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Sumário
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1 – ENTENDENDO OS CAMPOS
A crítica, sob uma outra perspectiva, não deixa de ser aquele lugar no
qual se coloca quem não faz, mas aprecia e media – a apreciação1
entendida aqui, por ora, de maneira ampla, e não como um equivalente a
juízo de valor, como veremos a seguir. Assim como é lugar-comum dizer que
todo o bom escritor é um assíduo leitor, não será diferente no campo da
imagem e do som: muitos e grandes cineastas foram forjados no embate
entre o encantamento cinéfilo e a formulação de um pensamento sobre o
cinema. O aclamado François Truffaut (1932-1984), expoente da Nouvelle
Vague francesa, é um exemplo frutífero para o assunto que queremos
introduzir aqui. Truffaut ainda tropeçava em cabos, e nem sabia direito como
mover o corpo no set de filmagem repleto de técnicos e equipamentos
1
“Apreciação é o ato de apreciar, avaliar a situação ou condição de algo, de modo a analisar, julgar e observar
determinada coisa. Para que haja apreciação de algo, a pessoa precisa dedicar muita atenção ao objeto apreciado,
despertando ao máximo os seus sentidos para conseguir contemplá-lo de maneira plena”, de acordo com definição
disponível <https://www.significados.com.br/apreciacao/>, acessado em 13 de agosto de 2017.
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pesados, quando fez e lançou o seu longa-metragem de estreia, em 1958 e
1959, respectivamente. Àquela altura ele já era, entretanto, um reconhecido
crítico de cinema. Não por acaso, afilhado de André Bazin (1918-1958), o
principal teórico do cinema moderno e formulador de um referencial fílmico
calcado na impressão da realidade e na mise-en-scène (veja o box).
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assevera o senso comum, quem a pratica pode também exercer o ofício de
diretor de filmes. Sobre isso, é revelador ler mais um trecho do depoimento:
Mas, se nos anos 1950, época em que André Bazin produziu grande
parte de sua crítica e que François Truffaut começou sua ascendente e
bem-sucedida carreira artística (ele ganha o prêmio máximo do prestigioso
Festival de Cannes já com os Incompreendidos, além de receber indicação
para o Oscar de melhor roteiro original por este mesmo filme), o sistema
audiovisual se resumia à indústria cinematográfica e ao recente boom
televisivo, a partir dos anos 2000 o contexto é bem outro. A indústria
audiovisual se multiplicou e se desdobrou, o suporte se digitalizou –
passamos do período fotoquímico para a era dos bytes e dos pixels - e a
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convergência dos meios é uma realidade, tornando quem antes era tão-
somente receptor, produtor de imagens e sons. Em 2017, todos temos (ou
podemos ter) um aparelho de telefone celular que produz e publica vídeos
na Rede Mundial de Computadores, instantaneamente. Tudo isso para dizer
que o discurso sobre o filme, seja este caseiro, profissional, documental ou
ficcional, está presente na nossa vida de maneira muito mais frequente e
intensa que há 58 anos.
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2 – ANALISAR UM FILME É CRITICÁ-LO?
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entendendo as articulações e junções que foram feitas com a manipulação
da imagem e do som. Trata-se de revelar a magia – mais que isso, trata-se
de perder a ingenuidade da ilusão. (Não é raro que, neste momento do texto,
você leitor sinta uma dorzinha: ela é natural e esperada. Quem analisa
perde, em princípio, o prazer, como dizia Truffaut. Mas ganha, por outro
lado, o privilégio do olhar apurado e técnico: no fundo, se configura um outro
prazer, de ordem diversa). Em termos conceituais, estamos falando de
decompor para depois fazer a reconstrução, “para perceber de que modo
esses elementos foram associados num determinado filme.” (PENAFRIA,
2009, p. 01)
Análise fílmica =
Separar as partes.
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Conclusão: a análise é sim diferente da crítica. Esta última tem como
finalidade avaliar, isto é, imputar um juízo de valor (e ou apreciar) a este ou
aquele filme, - na verdade, estabelecendo a importância de um filme em
relação a determinado fim. Por exemplo, a sua contribuição para o campo da
linguagem cinematográfica, conforme exemplificamos na primeira página
desta apostila, a sua importância dentro de uma temática específica, a sua
singularidade estética, e assim por diante: “Este tipo de discurso não é pois
uma análise propriamente dita, mas poderá beneficiar-se do trabalho de
análise que consideramos anterior a uma atribuição de um juízo de valor”.
(PENAFRIA, 2009, p. 2). Quadro sintético:
9
2.1 Decompor
2.2 Um exemplo
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sido, por isso, obrigado a exilar-se, com a família, em Santiago, Buenos
Aires, Bruxelas, e, finalmente, Paris. Flavia era um bebê quando tudo isso
começa a se desenrolar, e só retorna ao Brasil muitos anos depois, com a
promulgação Lei de Anistia de 1979 (lei n° 6.683), já mocinha,
acompanhada da mãe, - a esta altura separada de seu pai.
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2.3 Um parênteses
2 A diegese – de onde deriva o adjetivo diegético - é um conceito dos estudos literários e da narratologia que remonta a
Platão. Em termos gerais, a diegese consiste na narração essencialmente linguística: aqui narrar é um discurso verbal, é dizer.
Em oposição, temos o conceito de mímeses, que considera a narração como o ato de mostrar, de “dar a ver”. Outra forma de
definir a diegese, e que talvez seja mais cômoda para o nosso âmbito: é simplesmente a realidade ficcional, que se distingue
de tudo que está fora do texto, ou, no caso, do filme.
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outro motivo. E que “existe” na sequencialidade das cenas, não
necessariamente de maneira não consecutiva (BRUM, 2016, p. 1-9).
13
Além do exposto até aqui, podemos também acrescentar que a voice over
tem um papel de estabilizar o filme – como que traçando um eixo invisível do
início ao final da narrativa, – ao mesmo tempo perfazendo a passagem do
mundo público ao privado, articulando, de certa forma, esses dois fios. A
presença constante do tempo verbal presente do indicativo, no discurso de
Flávia, evoca esse fio invisível, assim como a preponderância dos planos
fixos ou dos quadros parados a cada vez que essa voz entra em cena.
Eis, abaixo, um outro exemplo, outro momento da obra. A este
corresponde a narração em itálico, como anteriormente . De novo é a voz de
Flavia a narrar, e, a seguir, o quadro parado ou plano fixo que acompanha a
voice over:
Passávamos os dias inteiros num apartamento escuro, de um só cômodo,
dividido por um gigantesco armário. Entre duas reuniões reais, Joca (o
irmão de Flavia) e eu pegamos casa um bloco e brincamos de reunião. O
nosso vocabulário se enriquece de ismos de todos os tipos.
Internacionalismo , leninismo, marxismo, foquismo. Enquanto outras
crianças brincam de casinha, nós aplicamos com alegria todas as regras
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para o funcionamento de uma reunião. Você só tem mais cinco minutos,
companheiro.
3 Recurso técnico que faz com que o som invada o espaço fílmico. Pode ser considerado como “som ambiente”, em alguns
casos.
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Pode-se concluir a análise interpretando que do confronto das
memórias de Flavia materializadas nos planos fixo e na voice over com as
sequências advindas do movimento de busca investigativa e emocional, se
estabelece o percurso narrativo que entrelaça as vidas de pai e de filha.
(BRUM, 2016, p. 1-9).
E não é que voltamos ao filme, tal qual se afigura no nosso modelo
(por etapas) de análise fílmica?
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Feita a decomposição e a reconstrução - e perpassada a etapa da
interpretação - é importante retrocedermos ao ponto de refletir sobre a
atividade da crítica, para avançarmos noutra direção.
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3 - POSTULADOS E QUESTÕES
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Eh Sobre a pureza da linguagem cinematográfica, publicado
originalmente em 1934, sai em defesa da linguagem fílmica, que, na época,
era acusada de não ter um quadro referencial próprio e abrangente
(EISENSTEIN, 1990, p. 110). Além disso, o fato deste texto utilizar a própria
produção de seu autor como “amostra” para erguer um discurso em torno
do elogio à pureza da forma do cinema, se liga ao fato de que Eisenstein
também se defendia, por outro lado (ou talvez principalmente), da acusação
de ter realizado uma obra de propaganda socialista. Não por acaso, o
clássico A forma do filme, de onde retiramos o excerto que vamos ver a
seguir, reúne textos escritos em momentos diversos por Eisenstein, “mas
todos basicamente preocupados, com a questão que aparece no título”
(AVELLAR, 1990, p. 9). Ou seja, a forma.
(...) me permitirei citar aqui uma análise, que serve como amostra, de um de
meus próprios trabalhos. É tirada do material para a conclusão de meu livro
Direção (Parte II – Mise-en-cadre) e diz respeito a Potemkin. Para
mostrar a dependência da composição do lado plástico de cada um
dos planos, escolhemos intencionalmente como exemplo não um
momento de clímax, mas uma parte quase acidentalmente
descoberta: quatorze fragmentos sucessivos da cena que precede a
fuzilaria nas escadas de Odessa. A cena onde “o bom povo de
Odessa” (os marinheiros do Potemkin se dirigiam à população de Odessa
desse modo) envia barcos com provisões para o navio amotinado.
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Consegue-se visualizar e, por consequência, compreender melhor o
“jogo” entre os quatorze planos vistos por Eisenstein, realmente vendo as
imagens referidas por ele no texto que acabamos de ler. Citamos aqui tais
imagens, através da reprodução da decomposição visual feita pelo cineasta:
Mais uma vez Manuela Penafria, que vem guiando nosso caminho de
perscrutação em torno da análise, ressalta o caráter detalhista do exercício
da decomposição que aí se evidencia. Ela considera o exemplo que
acabamos de acompanhar como um paradigma de pormenorização. E
reivindica para a análise fílmica o estatuto de atividade “que perscruta
um filme ao detalhe”. (PENAFRIA, 2009, p. 5)
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primeira - é essencial que se proceda uma observação precisa, “atenta e
detalhada a, pelo menos, alguns planos de um determinado filme”.
(PENAFRIA, 2009, p. 5) Ainda, e voltando à vertente de Susan Sontag, a
análise precisa ser encarada como instrumento de suporte (termo
nosso) de todos aqueles que produzem textos sobre cinema, sejam estes
escritos críticos ou de outra natureza.
Outra questão que a análise fílmica enfrenta tem relação com a figura
humana do analista: “se o analista racionalizar demasiado o visionamento de
um filme (...) é exercido um controlo e a afetação emocional poderá sair
prejudicada”. (PENAFRIA, 2009, p. 5).Traduzindo: a razão, preponderante
no processo analítico, pode afastar a emoção mais do que seria
recomendável, e aí se corre o risco de uma crítica “técnica” e distanciada.
Quase como uma operação cirúrgica.
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jornalista cultural vão confirmar suas hipóteses através da análise fílmica, -
neste caso, a análise do filme serviria como meio e como fim. Outro
exemplo: no campo da pedagogia ou nos processos educativos, em que a
análise de filmes é usada não para que se veja/enxergue a linguagem
cinematográfica – normalmente a finalidade tem a ver com ensinar sobre
determinado assunto que o filme demonstra –a perspectiva de aproximação
com a análise é mais instrumental, quer dizer, sua tônica é ser meio e não
finalidade.
3.1 Pause
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antes, informar que a metodologia não está colocada aqui – e em nenhum
lugar, diga-se – como um assunto o qual se deverá “dominar
cientificamente”, para, depois, aplicar. O método é entendido por nós como
processo criativo. Tanto quanto a criação de um roteiro de cinema, a escrita
de um texto mais livre, ou qualquer outra atividade do campo da linguagem,
das artes e/ou da comunicação.
3 – TIPOLOGIA, METODOLOGIA
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Tipo Particularidade Filiação/ Procedimen- Importante
origem/ tos saber
Análise Considera o filme Estruturalismo de O filme é Uma vez que
textual como um texto. inspiração repartido em assume o
linguística dos sintagmas/ filme como
anos 60/70. unidades texto, este
Christian Metz é dramáticas. modelo de
representativo. análise dá
“Objetivo: importância
decompor o filme aos códigos
dando conta da de cada filme.
estrutura do
mesmo”.
(Penafria, 1990,
p. 6)
Análise Assume o filme O principal Destaca-se os
de con- como um relato e neste tipo de planos
teúdo somente leva em análise é correlativa-
consideração o seu primeira mente
tema. mente ao tema. Isto
identificar o é, não há
assunto do necessidade
filme. Depois, de privilegiar
“faz-se um os planos
resumo da iniciais em
história e a detrimento dos
decomposi- finais, e vice-
ção tendo em versa. Quem
conta o que dá a linha a
o filme diz ser seguida é
sobre o o tema.
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tema.”
(Penafria,
1990, p. 6)
Análise Toma o filme como Autoria de Presume: Pode-se
poética uma Wilson Gomes 1)identificar compreender
“programação/cria- (2004). os efeitos um filme
ção de efeitos” sensações e “como uma
(Penafria, 1990, p. sentidos que composição
6) um filme estética
produz; 2) (efeitos de
partir do sensação),
efeito e composição
descobrir comunicacio-
como este foi nal (efeitos de
conseguido. sentido) ou
poética
(efeitos de
sentimentos e
emoções).
(Penafria,
1990, p. 6)
Análise Considera o filme “Este tipo de Um exemplo Esta tipologia
da como um meio de análise pode ser de recorte abre uma
imagem expressão. designado como analítico: leitura da
e do especificamente verificar o uso perspectiva do
som cinematográfico do grande modo como o
pois centra-se no plano em realizador
espaço fílmico e diferentes concebe o seu
recorre a diretores. fazer
conceitos Neste caso, cinematográfi-
cinematográficos sugere-se co, além de
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” (Penafria, 1990, contrapor abrir para
p. 6) Griffith e pensar e
Carl Dreyer avaliar as
de Joana questões do
D’Arc. O mundo.
primeiro o
utiliza apenas
par dar
informação
ao
expectador,
ao passo que
o segundo faz
uma
utilização
dramática.
E a mise-en-scène?
Afinal, esquecemos da mise-en-scène que mencionamos lá na
primeira seção? De jeito nenhum! Eis um bom momento para voltarmos ao
tema, agora que já fizemos o percurso que elucidou o nosso campo e
distinguimos as ferramentas teóricas que possuímos para lidar com ele.
Retrocedendo: a anedota sobre Truffaut e Bazin tem, além daquela
implicação referida no início desta apostila, uma pertinência essencial: ela
nos abre a possibilidade para a compreensão do que seja a crítica
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cinematográfica praticada pela Escola Francesa, - importante porque
estabelece um conceito-base para a analítica do cinema moderno: o
conceito de mise-en-scène.
Citamos mais uma vez um dos maiores críticos de cinema do Brasil:
“as coordenadas de uma reflexão sobre a mise-en-scène que balizou a
discussão sobre os estilos do cinema moderno em oposição ao clássico”
(XAVIER, 2014, p. 389) são de André Bazin. Antes, predominava o eixo
teórico da montagem. (O que explica, aliás, a utilização e a permanência da
palavra francesa).
Para Fernão Ramos, outro importante teórico brasileiro, a noção de
mise-en-scène é de uma amplitude significativa, mas há um ponto pacific:
“na mise-en-scène a constituição cênica da imagem tem destaque num
contexto próximo da cena teatral”. (2011, p. 02)
Ou seja, mise-en-scène diz respeito à encenação, a tudo aquilo que é
posto em cena para que o espetáculo possa acontecer. Assim, ela envolve
cenário, figurino e personagens, entre outros elementos.
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Não é demais lembrar o contexto histórico que determina este
verdadeiro boom memorialista: após a Segunda Grande Guerra surge a
necessidade de manifestar o luto pela perda e esfacelamento de vidas; além
disso, o surgimento e a intensificação das lutas anticolonialistas e a luta das
minorias pelos seus direitos de reconhecimento, se travam no campo da
cultura mnemônica. “Não podemos esquecer que essa cultura da memória
nasce da resistência (...).” (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 39)
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onde plantamos nossas paisagens mnemônicas e escrevemos com
imagens agentes. É essa localização entre o mundo sensível e o
mundo conceitual que caracteriza a imaginação que permite
também o funcionamento da arte da memória enquanto dispositivo
tradutório que ora traduz imagens, ora retraduz estas em novas
falas ou textos. A arte da memória tem como um de seus movimentos
básicos a transformação da história em uma escrita imagética e a sua
legibilidade posterior. (2006, p.38)
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ao que se está narrando: são os nossos pontos de partida, é o que parece
dizer a mensagem subliminar da voz.
O filme segue. "O tempo presente era o único tempo que existia",
escutamos: na tela, a imagem da fachada da casa velha é envolta por uma
luminosidade e pequenos pontos brilhantes. Essa luz varre a imagem antiga
e a substitui pela imagem do universo. O narrador diz: "essa vida tranquila
se acabou um dia."
Feita essa moldura narrativa – voz que vai costurar o filme todo,
pontuando, questionando, afirmando - a lente da câmera se volta a outras
vozes, em on (com a respectiva imagem), que então passam a compor a
narração, justapostas à voz de Patrício. Aos poucos, o espectador percebe
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que o deserto do Atacama é como um palco dentro da narrativa - e nos
perguntamos: que história ele assenta? Por que o deserto?
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contornos de cabeça. O resultado – a tela nos mostra – surpreendeu até
mesmo os algozes do ex-prisioneiro.
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conta que levou o pé de seu irmão para casa, e ficou a olhar e a conversar
com ele, enquanto chorava sem parar.
Quer dizer, talvez apenas o eco da voz de Guzman nos toque tênue
e profundamente: “os que tem memória são capazes de viver no frágil
momento presente”, ele diz em algum momento do filme. Revelando que a
memória além de nos permitir ver o filme, também proporcionou que ele
fosse feito.
33
Também é importante dizer que, a exemplo do que fizemos em
Nostalgia da Luz, não se trata mais de apresentar o passo-a-passo da
análise e/ou sua conceituação e esmiuçamento de etapas. A seguir
apresentamos já o resultado da análise, ou seja, o discurso sobre o filme –
em correlação ao livro, no caso.
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O que vai opor fundamentalmente a biografia à autobiografia
éa hierarquização das relações de semelhança e de identidade;
na biografia, é a semelhança que deve fundamentar a
identidade, na autobiografia, é a identidade que fundamenta a
semelhança. (2008, p. 39):
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Tomamos a hipótese de que a estratégia utilizada pela autora
Marjane Satrapi para levar a cabo a proposta de criação de uma HQ
autobiográfica, ou seja, o recurso de ter uma narradora-protagonista que
conta em primeira pessoa as suas memórias entrelaçadas à História política
contemporânea do Irã, encontra sua razão de ser na necessidade
derradeira – limite - de narrar.
4
Persépolis HQ não tem as páginas numeradas.
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são os numerais que demarcam a narrativa, nos fazendo lembrar do formato
primeiro de Persépolis. No Brasil, a obra chegou sob a forma de um único
livro, narrativa una, sem divisões internas. Exceto pelas sequências tanto da
edição francesa, como da brasileira. São elas: O Véu; A Bicicleta; A Cela
de Água; Persépolis; A Carta; A Festa; Os Heróis; Moscou; As Ovelhas;
A Viagem; Os F-14; As Joias; A Chave; O Vinho; O Cigarro; O
Passaporte; Kim Wilde; O Shabat; O Dote; A Sopa; Tirol; O Macarrão; A
Pílula; O Legume; O Cavalo; Esconde-esconde; Love Story; O
Croissant; A Volta; A Piada; O Esqui; O Concurso; A Maquiagem; A
Convocação; As Meias; O Casamento; A Parabólica; O Fim.
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de partida e apresentação de Persépolis, O Véu. Nela, a primeira imagem é
a de uma menina de braços cruzados, apoiados sobre uma bancada preta.
Ela veste o véu islâmico e seu semblante é misterioso: não sabemos ainda
se aquele é um olhar de tristeza ou medida complacência. A linguagem
verbal fiz: “Essa era eu quando tinha dez anos. Isso foi em 1980”.
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Quer dizer, temos a menina narrando a realidade política e social do Irã,
enleada ao fio de sua vida. É por isso que ao final de O Véu, como já
dissemos, sabemos que ela nasceu em 1970, no seio de uma família
progressista do Irã; então um Estado laico. Em 1979, com a Revolução
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Cultural (ou Islâmica), o Estado Islâmico é instaurado naquele país, a
situação política muda, Estado e religião mesclam-se, transformando a
promissora vida da menina e da sociedade iraniana. Os pais e a avó,
personagens centrais, são introduzidos já nesse episódio: são eles que
interagem e dão esteio às ações da protagonista.
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É interessante perceber, contudo, que este caráter
“educativo” é tão integrado à narrativa, que não causa estranheza no leitor:
5 Segundo Ligia Chiappinni de Moraes Leite, “a voz que narra os acontecimentos, na ficção. Às vezes é
personagem, às vezes não”. (1994, p.90)
41
preservação tanto de sua identidade individual, como da identidade coletiva.
Talvez Persépolis seja uma daquelas obras com vocação para integrar a
memória cultural:
***
Se o caráter artístico de Persépolis se evidencia no trabalho de
recriação através da memória, o que, por outro lado, perfaz o caminho
memorialista da narração?
42
processo de criação e lhe dá contornos racionais – percebe-se que Marjane
é uma escritora e uma cineasta com consciência e domínio do fazer artístico:
“Todo mundo tem alguma coisa a dizer, é claro. Mas arte não é sobre ter o
que contar, a arte é sobre como você vai contar isso”. (2014)
6 Mais uma vez segundo Ligia Chiappini: “Recurso expressivo da prosa de ficção, como o diálogo, a
descrição e a dissertação. Às vezes usado com sinônimo de narrativa, mas impropriamente. Para
Barthes, o nível mais abrangente da narrativa é a narração”. Vale também esclarecer o que é narrativa
para esta autora: “termo geral para ‘prosa de ficção”. Pode englobar também a História”.(1994, p. 90-
91)
7 “Problema técnico da narração que supõe questionar ‘quem narra’, ‘como, ‘de que ângulo’. Para
43
intermediários. Ou seja, em filmes, não existe apenas um narrador
identificado pronominalmente – e isso ocorre mesmo quando o narrador
oculta-se por detrás da linguagem, ou quando ele se mostra inteiro, através
do uso do voice over em primeira pessoa, por exemplo. Há sempre um
narrador que passou por vários olhares durante o processo de criação, e
ainda, lá no final, mantém a marca do trabalho em equipe:
44
mas é também, ao final (voluntariamente ou não), um novo olhar sob a
história. Este olhar informa ao diretor, não raro, a necessidade de adição de
uma nova cena – ou, ainda, sugere uma sequencialidade outra que a
descrita no papel/roteiro que recebeu. Pode também incluir novos planos ou
unidades organizativas, como takes de cobertura, paisagens sonoras, etc.
Tudo isso vai influenciar no delineamento da narração:
45
Maria Cristina Xavier de Oliveira (2008, p. 36) , citando Will Eisner
(2005), afirma que uma das características mais importantes das HQs é a
sequencialidade, isto é, a utilização das imagens de forma consecutiva, uma
ao lado da outra, para compor uma obra única. É por isso, diz a
pesquisadora, que Eisner considera o termo arte sequencial para denominar
a forma artística que coloca desenhos e verbo lado a lado, quase como num
storyboard (que tem uma função bem diversa daquela da HQ). Ela
estabelece a seguinte comparação entre HQ e animação fílmica:
***
46
aeroporto. Um avião decola. Corta. Câmera agora está próxima ao
aeroporto, frente à entrada de pedestres. Lemos: “Orly”. Trilha sonora
contínua. Outro corte e percebe-se que a animação é colorida, ao contrário
do HQ, inteiramente em preto e branco.
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protagonista fumando e olhando para baixo. Atrás dela, através da parede
de vidro, a pista com os aviões. (Os ruídos mais uma vez dão a ambiência).
A câmera se aproxima, a luz ao redor de Marjane baixa, fica mais escura.
Uma menininha, a “Marje” criança, em preto e branco, entra por cima do
quadro anterior: temos uma sobreposição de imagens, com a protagonista
em cena em duas fases distintas da sua vida – num agora indeterminado no
passado infantil.
48
de escutar essa frase, o espectador vê a tela toda preta e os seguintes
letreiros: Teerã, 1978.
Corta. Mais do que uma nova cena, entramos agora numa nova etapa
do filme. Já sabemos que a estrutura em flash back da HQ se manterá na
animação. A introdução acabou de nos demonstrar isso. E a voice over
contida nessa introdução confirmou: “Eu me lembro”, escutamos – e
sabemos que é a voz da Marjane. A narradora-protagonista entra aqui no
registro da recordação, tal qual a HQ, mas num ponto totalmente diferente
da história. (Ou: não no tempo diegético da HQ). Na versão da HQ,
tínhamos o início com o episódio “O Véu”. Conforme demonstramos aqui
neste espaço, Marjane se identificava de imediato: “Essa sou eu, com dez
anos de idade, em 1980”, enquanto sua figura de braços cruzados e face
apreensiva estava desenhada logo abaixo. Na versão fílmica, a alusão ao
ato de rememorar está na lembrança da personagem, não a protagonista
criança, mas sim a adulta que rememora, enquanto a imagem da pequena
se mescla a ela. No entanto a cena que abre o filme inexiste na HQ.
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na narrativa fílmica ela se desloca para os três minutos iniciais da fita –
o que corresponde ao primeiro ato do filme. Além disso, é um conteúdo
que ganha uma amplitude muito maior no âmbito cinematográfico: o
plano sequência abre-se, vemos as pessoas dançando, corta para uma
roda de mulheres conversando assuntos femininos, corta para crianças
correndo no meio dos adultos, para o garçom mais uma vez (pedindo
calma com a bebida), para um casal que comenta a situação política do
Irã, para Marji fazendo travessuras e sendo repreendida pelo pai. No
texto, a festa resume-se ao quadrinho abaixo, seguido de um outro
quadrinho onde a luz de repente é desligada – o que culmina, dois
quadrinhos adiante, com um brinde no escuro e a sirene tocando (sinal
de bombardeio?) e a debandada geral da festa.
50
beira do fogão)...”em segundo lugar, todo mundo deve dar a sua palavra” (e
a câmera é lateral, focando a avó que tricota e a netinha que lê seus
mandamentos) ...“em terceiro plano, todo mundo deve fazer uma boa ação”
(e agora, finalmente, a câmera está frontal na Marji, em plano médio)
...“quarto mandamento: os pobres devem comer pelo menos uma galinha
assada por dia “ (a câmera vai para a avó tricotando) ...“e, finalmente,
“nenhuma velhinha sofrerá”. Agora as duas são focalizadas lateralmente,
enquanto a vó pergunta: “Se é assim, eu quero ser sua primeira discípula!”
Marji pula de alegria: “ Verdade?! Genial”. A avó: “E como você pretende
fazer para que as velhas não sofram mais?”; Marji: ”É simples, será
proibido.” Avó: “Ah, claro, como não pensei nisso”. De repente, sons de
multidão e protestos, a mãe cruza a sala rapidamente, dirigindo-se à janela e
perguntando: “O que está acontecendo?”.
51
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na
esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é
sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e
depois. E, em outro sentido ainda, é a rememoração que prescreve
o rigoroso modo de textura. Pois a unidade do texto está apenas no
actus purus da própria rememoração, e não na pessoa do autor e
muito menos na ação.(BENJAMIN, 2012, pp. 38-39)
52
poético. É neste sentido que o eu, tanto do filme, como do livro,
pode ser tanto dos conterrâneos de Marjane, autora, como a
comunidade internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
53
ASSMANN, Aleida. Espaços de Recordação: formas e
transformações da memória cultural. São Paulo: Editora da
Unicamp, 2011.
54
GAUTER, Claude. Dez anos. In: RENOIR, Jean. O passado vivo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
55
PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes – conceitos e metodologia(s).
In: VI Congresso SOPCOM, Lisboa, 2009. Anais eletrônicos, Lisboa,
SOPCOM 2009. Disponível em:
hhthttp://www.bocc.uff.br/pag/bocc_penafria_analise.pdf.Acesso em
01/06/2017.
PERSON, Philippe. Madame Bovary. In: HENRI, Mitterand. 100
filmes: da literatura para o cinema. Rio de Janeiro: Bestseller,
2014.
56
2006https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/vie
w/86 36 053/3762
57
REFERÊCIAS VIDEOGRÁFICAS
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