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Desde que realizei a Mostra Cinema de Garagem em Fortaleza em 2014, me aproximei

um pouco do Cristiano Burlan. Não chego a dizer que somos amigos, mas de vez em quando
trocamos mensagens e nos falamos. Em 2017, eu o levei para Fortaleza para debater o ANTES
DO FIM, no Cine Rebuceteio. Na ocasião, conversamos um pouco sobre o ELEGIA, que ele
estava montando. Ele estava bem aflito, dizendo que era o filme mais difícil que já havia feito e
que esperava que pudesse chegar ao fim. Acabei acompanhando um pouco, a um certo tom
entre a distância e a proximidade, um pouco do processo do filme. E, quando ele ficou pronto,
e finalmente o vi, fiquei motivado a escrever para o Burlan. Não é uma crítica, é uma carta. Ao
mesmo tempo, não é o texto de um amigo íntimo. Não deixa de ser um pouco uma crítica,
uma certa análise do que vi. Enfim, não sei bem o que sou do Burlan, nem sei ao certo o que
aquelas palavras são.

Agora, que o filme está em cartaz, Burlan me pergunta se cheguei a publicar aquele
texto. Eu nem via aquelas palavras como um texto mas ele tinha razão: não deixavam de ser.
Será que mereceriam ser disponibilizadas para o público? Num primeiro momento, achei que
não. Depois, achei que talvez sim, por dois motivos.

O primeiro era exatamente para refletir sobre essa relação de análise de um crítico
com um filme. Fico pensando muito no extremamente pertinente debate colocado pela
Andrea Ormond no dossiê da Revista Rocinante (oportunamente intitulado de “confissões”),
especialmente no trecho em que ela sonha o dia “em que nenhum crítico brasileiro marcará,
na postagem do Facebook, o nome do diretor sobre quem escreveu um texto elogioso”.
Concordo imensamente com Andrea que o crítico deve buscar ter uma postura de autonomia
em relação ao universo que ele está escrevendo. Senão corre-se o risco de a crítica virar mero
instrumento de puxa-saquismo ou de aceitação em um clube – riscos muito presentes nessa
pequena grande instituição que é o cinema brasileiro, em que não raras vezes vemos relações
incestuosas entre a realização, a crítica e a curadoria, como mero instrumento de busca pelo
poder. O papel da crítica não é o de legitimar as coisas como são, mas a de sonhar um mundo
novo, e isso só é possível a partir da dúvida e do questionamento.

Ao mesmo tempo, fico com certo receio de que essa conclusão acabe por cair num
outro extremo: a do crítico como juiz imparcial, entronizado numa torre de marfim diante do
seu saber absoluto e das suas certezas e razões, rodeado apenas de livros e de filmes clássicos,
que sabe mais o que é o cinema do que um realizador. Certamente Andrea, com a poesia de
seu texto deliciosamente prosaico, está longe desses absolutismos.

Costumo falar que meu lugar (de fala?) no cinema está nessa posição ingrata que os
críticos me veem como um realizador, e os realizadores me veem como um crítico. Prefiro
estar nesse entrelugar em que não sei bem direito onde estou. De qualquer forma, me sinto
privilegiado em conhecer e conviver com alguns realizadores da minha geração que respeito e
poder acompanhar seu amadurecimento. Essa certa proximidade me faz ser possível trocar
ideias sobre o cinema e a vida, estar um pouco mais próximo do gesto que levou o realizador a
fazer um filme, a entender mais suas motivações e até esclarecer algumas questões mais
específicas.

Sempre defendi o afeto como gesto motivador para a escrita – o crítico precisa ser
“afetado” pela obra, e essa proximidade não está necessariamente em conflito com o rigor ou
a independência da escrita e do pensamento. O desafio está justamente em conjugar as duas
coisas – esse afeto e essa distância, essa proximidade e essa solidão. Vejo, por exemplo, com
enorme admiração a profundidade com que Luiz Antonio Simas consegue fazer sua análise
sobre as escolas de samba no carnaval carioca pelo fato de ele andar pelos barracões, visitar as
quadras, conversar e trocar ideias com carnavalescos, compositores e sambistas. Isso, a meu
ver, enriquece a análise de Simas.

O segundo motivo, mais importante que o anterior, é o de estimular que o filme, agora
em lançamento comercial, seja visto. ELEGIA DE UM CRIME merece ser visto, porque, nas
entrelinhas da difícil questão pessoal do realizador, ele fala sobre o contexto do país em que
vivemos. A forma como Burlan conjuga isso nesse filme, especialmente na belíssima sequência
final, é notável.

Essa espécie de preâmbulo para buscar justificar a publicação desse texto privado
acabou ficando maior do que eu imaginava. De qualquer forma, para os que chegaram até
aqui, eis então a carta que escrevi a Burlan ... e, que Andrea me perdoe, mas ela segue
marcando o realizador .

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Carta a Cristiano Burlan (22/08/2018),

Burlan, você já deve estar viajando. Não consegui resistir e vi o filme ontem mesmo. O pior é
que quase não consegui dormir depois do filme, que acabou depois das 2h da madrugada.
Ainda não sei o que dizer. Poderia falar das opções de enquadramento, da sobriedade do tom,
da forma frontal como você aparece no filme (um rochedo que às vezes balança), poderia falar
sobre opções de corte, ritmo, de crescendos dramáticos e quase-situações de suspense, das
opções sonoras, bastante discretas mas bem pontuais – inclusive com efeitos sonoros e
música. Poderia relacionar com toda uma literatura de filmes-de-primeira-pessoa e a
autobiografia no cinema – tema que muito me interessa. Da tradição recente de filmes-de-
busca, do dispositivo inacabado. Das fotos e das entrevistas. De como filmar confissões. Do uso
do close. Da mídia (a TV, a repórter). Da imagem final. Mas, ao final do filme, acima de tudo
isso, uma outra pergunta me perturba ainda mais: do que serve tudo isso? Pra que serve esse
conjunto de pretensas análises diante de um filme sobre um diretor que filma a morte da sua
mãe? A única coisa que consigo dizer - pelo menos agora – é que achei que é um filme sobre o
amor. Haviam me dito que era um filme sobre vingança, mas não, não vi assim, discordo
radicalmente disso – eu o vi como um filme-de-amor. Uma carta. É um filme sobre o amor e
também sobre a impotência do cinema. O amor e o cinema parecem muitas vezes pequenos e
impotentes diante da crueza e da crueldade do mundo. Seu filme tem uma atualidade
desconcertante, principalmente no momento em que vivemos hoje no nosso país, sobre o
contexto de visibilidade do feminicídio, sobre nossa falta de afeto, sobre a impunidade do
nosso judiciário. É um olhar íntimo para as dificuldades do nosso país, para além de qualquer
análise sociológica: a periferia está ali, nos corpos, nas casas. E, para além desse contexto, o
que mais me toca no filme é a maneira frontal, é a concretude que você imprime no registro
dessas imagens, na abordagem direta e franca com as pessoas. Parece um western, parece um
filme policial dos anos trinta, parece o cinema de Walsh e Dwan, nessa concretude, você
parece aqueles herois solitários que vagam em busca da verdade e de respostas e se perdem
na poeira do espaço. Há uma ética clássica, muito frontal, quase como um Rastros de ódio
(digo no sentido da busca, pois não há “índios” no seu filme, todos somos “nós”). Mas lá vem
eu falar de cinema de novo, de filmes e diretores, tudo bobagem, coisa de crítico. A verdade é
que não sei o que dizer diante de seu filme. Mesmo sendo um filme muito duro, fui
frequentemente tocado pelo filme, e também em momentos de grande singeleza, como um
menino brincando no quintal, e especialmente, principalmente, os planos das roupas
estendidas no varal, secando ao vento, esse vento pouco que mal as faz tremular, mas elas
secam mesmo assim. Sinto (suponho) que esse filme sintetiza sua busca no cinema e na vida:
ele avança os vários méritos de Mataram meu irmão, mas aqui com mais precisão e
sobriedade, mais amadurecido. E para mim, curiosamente, ele deve ser visto junto com Antes
do fim, esse filme etéreo que flutua com uma beleza inacreditável, quando nos damos conta
de sua trajetória. Que espero que esteja só começando. E que espero que seja lançado nos
cinemas logo, para que mais pessoas possam ver. Eu espero que seu filme possa ser visto. É
isso, pena que não vamos nos ver nesta semana em São Paulo, mas um dia desses nos
esbarramos. Um abraço e boas filmagens, curiosamente você no Nordeste e eu em São Paulo...
abs ikeda.

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