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02/10/2018 contracampo :: revista de cinema

A PUBLICIDADE VENCEU

No louvável espaço criado pelo blog Dicionários de Cinema,


pode-se ler o clássico texto “O cinema e a memória da
água”, escrito há vinte anos por Serge Daney, e agora
traduzido para o português. Selecionei um trecho desse
artigo, que continua sendo um dos melhores já escritos
sobre a relação entre cinema e publicidade, como ponto de
partida para a pergunta que lanço em seguida: “O interesse
de Imensidão Azul é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a
vizinhança, durante muito tempo estimulante ainda que
turva, entre ‘cinema’ e ‘publicidade’ não tem já talvez razão
de ser. Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade
demasiado forte. O início dos anos oitenta terá visto a
legitimação cultural e depois estética da publicidade”.

E os anos 2000? Terão visto o quê?

Terão visto a crítica, que tinha por missão guardar a


fronteira, marcar as diferenças (atitude traduzida em textos
como esse do Daney), sucumbir à publicidade. Primeiro
porque nunca soube definir o que era a tal “estética
publicitária”, criando um rótulo impreciso, nuns casos,
equívoco, em outros, e ineficaz, na maior parte das vezes.
Um rótulo, mas nunca um conceito. A crítica errou, em
primeiro lugar, por essa imprecisão. Em segundo, porque
aceitou o jogo, caiu na dança. Sempre achei que a crítica
seria a última trincheira, a última barricada antes do triunfo
publicitário. Mas não: de uns tempos pra cá ela parou de se
revoltar contra a publicidade. Após deixar de se incomodar,
começou a achar que a publicidade não só não era tão má
quanto se pensava, como ainda trazia coisas boas. E agora
veio o pior: nem sabe mais distinguir o que é e o que não é
publicidade. Perdeu o olhar. Responde de modo favorável, ou
complacente, ou negligente. No caso da negligência, é
assustador: simplesmente não consegue mais perceber o
mundo se trocando por signo publicitário. Olha para um
papel de parede e vê o mundo. E escreve sobre o papel de
parede como se falasse do mundo. A publicidade e suas
práticas mais hediondas se naturalizaram no cinema
(brasileiro, mas não só). Nessa visão de cinema, o “criar”
não é mais identificado a um trabalho dinâmico com a
matéria; é um retrocesso simbólico, onde a idéia passeia
livre, leve e solta – a idéia sobrevive à perda de vínculo com
o pensamento e com o olhar. É o mar sendo substituído por
“um grande azul de síntese”; o ator servindo de portfólio
para o preparador de elenco. O filme sendo uma embalagem
para uma idéia de filme. E essa idéia é sempre rasa, sempre
retrógrada, não tem como ser de outro jeito.

No cinema brasileiro, 2008 foi um ano não muito diferente


dos anteriores: ruim na média, porém salvo da apatia pelos
cineastas de exceção (Bressane, Carlão, Mojica, Tonacci –
tudo que se pôde ver de realmente criativo e brilhante veio
exclusivamente de veteranos). Mas olhando para a recepção
da crítica, constatando quais foram os filmes mais
discutidos, Ensaio sobre a cegueira e Linha de Passe
liderando com folga, a impressão que tenho é que está tudo
bem, o cinema brasileiro está fazendo os filmes que os
críticos pediram alguns anos atrás (ao menos é assim com
Linha de Passe: o cinema que não julga personagens, fala

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dos problemas do Brasil pelo filtro justo da câmera afetiva e
do final aberto), então eles estão satisfeitos. Como estrutura
de produção, a publicidade já tinha vencido no país há pelo
menos dez anos (salvo exceções, as mentalidades que
regem os projetos, desde o orçamento à organização do set,
são inteiramente derivadas da publicidade). Depois venceu
também como estética. E agora, como se não bastasse,
recebeu a última medalha que lhe faltava, a da crítica. Esse
título conquistado pela publicidade significa que finalmente
os filmes conseguiram que nós não os acusemos mais de
parecerem publicitários. Eles pedem para que não sejam
julgados e atendemos ao pedido.

Pois os dois líderes de holofotes em 2008 representam dois


tipos antagônicos de publicidade; filmes em total sintonia
com uma época pouco afeita ao espírito crítico, porém
muitíssimo afeita à retórica e ao pensamento
institucionalizado. De um lado, o excesso, o exagero, o
esteta histriônico, a publicidade enérgica, que impõe a
concatenação rápida de signos ululantes, um filme perfeito
para quem gosta de “ler” filmes (Ensaio sobre a cegueira).
Do outro, a retração, a afasia, a concha segura do olhar
voluntarista, inofensivo, a publicidade bem intencionada, que
parte da fórmula “o universal é o mais local possível” (Linha
de Passe). Em ambos, o humanismo lúdico como válvula de
escape.

A mise en scène como forma de inteligência, como


linguagem unificada da percepção sensível e do
conhecimento objetivo do mundo, essa mise en scène está
em baixa por aqui.

Analogamente, na crítica, onde um mínimo de atrito se


deveria produzir, encontra-se a complacência, o
consensualismo, o olhar não-provocativo, confortado pelas
imagens, consolado pelo fato de que filmes ainda existem e
estes se levam a sério o suficiente para merecer um texto
dedicado. O olhar que não cobra, não provoca, não afronta
os filmes mesmo em face de sua mediocridade, esse olhar
parece dizer: façam qualquer filme, bom ou ruim,
consistente ou leviano, fascista ou humanista, mas me dêem
o que escrever.

A crítica brasileira não ligou muito para o fato de que em


Ensaio sobre a cegueira – cujas imagens estouradas
constituem um efeito visual profundamente óbvio enquanto
transposição da significação para a forma – faltou a Meirelles
a desconfiança do bom artista, que hesita diante do caminho
mais fácil (não confundir com o mais simples) e termina por
rejeitá-lo, e sobrou-lhe a convicção do bom publicitário, que
se regozija de suas idéias paquidérmicas, de seu modo de
significação agressivo, descarado, que renuncia à
criatividade sem crise de consciência, já que amparado pelo
bom funcionamento das imagens. Os filmes, hoje em dia,
precisam acima de tudo funcionar. O verbo invadiu os sets
de filmagem e agora também a crítica: atrás da câmera ou
na frente da tela, todos procuram a imagem que funciona.
Eis porque a crítica não se incomodou com Blindness e no
geral aprovou, pois reconheceu ali um bom discurso-através-
de-imagens, uma boa transcrição visual do texto.
Reconheceu um filme que funciona, e isso, cada vez mais, é
o que lhe basta. Miséria da crítica.

Mas questionemos também o filme, sua estética, e não


apenas sua recepção: desde quando a isquemia da forma é
a melhor expressão de um mundo espiritualmente
gangrenado? Será que tudo aquilo que regeu a obviedade
estética de Ensaio sobre a cegueira era mesmo fruto de um
pensamento sobre a forma, ou não passou de uma
frivolidade, de uma falta de objetivos outros que não a
excitação, o choque, o conteúdo leviano das mensagens?

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Houve quem enxergasse no filme – sem dúvida alguma
tendo em mente o aval de Saramago – o protesto de uma
alma nobre contra a corrupção moral de sua época. Partindo
dessa perspectiva, e fingindo que Meirelles acertou no tom,
concluiríamos que ele atingiu o terreno da sátira, gênero no
qual os romanos, perante as vicissitudes de seu império,
foram mestres. Ora, para conduzir a sátira ele precisaria
dispor de uma sabedoria aguda, de uma zombaria elegante,
de uma raiva sarcástica, ou seja, ele precisaria de tudo
aquilo que falta a seu filme.

Houve também quem narrasse a experiência de assistir a


Ensaio sobre a cegueira como de grande intensidade,
sempre flertando com o desagradável das imagens. Essa
mesma intensidade deve existir em uma propaganda de
cartão de crédito, pois ontologicamente se trata da mesma
coisa, e o que define em grande parte a natureza da
experiência é o teor ontológico das imagens, para além de
seus enunciados (que, de todo modo, seriam também os
mesmos, as propagandas de cartão de crédito nada
mostram senão um mundo igualmente degradado, cujo
verniz de superfície nos é entregue sob a forma de
mercadoria visual, apenas confundindo essa degradação com
bem-estar social e financeiro).

Onde esteve a crítica nisso tudo? Não se pode dizer que


esteve ausente. Pelo contrário: esteve, na maior parte das
vezes, e num bom número de veículos, entregue a
discussões (prolixas). Porque se o filme funciona, ele dá o
que falar. E a crítica está menos preocupada em ver uma
obra que a obrigue a pensar a forma e manifestar o gosto
(essa ferramenta indispensável do crítico, ultimamente
tratada como opcional e, não raro, afastada do “oficio”) do
que em ter o que discutir. Quanto menos um filme sacudir
sua posição de analista de discurso, quanto menos o impelir
a reavaliar seus parâmetros, mais longe vai a discussão
(nunca mais fundo), pois tende ao vazio, e o que tende ao
vazio dura indeterminadamente. Às vezes me ocorre, lendo
boa parte dos textos e dos debates, que os críticos de
cinema no Brasil estão cada vez mais parecidos com os
comentaristas de futebol: analisam os jogos em repetitivas e
enfadonhas mesas redondas, mas não arriscam dizer para
que time torcem. Em teoria, isso seria uma espécie de
profissionalismo, de maturidade, uma certa imparcialidade
sóbria. Na prática, isso representa o esvaziamento do
espaço crítico e a iminência de um estado acrítico. Calar o
juízo estético e gerar infinitas análises, debates, opiniões;
viver em paz mesmo com os filmes mais medíocres, ou mais
publicitários; abandonar a provocação, o rigor; tornar-se
imune a gostos ou desgostos profundos: tudo isso é no
mínimo muito perigoso, se quisermos manter viva não uma
postura intelectual dentre outras, mas uma postura crítica.

No limite, os especialistas estariam procurando nos filmes


não mais a beleza, as emoções ou o sentido geral da obra.
Eles estariam procurando compreender o que o diretor está
dizendo – sentindo-se até mais generosos ao fazê-lo, mas
essa generosidade é traiçoeira e num segundo momento se
revela o disfarce predileto da complacência –, captar a
mensagem (e, através disso, cultuar sua própria
sensibilidade, sua percepção, sua capacidade de articulação,
em suma, sua “personalidade crítica”), pescar as idéias que
motivaram as imagens fora das imagens (fugindo, assim, da
evidência do filme). Procurando o projeto, o produto, não a
obra. Derrota da mise en scène, triunfo dos efeitos de
enunciação – publicidade de novo.

O próprio personagem não importa mais. Importa o autor, o


olhar do autor (Godard há mais de dez anos já tinha
mandado uma carta-bricolage para a Cahiers du Cinéma
falando dos efeitos nefastos da procura constante pelo

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autor). Parece inconcebível, mas ninguém se importa mais
com o fato de alguns filmes mostrarem personagens
desinteressantes, em ações desinteressantes, nulas, vazias,
estúpidas. Os críticos estão preocupados em saber se o olhar
do diretor é justo ou não, carinhoso ou não, articula um bom
discurso ou não, etc. A perda de conexão com o personagem
denota a perda de conexão com o mundo dos filmes. Não
interessa mais o mundo, interessa a mensagem e seu dono
(seu proprietário). Morte da fascinação.

O cativante da ação de um personagem, cabe aqui expor,


não está necessariamente no seu potencial de espetáculo,
nem na sua qualidade de intriga. Em alguns dos melhores
filmes de John Ford, por exemplo, os personagens passam
90% do tempo sem fazer nada de intrigante. Só que alguma
coisa acontece quando vemos John Wayne pilotando seu jipe
em Donovan’s Reef, ou falando sobre os males de mascar
tabaco em Legião Invencível, ou comparando sua altura com
a do seu filho em Rio Grande. Alguma coisa acontece porque
estamos vendo um mundo, e isso nos fascina. Estamos
vendo um gesto e um espaço, e a mise en scène desse gesto
nesse espaço.

Nos filmes brasileiros mais debatidos em 2008, faltou a


presença de um mundo. E que tipo de mise en scène se faz
sem um mundo? Não se faz mise en scène, se faz
publicidade. É a enésima manifestação (que, como uma
alergia, vem pior a cada vez que se manifesta) de tudo
aquilo que Godard foi o primeiro a constatar com melancolia
(cf. Duas ou três coisas que eu sei dela: redução violenta da
imagem em função da superfície, o mundo sendo achatado
pelos signos da publicidade, e o cinema à procura do arrière-
monde que essas imagens-clichê escondem, negam, apagam
terrivelmente – mas Godard é astuto o suficiente para, como
observou Bonitzer, encontrar a via-láctea numa xícara de
café expresso).

O problema de Linha de Passe, portanto, não é a ausência


de intriga ou as ações “pequenas” de seus personagens, mas
é um fator anterior, um mal difícil de curar, desencadeado no
momento em que seus eventos se tornam simulacros de
significações (como, aliás, já ocorria desde Central do
Brasil), em que seu mundo se troca por um painel
publicitário que mostra São Paulo pela ótica do marketing
social: campanha eleitoral (o cineasta agindo como o
candidato que vai lá na periferia, abraça os pobres, passa a
mão na cabeça de todos, posa de bom moço, depois volta
pro lugar confortável de onde veio e do qual nunca saiu, a
vida segue como ao final de uma eleição que deixou tudo em
suspenso, por mais que se tenham alimentado expectativas,
crenças) e campanha de conscientização (lembrar daquela
asquerosa câmera subjetiva do rapaz que quer ser jogador
de futebol “fritando” na cena da festa, comparável às piores
vinhetas antidroga da MTV, ou mesmo do ministério da
saúde).

Quando penso na gênese de filmes como Linha de Passe e


Ensaio sobre a cegueira, imagino uma sala fechada, com
pessoas discutindo uma idéia que expulsa para longe de si
toda exterioridade, em favor de uma operação puramente
abstrata, que não encontra satisfação senão em si mesma.
Essa cena imaginária seria apenas mais um capítulo da
“retomada”, não fosse o dado novo, o da crítica que quer
debater, mas não quer criticar. A diferença entre uma
atividade e outra, assim como a diferença entre o cinema e
a publicidade, é o que precisa urgentemente ser resgatado.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

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