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PROSCENIUM GRUPO DE ARTES CÊNICAS

APRESENTA:

TEM UM MORTO NA MINHA CAMA


(Comédia Adulta)

AUTOR: ROBERTO VILLANI


ADAPTAÇÃO: MÁRIO FILHO
CENÁRIO: Um quarto de casal.

PERSONAGENS: NANÁ
COSTA - 1º ESPOSO DE NANÁ
MIGUEL - ESPOSO ATUAL DE NANÁ

CENA 1

Abrem-se as cortinas. Fraca luz ilumina o ambiente cênico; apenas a luz do


abajur. Vestida com uma camisola transparente, Naná entra em cena,
cantarolando alguma coisa. Vai até o toca-fitas e põe um bolero antigo. Dança
um pouco, apanha um livro na estante de cabeceira, deita-se e põe-se a ler.
Pouco depois, na penumbra, aparece Costa sem ser notado, a princípio, por
Naná.

COSTA (Com expressão de espanto) Naná? Não é possível...

NANÁ (Sem se desviar da leitura) Chegou cedo, querido. Não teve reunião
hoje?

COSTA Reunião?

NANÁ (Sem olhar para o Costa) Você me disse que teria uma reunião e que
chegaria bem tarde. Não se lembra?

COSTA (Sempre na penumbra do quarto) Não estou entendendo...

NANÁ (Sempre atenta ao livro) Quem não está entendendo sou eu. você até
me mandou ir pra casa da titia... Deixa pra lá! Quer um café?

COSTA Não. Eu quero um licor, se tiver.

NANÁ (Ainda sem identificar Costa) Licor? Você detesta licor!

COSTA Mas eu quero.

NANÁ (Levantando-se, sem olhar para o Costa) Está bem, querido. Eu vou
buscar o licor. É de ameixa; o único que temos em casa. Como você não
gosta... ou melhor, não gostava de licor... Volto já.

Naná sai. Costa afasta-se da penumbra. Anda pelo quarto, observando tudo.
Apanha o livro e coloca-se à frente do palco, folheando as páginas. Naná volta
com o licor, cuja garrafa e copos, numa bandeja, são colocados sobre a
penteadeira. Quando Naná volta-se para o Costa, olhando-o de frente...

NANÁ (Atônita, assustada) Você? (desmaia)

COSTA (Reanimando-a) Vamos, Naná! Sem frescuras, vai!

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NANÁ (Reanimando-se) Não é possível, Costa. Você está morto! (desmaia)

COSTA (Reanimando-a novamente) Assim não dá. Eu chego e você vai!

NANÁ (Voltando a si) Eu não posso acreditar... (Dá um salto, afastando-se).


Não, você não existe! É... É um fantasma!

COSTA Eu estou muito vivo, querida!

NANÁ (Medrosa) Não está vivo não! Tá bem mortinho. Você é um fantasma!

COSTA Fantasma porra nenhuma! Estou vivo, pomba! Não dá pra perceber?

NANÁ (Observando-o com mais atenção) É mesmo... Você não parece


fantasma...

COSTA Eu voltei, Naná! (Dramalhão). Voltei para os seus braços, amor!


Venha, me belisque. Vem! Vai ver que sou de carne e osso! Vem!

NANÁ (Aproxima-se com medo. Dá um beliscão no Costa e salta para trás;


boquiaberta) É mesmo, Costa! Você está vivo! (Corre e abraça-se
demoradamente no Costa; depois, larga-o bruscamente). Que desgraça!

COSTA (Indignado) Desgraça? Você acha a minha volta uma desgraça?

NANÁ Tenho motivos...

COSTA Que bosta de motivos? Faz cinco anos que não nos vemos, Naná.
Desgraça? Não posso compreender essa sua reação. Eu pensei...

NANÁ Sinto muito, Costa. Mas a sua volta é a desgraça da minha vida.

COSTA (Revoltado) Eu jamais pensei ouvir tal coisa da sua boca, Naná.
Jamais. Pode me dar uma explicação, pelo menos? Explique e eu vou
embora, para nunca mais voltar.

NANÁ Pois muito bem. Eu vou explicar.

COSTA Quero uma explicação honesta.

NANÁ Será uma explicação honestíssima.

COSTA Então, desembucha!

NANÁ Tá vendo este apartamento? Eu comprei com o dinheiro do seguro.

COSTA E daí?

NANÁ (Choramingando) E agora, com sua volta, vou Ter que devolver
tudinho... Que desgraça!

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COSTA Bem, eu não tenho culpa se não morri...

NANÁ (Agressiva) Pois devia Ter ficado morto, Costa! Todo mundo pensa que
você morreu... Fizeram missa de sétimo dia... Foi tão bonito... E agora
você volta e estraga tudo. (Chora)

COSTA (Confuso) Eu não tenho culpa se andaram por aí dizendo que eu tinha
morrido, droga!

NANÁ Até a sua fotografia saiu no jornal... Uma beleza...

COSTA Minha fotografia? E eu estava morto na fotografia?

NANÁ Claro que não. Eles não acharam o seu corpo. E como é que eles
poderiam tirar uma fotografia de você morto? Droga!

COSTA Quem falou em fotografia nos jornais foi você.

NANÁ (Irritada) É aquela fotografia que você tirou em cima duma árvore,
imitando Tarzan, seu bobo.

COSTA Ora, Naná, deixe prá lá tudo isso! Eu estou de volta. Isso não é melhor
que tudo?

NANÁ Não!

COSTA Só por causa deste apartamento?

NANÁ Claro que não é só isso. Tem mais, Costa.

COSTA Tem mais? O que?

NANÁ Você nem imagina. É que... É que...

COSTA O que? Diga!

NANÁ Casei de novo! (Chora)

COSTA Casou de novo!

NANÁ Há cinco anos que você estava morto...

COSTA Há quanto tempo você está... novamente casada?

NANÁ Há quatro anos, oito meses e vinte e dois dias...

COSTA (Perplexo) Bandida! Eu tinha morrido quase na véspera...

NANÁ Ora, não seja melodramático! Fazia algum tempinho que você tinha
morrido.

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COSTA Não podia me esperar! Não tinha esperança de me encontrar de novo?

NANÁ Aonde? Só se fosse num centro espírita! Você estava morto, lembre-se!

COSTA Que desgraça!

NANÁ Você pensa que eu sou o que? Alguma debilóide! Ficar esperando por
trezentos anos que o meu marido um dia resolvesse levantar do túmulo?

COSTA (Pensativo) Bem... Talvez você tenha razão... E quem é ele, posso
saber?

NANÁ O nome dele é Miguel.

COSTA O dono deste apartamento?

NANÁ O dono deste apartamento por comunhão de bens.

COSTA Desgraçado!

NANÁ Você o conhece?

COSTA (Confuso) Quem, eu? Bem... Não, é claro...

NANÁ Ele é industrial. Podre de rico! (Revoltada) Você não podia ter
ressuscitado Costa!

COSTA Eu não ressuscitei, Naná. Eu não morri, Enfia isso na tua cabeça!

NANÁ (Dramática) É duro, Costa! A gente fica viúva... Ganha um dinheirão de


seguro... Encontra um cara rico que resolve casar com a gente... A
vidinha melhora trezentos por cento... De repente, volta o chato do
marido dizendo, na cara dura, que não morreu. Bosta!

COSTA Espera um pouco, Naná. Você não vai me culpar pela sua infelicidade.

NANÁ Ah, não, queridinho! Não vou, não. Exatamente porque, a partir deste
minuto, você vai dar o fora. E boa viagem.

COSTA Dar o fora?

NANÁ Você disse que assim que eu desse as explicações, você iria embora.

COSTA Eu pedi explicações honestas.

NANÁ E eu fui honesta nas minhas explicações. Assim, adeus!

COSTA De jeito nenhum. Você pode Ter sido honesta, mas as explicações foram
desonestas.

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NANÁ Como, explicações desonestas?

COSTA Primeiro: Você disse que comprou este apartamento com o dinheiro do
seguro.

NANÁ Fui honesta em dizer isto.

COSTA Mas o negócio foi desonesto. Principalmente, porque o seguro foi pago
pela minha morte.

NANÁ E eu com isso?

COSTA Segundo: Você disse que se casou a segunda vez. Foi um casamento
desonesto porque estou vivo.

NANÁ E daí?

COSTA As explicações foram desonestas e eu fico!

NANÁ (Irritada) Ah, não! Você vai embora!

COSTA Não vou. Este apartamento também é meu.

NANÁ (Ri) Ah, essa é boa! Aqui você não tem nada! Se manda, vai!

COSTA Eu paguei a apólice do seguro durante anos. Logo, você comprou este
apartamento com meu dinheiro. Somos sócios.

NANÁ Sócios coisa nenhuma. Eu não tenho mais nada com você. Adeus!

COSTA Eu não tenho para onde ir.

NANÁ Mas no meu apartamento é que você não vai ficar!

COSTA No nosso apartamento, você quer dizer.

NANÁ Além do mais, daqui a pouco meu marido vai chegar...

COSTA Que se dane seu marido! Aliás, o seu marido sou eu. Eu não morri, sua
bígama!

NANÁ (Agressiva) Bígama? Você está morto. Toda imprensa noticiou a sua
morte, meu caro. E eu casei de novo, legalmente.

COSTA Eu não morri e você é bígama. E fim de papo!

NANÁ Fim de papo digo eu. (Empurrando o Costa) Vai, vai se mandando!

COSTA (Irritado) Não empurra. Estou começando a ficar puto com essa situação.

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NANÁ (Também muito irritada) Pois eu já estou ficando puta faz tempo!

COSTA Dá pra ver.

NANÁ (Sem jeito) Foi força de expressão.

COSTA Você tem que dar um jeito nessa situação.

NANÁ Eu? Foi você quem criou esta situação, queridinho. Resolva você!

COSTA Não quero saber. Você é minha mulher e este apartamento também é
meu.

NANÁ Quer que eu resolva?

COSTA Quero!

NANÁ Então, está resolvido. Você some da minha vista e pronto.

COSTA Eu já disse que não tenho para onde ir.

NANÁ Que se vire. O problema é seu.

COSTA Muito bem. Eu já sei o que vou fazer. É assim que você quer, não é?

NANÁ (Desconfiada) O que você pretende fazer?

COSTA Pretendo, não. Eu vou fazer, minha querida. Amanhã cedinho, depois de
me levantar do primeiro banco de jardim...

NANÁ (Confusa) Banco de jardim?...

COSTA Vou a seguradora e conto tudo. Depois, vou aos jornais. E ao Cartório de
Registro Civil. E a Polícia!

NANÁ (Preocupada) Não acha que vai se cansar?

COSTA É claro que vou me cansar. Me cansar de meter a boca da minha ex-
mulher!

NANÁ (Mudando de tática) Ex? Mas eu ainda sou sua mulher, Costa! (Tenta se
aproximar, com um sorriso malicioso).

COSTA (Afasta-se) E não venha com artimanhas, Naná. Tá tudo resolvido!

NANÁ Artimanhas, amor? (Tenta aproximar-se novamente) Faz tanto tempo


que a gente...

COSTA (Interrompe agressivo) Faz sim! Mas trato é trato! Bem, vou me
despedindo...

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NANÁ (Agarra-o) Você não tem para onde ir!

COSTA Tenho sim. É só procurar.

NANÁ Banco de jardim, não. É duro. Dá problemas na espinha dorsal.

COSTA Eu me arranjo. Compro colete de aço.

NANÁ De jeito nenhum. Afinal, foi com a sua morte que eu comprei este
apartamento.

COSTA Pois pode ficar com ele, se a seguradora deixar. Adeus! (mas não sai do
lugar) Adeus, já disse! (Naná está estática) Porra, você não vai me
impedir?

NANÁ (De imediato) Ah, sim! (dramática) Não, querido! Fique! Este é o teu lar.
Não nos abandone, amor da minha vida!

COSTA Também não precisa exagerar. Eu fico! (ouve-se a campainha) Quem


será?

NANÁ É o Miguel. Esqueceu a chave de novo. E agora?

COSTA E agora digo eu. Eu sou o marido.

NANÁ Ele também é. Que faço?

COSTA Abra a porta.

NANÁ Com você aqui dentro? Ele fica violento quando sente ciúmes.

COSTA Deixa a porta fechada.

NANÁ Você está doido! (Ouve-se novamente a campainha) Droga! Que


situação você me meteu.

COSTA Eu? Quem mandou você se casar de novo?

NANÁ Ora, não vamos recomeçar. O mar não está pra peixe.

COSTA E o pior é que a isca sou. É ele (Aponta prá porta) quem tem a vara! (A
campainha soa com insistência).

NANÁ Vamos, esconda-se!

COSTA Onde?

NANÁ Sei lá... Deixe-me ver... No quarto da empregada!

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COSTA Tá bem. (corre em direção a saída; volta) E onde fica o quarto da
empregada?

NANÁ No corredor, a terceira porta à direita!

COSTA Tudo bem. (Começa a correr...) E o que faço com a empregada?

NANÁ Vá logo, homem. Ela está de folga, hoje. Rápido, ou ele derruba a porta!

Costa corre para fora do palco. Naná, ajeitando-se, dirige-se para o lado
contrário à saída de Costa. E volta em companhia do Miguel.

CENA 2

MIGUEL Não pensei encontrá-la em casa, querida. Foi uma surpresa. Você não
ia à casa da sua tia?

NANÁ (Nervosa) É... Eu ia... (Disfarçando) Mas me deu uma dor de cabeça...

MIGUEL Tomou remédio?

NANÁ Sim...

MIGUEL E a dor? Passou?

NANÁ Não... Quer dizer, quase...

MIGUEL Pois é, ainda bem que a reunião demorou pouco. Não via a hora de
chegar em casa. Tomar café?

NANÁ Tem licor...

MIGUEL Licor? Você sabe que eu detesto licor.

NANÁ (Confusa) O outro gosta.

MIGUEL Que disse?

NANÁ (Confusa) Eu? Eu... não disse nada, querido...

MIGUEL (Tira o paletó, jogando-o sobre a cama) Se não tem café, paciência.
Aliás, não devo beber café hoje. Estou um bocado irritado.

NANÁ Ah, é? Não diga, está é?

MIGUEL Estou. Imagine que um dos diretores da Empresa me disse uma


piadinha sobre você.

NANÁ Que coisa, não?

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MIGUEL Pois é. Disse que você era muito boa. Quase lhe quebrei a cara. Só não
o fiz porque o presidente estava lá.

NANÁ Que bom, não querido?

MIGUEL Que bom o que? (Tira os sapatos)

NANÁ Que o presidente estava lá...

MIGUEL Estava. Que homem fantástico, Naná. Que homem notável.

NANÁ Ele lhe deu promoção?

MIGUEL Você sabe que eu só elogio quando considero a situação dos fatos.

NANÁ Eu não quis dizer outra coisa, Miguel.

MIGUEL Ele é um grande homem. Coração imenso... Homem honrado aquele.

NANÁ Puxa, que homem!

MIGUEL Você sabe o que ele fez noutro dia?

NANÁ Você não me contou...

MIGUEL Pois ouça: estávamos num bar tomando um café quando apareceu um
garotinho. Pedia esmolas, para tomar um lanche. Eu não lhe dei nem um
tostão... Acho que ele deveria se ocupar com alguma coisa para ganhar
dinheiro...

NANÁ Custava você dar algum dinheiro pro menino?

MIGUEL Você sabe o que eu penso sobre dar esmolas. Ah, mas o Presidente
deu. O tal garoto tinha algum dinheiro nas mãos. O Presidente então,
bondoso, contou pacientemente os tostões do menino e completou com
oitenta centavos o dinheiro certo para um café. Foi emocionante.

NANÁ Oitenta centavos, só isso?

MIGUEL Só isso, não. Era a quantia que o menino precisava para completar o
dinheiro.

NANÁ Nossa! E por que o Presidente não deu o dinheiro todo, para um bom
lanche?

MIGUEL Ora, Naná! O nosso Presidente está economizando. Não se esqueça


que ele vai se candidatar nas próximas eleições...

NANÁ Vai se candidatar a que?

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MIGUEL A governador do Estado.

NANÁ Então vai precisar economizar muito mesmo.

MIGUEL (Calçando os chinelos) Joana está aí?

NANÁ Joana está de folga. Você mandou-a sair hoje, lembra-se?

MIGUEL Ah, é verdade! E por falar nisso, veio alguém me procurar?

NANÁ Não. Alguém viria procurar você, hoje?

MIGUEL (Confuso) Bem... Sim, deveria vir um casal...

NANÁ Um casal? Quem?

MIGUEL Não sei bem...

NANÁ (Desconfiada) Como, não sabe?

MIGUEL São ossos do ofício! Não sei e pronto! (Caminhando) Eu vou ao quarto
da Joana...

NANÁ (Apavorada) Vai? Fazer o que?

MIGUEL Eu deixei uns documentos no quarto dela. Pedi a Joana que os


guardasse pra mim. Vou buscá-los.

NANÁ Não pode deixar para amanhã?

MIGUEL Não. Preciso verificá-los agora!

NANÁ (Adiantando-se) Deixe que vou buscá-los para você.

MIGUEL Você não sabe onde eles estão.

NANÁ Eu... Eu descubro, querido!

MIGUEL Não se preocupe, querida. Eu sei onde eles estão. Pode deixar. Num
instantinho, estarei de volta. (E sai).

No momento em que Miguel deixa o palco, Naná mostra-se desesperada. Anda


de um lado para outro, pensando alto.

NANÁ Ai, meu Deus! Que confusão. Por que esse desgraçado foi aparecer logo
agora. O Miguel é terrível... Pode até matar o Costa. Aí o desgraçado
morre de verdade.

Miguel reaparece, com uma pasta na mão. Sob os olhares surpresos de Naná,
coloca a pasta sobre a cama, abre-a e retira uns papéis.

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MIGUEL (Bem calmo) Eu tenho que levar esses papéis amanhã. É uma
documentação confidencial.

NANÁ (Preocupada) Por isso é que você os guardou aqui em casa?

MIGUEL Isso mesmo. Uma documentação como esta pode me deixar numa
situação bem difícil. Imagine isso aqui nas mãos de um inimigo. Eu
estaria perdido.

NANÁ Que documentos são esses?

MIGUEL Ora, querida, você não compreenderia. São papéis de negócios...


Negócios não muito legais...

NANÁ Você é desonesto, Miguel?

MIGUEL Não é uma questão de desonestidade, Naná. Todo mundo tem suas
Pequenas fraquezas... Não se preocupe querida.

NANÁ Posso te fazer uma pergunta? Estou curiosa.

MIGUEL Claro.

NANÁ Foi... fácil?

MIGUEL O quê?

NANÁ Bem... Encontrar sua pasta no quarto da Joana...

MIGUEL Não seria muito fácil... A Joana, não sei porque, trocou-a de lugar...

NANÁ É que você a encontrou tão rápido...

MIGUEL Júlia a encontrou pra mim. Aliás, bem que você podia Ter me avisado...

NANÁ Júlia? Avisado do que?

MIGUEL De Júlia. Eu não sabia que a irmã de Joana viria passar esta noite em
casa...

NANÁ (Confusa): Esta noite? Mas...

MIGUEL E você sabe que isso pode me complicar...

NANÁ Complicar?

MIGUEL Bem... O casal...

NANÁ (Sem entender) Casal? Que casal?

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MIGUEL (Perturbado) Casal? Quem falou em casal?

NANÁ Você, Miguel.

MIGUEL Ah, sim . O casal, quer dizer, eu e a Júlia. Você não estaria em casa... A
Joana de folga... O que iriam pensar as pessoas? ...

COSTA (Aparece, vestido de mulher - com peruca e tudo; traz uma bandeja com
duas xícaras de café) Olha o cafezinho! (Naná desmaia) Nossa, como a
patroa da minha irmã é sensível!

MIGUEL (Larga os papéis e, afoito, tenta reanimar Naná) Querida! O que está
acontecendo com o meu amorzinho?

NANÁ (Reanimando-se) Ai, que dor! ...

MIGUEL (Preocupado, erguendo Naná) Dói, amor? Onde?

COSTA Na consciência, "seu" Miguel.

MIGUEL Não caçoe, Júlia.

COSTA Eu quero saber é se vão ou não vão tomar o café. Estou cansada de
ficar com esta bandeja na mão.

MIGUEL (Ajudando Naná a andar) Venha, amor. Tome um cafezinho feito


especialmente pela Júlia. Eu pedi e ela prontamente o fez.

COSTA Minha mãe me ensinou a fazer café. Eu sempre fui muito dedicada às
coisas da cozinha. (dá uma olhada nos papéis sobre a cama): Aliás,
minha avó também cozinhava muito bem. Quanta papelada, "seu"
Miguel. Era isso que estava naquela pasta?

MIGUEL (Servindo-se e servindo Naná) É sim, Júlia. São documentos muito


importantes. (Toma um gole do café) Hum, delicioso. Parabéns, Júlia.

NANÁ Tá gostoso mesmo.

MIGUEL Então, Naná. Está melhor?

NANÁ (Dissimulando) É... Uma dor de cabeça muito forte... Chego a desmaiar.

COSTA É o peso da consciência na cabeça dela.

MIGUEL Júlia, não é hora para brincadeiras. Precisamos cuidar bem dela. Afinal,
ela é a patroa da sua irmã...

NANÁ Eu me cuido sozinha, podem deixar. Aliás, era muito bom que vocês
dois deixassem de se preocupar tanto comigo.

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MIGUEL Mas eu a amo, Naná.

COSTA E eu também, eis o problema!

MIGUEL Viu, Naná, que simpática é a Júlia? Ela também a ama. Nós dois a
amamos intensamente.

NANÁ Essa é a razão da minha dor de cabeça.

MIGUEL Pois enquanto eu vou comprar cigarros no bar aí em baixo, a Júlia vai
me fazer um favor. Telefone pro doutor Maurício. O número do telefone
está na agenda, lá na sala. Peça que ele venha imediatamente examinar
a minha Naná. (Põe-se de saída)

NANÁ (Preocupada) Não tem necessidade, Miguel. Olha, a dor até já passou.

MIGUEL (Saindo) De jeito nenhum, querida. Vamos, Júlia, faça o que lhe pedi,
imediatamente. (Sai)

Naná, agressiva, parte em direção ao Costa.

NANÁ Viu em que situação me meteu?

COSTA Se ele gosta tanto de você, por que ele mesmo não telefonou pro tal
médico?

NANÁ Não mude de assunto.

COSTA Não estou mudando. Só acho que esse cara é um espertalhão. Um


vigarista.

NANÁ Não chame o Miguel de vigarista!

COSTA (Recolhendo as xícaras) Que há, queridinha? Está nervosa?

NANÁ Fico impressionada com o seu humor num momento como este.

COSTA (Com características femininas) Que se há de fazer, não é? Afinal, o teu


novo homem é tão violento... Ai, até arrepia!

NANÁ Deixe de ser ridículo, Costa. Que idéia maluca foi essa de se vestir de
mulher?

COSTA Dizem que todo homem tem seu lado feminino. Até já cantaram isso
numa música...

NANÁ Acho que o acidente te fez mal pra cabeça.

COSTA Não foi bem pra cabeça, queridinha. Foi mais pro bolso, sabe?
Atualmente, estou sem grana nenhuma...

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NANÁ (Desconfiada) Não fique tramando coisas. Acho melhor você ir pensando
num jeito de se mandar daqui, antes que na coisa fique preta.

COSTA A coisa já tá preta. E eu quero ver como é que você vai se sair desta.

NANÁ Bosta! Nunca pensei em coisa parecida. Tá vendo o que você fez? Vou
acabar ficando louquinha.

COSTA Só quero que saiba duma coisa. Vou tentar quantas vezes forem
necessárias pra te reconquistar. Quero você de volta.

NANÁ É muita pretensão sua.

COSTA Não é não. Você foi minha mulher. E será de novo. Vou provar pra você
que sou melhor que esse calhorda do Miguel.

NANÁ Ele tem dinheiro, Costa.

COSTA Eu sei. Mesmo assim vou tentar. Quem sabe...

NANÁ (Sorrindo) Quem sabe...

COSTA (Voltando a imitar mulher): Bem, vou para a cozinha terminar o meu
serviço... (Começa a sair; olha para os papéis sobre a cama, na
passagem...) Quanta papelada, dona Naná! (e sai).

CENA 3
Naná recolhe os papéis, guardando-os na pasta. Apanha a pasta e a
Coloca sobre a penteadeira.

MIGUEL (Voltando à cena) Você me deixou tão preocupado, que fui de chinelos
ao bar. Sorte, querida. Se perco tempo pondo os sapatos, encontraria o
bar fechado. (Abre o maço de cigarros) Sabe, Naná, acho Júlia uma
simpatia. Tão prestativa!...

NANÁ Não se fie muito.

MIGUEL Ora, Naná! É só a irmã da nossa empregada. Está com ciúmes?

NANÁ (Rindo) Ciúmes? Deixe de ser ridículo. Gostaria de ver você me


trocando pela Júlia. Ia ser realmente muito engraçado.
MIGUEL Lembre-se, querida: Mulher é sempre mulher. Não importa a posição
social que elas ocupem. Na intimidade, qualquer posição serve.

NANÁ E sempre na posição em que os homens impõem, o que é pior.

MIGUEL Lembra-se da Renata?

NANÁ Aquela sirigaita? Como posso me esquecer?

- 15 -
MIGUEL (Rindo) Você pensou que eu estava dando em cima dela. Foi realmente
muito divertido...

NANÁ Eu nunca entendi como ela veio parar aqui, no nosso apartamento,
exatamente na noite em que fui visitar titia.

MIGUEL Ela veio procurar o amante...

NANÁ Você já me explicou... Só não entendo por que o tal amante marcou
encontro com ela aqui...

MIGUEL Ele era meu amigo, eu lhe disse.

NANÁ Amigo que nunca o procurou. Que não consta da sua agenda. Que você
nem se lembra direito o nome dele.

MIGUEL (Olhando a pasta) Você já guardou os papéis. Muito bom, querida.

NANÁ Deixei a pasta ali para você não esquecê-la amanhã.

MIGUEL (Beija Naná) Que mulherzinha preocupada com seu maridinho! Ah, por
falar em preocupação, será que a Júlia já telefonou para o Maurício?

NANÁ Acho que já.

Costa retorna ainda vestido de Júlia; traz uma mala de viagem às mãos.

COSTA Bem, queridinhos, a conversa tá boa, mas já vou andando.

MIGUEL Não vá. Fique aqui esta noite. Joana não virá e você poderá dormir na
cama dela...

NANÁ Pode ir, Júlia. (Para Miguel) Deixe que ele vá.

MIGUEL Ele? Mas é Júlia, Naná!

COSTA É problema mental, "seu" Miguel. Está atacando a cabeça dela.

MIGUEL Será? Você telefonou pro doutor Maurício?

COSTA Infelizmente, não poderá vir. Está numa cirurgia complicada...

MIGUEL Que lástima! Vou ter que levá-la ao pronto-socorro.

NANÁ Não seja exagerado, Miguel. Eu não tenho nada, já disse!

COSTA (Saindo) Não se preocupe, "seu" Miguel. O doutor Maurício prometeu


mandar o assistente dele.

NANÁ Mas eu não preciso de médico. Que teimosia, meu Deus!

- 16 -
MIGUEL É só um exame preventivo...

COSTA (Saindo) Tchauzinho! (Sai).

Com um longo suspiro, Naná senta-se na cama. Miguel, finalmente, acende o


cigarro.

MIGUEL Incomoda-se se eu fumar?

NANÁ Claro que não. Você sempre fumou...

MIGUEL É por causa do seu mal estar, amorzinho.

NANÁ Eu não estou com nenhum mal estar, já disse.

MIGUEL Está sim. Eu conheço esses sintomas. Primeiro os desmaios, depois as


dores de cabeça... E ainda a mania de dizer que não está doente. Tudo
muito sintomático, Naná.

NANÁ Está bem, Miguel. Se você acha que estou doente e que a vinda do tal
médico é importante, tudo bem. (Pequena pausa) O empresário voltou
hoje.

MIGUEL Que ele queria?

NANÁ O de sempre: que eu volte à vida artística.

MIGUEL Sujeito teimoso.

NANÁ Teimoso, não. Ele acha que eu tenho qualidades...

MIGUEL Eu também acho... O que você disse a ele?

NANÁ Que ia pensar no assunto.

MIGUEL (Grave) Você não vai pensar nada. Já discutimos esse assunto.

NANÁ Pedi mais um tempo...

MIGUEL Não tem tempo nenhum. Você agora é minha mulher e não se toca mais
nisso.
NANÁ O meu... falecido marido não se importava com o meu trabalho.

MIGUEL Seu falecido marido era um gigolô. Imprestável!

NANÁ (Agressiva) Não fale assim dele. Ele não era gigolô coisa nenhuma. Era
um homem bom, carinhoso... E compreensivo o que você não é.

MIGUEL Pois volte pra ele. Merda!

- 17 -
NANÁ Não volto porque não posso. Eu sonho com ele quase todas as noites...
Tenho a sensação que ele está ao meu lado, na minha cama...

MIGUEL Só faltava Ter um morto entre nós dois.

NANÁ Você me conheceu dançando numa boate, Miguel.

MIGUEL Isso já é passado.

NANÁ (Filosófica) Presente... Passado... Qual é a diferença? Continuo no


mesmo beco sem saída.

MIGUEL (Amassa o cigarro no chão, com os pés) Beco sem saída?

NANÁ É assim que você se preocupa comigo? Sujando o chão desse jeito?

MIGUEL Você tem empregada pra limpar.

NANÁ Tudo que você me dá é na base do dinheiro. Do seu dinheiro. A limpeza,


os meus sonhos... Até os meus beijos são pagos. Sabe, pensando bem,
acho que a troca não foi muito boa.

MIGUEL Que troca?

NANÁ Do meu primeiro marido por você.

MIGUEL Aquele calhorda era um duro. Com ele você vivia num barraco...

NANÁ Este apartamento foi comprado com o dinheiro dele.

MIGUEL Do seguro, não dele.

NANÁ Ele me ama de verdade.

MIGUEL Amava, querida! Agora, ele está morto! Bem mortinho.

NANÁ (Desligada) O pior é que ele está muito vivo.

MIGUEL (Espantado) Vivo?!

NANÁ ("Acordando") Na minha lembrança...

MIGUEL Pois trate de matá-lo. Agora, você é só minha. (A campainha soa) Deve
ser o médico. (Sai).

NANÁ (Apanha um licor, pondo-se a bebê-lo) Mas essa agora. Ter que aturar
um médico.

MIGUEL (Em companhia de Costa, agora disfarçado em médico) Querida, o


doutor Castro está aqui. É o assistente do Maurício.

- 18 -
Naná volta-se e, ao ver o Costa, desmaia. Ambos correm para socorrê-la.

MIGUEL Está vendo, doutor? Será que é grave?

COSTA Primeiro, vamos reanimá-la. Depois examinaremos.

Ambos, com tapinhas, reanimam Naná.

NANÁ Oh, meu Deus, que mal eu fiz?

MIGUEL Nenhum, amorzinho. O doutor Castro deixará você boa logo, logo.

COSTA (Amparando Naná) Não se preocupe, madame. Voltei para tentar


resolver os seus problemas.

NANÁ Se você realmente resolvesse... (Agressiva) Mas o problema é você,


desgraçado!

MIGUEL (Para Naná) Calma, Naná! O doutor Castro nada tem a ver com nossos
problemas... (para o Costa) Está vendo, doutor? Acho que são
alucinações. Agora, o senhor é o problema...

NANÁ Eu disse que não queria médico. Que estava boa.

COSTA Senhor Miguel, diga-me: que tipo de alucinações dona Naná tem?

NANÁ Não tenho nenhuma alucinação.

MIGUEL Bem... Hoje, por exemplo, lembrou-se do finado marido... Disse-me que
sonha com ele todas as noites...

NANÁ Não autorizei que você comente coisas íntimas, Miguel.

COSTA (Feliz) Não, de jeito nenhum... Eu sou um médico... Preciso saber das
coisas... íntimas...

MIGUEL Acho bom o senhor dar um jeito nessa doença, doutor. Não gosto de ver
minha mulher sonhando com alguém...

NANÁ Não é alguém. É meu ex marido.

COSTA Por que ex? É seu marido!

MIGUEL Êpa! O marido dela sou eu.

COSTA Mas ele também é.

MIGUEL Ele está morto.

COSTA Está vivo senhor Miguel.

- 19 -
NANÁ (Tentando "quebrar" a discussão) Sim, ele está vivo somente na minha
lembrança...

MIGUEL Viu? É isso que ela vive dizendo.

COSTA Há muito tempo?

MIGUEL Desde agora pouco.

COSTA Então, ainda há tempo. Dona Naná, tire a roupa.

NANÁ (Indignada) Tirar a roupa?

MIGUEL Ele é um médico, Naná. Faça o que ele manda.

NANÁ Vocês estão loucos! Eu não vou tirar roupa nenhuma.

COSTA Está vendo, senhor Miguel? É assim mesmo que ficam quando estão
perturbados. É sintomático, senhor.

MIGUEL Eu já tinha dito isso. Aliás, eu já havia percebido algo de errado nesta
noite...

COSTA O senhor ainda não viu nada.

NANÁ Nem queira ver, Miguel. Vai se arrepiar.

MIGUEL De que vocês estão falando?

COSTA Do... Do diagnóstico.

MIGUEL Poderá ser tão grave assim?

COSTA Gravíssimo!

MIGUEL Vamos, Naná. Tire a roupa!

NANÁ (Hesita um pouco, põe-se pensativa sob os olhares curiosos dos dois, e
muda de tática) Está bem. Se é isso que vocês querem... (Fica em pé,
de costas para a platéia e de frente para os dois e tira a camisola sob os
olhares orgulhosos do Miguel e cobiçadores do Costa). Pronto, doutor.
Pode me examinar à vontade.

COSTA Confesso que esta é a melhor parte do meu trabalho.

MIGUEL Ver a paciente nua?

COSTA Bem... Trata-se de ver in loco o corpo de delito. Eu sou da criminalística,


sabe?

- 20 -
MIGUEL (Meio desconfiado) Sem, sim... tá certo...

COSTA (Vai apalpando todo o corpo de Naná) Aqui não tem nada... Aqui
também não... não... também não... (Toca os seios, Naná faz cara de
quem ta gostando) Aqui tem! E como tem!

MIGUEL (Sério) O senhor não acha que já está demorando muito?

COSTA Nem comecei, meu caro. Nem comecei.

MIGUEL Como, nem começou?

COSTA Se o senhor ficar me perturbando muito, não posso examiná-la


condignamente.

MIGUEL Condignamente?

NANÁ (Lasciva) Deixe ele, Miguel.

MIGUEL É uma questão de... condignamente.

COSTA Condignamente...

MIGUEL Só mandei chamá-lo porque não quero ter responsabilidades com uma
eventual crise orgânica de minha mulher.

COSTA Crise orgânica?

NANÁ (Lasciva): A minha crise orgânica é muito antiga...

MIGUEL (Grosseiro) O senhor já examinou a minha mulher?

COSTA Bem... Não exatamente a sua mulher, mas a minha.

MIGUEL (Surpreso) sua?

NANÁ (Desvencilha-se de Costa, vestindo a camisola) Pronto, doutor. Já tem o


diagnóstico?

MIGUEL Esperem um pouco. Eu não entendi aquela de minha mulher.

COSTA Força de expressão.

NANÁ (Para Costa) Aprendeu, hein?

MIGUEL Força de expressão? O senhor foi bem claro, doutor. E não era hora
para força de expressão.

COSTA Está bem, senhor Miguel. Já vi que o senhor é ciumento...

- 21 -
MIGUEL Não exatamente... Mas o que é meu, é meu.

NANÁ Miguel faz jus ao dinheiro que gasta comigo, doutor.

COSTA Vou lhe explicar. Sou viúvo há cinco anos...

NANÁ (Rindo): Viúvo? Tem certeza?

COSTA Bem, certeza eu não tenho. Mas não... sinto minha mulher há muito
tempo...

MIGUEL Não sente? Por isso... procura sentir suas pacientes, não é doutor?

COSTA Não é bem assim. É que todos os corpos passaram a ser iguais para
mim. Eu os examino pensando na minha mulher...

MIGUEL Estou começando a entender o porquê de tanta... De tanta bolinação.

COSTA
E NANÁ (Juntos) Bolinação?

MIGUEL (Sem jeito) Força de expressão.

NANÁ Sabe, doutor, o senhor tem as mãos tão macias quanto às do meu
falecido marido.

MIGUEL Não é hora de comparações.

COSTA Deixe ela, senhor Miguel. São os efeitos do delírio... E daqui há pouco
quem vai delirar sou eu...

MIGUEL (Desconfiado) Delirar? O senhor? Só porque ficou amassando a minha


mulher?

NANÁ Amassando, Miguel? Que termo mais vulgar... Bolinando...


Amassando... Perdeu a pose, meu bem?
COSTA Não é isso, senhor. É que me envolvo demais nos problemas da minhas
pacientes...

MIGUEL Muito bem. Qual é o diagnóstico, doutor?

COSTA Bem... Não sei se devo dizer...

MIGUEL Mas é claro que deve dizer. Preciso saber o que ela tem, oras!

COSTA Tá bem. É falta de homem.

NANÁ Credo, doutor!

MIGUEL Falta de homem? Que diabo de conclusão é essa?

- 22 -
COSTA É a conclusão que cheguei. A crise orgânica que o senhor temia é essa.

MIGUEL E qual é o meu papel nisso tudo?

COSTA Sei não, senhor Miguel. Sei não.

NANÁ ("Leve", dançarina) Miguel anda tão cansado...

MIGUEL (Confuso, sem jeito) Na verdade, tenho trabalhado demais...

NANÁ Miguel anda tão preocupado...

MIGUEL São os negócios... Maus negócios...

NANÁ Miguel tem tantas reuniões noturnas, que acabam tão tarde...

MIGUEL Sou um empresário... Tenho decisões a tomar... o senhor compreende,


não é doutor?

COSTA Eu não tenho que compreender nada. Sua mulher é quem tem que
compreendê-lo. Só que eu acho que ela não está muito disposta a
compreender, senhor Miguel. Bem, se me dão licença...

NANÁ O senhor já vai, doutor? Não quer um licorzinho?

COSTA Não, obrigado. Não bebo em serviço.

MIGUEL Não vai receitar nada, doutor?

COSTA O remédio está no primeiro marido dela...

MIGUEL (Irritado): Mas ele morreu, porra!

NANÁ Cadê a educação, Miguel?

COSTA Se ele morreu, problema seu. Vire-se! Não posso fazer nada... Por
enquanto. (Vai saindo).

MIGUEL E a consulta? Qual o preço?

COSTA Acerte amanhã com o Maurício. Eu sou apenas o assistente dele.


Até mais! (Sai)

Naná cai na gargalhada.

- 23 -
CENA 4

Miguel se serve de licor. Senta-se na beirada da cama, saboreando a bebida e


pensativo. Naná coloca mais um bolero no toca-fitas e, lascivamente, põe-se a
dançar na frente do Miguel, mostrando-se para ele.

MIGUEL (Indiferente à provocação de Naná) Não gostei do médico que o


Maurício mandou. Pareceu-me meio confuso... e safado, o cretino!
Estava saboreando o teu corpo com as mãos, o canalha.

NANÁ (Dançando) Imaginação sua, Miguel. Um ótimo médico...

MIGUEL Pelo jeito, você adorou a consulta, não foi?

NANÁ Há quanto tempo eu não era consultada desse jeito...

MIGUEL (Levantando-se, afasta-se de Naná) Também não precisa exagerar. Eu


não gostei dele.

NANÁ (Visivelmente irritada, desliga o toca-fitas) Lógico! Não foi no teu corpo
que ele tocou.

MIGUEL (Irritado) Você está começando a me irritar com esse negócio.

NANÁ (Decidida) É pra irritar mesmo. Pelo menos, depois de tanto tempo, eu
pude sentir mãos de homem me acariciando...

MIGUEL (Quase fora de si) Pára com essa conversa, ou te parto a cara, sua puta!

NANÁ (Decidida) Vai bater mais uma vez? Que bom, Miguel. É só assim que
posso sentir sua mãos em cima de mim. (Miguel "murcha", sentando-se
de novo na cama) Por que você não me pega nos braços como fazem os
maridos? Hein? Me leva pra cama! Me consome! Me faz sentir mulher.
Por que não, hein? Você é um brocha! E ainda acha ruim que eu sonhe
com o meu marido. Aquele sim era homem. Eu vibrava nas mãos dele.
na língua dele. Nós nos consumíamos, como dois verdadeiros amantes.
Era sexo que fazíamos, Miguel. Sexo. Não esses atos mecânicos que
você propunha só pro teu prazer. Por isso é que você perdeu a vontade.

MIGUEL Bobagens.

NANÁ Bobagens? Você é um incompetente pra vibrar em todo o sentido do


amor. Fazer feliz uma mulher é fazer feliz a si próprio. Mas você sempre
foi egoísta demais para saber disso. Há cinco anos que eu não gozo, se
você quer saber!

MIGUEL (Ameaçador) Cala a tua boca!

NANÁ Não calo, não! É pra você saber o quanto te odeio! Só estou contigo
Porque me acostumei com o teu dinheiro.

- 24 -
Pequena pausa. Naná senta-se na cama, ao lado do Miguel. Ambos estão
pensativos, cabisbaixos. Até que...

MIGUEL (Tentando mudar a situação, como se nada tivesse acontecido) Amanhã,


de manhã, vou aplicar um grande golpe. Talvez me dê muito dinheiro...

NANÁ (Indiferente) Bom pra você.

MIGUEL Pra mim? Pra nós, querida!

NANÁ Eu não quero dinheiro de golpes.

MIGUEL É dinheiro de gente que tem muito, entende?

NANÁ Você não precisa. Já tem demais.

MIGUEL (Pondo-se de pé) Dinheiro, minha cara, nunca é demais.

NANÁ Já não chega o que você ganha como vice-presidente?

MIGUEL É pouco, Naná. Quero chegar a presidente. Você já pensou ser a esposa
do presidente das indústrias...

NANÁ Não é má idéia... Você... poderia?

MIGUEL (Vibrante) Mas é claro, querida!

NANÁ E o atual presidente?

MIGUEL Um homem e tanto! Mas está para deixar o cargo. Tem idéias de se
preparar com bastante antecedência para a campanha política...

NANÁ Que bom! A saída dele é tão rápida assim?

MIGUEL (Sério) Não é. Mas eu pretendo apressá-la... (A campainha soa). Se for o


desgraçado do médico, acabo com ele! (Sai em direção à porta).

Naná caminha até a ponta do palco e, sonhadora...

NANÁ Mulher do presidente... Até que eu fico bem de mulher do presidente.

Miguel retorna em companhia de Costa, desta vez disfarçado de padre.

MIGUEL Naná, querida, é o padre Bento.

COSTA Deus esteja convosco e muito mais comigo. (Naná percebe o Costa e,
sorrindo, se aproxima) estou aqui de passagem. Aliás, todos nós
estamos de passagem.

NANÁ Estou feliz por ter vindo Padre. Chegou bem na hora.

- 25 -
MIGUEL Você acha, Naná, que esta hora da noite é boa hora para um padre nos
visitar?

COSTA Não quero criar embaraços...

NANÁ Oh, não, padre. Meu marido é assim mesmo, um grosso!

MIGUEL Não precisa ofender, Naná. Só achei estranha a sua afirmação...

NANÁ É que o diabo estava querendo fazer a minha cabeça, quando o senhor
apareceu, Padre.

COSTA Se é uma coisa que detesto fazer...

MIGUEL Não tente espantar o diabo, padre.

NANÁ O dono da casa não pode ser exorcizado.

MIGUEL De repente, eu me transformei num vilão. Interessante, não é padre?

NANÁ A gente só considera os fatos quando se tem meios de comparação.

COSTA Mas eu não vim aqui até aqui para presenciar as brigas do casal.

NANÁ Desculpe padre. Mas...

COSTA Nem mas, nem... mas. Estou aqui recolhendo uns santinhos que foram
distribuídos na missa de domingo passado...

MIGUEL À essa hora da noite, padre?

COSTA Para as coisas de Deus, o tempo não existe. Somente os maléficos, os


ateus e os excomungados vivem em função dos relógios. (Miguel,
disfarçadamente, tira o seu relógio de pulso e o joga na cama) Eu passei
cinco anos nas portas do inferno, fazendo penitência e greve de fome,
meu caro. E lá não tínhamos relógio.

MIGUEL Está bem, padre. Não precisa dar sermão por causa disso... Na
realidade, eu nem ligo pro relógio...

COSTA Então, vê se não me enche o saco, que Deus me perdoe a má palavra!

NANÁ Que santinhos são esses, Padre?

COSTA São do Santo Bento. Nos santinhos distribuídos na santa missa de


domingo, está imprimido...

MIGUEL (Corrigindo) Impresso, padre.

COSTA Não estava imprimido impresso padre, meu caro.

- 26 -
MIGUEL (Bondoso) Eu o corrigi.

COSTA Mas como o senhor corrigiu, se ainda ontem eu vi eles imprimido


errado?

MIGUEL Nada, padre. Tudo bem.

COSTA Mas como eu ia falando, nos santinhos estava impresso que o Santo
Bento tinha morrido.

MIGUEL Agora o senhor falou certo.

COSTA Pois eu falei errado! O Santo Bento não morreu, acreditem. O Santo
Bento Costa, graças a Deus, está bem vivo!

NANÁ Santo Bento Costa? Gostei do sobrenome.

COSTA (Malicioso) Só do sobrenome, filha? Ah? Tu precisava de ver o resto do


Santo, bela! Que huomo!

MIGUEL (Desconfiado) Que é isso, padre? (rindo) Tá empolgadão com o tal


Santo?

NANÁ Miguel, é devoção.

COSTA Não, é narcisismo mesmo.

MIGUEL Narcisismo?

COSTA É que o Santo Bento é meu xará. É como se u fosse ele, entendeu?

MIGUEL Mas que diabos de Santo é esse?

COSTA (Benzendo-se) Não me fale o nome do concorrente. O Santo Bento é o


Santo que faz o milagre de não encher o saco com tanta pergunta.

MIGUEL (Desconcertado) Desculpe, padre. É só curiosidade...

COSTA Chega de conversa fiada e vamos ao que interessa. Cadê os santinhos?

NANÁ Eu não recebi nenhum santinho, padre.

MIGUEL Nem eu.

COSTA Também não foram na missa de domingo, estou certo? (Miguel e Naná
confirmam, com gestos) É por isso que estão num inferno. (Para Naná)
Filha, você precisa freqüentar mais a igreja. Se confessar mais...

MIGUEL Ora, padre, Naná não tem pecados...

- 27 -
COSTA Todos nós temos, meu caro. E ela tá precisando conhecer a minha
sacristia. É uma pecadora que precisa de absolvição.

MIGUEL Pecadora?

NANÁ Qualquer dia eu apareço por lá.

COSTA Depois de cinco anos, é como se fosse uma pecadora nova, entendeu
filha?

NANÁ Entendi muito bem, padre.

MIGUEL (Desconfiado) Você conhece o padre Bento, Naná?

NANÁ Hein? Ah, sim... Eu me lembro do padre Bento... Desde que meu finado
marido morreu, nunca mais fui à sacristia do padre Bento.

COSTA Já nem me lembro mais como ela se confessava, meu caro.

MIGUEL Não conheço a sua igreja. É longe daqui?

COSTA No momento, é no último vão embaixo da escada deste prédio (ri).

MIGUEL Não entendi, padre.

NANÁ É brincadeira do padre Bento, querido. Esse padre é muito brincalhão...

MIGUEL (Depois de alguns segundos, ri) Até que a piada foi boa.

COSTA (De lado) Ainda ri o imbecil.

MIGUEL (Imitando o padre) Embaixo da escada deste prédio... Como se embaixo


da escada coubesse uma igreja! Muito boa!

COSTA Meu caro, as igrejas são feitas somente com tijolos e cimento. Elas
podem ser grandes ou pequenas, dependendo do coração das pessoas.
Eu, por exemplo, tenho uma enorme igreja dentro do meu peito.

MIGUEL Já entendi, padre. Já entendi. Os sentimentos valem mais que as


construções...
COSTA Mais ou menos isso, meu caro.

MIGUEL Bem, o senhor já viu que não temos os santinhos... Não acha que está
na hora de nos deixar descansar?

NANÁ Oh, não! Ainda é cedo... Quem sabe o padre gosta de licor...

COSTA Quando estou em oração, só bebo vinho, filha.

MIGUEL Mas o senhor não está em oração, pelo que se parece.

- 28 -
COSTA Mas vou começar uma agora.

MIGUEL Ora, padre, já é muito tarde...

COSTA Já lhe falei sobre os relógios! (para Naná) Vem, filha, tenho que benzer
você.

NANÁ O senhor acha que eu preciso?

COSTA Eu seria muito otário se achasse que não.

MIGUEL Padre, decididamente Naná não precisa de benzimentos.

COSTA E o que o senhor entende dessas coisas? Ah? Diga!

MIGUEL (Confuso) Bem, eu...

COSTA Então não enche o saco! Vem, Naná, o mal está enraizado em você.
Vem pros braços do profeta.

Ocorre, então, toda uma encenação, numa mistura de benzimento e "passe"


espírita. Costa, murmurando uma oração cujas palavras são incompreensíveis
para a platéia, desliza suas mãos pelo corpo de Naná, que fica toda lasciva, sob
os olhos atônitos do Miguel, até que...

MIGUEL Isso está parecendo passe espírita, padre.

COSTA (Deixa a oração, responde, e volta à oração) Parecer não é o mesmo


que ser, meu caro.

MIGUEL Mas isso não é coisa de um padre... Ou o senhor é um embusteiro?

COSTA (Irritado) Embusteiro? Como se atreve a falar desse jeito com um


servidor do Senhor?

MIGUEL Desculpe, estou nervoso...

COSTA Pois fique sabendo que me sinto constrangido. E decidirei se comento


sua atitude na missa do próximo domingo.
NANÁ Não tem necessidade, padre.

MIGUEL Ora, foi só um escorregão...

COSTA Maria Madalena também escorregou e caiu no inferno.

MIGUEL Bem, padre, estou nos limites da minha paciência. Tudo bem, o senhor
veio buscar os santinhos... Benzeu minha mulher... mas isso não lhe dá
o direito de... de... exagerar nos fatos.

NANÁ Deixe ele, Miguel.

- 29 -
MIGUEL (Nervoso) Deixo não! Pronto. Já me encheu o saco. Chega aqui tarde da
noite, invade a minha casa e, com conversa fiada de benzimento, fica
passando a mão na minha mulher!

COSTA (Para Naná) Tranqüilidade, filha. Estás purificada. (Para o Miguel)


Quanto ao senhor, tenho minhas dúvidas para onde vai depois de passar
pro outro lado.

MIGUEL Pelo que vejo, vamos pelo mesmo caminho.

COSTA Sou polivalente. Trabalho de direita e de esquerda, um ambidestro


espiritual. E agora, se me dão licença... (põe-se a sair).

NANÁ Não quer mesmo o licor?

MIGUEL Ele não quer nada. Quer ir embora rápido!

COSTA Não quero licor, obrigado. Senhor Miguel, aceite um conselho: Cuidado
com os chifres do concorrente na sua cabeça. (Sai)

MIGUEL Que padrezinho mais atrevido! Assim que tiver tempo, vou à paróquia
queixar-me dele. Diabos!

NANÁ Que Deus te perdoe, Miguel.

MIGUEL Que Deus me perdoe? Não fiz nada de mal. Apenas não gostei do jeito
desse padre. Se é que era mesmo um padre... Tenho minhas dúvidas.
Aliás, estou tendo muitas dúvidas nesta noite. É muito pra minha cabeça.
(Movimentando-se) Acho que vou tomar um banho. Pra refrescar a cuca.

NANÁ (Já refeita das emoções) Não acha que é um pouco tarde?

MIGUEL Tarde pra que?

NANÁ Para o banho. Vai despertar o corpo...

MIGUEL E daí?

NANÁ Logo você terá que ir pro escritório... O tempo passa rápido...

MIGUEL (Olhando a pasta) E por falar nisso, não posso esquecer da pasta. Logo
mais tenho uma reunião e os documentos são importantes...

NANÁ Você já disse isso várias vezes. Eu gostaria de entender de documentos


só para ver que papéis são esses.

MIGUEL Nada que lhe diga respeito.

NANÁ Hoje, depois que o empresário saiu, também participei de uma reunião.

- 30 -
MIGUEL (Interessado) Reunião? De que?

NANÁ É um novo empreendimento de vendas...

MIGUEL Hum, muito bom.

NANÁ Produtos de beleza. Cremes, sombras, batons... Essas coisas...

MIGUEL Estão empesteando o mundo com essas porcarias.

NANÁ Não fale assim. A mulher nunca esteve tão bonita como agora.

MIGUEL Beleza artificial.

NANÁ Não é bem assim. Os produtos de beleza servem para realçar a beleza
feminina. E olhe que tem homens usando esses produtos...

MIGUEL Uns calhordas!

NANÁ Ao contrário. São homens que sabem valorizar a mulher.

MIGUEL (Decidido) Muito bem. E pra que fim você participou dessa reunião?

NANÁ Fui convidada para ser supervisora de vendas.

MIGUEL (Ri) Supervisora? Eu não acredito!

NANÁ Por que você está rindo? Antes de ser dançarina, eu fui vendedora. E
me saí muito bem.

MIGUEL (Irônico) Então por que mudou de profissão, amorzinho? Por que vender
outra coisa dá mais dinheiro que...
NANÁ (Interrompe, agressiva) não seja irônico, Miguel. Mudei porque não
ganhava nem pra condução.

MIGUEL E essa nova merda vai lhe render o que? Isso é besteira. Você não
precisa disso para viver.
NANÁ Claro que não preciso. Você me sustenta! Só que eu não vivo, embora
sobreviva.

MIGUEL É a mesma coisa.

NANÁ Não é não. É possível a gente sobreviver sem viver. O que não é
possível é viver sem sobreviver.

MIGUEL (Irônico) Muito bem, senhora filosofia, explique isso de maneira que este
humilde imbecil entenda.

- 31 -
NANÁ Por exemplo: Há doentes que ficam ligados a máquinas que os fazem
sobreviver. Eles respiram, alimentam-se de soro... Mas não vivem. Viver
é plenitude da sobrevivência, Miguel.

MIGUEL Ridículo!

NANÁ Eu estou presa à máquina que me faz sobreviver. Essa máquina é você.
E você está preso à máquina dos seus negócios... Mas não vivemos
Miguel. Apenas sobrevivemos.

MIGUEL Você está completamente maluca. Aliás, de nada serviu a vinda daquele
médico. Mas assim que eu der uma adequada esculhambação no
Maurício, vou pedir que examine você pessoalmente. Deve haver algo
de errado com você, não é possível!

NANÁ Você sabe de que não há nada de errado comigo.

MIGUEL Não sou médico.

NANÁ Nem precisa ser médico para ver que estou em plena sanidade física e
mental.

MIGUEL É impressionante como você gosta de me aborrecer.

NANÁ (Meiga) Se você se aproximar mais de mim, vai perceber que não é bem
assim. Até que gostaria de te fazer feliz...

MIGUEL Andou assistindo muita novela, creio.

NANÁ Você sabe que quase não vejo televisão... O que estou dizendo é
sincero.

MIGUEL Devo acreditar em tanta sinceridade?

NANÁ Não sei... Só sei que nas últimas horas tenho pensado muito em nosso
casamento.

MIGUEL Horas de reflexão...

NANÁ Apesar da sua ironia, são horas de reflexão, sim senhor. Estou
comparando passado e presente. Qual será o melhor?

MIGUEL O presente, minha cara. O presente, que é mais rico! E não cheira a
defunto.

NANÁ (Irritada) Vá, Miguel! Vá tomar o seu banho. (Irônica) Nada como um
banho frio numa noite quente como esta!

MIGUEL (Olha, por instantes, para Naná, furioso; depois...) Vá à merda! (E sai).

- 32 -
CENA 5

Naná apanha a pasta, leva-a para a cama e põe-se a examinar os papéis.


Depois de um tempo...

MIGUEL (De dentro) O banheiro está entupido. Você sabia, Naná?

NANÁ Não.

MIGUEL (De dentro) Pois está. Temos que chamar alguém para consertá-lo
amanhã, logo cedo.

NANÁ Hoje, Miguel. Já são três horas da manhã! (examinando os papéis) Mas
são cartas. Muitas cartas! Que diabo de cartas são estas?

Sorrateiramente, volta o Costa, desta vez como encanador. Assusta Naná que,
absorta nas cartas, não tinha notado a sua presença.

NANÁ Você é louco, Costa? Está se arriscando muito.

COSTA Tudo pela reconquista.

NANÁ (Rindo) Desta vez, o que você é?

COSTA Encanador. Vim fazer uma revisão no encanamento do seu apartamento.

NANÁ Mas às três horas da madrugada?

COSTA Deixa que eu me viro.

NANÁ O Miguel vai ficar muito feliz. O banheiro acaba de entupir.

COSTA Bem planejado, não?

NANÁ Vai me dizer que foi você?

COSTA Exatamente.

NANÁ Mas quando você fez isso?

COSTA Eu não. Foi a Júlia. (Ri).

NANÁ (Rindo, abafado) Eu não acredito! Você é demais, Costa! (Abraça-o).

COSTA Cuidado, Naná. O seu maridinho pode voltar de repente...

NANÁ (Afastando-se) Pois é, estou preocupada.

COSTA Preocupada com que?

- 33 -
NANÁ Com você. O Miguel ainda vai desconfiar...

COSTA Que nada! O Miguel é um otário. Não percebe nada.

NANÁ Mas se ele descobrir...

COSTA O que ele pode fazer?

NANÁ Te mata! E eu não quero que isso aconteça. Não quero que você morra!

COSTA De novo, não, pelo amor de Deus!

NANÁ (Interessada) Me conta, como foi que você não conseguiu morrer?

COSTA Não consegui morrer?

NANÁ É! Conta!

COSTA (Confuso) Bem... Não consegui morrer porque consegui me salvar, não
é?

NANÁ Sim, mas como aconteceu? Ficou esse tempo todo sem dar notícias...

COSTA Quando o ônibus caiu no rio, consegui sair pelo vidro de trás. Acho que
só eu me salvei por ali. Apesar de muito ferido, me agarrei num pedaço
de madeira. Acho que era uma parte do ônibus, não sei.

NANÁ Que emocionante, Costa!

COSTA Pelo jeito, naveguei naquele pedaço de madeira por muito tempo. Eu me
lembro que quando o ônibus despencou, estava amanhecendo. E
quando os pescadores me tiraram do rio, já era quase noite.

NANÁ E depois, conta!

COSTA Bem, como eu estava muito ferido, os pescadores me levaram para um


pequeno hospital da região. E nesse hospital passei a maior parte do
tempo...
NANÁ Nossa! E como você conseguiu pagar o tal hospital?

COSTA No princípio, o povo da região me ajudou. Depois, eu trabalhei muito


para pagar o que devia...

NANÁ Você podia ter me avisado...

COSTA De que jeito? Não havia um telefone, nada. Tudo que ia para lá era de
avião. O exército ajudava no transporte de comida, remédios... É o fim
do mundo, se quer saber.

NANÁ E por que você não mandou recado por um soldado?

- 34 -
COSTA Por duas razões: porque eu tinha uma dívida com a aldeia e porque não
queria deixá-la preocupada.

NANÁ Mas você, sem dar notícias, me deixou preocupada. Afinal...

COSTA (Interrompe) Afinal, não é sempre que se pode arranjar um marido rico,
não é?

NANÁ (Tímida) Não fale assim, Costa.

COSTA Aquele povo me ajudou a sobreviver...

NANÁ E a viver.

COSTA Tem razão. E a viver... (Naná afasta-se, mostrando-se triste) O que


aconteceu, Naná?

NANÁ Você criou um problema pra mim... Eu já estava acostumada com a


sobrevivência sem viver...

COSTA Que quer dizer?

NANÁ Nada que você entenda profundamente... (Ouve-se a voz do Miguel: "A
água está uma delícia, Naná. Por que não vem tomar um banho?") Você
não compreenderia, querido. (Para o Miguel) Não estou com vontade!
(Para o Costa) Eu amo você, mas estou acostumada com o dinheiro
dele.

COSTA Quer dizer que entre mim e você existe um cifrão?

NANÁ É... Existe.

Aparece o Miguel, enrolado numa toalha de banho. Surpreende-se ao ver o


Costa.
MIGUEL Ah, essa não! Mais um!

COSTA (Adiantando-se) Severino, senhor, às suas ordens! Encanador tipo


exportação pronto para uma inspeção de rotina no seu apartamento.

MIGUEL (Desconfiado) Inspeção? Eu não pedi nenhuma inspeção...

COSTA Inspeção de rotina, senhor. O senhor não pede, mas a gente vem.

MIGUEL Interessante... Às essa hora da madrugada?

NANÁ É o turno da noite, querido!

MIGUEL (Irritado) Ninguém pediu a sua opinião. Fique com a boca calada!

NANÁ (Tímida) Desculpe...

- 35 -
COSTA A sua esposa tem razão, senhor.

MIGUEL Essa tal inspeção não poderia ser feita durante o dia?

COSTA Poderia, senhor. Mas o encanador do dia ficou doente... E eu só faço o


turno da noite. Além do mais, à noite todos os gatos são pardos, senhor.

NANÁ (Rindo) Gostei da piada!

MIGUEL Pois eu não gostei. Me aparece um padre de madrugada e logo depois


um encanador. Para uma inspeção de rotina... Meio esquisito, não acha?

COSTA Acho, senhor.

MIGUEL (Agressivo) E não me chame de senhor! Está me irritando com isso!

COSTA Eu sou educado, senhor!

MIGUEL Merda!

COSTA É o problema do seu banheiro? Soube que está entupido.

MIGUEL É verdade. O ralo do box entupiu.

COSTA Estou aqui para resolver o problema.

MIGUEL (Desconfiado) Às três horas da madrugada... Quem iria acreditar numa


história dessas?

NANÁ Eu acreditaria.

MIGUEL Está bem. Vá fazer o seu serviço. E ande logo. Quero dormir.

COSTA (Batendo os calcanhares) Com licença, senhor! O dever me chama!


(sai).

Miguel, desconfiado, acompanha o Costa com o olhar. Depois nervoso, anda de


um lado para o outro.

NANÁ Acalme-se, queridinho. Cuidado com o coração.

MIGUEL Está tudo muito estranho, Naná. Não é normal o que está acontecendo
nesta casa. Aquele médico me deixou dúvidas...

NANÁ Foi o seu amiguinho Maurício quem mandou.

MIGUEL Sim, eu sei... Mas e o tal padre Bento? Muito estranho para ser um
padre de verdade... E agora, esse encanador... Visita de inspeção, de
madrugada.

- 36 -
NANÁ Você sabe que esses operários são esquisitos mesmo.

MIGUEL Logo que eu sair, pela manhã, vou procurar o síndico e reclamar. Eu não
posso admitir uma inspeção de rotina a esta hora da madrugada. Aí tem
coisa, Naná!

NANÁ Você podia tê-lo proibido de fazer o serviço. Você é o dono da casa.

MIGUEL É, podia. Mas não o fiz por uma razão muito simples: Não quero dar
motivos para o síndico andar por aí dizendo que eu atrapalho os serviços
da responsabilidade dele.

Enquanto Miguel e Naná conversam, o Costa entra sorrateiramente e apanha a


pasta de documentos, na penteadeira. Naná, assustada, percebe e lhe faz um
sinal que não. Ele, entretanto, sorrindo, faz-lhe um sinal positivo e leva a pasta
para dentro.

NANÁ Ora, Miguel, isso é bobagem... Você tem o direito de autorizar ou não
um serviço em sua casa...

MIGUEL Eu não sou o dono desta porcaria de apartamento. Você é a dona!

NANÁ Porcaria?

MIGUEL Desculpe, foi força de expressão... É que eu passei hoje na imobiliária


do Serginho. Eles estão vendendo uma cobertura sensacional. Você não
quer ir vê-la amanhã?

NANÁ Já conversamos sobre isso. É uma questão sentimental. Eu comprei


este apartamento com o sacrifício do meu falecido marido. Quero
continuar vivendo aqui.

MIGUEL Não me conformo com a sua burrice. Estou lhe oferecendo uma
cobertura, com piscina, salão de festas... E você despreza tudo isso
porque esta droga foi comprada com o seguro do ex marido. Não dá pra
entender.

Disfarçadamente, o Costa retorna, colocando a pasta na penteadeira.

COSTA (Aproximando-se) Senhor, além do seu cano entupido, a mola do seu


injetor não sobe mais.

MIGUEL (Enquanto Naná ri) Mola do meu injetor? Que diabo é isso?

COSTA A mola que me refiro é a bóia do injetor de água na caixa d'água.

MIGUEL (Naná ri mais ainda) Mas isto é um apartamento! (para Naná) E pare de
rir como uma idiota! (Para o Costa) A caixa que serve minha casa, serve
todas as outras deste prédio.

- 37 -
COSTA Eu me refiro a sua mola particular. Sobre o seu vaso sanitário existe uma
pequena caixa d'água, senhor. E o injetor serve para jogar para fora a
água dessa caixa.

MIGUEL Pois lhe confesso que nunca vi tal caixa...

COSTA Essa caixa é embutida, senhor! Mas a sua mola é aparente. Basta o
senhor tirar a toalha para vê-la! (Naná cai na gargalhada).

MIGUEL (Olhando-se) Tirar a toalha?

COSTA Refiro-me à toalha que está pendurada no registro do seu banheiro.

MIGUEL (Para Naná) Chega, Naná. Sua risada está me irritando! (Para o Costa)
O senhor não pode dar um jeito nessa... mola?

COSTA Eu?! Só Deus, senhor! Só Deus!

MIGUEL (Confuso) Que quer dizer com "só Deus"?

COSTA Quero dizer que não sou especialista nesses assuntos.

MIGUEL Mas você não é encanador?

NANÁ (Rindo) Ele é sim, Miguel. Não está vendo?

COSTA Minha especialidade é só para desentupir. E esse trabalho já foi feito.


Agora, se me dão licença...

NANÁ (Irônica) É cedo ainda, encanador.

MIGUEL Espere um pouco, seu... seu...

COSTA Severino da Costa, seu criado!

MIGUEL Costa? Eu já ouvi esse nome antes... Escuta, não dá pra arrumar essa
mola?

COSTA Sua mola não tem jeito. Seria preciso trocá-la por uma mais nova.

NANÁ (Rindo) Eu trocaria!

MIGUEL Que droga! Só fazem porcaria hoje em dia.

COSTA Desculpe, senhor, mas a sua mola é bem velha. Pra função que ela se
destina, só as novas funcionam direito, Bem, nada mais a fazer, vou
saindo. (Põe-se de saída).

MIGUEL E o pagamento? Não vai receber?

- 38 -
COSTA Oh, não é comigo, senhor. Acerte com o síndico, logo pela manhã. (Sai).

MIGUEL (Espreguiçando-se, aliviado) Bom, depois de tudo, nada como uma boa
noite de sono! Vou pôr o pijama e cama!

NANÁ A que horas você quer acordar?

MIGUEL Às oito, querida! Não preciso sair muito cedo. A reunião está marcada
para as dez... (Sai).

CENA 6

Naná acerta o relógio no criado-mudo do lado do Miguel. Depois, deita-se.


Pouco depois retorna o Miguel, já de pijama. Desliga a luz (que é geral),
deixando apenas a luz do abajur (que é indireta, fraca). Miguel senta-se na cama
e...

NANÁ Está sem sono?

MIGUEL Não é isso. Já descobri porque me apareceu esse tal de Severino. É


vingança.

NANÁ Vingança? De quem?

MIGUEL Do síndico. Lembra-se do caso da torneira do tanque?

NANÁ Lembro. Que isso tem a ver com o encanador?

MIGUEL Simples. Eu pedi ao síndico para mandar arrumá-la. E só no dia seguinte


apareceu o encanador. Compreende agora?

NANÁ (Sorrindo) Que coincidência!

MIGUEL Tomara que você tenha razão. Que seja mesmo coincidência. Não gosto
de ser provocado.

NANÁ (Ardilosa) Como aconteceu na noite na noite em que te conheci?

MIGUEL Aquilo foi outra coisa.

NANÁ Nunca mais vi aquele porteiro. Não sei por onde anda...

MIGUEL Ele não tinha o direito de me jogar pra fora da boate. Nem de me
empurrar daquele jeito. Me pôs a nocaute.

NANÁ Você o provocou, Miguel. Estava bêbado! Você disse na cara dele que
poderia comprá-lo na hora que bem entendesse.

MIGUEL Foi força de expressão.

- 39 -
NANÁ Força de expressão? Você chegou a esfregar dinheiro no nariz dele. Foi
isso que o irritou. Por isso ele te bateu daquele jeito.

MIGUEL Mas ele pagou por isso!

NANÁ Como assim?

MIGUEL Foi morto por assaltantes dois dias depois.

NANÁ (Entristece) Morto? Você nunca me disse isso, Miguel.

MIGUEL Não queria aborrecê-la.

NANÁ E prenderam os assaltantes?

MIGUEL A polícia desistiu do caso. Trabalho de profissional, minha cara.

Miguel acomoda-se na cama, virando-se de costas para Naná; pequena pausa.

NANÁ Já vai dormir?

MIGUEL Finalmente, vou. Já perdi muito tempo.

NANÁ Mas assim... Direto?...

MIGUEL Que quer dizer com direto?

NANÁ Sem preliminares?... O que você sentiu quando o doutor Castro estava
me examinando?

MIGUEL Raiva! Uma raiva danada!

NANÁ Só isso? Não ficou excitado? Dizem que os maridos se excitam quando
observam suas mulheres serem acariciadas por outro homem...

MIGUEL Bobagens...

NANÁ Tenho lido muito sobre isso. Tem umas revistas que dizem tudo. Sem
papas na língua. São revelações de atos sexuais.

MIGUEL Essas revistas não prestam.

NANÁ Eu fico excitada quando leio esses casos. Menage à troi... Swing... Será
que troca de casais é divertido?

MIGUEL É uma blasfêmia contra Deus. Isso é coisa do diabo! O mundo vai
acabar, querida. Como Sodoma e Gomorra. Vamos virar todos estátuas
de sal.

- 40 -
NANÁ Hum, você já imaginou que delícia? Uns lambendo o salgadinho dos
outros?

MIGUEL Ridículo!

NANÁ Ridículo, mas você vive comprando essas revistas. Só porque tem
mulher nua? Quer que eu fique nua?

MIGUEL Vamos dormir, Naná. Por favor...

NANÁ (Senta-se na cama) Eu faço poses, como as moças das fotos, quer?

MIGUEL Não!

NANÁ Olhe, vamos fazer uma coisa: eu fico nua, faço poses e você imita um
fotógrafo, tá legal?

MIGUEL Não, já disse! E depois, não estou mais na idade de ficar brincando de
fotógrafo. Muito menos de madrugada!

NANÁ (Aborrecida) Droga! O que eu posso fazer com um homem que está com
a mola quebrada? Ah, mais eu vou tentar. E é agora!

Naná salta da cama e vai à toca-fita; coloca música apropriada. Tentando


colocar-se à frente do Miguel, inicia uma dança lasciva. O Miguel vira-se para o
outro lado. Naná tenta acompanhá-lo, dançando. Miguel volta-se, pondo-se de
costas e começa a roncar. Naná desiste.

NANÁ Não tem jeito. Droga! No tempo do meu finado Costa era bem diferente.
(Desliga o toca-fitas) Nós dois brincávamos muito, como duas crianças.
Era tão gostoso... (Deita-se). A gente corria um atrás do outro. Esconde-
esconde... Não tinha essa frescura de idade e horários... Que pena!
Acho que acabou...

Como uma tempestade, Costa entra em cena. Disfarçado em investigador de


polícia, tem nas mãos um revólver.

COSTA Todos de pé, vamos! É a polícia! Andem, depressa!

Naná e Miguel, apavorados, saltam da cama e põem as mãos para o alto.

MIGUEL Que... Que é isso?

COSTA Não faça perguntas! Aqui quem faz perguntas sou eu! Vamos, encostem
na parede, rápido! (Naná e Miguel obedecem) De costas para mim,
rápido! Qualquer movimento em falso, eu mando bala, entenderam? Vou
fazer uma revista para saber se estão armados.

MIGUEL Eu não estou armado, sargento.

- 41 -
COSTA Eu não sou sargento, cretino! Sou cabo. Cabo Costa, para ser mais
claro!

MIGUEL (Querendo virar-se) Costa?

COSTA Não se mexa ou leva chumbo! E cale-se!

NANÁ (Mostrando-se calma, feliz) Pode me revistar, cabo. Eu não me importo.

COSTA (Como um detetive, vai passando as mãos e apalpando todo o corpo de


Naná, numa revista) Não creio que esteja armada, senhora! (mas
continua apalpando o corpo de Naná).

MIGUEL Não acha que está demorando muito nessa revista, cabo?

COSTA Cale a boca! Suspeito não fala nada e nem faz perguntas!

MIGUEL Suspeito?! De que?

COSTA Já falamos no assunto. (Pára a revista em Naná) Podem ficar à vontade!

MIGUEL Não vai me revistar?

COSTA Não é preciso. Você não seria tão imbecil a ponto de estar dormindo
com uma arma.

MIGUEL (Agressivo) Então por que revistou a minha mulher?

COSTA (Ameaçador, apontando o revólver) Porque é mais gostoso, ta sabendo?


E vai querer discutir comigo?

MIGUEL (Acovardando-se) Bem... É claro que não...

NANÁ (Irônica) Que homem valente, meu Deus!

COSTA Eu quero saber onde está ele? Onde você o escondeu? Vamos,
responda!

NANÁ - Não acha que está exagerando no seu papel, cabo?

COSTA Não, madame! Meu papel tem que ser assim. Esse desgraçado tem que
confessar!

MIGUEL (Apavorado): Eu... Não sei... Ele quem?

COSTA Você sabe, "seu" merda! Sabe muito bem. E vai me contar direitinho o
que fez com ele.

MIGUEL Eu... não sei do que o senhor está falando...

- 42 -
NANÁ (Irônica, rindo) Força, Miguel. Força!

COSTA Vou meter você na cadeia por isso!

MIGUEL (Atônito) Deve haver algum engano... O senhor, com essa arma
apontada pra mim, ainda vai fazer besteira.

NANÁ Mais um pouquinho de força, Miguel. Vamos!

MIGUEL Cala a boca, Naná. Olha, seu cabo, eu sou um homem honesto...

COSTA E daí?

MIGUEL Sou industrial... Tenho muito dinheiro...

COSTA Não tente me subornar, canalha!

NANÁ (Torcendo) Vamos, Miguel. Tente mais uma vez!

MIGUEL Eu não quis suborná-lo, seu cabo! É que eu...

COSTA Só quero saber onde ele está!

MIGUEL Ele quem, meu Deus?

COSTA Você não sabe? Você é cúmplice do cara. Divide a grana com ele. E
ainda diz que não sabe?

NANÁ Talvez ele seja inocente, seu cabo.

COSTA Inocente? Ora, minha senhora, eu conheço esse tipo. É vigarista


mesmo. É trambiqueiro, dona. Eu odeio sujeitinho dessa espécie. Ou ele
me conta tudo ou jogo ele pela janela.

MIGUEL (Apavorado) Olhe, seu cabo, confesso que tenho uma coisinha pra
contar pro senhor...

NANÁ (Irônica) Segredinhos, hein Miguel?

COSTA Vá falando. E depressa! Tenho outros clientes pra visitar.

MIGUEL É um caso muito antigo... Foi há cinco anos, mais ou menos...


Aconteceu na boate que minha esposa trabalhava.

COSTA (Para Naná) Aquela de sempre? (Naná balança a cabeça


afirmativamente).

MIGUEL O senhor já conhecia minha mulher?

COSTA Quem faz perguntas aqui sou eu. Vamos, fala!

- 43 -
MIGUEL Havia um sujeito que trabalhava como porteiro. Ele não gostava de mim,
porque eu... gostava de humilhá-lo na frente dos outros...

COSTA Por causa do seu dinheiro, não é calhorda?

MIGUEL Bem... Na verdade, o meu dinheiro sempre me ajudou... Numa noite, eu


bebi demais e comecei a insultá-lo... Ele perdeu a paciência e me deu
uma surra. E ainda me jogou no meio da calçada. Na frente de todo
mundo...

NANÁ Aí, Miguel. Tá saindo, querido! Vamos, força!

MIGUEL Não suportei tanta humilhação. No dia seguinte, contratei dois caras. Eu
só queria que eles dessem uma lição no tal porteiro. Mas eles acabaram
matando o pobre homem... O senhor sabe, essa gente é muito violenta...
(Naná esconde o rosto com as mãos, chorando) Eu não tive culpa...
Gastei muito dinheiro para mandá-los pra fora do país...

COSTA Já vi que você não é o sujeito que estou procurando. É muito covarde
para o meu gosto!

NANÁ Não vai prendê-lo, cabo?

COSTA Não é do meu departamento. O caso dele é com a polícia.

MIGUEL O senhor não é da polícia?

COSTA Sou e não sou. Mas isso é uma outra história. (Põe o revólver na
cintura).

NANÁ Muito bem, e agora? O que fazemos?

MIGUEL Nada, Naná. O seu cabo vai embora e pronto! Não é seu cabo?

COSTA É, acho que é isso!... (Fixa os olhos na pasta sobre a penteadeira).

MIGUEL (Descobre o olhar do Costa e olha rápido para a pasta) Oh, a minha
pasta!

COSTA Tem alguma coisa de valor naquela pasta?

MIGUEL Tem... São documentos pessoais... Coisas simples, sabe?

COSTA Não se importa se eu examiná-la, não é?

MIGUEL (Num gesto rápido e infantil, agarra a pasta e abraça-a ao peito) Não,
seu cabo, por favor!... São coisas particulares...

COSTA Está bem. Não vim aqui por isso. (Põe-se de saída) Desculpem a
invasão... (Sai).

- 44 -
MIGUEL Até mais, seu cabo. Acho que ainda nos veremos.

Miguel corre para a janela. Olha bem, por instantes. Depois, desconfiado...

MIGUEL Engraçado, não há viva alma na rua... Nem carro de polícia... Estranho...
Muito estranho...

Naná, visivelmente irritada, joga-se contra o Miguel dando-lhe murros.

NANÁ Desgraçado, você mandou matar aquele porteiro! Maldito!

MIGUEL (Tentando contê-la) Eu não mandei, Naná! Só queria assustá-lo!

NANÁ (Afastando-se) Você e o seu maldito dinheiro! Compra tudo, até a vida
das pessoas.

MIGUEL (Procurando acalmá-la) Olhe, querida! Vamos esquecer isso, tá? vamos
combinar uma coisa: eu a levo ao médico, logo cedo. Depois, vamos dar
um passeio de carro, só nós dois. Dispenso o motorista, tá bom? Vamos
por aí, pra qualquer lugar bem tranqüilo. Almoçamos num restaurante
bom... À tarde, passamos numa joalheria. Eu vi, noutro dia, um colar de
brilhantes tão bonito... (Recoloca a pasta na penteadeira).

NANÁ (Decidida) Você não me compra mais, Miguel. Seu dinheiro é sujo. É
dinheiro de falcatruas, de trambiques, de morte.

MIGUEL (Meio irritado) Espera um pouco. Também não precisa ofender. Eu já


ando cansado da sua língua.

NANÁ Quem anda cansada sou eu. Eu ainda abandono você, Miguel.

MIGUEL (Confiante) Você não teria coragem. Sobreviver do quê? Dos


trocadinhos daquela boate de merda? Além do mais, não sei onde você
conseguiria emprego. Sabe, posso comprar todo mundo, inclusive seus
possíveis patrões. Já pensou numa grande reforma naquela boate? Com
letreiro luminoso... Propaganda na televisão... Será que o proprietário
daquela espelunca iria trocar tudo isso por uma dançarina qualquer?

NANÁ (Joga-se na cama, cobrindo-se com o lençol) Eu te odeio!

MIGUEL Está bem, queridinha. Só espero que me deixe dormir em paz.

- 45 -
CENA 7

Faz-se silêncio por um tempo. Ouve-se apenas ruídos comuns, de carros


passando na rua, de pessoas falando ao longe... Depois, Costa surge nas
sombras do palco. Veste-se de anjo, com asas e tudo o mais. Coloca-se no local
mais sombrio do cenário e pigarreia com a intenção de acordar Miguel e Naná.

MIGUEL (Movendo-se na cama) Droga, acho que esqueci a janela aberta. (Costa,
parado, com os braços abertos junto a janela, pigarreia mais forte) Que
diabo de barulho é esse? Será que vai chover? (Costa pigarreia de novo)
Bosta, vai chover mesmo. Acho melhor fechar a janela. (Ergue-se e
quando vai em direção à janela, assusta-se ao ver o Costa) Que é isso?
(Está muito assustado). Quem é você?

COSTA (Sem sair do lugar) Um anjo, senhor.

MIGUEL (Afastando-se, com medo) Um anjo? Acho que estou ficando louco, não
é possível. (Sacode Naná) Naná, acorde! Ande, Naná! Acorde, mulher!

NANÁ (Acordando, meio assustada) Hein? O que é?

MIGUEL (Apontando) Veja, um anjo apareceu pra mim... (Naná olha para o Costa;
este lhe faz, disfarçadamente, um sinal negativo, ou seja, dizendo que
não) Olhe, ali, perto da janela!

NANÁ (Sentando-se na cama - sorri levemente) Onde? Não vejo nada...

MIGUEL (Apontando) Ali, do lado da janela. Você... não está vendo?

NANÁ (Faz que se esforça para ver) Não. Não vejo ninguém.

MIGUEL (Passa a mão pelo rosto) Acho que estou ficando doido, Naná. Eu o
vejo, paradão perto da janela.

NANÁ (Deitando-se) Ora, Miguel. Você teve algum pesadelo...

MIGUEL (Confuso) Pode ser... Mas eu agora estou acordado... E ele está ali...
(Costa dá um "tchauzinho" pro Miguel): Dando tchauzinho pra mim...
(Salta pra cama) Estou com medo, Naná!

NANÁ Ora, deixe de ser covarde! Só me faltava essa, além de brocha, Ter um
marido covarde.

MIGUEL Não fale assim, Naná! Eu tenho medo que seja alguma coisa do além...
Eu vi num filme que a mão de um morto voltava pra se vingar...

NANÁ Você só está vendo a mão?

MIGUEL Não... Estou vendo ele por inteiro. E ele tem até asas...

- 46 -
NANÁ (Galhofando) Você deve estar vendo algum morcego, Miguel. Vamos
dormir, homem.

MIGUEL Não posso. Ele continua ali, parado...

NANÁ Como é a cara dele?

MIGUEL Não sei... Não o vejo direito. Ele está no escuro...

NANÁ Então, acenda a luz.

MIGUEL Você tá louca! O interruptor fica perto dele...

NANÁ (Irritada) Vi, Miguel! Vi! Ele está de vermelho, tem dois chifres na cabeça
e uma pasta na mão.

MIGUEL Errado. Ele está de azul, tem uma argola na cabeça e tem asas nas
costas.

NANÁ E você queria que ele tivesse asas aonde?

MIGUEL Olhe, eu vou tentar falar com ele. Preciso de coragem. Quero saber o
que ele quer. Mas você fique acordada. De repente, eu preciso de
você...

NANÁ (Sentando-se) Está bem. Eu fico acordada. Agora vá, fale com ele e
volte pra cama. Nós precisamos dormir, entendeu?

MIGUEL (Saindo da cama) Já vou. Não durma, hein! (Benze-se e aproxima-se um


pouco) Diga-me, "seu" anjo, o que é que o senhor quer de mim?

COSTA Faz cinco anos que eu estou no céu, mas pagando penitência. E por
causa do senhor.

MIGUEL (Ainda assustado) Por minha causa? Mas você é o primeiro anjo que eu
vejo...

COSTA Antes de eu morrer, eu não era anjo, Miguel.

MIGUEL Acredito.

COSTA Eu era um dos seus amigos. Lembra-se do Renato? Daquele que se


suicidou?

MIGUEL (Muito confuso) Renato? Ah, sim!... Eu não acredito que é você o
Renato.

NANÁ (Rindo disfarçadamente) Não deve duvidar de um anjo, Miguel.

- 47 -
MIGUEL (Já desconfiado) Acho que esse cara é um impostor, Naná. Estou
achando muito esquisita essa estória de anjo...

NANÁ Lembre-se do filme, Miguel. Daquela mão vingadora, querido.

MIGUEL Aquilo era filme. Invenção.

NANÁ Por isso mesmo, aqui é realidade. Um anjo em carne e osso!

MIGUEL Isso, Naná. Em carne e osso o desgraçado. Quer ver? (para o Costa)
Diga-me, querido anjinho, seu nome é Costa?

COSTA Anjo não tem costa, senhor.

NANÁ Você viu? Ele não é Costa!

MIGUEL Desgraçado! (Num gesto rápido, apanha um revólver na gaveta do


criado-mudo, acende a luz (geral) e, ameaçador, avança para o Costa,
que permanece paralisado) Cretino! Anjo, não é?

COSTA Chiii, agora fudeu!

NANÁ (Assustadíssima) Foge, Costa!

MIGUEL (Meio confuso) Costa? Naná, você conhece esse cretino?

NANÁ (Sem saber o que dizer) Eu?... Não... Sei lá...

COSTA (Com medo) como desconfiou de tudo?

MIGUEL Pelos sapatos, idiota! Eu nunca vi anjo de sapatos. Sempre ouvi dizer
que anjo tem pés descalços... (olha bem para os sapatos do Costa, que
tem as mãos levantadas) Hum, que interessante! Os mesmos sapatos
da Júlia, do doutor Castro, do padre Bento...

NANÁ (Chorosa) Do encanador...

COSTA (Choroso) Do cabo...

NANÁ (Indignada) Você não trocou os sapatos, Costa?

COSTA Não... eu só tinha esses...

MIGUEL Só uma curiosidadezinha: onde arranjou todas aquelas roupas? E essa


aí de anjo?

COSTA No guarda-roupa da sua empregada.

NANÁ (Chorosa) Joana faz parte de um grupo de teatro, Miguelzinho.

- 48 -
COSTA Pois é. Quando eu me escondi no quarto dela, tive a idéia de me enfiar
no guarda-roupa. Foi quando via a possibilidade de me transformar em
diversas pessoas...

MIGUEL Para quê? Pra me encher o saco a noite toda?

COSTA Não, nem pensei nisso... É... É...

MIGUEL (Agressivo) É o que?

COSTA Bem... É... É que eu sou o Costa!

MIGUEL Já estou cansado de saber que você é o Costa. E daí?

NANÁ Ele é “O” Costa, Miguel.

MIGUEL Quantas vezes preciso repetir que já sei que ele é o Costa.

COSTA Eu... Sou... o primeiro marido da Naná.

MIGUEL (Gargalhando) E eu sou o Neymar.

NANÁ (Chorosa) É verdade, Miguel. Ele é o meu marido.

MIGUEL Ora, não me venham com piadas a uma hora desta. Estou cansado; não
abusem da minha paciência. Não percebem que estou com uma arma
na mão?

NANÁ (Chorosa) Mas é verdade, Miguel.

MIGUEL O Costa, seu primeiro marido, está morto. O Costa mor-reu... Mor-reu...
Costa? Você é o Costa?

COSTA Quantas vezes preciso lhe dizer que eu sou o Costa?

NANÁ (Chorosa) No princípio, eu também não acreditava...

MIGUEL Como você ressuscitou?

COSTA Eu não morri, Miguel. Pesaram que eu morri. Mas estou vivo.

MIGUEL (Encorajando-se) Ah, mas vai morrer agora, tenha certeza!

NANÁ Miguel, abaixe esse revólver, por favor!

COSTA É a única coisa que ele mantém levantada!

MIGUEL Você tem que morrer, Costa. Veio aqui, na minha casa, bolinou minha
mulher o quanto quis...

- 49 -
COSTA “Pêra” um pouco, Miguel. Este apartamento foi comprado com o dinheiro
do meu seguro. E a mulher é minha.

MIGUEL A mulher é minha. Eu me casei com ela.

COSTA É minha. Eu casei primeiro.

MIGUEL (Sinistro) De jeito nenhum. Você está morto, homem. E bem enterrado...
Digamos, submerso, naquele mesmo rio do acidente. Dentro de um saco
cheio de paralelepípedos. Ah, que acha disto?

NANÁ (Chorosa) Você é cruel, Miguel.

MIGUEL Deixe os versinhos pra outra hora, Naná!

COSTA Ela é uma boa poeta. Improvisa que é uma beleza!

MIGUEL Ande, anjinho, me responda: a minha idéia é ou não é boa?

COSTA Que idéia?

MIGUEL De meter você no meio daquele rio.

COSTA Sabe, Miguel, a sua idéia é realmente boa. Mas não vai dar certo.

MIGUEL (Rindo) Acredita nisso? Alguém sabe que você está vivo?

COSTA Bem... Daqui, não. Só lá, onde eu vivi estes cinco anos...

MIGUEL Então, meu caro anjinho. Se eu matar você, ninguém vai procurá-lo.
Afinal, você está morto há cinco anos...

NANÁ Eu sei que ele está vivo.

MIGUEL Mas você não teria coragem de denunciar-me, não é querida? Sabe que
se fizer isso, terá também uma bela bala na cabeça...

COSTA Continuo dizendo que não vai dar certo.

MIGUEL Se tem tanta certeza, diga-me porque.

COSTA A sua pasta, esqueceu?

MIGUEL (Apanha a pasta, num gesto rápido) Está aqui, Costa. Comigo e bem
segura. Você quer vir apanhá-la?

COSTA Já peguei o que me interessava.

MIGUEL (Desesperado, abre a pasta; os documentos estão lá) Tudo bem Costa.
Os documentos estão aqui. Não corro nenhum perigo.

- 50 -
COSTA Os documentos estão, mas as fotografias eu tirei.

MIGUEL (Novamente desesperado, abre a pasta) Desgraçado, cadê as minhas


fotografias?

NANÁ (Curiosa) Fotografias? Que fotografias são essas?

COSTA De casais se amando. Homens e mulheres completamente nus.

NANÁ Com poses eróticas?

COSTA Isso mesmo. Esse cara (indica o Miguel) é chantagista, Naná.

MIGUEL (Violento) De qualquer forma, eu mato você. Não terá tempo de usar as
fotografias contra mim.

COSTA Não crie nisso. Já deixei as fotografias com um advogado. Se eu


desaparecer...

NANÁ (Enquanto Miguel joga-se na cama, abraça-se em Costa) Meu herói!

MIGUEL (Choroso) Você não podia ter feito isso comigo... Aquelas fotografias têm
um valor inestimável para mim...

NANÁ Esse desgraçado, comigo não quis brincar de fotógrafo.

MIGUEL (Choroso) O que vai ser de mim, agora?

COSTA (Movimentando-se, mais livre) Esse calhorda estava falindo. A industria


dele ia mal, por isso resolveu ganhar dinheiro de maneira fácil. Arranjava
encontro de casais e, com uma máquina fotográfica escondida no
quarto, fotografava as cenas. Depois, chantageava os coitados.

MIGUEL Quando foi que você descobriu tudo isso?

COSTA Quando me escondi no quarto da Joana. Achei sua pasta e examinei os


papéis. Vi que eram cópias das cartas que você mandava para os
otários. E se as cartas estavam ali, na certa as fotografias também. E
não foi difícil achar o fundo falso na sua pasta.

NANÁ Agora entendo. Eu passei os olhos por essas cartas... Mas pensei que
fossem negócios de contrabando ou coisa assim... Quem diria, o meu
marido um agenciador de encontros eróticos!...

COSTA E dos bons!

MIGUEL (Choroso) Obrigado!

NANÁ Só não entendo por que ele me desprezava tanto...

- 51 -
COSTA Porque o valente Miguel está impotente há alguns anos, querida! Nas
cartas, de maneira sádica, ele diz aos otários das chantagens que se ele
não pode, os que podem que se danem. E têm que pagar por poderem.

NANÁ (Espantada) Meu Deus!...

COSTA E outra que você não sabe: os encontros eram feitos aqui mesmo, no
seu apartamento.

NANÁ (Indignada) Aqui?

MIGUEL (Irônico) E na sua cama, querida! Aliás, na nossa cama. Lembra-se das
suas freqüentes idas à casa da titia? Pois é...

NANÁ Desgraçado. Por isso você dava folga para a Joana toda vez que eu ia à
casa da titia... Agora estou compreendendo tudo...

COSTA Por isso, atrás de um encontro desses, eu cheguei até o seu


apartamento.

MIGUEL (Surpreso) Você é o Costa? Do telefonema? Que queria uma loira?

COSTA Eu mesmo! (Miguel esmurra a cama).

NANÁ (Indignada) Ah, bandido! Então você não veio até aqui por minha causa,
não é?

COSTA Na verdade, não. Mas quando entrei e vi que era você... Que sensação
gostosa, Naná.

NANÁ (Hesita um pouco, põe-se pensativa, dá de ombros...) Que se dane a


loira! Por incrível que pareça, eu tive um morto em minha cama por
muitos anos. Mas agora, um morto volta para me fazer viver. (Atira-se
nos braços do Costa).

MIGUEL (Levantando-se da cama) Que vai fazer comigo, Costa? Vai me mandar
prender?

COSTA Não sei ainda.

MIGUEL Então, não quer me vender as fotos? Posso lhe dar muito dinheiro por
elas...

COSTA Não estão à venda.

MIGUEL E o que quer de mim?

COSTA Ainda não decidi. Agora, só penso em reaver minha maior riqueza:
Naná! (Miguel vai saindo "de mansinho").

- 52 -
NANÁ (Abraça-se no Costa) Que romântico, Costa! (Solta o Costa e...) Que
desgraça!

COSTA De novo, Naná?! Pelo amor de Deus! Todo o meu esforço pra nada!

NANÁ Não fale assim, Costa! É que eu estou acostumada com o dinheiro do
Miguel...

COSTA Meu Deus, você só pensa em dinheiro!

NANÁ Se acostuma com ele pra ver uma coisa!

COSTA Não quer ficar comigo, mesmo?

NANÁ Querer eu quero. Mas o meu outro lado soa o trin-trin da caixa
registradora. Como é bom ter dinheiro, Costa.

COSTA (Pensa um pouco) Tá bem. Eu disse que ia fazer tudo para te conquistar
de novo. Se é assim...

NANÁ (Apreensiva) O que vai fazer?

COSTA (Pega o revólver que o Miguel deixou em cima da cama) Desta vez, eu
resolvo tudo. (Grita para dentro) Miguel, venha até aqui! (esconde o
revólver) Ande Miguelzinho! (Miguel reaparece, mostrando-se com
medo) Está com medo?

MIGUEL Um pouco...

COSTA Resolvi fazer uma coisa. Eu, o Costa, vai abandonar o caso!

NANÁ (Indignada) Costa!

MIGUEL (Desconfiado) Que quer dizer com "abandonar o caso"?

COSTA (Oferece o revólver) Vamos, mate-me ou deixe-me sair pela porta.

MIGUEL (Rápido, apanha o revólver) Você está querendo aprontar mais uma?

COSTA Não, meu caro! Desanimei. Eu vou embora. Vou deixar você em paz!

MIGUEL Não acredito! Assim, de repente? Sem vantagens?

COSTA Isso mesmo, Miguel! Vou voltar pra minha cidadezinha adorada! Lá eu
sou amigo do rei. (Começa a sair) Ou você confia em mim, ou me mata.
Até breve!

NANÁ (Corre para impedi-lo) Não vou deixar você sair desse jeito!

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COSTA Não me venha com recaídas românticas, minha cara! Não sou mais o
mesmo. Tenho dignidade!

NANÁ Por isso mesmo! Não vou deixar que você saia vestido de anjo. Troque
de roupa, pelo menos!

COSTA Meu guarda-roupa está próximo, Naná! Não se preocupe comigo. Até
mais! (Sai).

CENA 8

Assim que Costa deixa o palco, Miguel movimenta-se rapidamente. Está muito
apressado...

MIGUEL Eu vou é dar o fora! Esse cara tá aprontando alguma.

NANÁ (Chateada) Aprontando nada. É um covardão, isso sim. Fiquei


decepcionada com ele.

MIGUEL Eu não penso assim. Acho que ele está tramando alguma coisa.
(Recoloca o revólver sobre a cama) E eu não vou esperar pra ver o que
é.

NANÁ Ora, deixe de ser infantil, Miguel. Até parece que você tem visto muitos
filmes de bang-bang

MIGUEL Eu não dei nem um tiro, você é testemunha.

NANÁ Não deu porque é covardão. Pois devia ter dado! Aquele cretino! Me
desprezou. Vai ver, gostou mais da loira.

MIGUEL Ele nem conheceu a loira, se quer saber.

NANÁ Tá defendendo ele, tá?

MIGUEL Não estou defendendo ninguém. Mas a verdade deve ser dita! Eu vou
apanhar minhas coisas. (Ameaça entrar).

NANÁ Eu vou também. Estou cheia deste lugar nojento!

MIGUEL Ah, não vai não! Nessa eu estou sozinho, madame.

NANÁ Sozinho? E eu?

MIGUEL Vire-se! Vou montar meu quartel-general noutro lugar.

NANÁ Ah, mas isso não pode ficar assim...

MIGUEL Não vai ficar não, Naná. Vai ser muito pior.

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NANÁ Você está com más intenções, não está?

MIGUEL Estou. Hoje mesmo vou procurar um advogado e tratar da nossa


separação. (Naná ameaça desmaiar) E não desmaie! Não vou te
segurar!

NANÁ (Recompondo-se) Eu não vou desmaiar! Ah, mas não vai ser fácil. Eu
vou criar problemas para você.

MIGUEL (Rindo) Que vai fazer. Vai me denunciar à polícia?

NANÁ É o que pretendo. Meter você na cadeia. Primeiro, com o caso do cara
da boate.

MIGUEL Esse caso está encerrado, Naná. Faz cinco anos que isso aconteceu.

NANÁ As suas chantagens! Sim, vou denunciar as suas chantagens!

MIGUEL Não dá! As fotos estão com o Costa, que se mandou. As cartas estão
comigo e você não teria coragem de tentar tirá-las de mim... Logo...

NANÁ Você é um canalha!

MIGUEL Convicto! Agora, se me dá licença, vou pegar minhas coisas. (Sai).

NANÁ Desgraçado, ele me paga!

MIGUEL (De dentro) Disse alguma coisa?

NANÁ Que você me paga! Traidor!

MIGUEL (De dentro) Eu é que sou traidor, não?

NANÁ É sim. Você me traiu. Eu confiava tanto em você...

MIGUEL (De dentro) Confiava no meu dinheiro!

NANÁ É! No seu dinheiro.

Naná fica de frente para a platéia, com os braços cruzados, em silêncio. Nota-se
indignação e ódio. Depois de instantes, Miguel retorna completamente oculto
em roupas de árabes, com um lenço característico cobrindo o rosto e óculos
escuros. Aproxima-se sorrateiramente pelas costas de Naná. Agarra-a, tapando-
lhe a boca. Naná tenta livrar-se, mas não consegue. Miguel, então, procura
arrastá-la para a cama, quando, num gesto rápido, Naná desvencilha-se e...

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NANÁ (Ajeitando-se) Pare com isso, Costa! (Miguel fica parado diante de Naná)
Que coisa mais ridícula! Já não chega o que fez comigo agora pouco? E
não vai adiantar nada! Ele já sabe de tudo. Ele me disse que vai me
abandonar, acredita? (Miguel, rápido, apanha o revólver sobre a cama e,
ameaçadoramente, aproxima-se de Naná) O que é isso, Costa?
(Começa a se afastar, para o lado da cama) Eu... Eu ainda gosto de
você, sabe? ... O dinheiro dele... é uma porcaria... (riso forçado). Que se
dane o dinheiro dele, não é?

Miguel encurrala Naná de encontro a cama. Naná senta-se, deita-se e cada vez
vê mais de perto o revólver do Miguel. E quando parece que o Miguel vai mesmo
atirar...

NANÁ (Desespero total) Costa!

Ouve-se um tiro. Miguel é atingido. Rodopia e cai sobre a cama, ao lado de


Naná. Aparece então, com um revólver na mão, um anjo, ou melhor, o Costa.

NANÁ (Surpresa e confusa) Costa? Então, não era você?

COSTA (Dirige-se rapidamente para a cama e tira o lenço e os óculos do Miguel)


Aí está o teu ex-marido!

NANÁ (Olhando o Miguel) Miguel? Ele está... ferido, Costa!

COSTA Tem um morto na sua cama, querida! Um morto verdadeiro!

NANÁ (Pasmada) Tem um morto na minha cama! (desmaia).

COSTA (Reanimando Naná) Que merda, Naná! Eu chego e você vai?

NANÁ (Reanimando-se) Costa, que sufoco!

COSTA Agora, está tudo bem. Você é uma rica viúva!

NANÁ Viúva? Mas eu sou casada com você...

COSTA Mas eu estou morto, querida! E tá muito bom assim. Não pago impostos,
não recolho INSS... E com a tua grana e o meu apartamento, viveremos
felizes para sempre.

NANÁ Mas você o matou, Costa. E a polícia?

COSTA Eu não o matei. (Troca o revólver, ou seja, deixa o dele nas mãos do
Miguel) Ele suicidou-se, querida! Antes de sair, eu tive o cuidado de
trocar os revólveres...

NANÁ Mas... Eu não vi você trocar os revólveres...

COSTA Ninguém viu. É assim o crime perfeito.

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NANÁ Você atirou pelas costas dele. Ninguém se suicida dando um tiro nas
próprias costas...

COSTA As impressões digitais na arma são as dele. Eu estou de luvas... Além


disso, estou morto. A principal suspeita é você...

NANÁ Eu? Mas eu não o matei...

COSTA E quem vai acreditar nisso?

NANÁ (Desconfiada) Você está brincando comigo, não está?

COSTA O que você acha?

NANÁ Não, porque essa conversa...

COSTA Te assusta?

NANÁ É, me assusta é claro. Eu posso ser presa...

COSTA E eu posso ser rico...

NANÁ Mas a viúva sou eu.

COSTA Entenda, Naná! Você mata seu marido. Vai presa. De repente, surgindo
das profundezas do inferno, surge o seu primeiro marido. Ele explica
tudo sobre o acidente. Tem testemunhas na aldeia onde se curou... E
assume, novamente, o papel do marido. Como a mulher é prisioneira,
passa a administrar seus bens...

NANÁ Você teria coragem, Costa?

COSTA É um assunto pra se conversar com o tempo. (Encaminhando Naná para


fora) Agora, você vai telefonar a polícia e contar direitinho como eu
mandar. Tá bem?

NANÁ (Assustada) Você me ajuda, Costa?

COSTA (Saindo com Naná) Claro, querida. Estou aqui pra isso. Eu não quero
que você sofra com essas coisas... (ambos saem).

FIM

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