mais tenho uma reunião e os documentos são importantes...
NANÁ Hoje, depois que o empresário saiu, também participei de uma reunião.
- 30 -
MIGUEL (Interessado) Reunião? De que?
NANÁ Não fale assim. A mulher nunca esteve tão bonita como agora.
NANÁ Não é bem assim. Os produtos de beleza servem para realçar a beleza
feminina. E olhe que tem homens usando esses produtos...
MIGUEL (Decidido) Muito bem. E pra que fim você participou dessa reunião?
NANÁ Por que você está rindo? Antes de ser dançarina, eu fui vendedora. E
me saí muito bem.
MIGUEL (Irônico) Então por que mudou de profissão, amorzinho? Por que vender
outra coisa dá mais dinheiro que...
NANÁ (Interrompe, agressiva) não seja irônico, Miguel. Mudei porque não
ganhava nem pra condução.
MIGUEL E essa nova merda vai lhe render o que? Isso é besteira. Você não
precisa disso para viver.
NANÁ Claro que não preciso. Você me sustenta! Só que eu não vivo, embora
sobreviva.
NANÁ Não é não. É possível a gente sobreviver sem viver. O que não é
possível é viver sem sobreviver.
MIGUEL (Irônico) Muito bem, senhora filosofia, explique isso de maneira que este
humilde imbecil entenda.
- 31 -
NANÁ Por exemplo: Há doentes que ficam ligados a máquinas que os fazem
sobreviver. Eles respiram, alimentam-se de soro... Mas não vivem. Viver
é plenitude da sobrevivência, Miguel.
MIGUEL Ridículo!
NANÁ Eu estou presa à máquina que me faz sobreviver. Essa máquina é você.
E você está preso à máquina dos seus negócios... Mas não vivemos
Miguel. Apenas sobrevivemos.
MIGUEL Você está completamente maluca. Aliás, de nada serviu a vinda daquele
médico. Mas assim que eu der uma adequada esculhambação no
Maurício, vou pedir que examine você pessoalmente. Deve haver algo
de errado com você, não é possível!
NANÁ Nem precisa ser médico para ver que estou em plena sanidade física e
mental.
NANÁ (Meiga) Se você se aproximar mais de mim, vai perceber que não é bem
assim. Até que gostaria de te fazer feliz...
NANÁ Você sabe que quase não vejo televisão... O que estou dizendo é
sincero.
NANÁ Não sei... Só sei que nas últimas horas tenho pensado muito em nosso
casamento.
NANÁ Apesar da sua ironia, são horas de reflexão, sim senhor. Estou
comparando passado e presente. Qual será o melhor?
MIGUEL O presente, minha cara. O presente, que é mais rico! E não cheira a
defunto.
NANÁ (Irritada) Vá, Miguel! Vá tomar o seu banho. (Irônica) Nada como um
banho frio numa noite quente como esta!
MIGUEL (Olha, por instantes, para Naná, furioso; depois...) Vá à merda! (E sai).
- 32 -
CENA 5
NANÁ Não.
MIGUEL (De dentro) Pois está. Temos que chamar alguém para consertá-lo
amanhã, logo cedo.
NANÁ Hoje, Miguel. Já são três horas da manhã! (examinando os papéis) Mas
são cartas. Muitas cartas! Que diabo de cartas são estas?
Sorrateiramente, volta o Costa, desta vez como encanador. Assusta Naná que,
absorta nas cartas, não tinha notado a sua presença.
COSTA Exatamente.
- 33 -
NANÁ Com você. O Miguel ainda vai desconfiar...
NANÁ Te mata! E eu não quero que isso aconteça. Não quero que você morra!
NANÁ (Interessada) Me conta, como foi que você não conseguiu morrer?
NANÁ É! Conta!
COSTA (Confuso) Bem... Não consegui morrer porque consegui me salvar, não
é?
NANÁ Sim, mas como aconteceu? Ficou esse tempo todo sem dar notícias...
COSTA Quando o ônibus caiu no rio, consegui sair pelo vidro de trás. Acho que
só eu me salvei por ali. Apesar de muito ferido, me agarrei num pedaço
de madeira. Acho que era uma parte do ônibus, não sei.
COSTA Pelo jeito, naveguei naquele pedaço de madeira por muito tempo. Eu me
lembro que quando o ônibus despencou, estava amanhecendo. E
quando os pescadores me tiraram do rio, já era quase noite.
COSTA De que jeito? Não havia um telefone, nada. Tudo que ia para lá era de
avião. O exército ajudava no transporte de comida, remédios... É o fim
do mundo, se quer saber.
- 34 -
COSTA Por duas razões: porque eu tinha uma dívida com a aldeia e porque não
queria deixá-la preocupada.
COSTA (Interrompe) Afinal, não é sempre que se pode arranjar um marido rico,
não é?
NANÁ E a viver.
NANÁ Nada que você entenda profundamente... (Ouve-se a voz do Miguel: "A
água está uma delícia, Naná. Por que não vem tomar um banho?") Você
não compreenderia, querido. (Para o Miguel) Não estou com vontade!
(Para o Costa) Eu amo você, mas estou acostumada com o dinheiro
dele.
COSTA Inspeção de rotina, senhor. O senhor não pede, mas a gente vem.
MIGUEL (Irritado) Ninguém pediu a sua opinião. Fique com a boca calada!
- 35 -
COSTA A sua esposa tem razão, senhor.
MIGUEL Essa tal inspeção não poderia ser feita durante o dia?
MIGUEL Merda!
NANÁ Eu acreditaria.
MIGUEL Está bem. Vá fazer o seu serviço. E ande logo. Quero dormir.
MIGUEL Está tudo muito estranho, Naná. Não é normal o que está acontecendo
nesta casa. Aquele médico me deixou dúvidas...
MIGUEL Sim, eu sei... Mas e o tal padre Bento? Muito estranho para ser um
padre de verdade... E agora, esse encanador... Visita de inspeção, de
madrugada.
- 36 -
NANÁ Você sabe que esses operários são esquisitos mesmo.
MIGUEL Logo que eu sair, pela manhã, vou procurar o síndico e reclamar. Eu não
posso admitir uma inspeção de rotina a esta hora da madrugada. Aí tem
coisa, Naná!
NANÁ Você podia tê-lo proibido de fazer o serviço. Você é o dono da casa.
MIGUEL É, podia. Mas não o fiz por uma razão muito simples: Não quero dar
motivos para o síndico andar por aí dizendo que eu atrapalho os serviços
da responsabilidade dele.
NANÁ Ora, Miguel, isso é bobagem... Você tem o direito de autorizar ou não
um serviço em sua casa...
NANÁ Porcaria?
MIGUEL Não me conformo com a sua burrice. Estou lhe oferecendo uma
cobertura, com piscina, salão de festas... E você despreza tudo isso
porque esta droga foi comprada com o seguro do ex marido. Não dá pra
entender.
MIGUEL (Enquanto Naná ri) Mola do meu injetor? Que diabo é isso?
MIGUEL (Naná ri mais ainda) Mas isto é um apartamento! (para Naná) E pare de
rir como uma idiota! (Para o Costa) A caixa que serve minha casa, serve
todas as outras deste prédio.
- 37 -
COSTA Eu me refiro a sua mola particular. Sobre o seu vaso sanitário existe uma
pequena caixa d'água, senhor. E o injetor serve para jogar para fora a
água dessa caixa.
COSTA Essa caixa é embutida, senhor! Mas a sua mola é aparente. Basta o
senhor tirar a toalha para vê-la! (Naná cai na gargalhada).
MIGUEL (Para Naná) Chega, Naná. Sua risada está me irritando! (Para o Costa)
O senhor não pode dar um jeito nessa... mola?
MIGUEL Costa? Eu já ouvi esse nome antes... Escuta, não dá pra arrumar essa
mola?
COSTA Sua mola não tem jeito. Seria preciso trocá-la por uma mais nova.
COSTA Desculpe, senhor, mas a sua mola é bem velha. Pra função que ela se
destina, só as novas funcionam direito, Bem, nada mais a fazer, vou
saindo. (Põe-se de saída).
- 38 -
COSTA Oh, não é comigo, senhor. Acerte com o síndico, logo pela manhã. (Sai).
MIGUEL (Espreguiçando-se, aliviado) Bom, depois de tudo, nada como uma boa
noite de sono! Vou pôr o pijama e cama!
MIGUEL Às oito, querida! Não preciso sair muito cedo. A reunião está marcada
para as dez... (Sai).
CENA 6
MIGUEL Tomara que você tenha razão. Que seja mesmo coincidência. Não gosto
de ser provocado.
NANÁ Nunca mais vi aquele porteiro. Não sei por onde anda...
MIGUEL Ele não tinha o direito de me jogar pra fora da boate. Nem de me
empurrar daquele jeito. Me pôs a nocaute.
NANÁ Você o provocou, Miguel. Estava bêbado! Você disse na cara dele que
poderia comprá-lo na hora que bem entendesse.
- 39 -
NANÁ Força de expressão? Você chegou a esfregar dinheiro no nariz dele. Foi
isso que o irritou. Por isso ele te bateu daquele jeito.
NANÁ Sem preliminares?... O que você sentiu quando o doutor Castro estava
me examinando?
NANÁ Só isso? Não ficou excitado? Dizem que os maridos se excitam quando
observam suas mulheres serem acariciadas por outro homem...
MIGUEL Bobagens...
NANÁ Tenho lido muito sobre isso. Tem umas revistas que dizem tudo. Sem
papas na língua. São revelações de atos sexuais.
NANÁ Eu fico excitada quando leio esses casos. Menage à troi... Swing... Será
que troca de casais é divertido?
MIGUEL É uma blasfêmia contra Deus. Isso é coisa do diabo! O mundo vai
acabar, querida. Como Sodoma e Gomorra. Vamos virar todos estátuas
de sal.
- 40 -
NANÁ Hum, você já imaginou que delícia? Uns lambendo o salgadinho dos
outros?
MIGUEL Ridículo!
NANÁ Ridículo, mas você vive comprando essas revistas. Só porque tem
mulher nua? Quer que eu fique nua?
NANÁ (Senta-se na cama) Eu faço poses, como as moças das fotos, quer?
MIGUEL Não!
NANÁ Olhe, vamos fazer uma coisa: eu fico nua, faço poses e você imita um
fotógrafo, tá legal?
MIGUEL Não, já disse! E depois, não estou mais na idade de ficar brincando de
fotógrafo. Muito menos de madrugada!
NANÁ (Aborrecida) Droga! O que eu posso fazer com um homem que está com
a mola quebrada? Ah, mais eu vou tentar. E é agora!
NANÁ Não tem jeito. Droga! No tempo do meu finado Costa era bem diferente.
(Desliga o toca-fitas) Nós dois brincávamos muito, como duas crianças.
Era tão gostoso... (Deita-se). A gente corria um atrás do outro. Esconde-
esconde... Não tinha essa frescura de idade e horários... Que pena!
Acho que acabou...
COSTA Não faça perguntas! Aqui quem faz perguntas sou eu! Vamos, encostem
na parede, rápido! (Naná e Miguel obedecem) De costas para mim,
rápido! Qualquer movimento em falso, eu mando bala, entenderam? Vou
fazer uma revista para saber se estão armados.
- 41 -
COSTA Eu não sou sargento, cretino! Sou cabo. Cabo Costa, para ser mais
claro!
MIGUEL Não acha que está demorando muito nessa revista, cabo?
COSTA Cale a boca! Suspeito não fala nada e nem faz perguntas!
COSTA Não é preciso. Você não seria tão imbecil a ponto de estar dormindo
com uma arma.
COSTA Eu quero saber onde está ele? Onde você o escondeu? Vamos,
responda!
COSTA Não, madame! Meu papel tem que ser assim. Esse desgraçado tem que
confessar!
COSTA Você sabe, "seu" merda! Sabe muito bem. E vai me contar direitinho o
que fez com ele.
- 42 -
NANÁ (Irônica, rindo) Força, Miguel. Força!
MIGUEL (Atônito) Deve haver algum engano... O senhor, com essa arma
apontada pra mim, ainda vai fazer besteira.
MIGUEL Cala a boca, Naná. Olha, seu cabo, eu sou um homem honesto...
COSTA E daí?
COSTA Você não sabe? Você é cúmplice do cara. Divide a grana com ele. E
ainda diz que não sabe?
MIGUEL (Apavorado) Olhe, seu cabo, confesso que tenho uma coisinha pra
contar pro senhor...
- 43 -
MIGUEL Havia um sujeito que trabalhava como porteiro. Ele não gostava de mim,
porque eu... gostava de humilhá-lo na frente dos outros...
MIGUEL Não suportei tanta humilhação. No dia seguinte, contratei dois caras. Eu
só queria que eles dessem uma lição no tal porteiro. Mas eles acabaram
matando o pobre homem... O senhor sabe, essa gente é muito violenta...
(Naná esconde o rosto com as mãos, chorando) Eu não tive culpa...
Gastei muito dinheiro para mandá-los pra fora do país...
COSTA Já vi que você não é o sujeito que estou procurando. É muito covarde
para o meu gosto!
COSTA Sou e não sou. Mas isso é uma outra história. (Põe o revólver na
cintura).
MIGUEL Nada, Naná. O seu cabo vai embora e pronto! Não é seu cabo?
MIGUEL (Descobre o olhar do Costa e olha rápido para a pasta) Oh, a minha
pasta!
MIGUEL (Num gesto rápido e infantil, agarra a pasta e abraça-a ao peito) Não,
seu cabo, por favor!... São coisas particulares...
COSTA Está bem. Não vim aqui por isso. (Põe-se de saída) Desculpem a
invasão... (Sai).
- 44 -
MIGUEL Até mais, seu cabo. Acho que ainda nos veremos.
Miguel corre para a janela. Olha bem, por instantes. Depois, desconfiado...
MIGUEL Engraçado, não há viva alma na rua... Nem carro de polícia... Estranho...
Muito estranho...
NANÁ (Afastando-se) Você e o seu maldito dinheiro! Compra tudo, até a vida
das pessoas.
MIGUEL (Procurando acalmá-la) Olhe, querida! Vamos esquecer isso, tá? vamos
combinar uma coisa: eu a levo ao médico, logo cedo. Depois, vamos dar
um passeio de carro, só nós dois. Dispenso o motorista, tá bom? Vamos
por aí, pra qualquer lugar bem tranqüilo. Almoçamos num restaurante
bom... À tarde, passamos numa joalheria. Eu vi, noutro dia, um colar de
brilhantes tão bonito... (Recoloca a pasta na penteadeira).
NANÁ (Decidida) Você não me compra mais, Miguel. Seu dinheiro é sujo. É
dinheiro de falcatruas, de trambiques, de morte.
NANÁ Quem anda cansada sou eu. Eu ainda abandono você, Miguel.
- 45 -
CENA 7
MIGUEL (Movendo-se na cama) Droga, acho que esqueci a janela aberta. (Costa,
parado, com os braços abertos junto a janela, pigarreia mais forte) Que
diabo de barulho é esse? Será que vai chover? (Costa pigarreia de novo)
Bosta, vai chover mesmo. Acho melhor fechar a janela. (Ergue-se e
quando vai em direção à janela, assusta-se ao ver o Costa) Que é isso?
(Está muito assustado). Quem é você?
MIGUEL (Afastando-se, com medo) Um anjo? Acho que estou ficando louco, não
é possível. (Sacode Naná) Naná, acorde! Ande, Naná! Acorde, mulher!
MIGUEL (Apontando) Veja, um anjo apareceu pra mim... (Naná olha para o Costa;
este lhe faz, disfarçadamente, um sinal negativo, ou seja, dizendo que
não) Olhe, ali, perto da janela!
NANÁ (Faz que se esforça para ver) Não. Não vejo ninguém.
MIGUEL (Passa a mão pelo rosto) Acho que estou ficando doido, Naná. Eu o
vejo, paradão perto da janela.
MIGUEL (Confuso) Pode ser... Mas eu agora estou acordado... E ele está ali...
(Costa dá um "tchauzinho" pro Miguel): Dando tchauzinho pra mim...
(Salta pra cama) Estou com medo, Naná!
NANÁ Ora, deixe de ser covarde! Só me faltava essa, além de brocha, Ter um
marido covarde.
MIGUEL Não fale assim, Naná! Eu tenho medo que seja alguma coisa do além...
Eu vi num filme que a mão de um morto voltava pra se vingar...
MIGUEL Não... Estou vendo ele por inteiro. E ele tem até asas...
- 46 -
NANÁ (Galhofando) Você deve estar vendo algum morcego, Miguel. Vamos
dormir, homem.
NANÁ (Irritada) Vi, Miguel! Vi! Ele está de vermelho, tem dois chifres na cabeça
e uma pasta na mão.
MIGUEL Errado. Ele está de azul, tem uma argola na cabeça e tem asas nas
costas.
MIGUEL Olhe, eu vou tentar falar com ele. Preciso de coragem. Quero saber o
que ele quer. Mas você fique acordada. De repente, eu preciso de
você...
NANÁ (Sentando-se) Está bem. Eu fico acordada. Agora vá, fale com ele e
volte pra cama. Nós precisamos dormir, entendeu?
COSTA Faz cinco anos que eu estou no céu, mas pagando penitência. E por
causa do senhor.
MIGUEL (Ainda assustado) Por minha causa? Mas você é o primeiro anjo que eu
vejo...
MIGUEL Acredito.
MIGUEL (Muito confuso) Renato? Ah, sim!... Eu não acredito que é você o
Renato.
- 47 -
MIGUEL (Já desconfiado) Acho que esse cara é um impostor, Naná. Estou
achando muito esquisita essa estória de anjo...
MIGUEL Isso, Naná. Em carne e osso o desgraçado. Quer ver? (para o Costa)
Diga-me, querido anjinho, seu nome é Costa?
MIGUEL Pelos sapatos, idiota! Eu nunca vi anjo de sapatos. Sempre ouvi dizer
que anjo tem pés descalços... (olha bem para os sapatos do Costa, que
tem as mãos levantadas) Hum, que interessante! Os mesmos sapatos
da Júlia, do doutor Castro, do padre Bento...
- 48 -
COSTA Pois é. Quando eu me escondi no quarto dela, tive a idéia de me enfiar
no guarda-roupa. Foi quando via a possibilidade de me transformar em
diversas pessoas...
MIGUEL Quantas vezes preciso repetir que já sei que ele é o Costa.
MIGUEL Ora, não me venham com piadas a uma hora desta. Estou cansado; não
abusem da minha paciência. Não percebem que estou com uma arma
na mão?
MIGUEL O Costa, seu primeiro marido, está morto. O Costa mor-reu... Mor-reu...
Costa? Você é o Costa?
COSTA Eu não morri, Miguel. Pesaram que eu morri. Mas estou vivo.
MIGUEL Você tem que morrer, Costa. Veio aqui, na minha casa, bolinou minha
mulher o quanto quis...
- 49 -
COSTA “Pêra” um pouco, Miguel. Este apartamento foi comprado com o dinheiro
do meu seguro. E a mulher é minha.
MIGUEL (Sinistro) De jeito nenhum. Você está morto, homem. E bem enterrado...
Digamos, submerso, naquele mesmo rio do acidente. Dentro de um saco
cheio de paralelepípedos. Ah, que acha disto?
COSTA Sabe, Miguel, a sua idéia é realmente boa. Mas não vai dar certo.
MIGUEL (Rindo) Acredita nisso? Alguém sabe que você está vivo?
COSTA Bem... Daqui, não. Só lá, onde eu vivi estes cinco anos...
MIGUEL Então, meu caro anjinho. Se eu matar você, ninguém vai procurá-lo.
Afinal, você está morto há cinco anos...
MIGUEL Mas você não teria coragem de denunciar-me, não é querida? Sabe que
se fizer isso, terá também uma bela bala na cabeça...
MIGUEL (Apanha a pasta, num gesto rápido) Está aqui, Costa. Comigo e bem
segura. Você quer vir apanhá-la?
MIGUEL (Desesperado, abre a pasta; os documentos estão lá) Tudo bem Costa.
Os documentos estão aqui. Não corro nenhum perigo.
- 50 -
COSTA Os documentos estão, mas as fotografias eu tirei.
MIGUEL (Violento) De qualquer forma, eu mato você. Não terá tempo de usar as
fotografias contra mim.
MIGUEL (Choroso) Você não podia ter feito isso comigo... Aquelas fotografias têm
um valor inestimável para mim...
NANÁ Agora entendo. Eu passei os olhos por essas cartas... Mas pensei que
fossem negócios de contrabando ou coisa assim... Quem diria, o meu
marido um agenciador de encontros eróticos!...
- 51 -
COSTA Porque o valente Miguel está impotente há alguns anos, querida! Nas
cartas, de maneira sádica, ele diz aos otários das chantagens que se ele
não pode, os que podem que se danem. E têm que pagar por poderem.
COSTA E outra que você não sabe: os encontros eram feitos aqui mesmo, no
seu apartamento.
MIGUEL (Irônico) E na sua cama, querida! Aliás, na nossa cama. Lembra-se das
suas freqüentes idas à casa da titia? Pois é...
NANÁ Desgraçado. Por isso você dava folga para a Joana toda vez que eu ia à
casa da titia... Agora estou compreendendo tudo...
NANÁ (Indignada) Ah, bandido! Então você não veio até aqui por minha causa,
não é?
COSTA Na verdade, não. Mas quando entrei e vi que era você... Que sensação
gostosa, Naná.
MIGUEL (Levantando-se da cama) Que vai fazer comigo, Costa? Vai me mandar
prender?
MIGUEL Então, não quer me vender as fotos? Posso lhe dar muito dinheiro por
elas...
COSTA Ainda não decidi. Agora, só penso em reaver minha maior riqueza:
Naná! (Miguel vai saindo "de mansinho").
- 52 -
NANÁ (Abraça-se no Costa) Que romântico, Costa! (Solta o Costa e...) Que
desgraça!
COSTA De novo, Naná?! Pelo amor de Deus! Todo o meu esforço pra nada!
NANÁ Não fale assim, Costa! É que eu estou acostumada com o dinheiro do
Miguel...
NANÁ Querer eu quero. Mas o meu outro lado soa o trin-trin da caixa
registradora. Como é bom ter dinheiro, Costa.
COSTA (Pensa um pouco) Tá bem. Eu disse que ia fazer tudo para te conquistar
de novo. Se é assim...
COSTA (Pega o revólver que o Miguel deixou em cima da cama) Desta vez, eu
resolvo tudo. (Grita para dentro) Miguel, venha até aqui! (esconde o
revólver) Ande Miguelzinho! (Miguel reaparece, mostrando-se com
medo) Está com medo?
MIGUEL Um pouco...
COSTA Resolvi fazer uma coisa. Eu, o Costa, vai abandonar o caso!
MIGUEL (Rápido, apanha o revólver) Você está querendo aprontar mais uma?
COSTA Não, meu caro! Desanimei. Eu vou embora. Vou deixar você em paz!
COSTA Isso mesmo, Miguel! Vou voltar pra minha cidadezinha adorada! Lá eu
sou amigo do rei. (Começa a sair) Ou você confia em mim, ou me mata.
Até breve!
NANÁ (Corre para impedi-lo) Não vou deixar você sair desse jeito!
- 53 -
COSTA Não me venha com recaídas românticas, minha cara! Não sou mais o
mesmo. Tenho dignidade!
NANÁ Por isso mesmo! Não vou deixar que você saia vestido de anjo. Troque
de roupa, pelo menos!
COSTA Meu guarda-roupa está próximo, Naná! Não se preocupe comigo. Até
mais! (Sai).
CENA 8
Assim que Costa deixa o palco, Miguel movimenta-se rapidamente. Está muito
apressado...
MIGUEL Eu não penso assim. Acho que ele está tramando alguma coisa.
(Recoloca o revólver sobre a cama) E eu não vou esperar pra ver o que
é.
NANÁ Ora, deixe de ser infantil, Miguel. Até parece que você tem visto muitos
filmes de bang-bang
NANÁ Não deu porque é covardão. Pois devia ter dado! Aquele cretino! Me
desprezou. Vai ver, gostou mais da loira.
MIGUEL Não estou defendendo ninguém. Mas a verdade deve ser dita! Eu vou
apanhar minhas coisas. (Ameaça entrar).
MIGUEL Não vai ficar não, Naná. Vai ser muito pior.
- 54 -
NANÁ Você está com más intenções, não está?
NANÁ (Recompondo-se) Eu não vou desmaiar! Ah, mas não vai ser fácil. Eu
vou criar problemas para você.
NANÁ É o que pretendo. Meter você na cadeia. Primeiro, com o caso do cara
da boate.
MIGUEL Esse caso está encerrado, Naná. Faz cinco anos que isso aconteceu.
MIGUEL Não dá! As fotos estão com o Costa, que se mandou. As cartas estão
comigo e você não teria coragem de tentar tirá-las de mim... Logo...
Naná fica de frente para a platéia, com os braços cruzados, em silêncio. Nota-se
indignação e ódio. Depois de instantes, Miguel retorna completamente oculto
em roupas de árabes, com um lenço característico cobrindo o rosto e óculos
escuros. Aproxima-se sorrateiramente pelas costas de Naná. Agarra-a, tapando-
lhe a boca. Naná tenta livrar-se, mas não consegue. Miguel, então, procura
arrastá-la para a cama, quando, num gesto rápido, Naná desvencilha-se e...
- 55 -
NANÁ (Ajeitando-se) Pare com isso, Costa! (Miguel fica parado diante de Naná)
Que coisa mais ridícula! Já não chega o que fez comigo agora pouco? E
não vai adiantar nada! Ele já sabe de tudo. Ele me disse que vai me
abandonar, acredita? (Miguel, rápido, apanha o revólver sobre a cama e,
ameaçadoramente, aproxima-se de Naná) O que é isso, Costa?
(Começa a se afastar, para o lado da cama) Eu... Eu ainda gosto de
você, sabe? ... O dinheiro dele... é uma porcaria... (riso forçado). Que se
dane o dinheiro dele, não é?
Miguel encurrala Naná de encontro a cama. Naná senta-se, deita-se e cada vez
vê mais de perto o revólver do Miguel. E quando parece que o Miguel vai mesmo
atirar...
COSTA Mas eu estou morto, querida! E tá muito bom assim. Não pago impostos,
não recolho INSS... E com a tua grana e o meu apartamento, viveremos
felizes para sempre.
COSTA Eu não o matei. (Troca o revólver, ou seja, deixa o dele nas mãos do
Miguel) Ele suicidou-se, querida! Antes de sair, eu tive o cuidado de
trocar os revólveres...
- 56 -
NANÁ Você atirou pelas costas dele. Ninguém se suicida dando um tiro nas
próprias costas...
COSTA Te assusta?
COSTA Entenda, Naná! Você mata seu marido. Vai presa. De repente, surgindo
das profundezas do inferno, surge o seu primeiro marido. Ele explica
tudo sobre o acidente. Tem testemunhas na aldeia onde se curou... E
assume, novamente, o papel do marido. Como a mulher é prisioneira,
passa a administrar seus bens...
COSTA (Saindo com Naná) Claro, querida. Estou aqui pra isso. Eu não quero
que você sofra com essas coisas... (ambos saem).
FIM
- 57 -