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Sumário

1 – ENTENDENDO OS CAMPOS ................................................................. 3


2 – ANALISAR UM FILME É CRITICÁ-LO? ................................................. 7
2.1 Decompor .......................................................................................... 10
2.2 Um exemplo ....................................................................................... 10
2.3 Um parênteses .................................................................................. 12
2.4 Algumas palavras sobre processo, autoria e análise .................... 16
2.5 Rewind and fast forward .................................................................. 16
3 - POSTULADOS E QUESTÕES ............................................................... 18
3.1 Pause ................................................................................................. 22
3 – TIPOLOGIA, METODOLOGIA............................................................... 23
3.1 Como analisar: tipologias ................................................................ 23
4 – EM BUSCA DE UM MÉTODO CRIATIVO ............................................. 27
4.1 Memória e transversalidade ............................................................. 27
4.2 A Nostalgia da Luz, de Patricio Gúzman ......................................... 29
4.3 Criar é transgredir, analisar é criar.................................................. 33
4.4 Persépolis: verso e reverso de memória ........................................ 34
4.5 Marjane narra Marjane ...................................................................... 36
4.6 Marjane lê Marjane ............................................................................ 43
4.7 Do eu ao nós: entrelaces de sujeitos e linguagens ....................... 45
4.8 apontamentos finais: é tudo memória? .......................................... 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 53
REFERÊCIAS VIDEOGRÁFICAS ............................................................... 58

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1 – ENTENDENDO OS CAMPOS

O cinema tem gramática específica. O plano, o ângulo, o movimento


de câmera, é parte de uma sintaxe que vai compor frases, parágrafos,
capítulos inteiros. Que vai dar ritmo de poesia ou forma de ensaio ao filme.
Ou que vai fazer as cenas sucederem-se em compasso de narrativa. Quem
maneja a técnica e a língua das imagens e dos sons em harmoniosa
sincronicidade – ou às vezes em proposital assincronia – é elevado ao status
de inventor ou esteta de/da linguagem. Basicamente, o que distingue o
profissional, ou mesmo o amador audiovisual, ou o simples artesão, do
artista: a fundação de uma estética capaz de criar uma nova sintaxe. A
percepção, a compreensão e a explicação desta nova sintaxe audiovisual,
que, paradoxalmente, vai além de inovar a expressão artística chamada de
sétima arte, é o campo, por excelência, da crítica cinematográfica acadêmica
e/ou altamente especializada (o que inclui o jornalismo cultural).

A crítica, sob uma outra perspectiva, não deixa de ser aquele lugar no
qual se coloca quem não faz, mas aprecia e media – a apreciação1
entendida aqui, por ora, de maneira ampla, e não como um equivalente a
juízo de valor, como veremos a seguir. Assim como é lugar-comum dizer que
todo o bom escritor é um assíduo leitor, não será diferente no campo da
imagem e do som: muitos e grandes cineastas foram forjados no embate
entre o encantamento cinéfilo e a formulação de um pensamento sobre o
cinema. O aclamado François Truffaut (1932-1984), expoente da Nouvelle
Vague francesa, é um exemplo frutífero para o assunto que queremos
introduzir aqui. Truffaut ainda tropeçava em cabos, e nem sabia direito como
mover o corpo no set de filmagem repleto de técnicos e equipamentos
1
“Apreciação é o ato de apreciar, avaliar a situação ou condição de algo, de modo a analisar, julgar e observar
determinada coisa. Para que haja apreciação de algo, a pessoa precisa dedicar muita atenção ao objeto apreciado,
despertando ao máximo os seus sentidos para conseguir contemplá-lo de maneira plena”, de acordo com definição
disponível <https://www.significados.com.br/apreciacao/>, acessado em 13 de agosto de 2017.

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pesados, quando fez e lançou o seu longa-metragem de estreia, em 1958 e
1959, respectivamente. Àquela altura ele já era, entretanto, um reconhecido
crítico de cinema. Não por acaso, afilhado de André Bazin (1918-1958), o
principal teórico do cinema moderno e formulador de um referencial fílmico
calcado na impressão da realidade e na mise-en-scène (veja o box).

A historieta - que já se pode considerar lendária – é bastante


conhecida. E está mais ou menos contada, justamente, no primeiro longa-
metragem de François Truffaut, o autobiográfico Os Incompreendidos. O
cineasta francês passara uma infância desamparada e solitária, aos
cuidados da avó materna, depois de deixar a casa de sua displicente mãe e
do padrasto que lhe concedera o nome de registro. É assim que, sob uma
educação pouco ortodoxa, e na solidão das tardes cinzentas de Paris,
desenvolve gosto e paixão pelo cinema. No lugar de ir para a escola, ele se
converte em assíduo frequentador das salas escuras parisienses. No lugar
de estudar e fazer a lição – ele era e rebelde e intolerante ao sistema escolar
- como qualquer menino de sua idade, Truffaut é uma espécie de “bicho
solto”, e chega a cometer pequenos delitos. É assim que André Bazin, que
à época desenvolvia uma atividade humanitária que incluía levar cinema aos
presídios, vai encontrá-lo: preso num reformatório, após ter sido expulso da
escola. O próprio François Truffaut relata a importância que tal encontro
teve em sua vida:

Encorajando-me a escrever, a partir de 1953, André Bazin me prestou um


grande favor, pois a necessidade de analisar o próprio prazer e
descrevê-lo, se não nos faz passar do amadorismo ao profissionalismo
em um passe de mágica, nos leva ao concreto e, portanto, nos situa
em alguma parte, esse lugar mal definido onde o crítico está situado. É
óbvio que, nesse momento, corre-se o risco de perder o
entusiasmo, mas felizmente não foi esse o caso. (...) Um mesmo
filme é visto de maneira diferente quando se é cinéfilo, jornalista ou
cineasta. (1989, p-p 15-16)

O testemunho de Truffaut sobre este encontro nos revela aspectos


importantes da atividade crítica, e demonstra que, contrariamente aquilo que

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assevera o senso comum, quem a pratica pode também exercer o ofício de
diretor de filmes. Sobre isso, é revelador ler mais um trecho do depoimento:

Sempre me perguntam em que momento da minha cinefilia desejei tornar-


me diretor ou crítico e para falar a verdade não sei: sei apenas que
queria aproximar-me cada vez mais do cinema. Um primeiro estágio
consistiu em ver muitos filmes, um segundo anotar o nome do
diretor ao sair do cinema, um terceiro em rever frequentemente os
mesmos filmes e em determinar minha escolha em função do diretor. (...)
Acontecia-me assistir ao mesmo filme cinco ou seis vezes no
mesmo mês e ser incapaz de contar corretamente o roteiro porque,
nesse ou naquele momento, uma música que se elevava, uma
perseguição na noite, o choro de uma atriz me entusiasmavam, me
faziam chorar e me levavam para mais longe que o próprio filme.
(1989, p-p 15-16)

A anedota sobre o encontro com Bazin, e as impressões de Truffaut


sobre seu próprio processo como crítico, não estão colocadas aqui por
acaso. Ela nos aponta, primeiramente, o ponto fulcral de nossa disciplina: os
discursos sobre cinema são heterogêneos e se estabelecem em
campos distintos, enunciados por emissores com objetivos diversos, -
inclusive pelos próprios produtores audiovisuais. Em outras palavras: do
cinéfilo que produz textos por gosto e bel-prazer, ou para um público
reduzido, passando pelo jornalista que figura nos veículos especializados ou
nos cadernos de cultura de grande circulação, ao crítico acadêmico que
estabelece e desenvolve teorias, genealogias, conceitos e análises, todos
estão de posse (temporária, que seja) do mesmo objeto: a análise do filme.

Mas, se nos anos 1950, época em que André Bazin produziu grande
parte de sua crítica e que François Truffaut começou sua ascendente e
bem-sucedida carreira artística (ele ganha o prêmio máximo do prestigioso
Festival de Cannes já com os Incompreendidos, além de receber indicação
para o Oscar de melhor roteiro original por este mesmo filme), o sistema
audiovisual se resumia à indústria cinematográfica e ao recente boom
televisivo, a partir dos anos 2000 o contexto é bem outro. A indústria
audiovisual se multiplicou e se desdobrou, o suporte se digitalizou –
passamos do período fotoquímico para a era dos bytes e dos pixels - e a

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convergência dos meios é uma realidade, tornando quem antes era tão-
somente receptor, produtor de imagens e sons. Em 2017, todos temos (ou
podemos ter) um aparelho de telefone celular que produz e publica vídeos
na Rede Mundial de Computadores, instantaneamente. Tudo isso para dizer
que o discurso sobre o filme, seja este caseiro, profissional, documental ou
ficcional, está presente na nossa vida de maneira muito mais frequente e
intensa que há 58 anos.

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2 – ANALISAR UM FILME É CRITICÁ-LO?

Para começar, tenhamos em mente que “a imagem pensa e faz


pensar, e é nesse sentido que ela contém uma pedagogia intrínseca. Se até
hoje não apreendemos seus ensinamentos (...) é talvez por
desconsiderarmos o verdadeiro alcance da linguagem audiovisual.”
(LEANDRO, 2001, p. 31)

A questão da analítica se liga a assertiva da professora e


documentarista Anita Leandro, citada acima, tanto quanto ao pensamento
da estudiosa Manuela Penafria, como veremos a seguir. E está circunscrita
aos seguintes eixos: saber ler para saber produzir; saber ler para melhor
entender; ler imageticamente para bem pensar: “aparentemente, a análise
de filmes está presente em vários discursos sobre os filmes, sejam eles de
caráter mais publicitário, um mero comentário, um discurso monográfico, ou
mesmo um estudo acadêmico” (PENAFRIA, 2009, p. 1).

Para o âmbito dos nossos estudos, interessa compreender que


análise, contudo, não é crítica. Analisar um filme ou uma produção
audiovisual significa “decompor o seu todo em partes”. (PENAFRIA, 2009, p.
1). E mais: ao seguir os preceitos de Jacques Aumont, através de Penafria,
nos tornamos conscientes de que não existe um método universal, mas que
a análise fílmica pressupõe pelo menos duas etapas distintas (PENAFRIA
apud VANOYE, 1994). Primeiro, separar as partes; em seguida, estabelecer
relações entre aquilo que foi dissociado. Além disso, o objetivo da análise é
elucidar “o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma
interpretação”. (PENAFRIA, 2009, p. 1)

Ao fim e ao cabo, pode-se dizer que esta é uma atividade que


desnuda e desmonta aquela gramática a que nos referimos no início da
apostila, identificando os elementos que foram usados na escrita fílmica,

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entendendo as articulações e junções que foram feitas com a manipulação
da imagem e do som. Trata-se de revelar a magia – mais que isso, trata-se
de perder a ingenuidade da ilusão. (Não é raro que, neste momento do texto,
você leitor sinta uma dorzinha: ela é natural e esperada. Quem analisa
perde, em princípio, o prazer, como dizia Truffaut. Mas ganha, por outro
lado, o privilégio do olhar apurado e técnico: no fundo, se configura um outro
prazer, de ordem diversa). Em termos conceituais, estamos falando de
decompor para depois fazer a reconstrução, “para perceber de que modo
esses elementos foram associados num determinado filme.” (PENAFRIA,
2009, p. 01)

O filme é o ponto de partida para a sua


decomposição, e é, também, o ponto de
chegada na etapa da reconstrução do
filme. (PENAFRIA apud VANOYE, 1994)

Não é que se precise construir um outro filme; é imperativo,


entretanto, que se retorne ao filme original tendo em vista o nexo ou os
nexos entre os elementos encontrados.

Análise fílmica =

Decompor o todo que é o filme, em partes.

Separar as partes.

Estabelecer relações entre o que foi dissociado.

Operar a reconstrução das partes.

Propor uma interpretação.

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Conclusão: a análise é sim diferente da crítica. Esta última tem como
finalidade avaliar, isto é, imputar um juízo de valor (e ou apreciar) a este ou
aquele filme, - na verdade, estabelecendo a importância de um filme em
relação a determinado fim. Por exemplo, a sua contribuição para o campo da
linguagem cinematográfica, conforme exemplificamos na primeira página
desta apostila, a sua importância dentro de uma temática específica, a sua
singularidade estética, e assim por diante: “Este tipo de discurso não é pois
uma análise propriamente dita, mas poderá beneficiar-se do trabalho de
análise que consideramos anterior a uma atribuição de um juízo de valor”.
(PENAFRIA, 2009, p. 2). Quadro sintético:

O que é, de modo Característica central:


sintético:
Analisar Implica a atividade Aqui o filme é o ponto
central de decompor o de saída e o ponto de
filme para examiná-lo. chegada.
Criticar Imputar uma avaliação Pressupõe a análise
estabelecendo o valor como suporte. Mas vai
de um filme, em além dela.
relação a determinado
fim.

É preciso ainda dizer que a crítica, ou a atividade crítica, não é um


bloco único, uniforme e monolítico. Como dissemos, ela se modifica se é
acadêmica ou se está ligada ao jornalismo cultural. Dentro destas duas
perspectivas, pode tomar fisionomias muito diversas. Por exemplo, no caso
de veículos impressos, (sim, eles ainda existem!), se tomarmos a revista de
circulação mensal, ou mesmo quinzenal, comparativamente ao jornal diário,
a questão da perenidade obriga o crítico a encaminhar uma e outra crítica
para diferentes ângulos, buscando, é claro, estabelecer a relação com o
leitor.

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2.1 Decompor

É importante salientar que a decomposição a que nos referimos


abrange conceitos que se referem à imagem, ao som e à estrutura do
filme. A partir da formulação de Penafria sobre este tema, elaboramos um
pequeno quadro exemplificativo, que poderá ajudar a elucidar os elementos
referentes ao três conceitos principais. É importante dizer que a tabela
abaixo não esgota este assunto, apenas estabelece algumas referências:

Imagem Som Estrutura


Ângulo de câmera Voice over Planos
Descrição dos planos Voz off screen Cenas
com relação ao
enquadramento
Composição do quadro Música original do filme Sequências

2.2 Um exemplo

Agora vamos à aplicabilidade de tais categorias no âmbito de análise


de um filme específico. Não por acaso, escolhemos como exemplo o
documentário Diário de uma busca (2010), da diretora brasileira Flavia
Castro. Trata-se de um longa-metragem documental que tematiza a história
política das ditaduras do Cone Sul (Chile, Argentina e Brasil), com ênfase no
Brasil, usando como mote a biografia e a autobiografia, ambas
entrelaçadas.

Assim: a diretora Flávia empreende e filma (o que significa que ela


própria está em cena) uma investigação sobre a morte de seu pai, Celso
Castro, ocorrida no ano de 1984, em Porto Alegre, em circunstâncias não
totalmente esclarecidas. Circunstâncias que a levam crer – e ao expectador
também – que a morte tem ligação com o passado político do pai. Celso
Afonso Gay de Castro foi militante de esquerda na década de 1970, tendo

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sido, por isso, obrigado a exilar-se, com a família, em Santiago, Buenos
Aires, Bruxelas, e, finalmente, Paris. Flavia era um bebê quando tudo isso
começa a se desenrolar, e só retorna ao Brasil muitos anos depois, com a
promulgação Lei de Anistia de 1979 (lei n° 6.683), já mocinha,
acompanhada da mãe, - a esta altura separada de seu pai.

Pausa. Agora vamos às etapas. Primeiramente, ilustramos aqui como


pode se configurar a decomposição:

Os acontecimentos que culminam com a morte misteriosa de Celso,


em 1984, em Porto Alegre, são, justamente, narradas por Flavia neste filme.
Como vimos , ela desempenha, simultaneamente, as funções de diretora e
de personagem (narradora-protagonista). Diante dos olhos do expectador,
ela empreende uma busca pelas causas da morte do pai, refazendo a
investigação sobre seu óbito, e, além disso, o percurso do exílio que outrora
viveu. Para isso, por um lado, evoca as suas memórias, na forma de uma
narração - uma voice over - em sincronia com planos fixos, quadros
parados e “poéticos”, que acabam por ter a função estruturante de
estabelecer o eixo central do filme: a cada memória um plano fixo e uma
narração em voice over (BRUM, 2016, p. 1-9).

Ora, de acordo com o que acabamos de descrever, afirmamos que


estamos decompondo a partir de paradigmas do som e da estrutura, de
forma associada. Assim:

 separando os planos fixos/quadros parados (referente à


estrutura) do filme;
 acompanhando a voice-over (referente ao som) destes
quadros;
 acompanhando a voz off-screen das demais imagens, sem, no
entanto separar essas últimas. (Este item é evidenciado mais
adiante, e, igualmente, nas duas vídeo-aulas sobre este
exemplo).

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2.3 Um parênteses

Até aqui, estamos focalizando o nosso exemplo no sentido de


demonstrar o processo de uma análise. Isto é, nosso texto não está
encaminhado de modo a cativar você leitor para a história que conta o filme.
Estamos usando o didatismo: é importante ter consciência disso.

Seguindo: ainda assim, as fases da análise estão algumas vezes


embaralhadas. Ao descrever Diário de uma busca, antecipamos sua
reconstrução e interpretação. Voltaremos a ambas, mais adiante, de modo a
concluir o nosso processo de análise filme.

Agora, vejamos as relações que se pode estabelecer entre os


elementos dissociados, sendo que estamos dando preponderância à
narração sonora de Diário de uma busca , visto que é ela que conduz o fio
da história. Fizemos essa opção em observação ao fato de que o
documentário se equilibra, em termos de narrativa, entre a referida voice
over e a voz off screen de sua narradora-protagonista. São momentos
marcadamente distintos, que operam, no entanto, de maneira conjugada.

O recurso técnico da voice over, sabemos, consiste naquela voz que


se sobrepõe à imagem. Ou seja, que não corresponde a alguém que está de
fato ou supostamente em cena, a quem equivaleria uma mise-en-scène
(RAMOS, 2010) ou um percurso diegético2. É uma voz de fora e além
daquilo que se enquadra. Já a voz off screen, ao contrário, é a voz de uma
personagem, mas de uma personagem que “pertence” à mise-en-scène, e
que, no entanto, não está fisicamente na cena naquele momento, por um ou

2 A diegese – de onde deriva o adjetivo diegético - é um conceito dos estudos literários e da narratologia que remonta a
Platão. Em termos gerais, a diegese consiste na narração essencialmente linguística: aqui narrar é um discurso verbal, é dizer.
Em oposição, temos o conceito de mímeses, que considera a narração como o ato de mostrar, de “dar a ver”. Outra forma de
definir a diegese, e que talvez seja mais cômoda para o nosso âmbito: é simplesmente a realidade ficcional, que se distingue
de tudo que está fora do texto, ou, no caso, do filme.

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outro motivo. E que “existe” na sequencialidade das cenas, não
necessariamente de maneira não consecutiva (BRUM, 2016, p. 1-9).

Ora, essa de-composição sonora que acabamos de descrever marca


e configura, simultaneamente, dois momentos distintos da narração fílmica:
enquanto a voz off screen dá conta, justamente, do gesto autobiográfico da
busca diante da câmera, sobretudo quando Flavia entrevista ou interage
com familiares e amigos, procurando um esclarecimento sobre o percurso
que leva à morte do pai, tentando, também, colocar em xeque a investigação
policial e jornalística em torno disso; a voice over é uma voz solitária que
rememora o passado a partir do presente, através de fragmentos
autobiográficos aderidos ao discurso. Vejamos (em itálico) um trecho inicial
do filme, com a voice over que é lida/narrada pela voz de Flavia Castro - ,
que, como dissemos, além de diretora é narradora-protagonista da fita:

Eu me lembro do flamboyant nessa casa tão linda quanto um palácio de


contos de fadas. Uma família de sonho, com avô, avó, quatro tias e sempre
muitos amigos. Fala-se de política e de livros, ri-se muito também. (No
lettering lê-se: Porto Alegre, rua Silva Paes, 1767).

Este trecho é acompanhado da seguinte imagem em plano fixo:

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Além do exposto até aqui, podemos também acrescentar que a voice over
tem um papel de estabilizar o filme – como que traçando um eixo invisível do
início ao final da narrativa, – ao mesmo tempo perfazendo a passagem do
mundo público ao privado, articulando, de certa forma, esses dois fios. A
presença constante do tempo verbal presente do indicativo, no discurso de
Flávia, evoca esse fio invisível, assim como a preponderância dos planos
fixos ou dos quadros parados a cada vez que essa voz entra em cena.
Eis, abaixo, um outro exemplo, outro momento da obra. A este
corresponde a narração em itálico, como anteriormente . De novo é a voz de
Flavia a narrar, e, a seguir, o quadro parado ou plano fixo que acompanha a
voice over:
Passávamos os dias inteiros num apartamento escuro, de um só cômodo,
dividido por um gigantesco armário. Entre duas reuniões reais, Joca (o
irmão de Flavia) e eu pegamos casa um bloco e brincamos de reunião. O
nosso vocabulário se enriquece de ismos de todos os tipos.
Internacionalismo , leninismo, marxismo, foquismo. Enquanto outras
crianças brincam de casinha, nós aplicamos com alegria todas as regras

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para o funcionamento de uma reunião. Você só tem mais cinco minutos,
companheiro.

Ou, ainda, retrocedendo aos primeiros de minutos de fita, temos:


Tenho 6 anos e penduro orgulhosamente todos os meus desenhos pelas
paredes da casa. Representam grandes passeatas, o Chê e o Fidel. Depois
da festa em homenagem a passagem de Fidel Castro por Santiago, fico
muito orgulhosa por ter o mesmo sobrenome. Na escola, me perguntam se
sou sua sobrinha. A ideia me encanta e invento esse novo parentesco: viro a
sobrinha brasileira de Fidel Castro. (Sobe som3 de voz de Fidel Castro
seguido de pausa). Um dia na escola me perguntam a profissão de meus
pais. Respondo: eles fazem reuniões. Não achando a resposta a seu gosto,
Celso me pede pra dizer que é bombeiro ou astronauta. Qualquer coisa,
menos reuniões.

3 Recurso técnico que faz com que o som invada o espaço fílmico. Pode ser considerado como “som ambiente”, em alguns
casos.

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Pode-se concluir a análise interpretando que do confronto das
memórias de Flavia materializadas nos planos fixo e na voice over com as
sequências advindas do movimento de busca investigativa e emocional, se
estabelece o percurso narrativo que entrelaça as vidas de pai e de filha.
(BRUM, 2016, p. 1-9).
E não é que voltamos ao filme, tal qual se afigura no nosso modelo
(por etapas) de análise fílmica?

2.4 Algumas palavras sobre processo, autoria e análise

Poderíamos, ainda, aludir ao processo de produção de Diário de uma


busca. Mesmo que não tenhamos abordado este aspecto de modo
empírico, já que se trata de dado externo à análise dos elementos fílmicos,
uma incursão no material disponível na mídia sobre o documentário revelou
que Flavia Castro utilizou como fonte para sua voice over fílmica, seu diário
de uso pessoal: “a ideia desde o princípio eram os offs da minha infância
(tecnicamente, voice over,) com algumas imagens fixas”, diz ela ao
repórter televisivo do Blog Vertentes do Cinema .E acrescenta: “porque eu
passei a vida inteira escrevendo essa história”. (2011)

É claro que nem sempre – na verdade, quase nunca – temos


possibilidade de entrada no processo de criação e produção do filme ou
audiovisual em questão. E, além disso, é prudente que se desconfie daquilo
que nos conta o autor da fita. Não porque este mente, mas porque sua visão
está, em maior ou menos medida, contaminada de viés autoral. E o nosso
objeto, é sempre bom lembrar, é o filme e a peça audiovisual, e não o autor.

2.5 Rewind and fast forward

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Feita a decomposição e a reconstrução - e perpassada a etapa da
interpretação - é importante retrocedermos ao ponto de refletir sobre a
atividade da crítica, para avançarmos noutra direção.

Seguindo a linha-mestra estabelecida por Manuela Penafria – que,


por sua vez, segue Sunsan Sontag – é preciso sublinhar mais uma vez que
a crítica cinematográfica como dever ser é sustentada pela decomposição
do filme, culminando na sua análise, e, por isso, levando em conta, em
primeiríssimo lugar, “as características singulares e especificidades” da
matéria fílmica. Ou, pelo menos, assim é que deveria ser, já que a crítica
não implica julgamento baseado em impressões. Isso para evitar aquele tipo
de avaliação que se pretende uma crítica, mas que, apoiada em opiniões
pessoais que muitas vezes não tem como matriz o filme, mas a experiência
e o gosto do avaliador, acabam por produzir uma argumentação e um
discurso adjetivado e abstrato em torno do seu suposto objeto. É neste
sentido que vem o alerta de Susan Sontag, ou, em outras palavras, que ela
defende que se pense a crítica de cinema não com base num suposto
conteúdo intrínseco a obra, mas priorizando os aspectos formais. Vejamos o
comentário de Penafria acerca do ideário da crítica de arte americana:

Embora a interpretação do conteúdo possa ser útil quanto ao contexto


cultural, político e social de um filme, não nos permite distinguir
um filme de um livro ou de uma peça de teatro. (...) a sua proposta (de
Sontag) vai no sentido da análise, que permite ver mais e ouvir mais
– enquanto experiência dos sentidos,- em vez de escavar
significados ocultos. (PENAFRIA, 2009, p. 3).

Por fim, a premissa que se pode depreender desta relação entre


análise e crítica, corrobora a indicação, anteriormente apontada por nós, de
que a primeira deve embasar a segunda.

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3 - POSTULADOS E QUESTÕES

Os primórdios da atividade cinematográfica – tomada e compreendida


aqui como realização e como crítica - nos levam a considerações essenciais
acerca da análise em correlação à crítica, de acordo com Penafria. Neste
sentido, nos conta a estudiosa, Sergei Eisenstein seria um exemplo
prolífico. (Vejam só: mais uma vez estamos diante de um cineasta que
também se dedicou à crítica). Mais do que isso, o diretor russo é
considerado, unanimemente, como um dos maiores pensadores do cinema.
Nas palavras de Ismail Xavier:

(...) o universo teórico de Eisenstein é referência ímpar neste século, não


havendo reflexão sobre cinema que se iguale à sua na amplitude de
pensamento, no fôlego da argumentação e na riqueza de propostas. (1983,
p. 13)

O diretor russo é a demonstração de que a partir da análise e da


interpretação de filmes, também se pode formular conceitos, e de que o
olhar do analista, se não é pilar ou base – que, como já dissemos
repetidamente, está na decomposição, na separação dos elementos e na
reconstrução – é uma singularidade que pode alçar a crítica ao patamar
epistemológico. Como assim?

Vejamos um exemplo: pois, o primeiro trabalho de análise fílmica de


que se tem notícia é feito por Eisenstein, a partir de sua própria obra, O
encouraçado Potemkin (1925). Resumindo em linhas gerais, pode-se dizer
que o filme narra o amotinamento de uma tripulação de marinheiros a bordo
de um navio. Acontecendo em meio a Revolução Russa de 1905 - e, visto
desde a o contexto histórico posterior, já encaminhando o que seria 1917 - a
revolta contra o regime brutal dos oficiais do navio vai culminar no massacre
da população de Odessa, ou na “chacina da escadaria”, nesta cidade
portuária que dá apoio à revolta dos marinheiros. O filme é paradigmático, já
que põe em prática a teoria da montagem preconizada por Lev Kuleshov,
professor da Escola de Filmes de Moscou onde Sergei Eisenstein estudara.

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Eh Sobre a pureza da linguagem cinematográfica, publicado
originalmente em 1934, sai em defesa da linguagem fílmica, que, na época,
era acusada de não ter um quadro referencial próprio e abrangente
(EISENSTEIN, 1990, p. 110). Além disso, o fato deste texto utilizar a própria
produção de seu autor como “amostra” para erguer um discurso em torno
do elogio à pureza da forma do cinema, se liga ao fato de que Eisenstein
também se defendia, por outro lado (ou talvez principalmente), da acusação
de ter realizado uma obra de propaganda socialista. Não por acaso, o
clássico A forma do filme, de onde retiramos o excerto que vamos ver a
seguir, reúne textos escritos em momentos diversos por Eisenstein, “mas
todos basicamente preocupados, com a questão que aparece no título”
(AVELLAR, 1990, p. 9). Ou seja, a forma.

A seguir vamos transcrever um excerto significativo da crítica do


cineasta russo, Eh Sobre a pureza da linguagem cinematográfica ,já que,
para além de sua importância histórica, ela nos serve como exemplo de
decomposição:

(...) me permitirei citar aqui uma análise, que serve como amostra, de um de
meus próprios trabalhos. É tirada do material para a conclusão de meu livro
Direção (Parte II – Mise-en-cadre) e diz respeito a Potemkin. Para
mostrar a dependência da composição do lado plástico de cada um
dos planos, escolhemos intencionalmente como exemplo não um
momento de clímax, mas uma parte quase acidentalmente
descoberta: quatorze fragmentos sucessivos da cena que precede a
fuzilaria nas escadas de Odessa. A cena onde “o bom povo de
Odessa” (os marinheiros do Potemkin se dirigiam à população de Odessa
desse modo) envia barcos com provisões para o navio amotinado.

Este envio de saudações é construído através de uma intercalação de dois


distintos temas.

1.Os barcos correndo em direção ao navio.

2. O povo de Odessa olhando e acenando.

No final, os dois temas se fundem. A composição é feita basicamente em


dois planos: um plano afastado e um primeiro plano. Alternadamente,
os temas assumem uma posição dominante, avançando para o
primeiro plano e empurrando-se um ao outro por turnos para o segundo
plano afastado.” (1990, p. 110)

19
Consegue-se visualizar e, por consequência, compreender melhor o
“jogo” entre os quatorze planos vistos por Eisenstein, realmente vendo as
imagens referidas por ele no texto que acabamos de ler. Citamos aqui tais
imagens, através da reprodução da decomposição visual feita pelo cineasta:

(EISENSTEIN, 1990, p. 110)

Mais uma vez Manuela Penafria, que vem guiando nosso caminho de
perscrutação em torno da análise, ressalta o caráter detalhista do exercício
da decomposição que aí se evidencia. Ela considera o exemplo que
acabamos de acompanhar como um paradigma de pormenorização. E
reivindica para a análise fílmica o estatuto de atividade “que perscruta
um filme ao detalhe”. (PENAFRIA, 2009, p. 5)

Do exposto até aqui – e tomando por base a análise de Eisenstein -


podemos depreender alguns postulados. Segundo a nossa estudiosa
portuguesa, em primeiro lugar, a análise fílmica precisa ser feita em vista de
“objetivos estabelecidos a priori”. Em segunda instância – mas ao lado da

20
primeira - é essencial que se proceda uma observação precisa, “atenta e
detalhada a, pelo menos, alguns planos de um determinado filme”.
(PENAFRIA, 2009, p. 5) Ainda, e voltando à vertente de Susan Sontag, a
análise precisa ser encarada como instrumento de suporte (termo
nosso) de todos aqueles que produzem textos sobre cinema, sejam estes
escritos críticos ou de outra natureza.

Contudo, ainda que se sustente o axioma que acabamos de formular,


a análise é uma atividade que nos apresenta questões, sendo que a
principal delas, de certa maneira algo presente neste nosso material didático
e, por isso mesmo, passível de testemunho porque quem o lê: “o fato do
filme não é citável” (PENAFRIA, 2009, p. 5). Isto é, não se pode
materializar o filme em palavras, tão-somente em imagens. A analogia com a
literatura pode nos ajudar a compreender isso de forma cristalina: na crítica
literária, por exemplo, os textos analíticos usam palavras para falar de
palavras. Diferente do texto analítico de cinema, que usa palavras para falar
de imagens e sons.

Outra questão que a análise fílmica enfrenta tem relação com a figura
humana do analista: “se o analista racionalizar demasiado o visionamento de
um filme (...) é exercido um controlo e a afetação emocional poderá sair
prejudicada”. (PENAFRIA, 2009, p. 5).Traduzindo: a razão, preponderante
no processo analítico, pode afastar a emoção mais do que seria
recomendável, e aí se corre o risco de uma crítica “técnica” e distanciada.
Quase como uma operação cirúrgica.

Todas essas questões que organizamos em postulados e


problemas, a fim de dar contorno científico à atividade do analista, nos
levam a uma pergunta central para avançarmos no nosso conteúdo: seria a
análise de filmes uma atividade autônoma? Em princípio, concordamos
com Manuela Penafria, que defende que a análise de filmes é uma
atividade que sustenta interesses que vão além dela mesma. Por exemplo (e
aqui optamos por algo que já discutimos anteriormente): o acadêmico ou o

21
jornalista cultural vão confirmar suas hipóteses através da análise fílmica, -
neste caso, a análise do filme serviria como meio e como fim. Outro
exemplo: no campo da pedagogia ou nos processos educativos, em que a
análise de filmes é usada não para que se veja/enxergue a linguagem
cinematográfica – normalmente a finalidade tem a ver com ensinar sobre
determinado assunto que o filme demonstra –a perspectiva de aproximação
com a análise é mais instrumental, quer dizer, sua tônica é ser meio e não
finalidade.

Assim, “seria a análise de filmes uma atividade autônoma?” é


uma pergunta que só tem sentido perante a necessidade de afirmação de
uma área de estudos dentro da academia: “pela possibilidade de análise de
filmes ser capaz de elaborar a sua atividade mediante uma metodologia de
caráter universal ou, pelo menos, o mais abrangente possível”. (PENAFRIA,
2009, p. 5)

Levando em conta este cenário de questões imbricadas e nem


sempre passíveis de elucidação – pelo menos não no espaço de apenas
uma disciplina lato sensu – a seguir vamos oferecer um “cardápio” de
procedimentos para análise filmes. Trata-se aqui não mais de dar contorno à
atividade, dizer o que ela não é, para falar no que ela se constitui, ou apontar
suas etapas, postulados e seus problemas inerentes, como fizemos até aqui.
Trata-se de estabelecer tipologias metodológicas possíveis, quando o
assunto é análise – e não crítica, é bom lembrar.

3.1 Pause

Antes de partirmos para um elenco de tipologias analíticas, o qual


mais uma vez vai seguir a linha-mestra proposta por Manuela Penafria,
algumas palavras sobre metodologia. Se alguém estiver pensando: “puxa,
que chatice essa conversa de metodologia...” pode parar já, já. Vamos,

22
antes, informar que a metodologia não está colocada aqui – e em nenhum
lugar, diga-se – como um assunto o qual se deverá “dominar
cientificamente”, para, depois, aplicar. O método é entendido por nós como
processo criativo. Tanto quanto a criação de um roteiro de cinema, a escrita
de um texto mais livre, ou qualquer outra atividade do campo da linguagem,
das artes e/ou da comunicação.

O método está ligado ao caminho a ser construído antes e durante a


análise, e, por isso, o modelo que se adota inicialmente pode ser
conjugando a outro, no meio do processo (sim!); aliás o “modelo” pode ser
“próprio” e/ou comportar um misto de diversas perspectivas e paradigmas
conceituais. É neste sentido que abordamos o método no contexto da
disciplina Análise Crítica. Inclusive, mais adiante teremos seções dedicadas
ao fornecimento de linhas de percurso possíveis, não no sentido de esgotar
as tipologias, mas de indicar como se pode agenciar e relacionar aquilo que
antes estava desconexo, através de um método pré-estabelecido ou
próprio. Afinal, somos totalmente partidários da citação que diz que quando
empregamos um método estamos, tacitamente, reivindicando uma visão de
mundo, reforçando ou rejeitando o senso comum de uma época.

3 – TIPOLOGIA, METODOLOGIA

3.1 Como analisar: tipologias

Vejamos a compilação tipológica de Manuela Penafria, que nos


apresenta quatro modalidades de análise fílmica. Vamos expô-las num
quadro, para facilitar a fixação dos conteúdos:

23
Tipo Particularidade Filiação/ Procedimen- Importante
origem/ tos saber
Análise Considera o filme Estruturalismo de O filme é Uma vez que
textual como um texto. inspiração repartido em assume o
linguística dos sintagmas/ filme como
anos 60/70. unidades texto, este
Christian Metz é dramáticas. modelo de
representativo. análise dá
“Objetivo: importância
decompor o filme aos códigos
dando conta da de cada filme.
estrutura do
mesmo”.
(Penafria, 1990,
p. 6)
Análise Assume o filme O principal Destaca-se os
de con- como um relato e neste tipo de planos
teúdo somente leva em análise é correlativa-
consideração o seu primeira mente
tema. mente ao tema. Isto
identificar o é, não há
assunto do necessidade
filme. Depois, de privilegiar
“faz-se um os planos
resumo da iniciais em
história e a detrimento dos
decomposi- finais, e vice-
ção tendo em versa. Quem
conta o que dá a linha a
o filme diz ser seguida é
sobre o o tema.

24
tema.”
(Penafria,
1990, p. 6)
Análise Toma o filme como Autoria de Presume: Pode-se
poética uma Wilson Gomes 1)identificar compreender
“programação/cria- (2004). os efeitos um filme
ção de efeitos” sensações e “como uma
(Penafria, 1990, p. sentidos que composição
6) um filme estética
produz; 2) (efeitos de
partir do sensação),
efeito e composição
descobrir comunicacio-
como este foi nal (efeitos de
conseguido. sentido) ou
poética
(efeitos de
sentimentos e
emoções).
(Penafria,
1990, p. 6)
Análise Considera o filme “Este tipo de Um exemplo Esta tipologia
da como um meio de análise pode ser de recorte abre uma
imagem expressão. designado como analítico: leitura da
e do especificamente verificar o uso perspectiva do
som cinematográfico do grande modo como o
pois centra-se no plano em realizador
espaço fílmico e diferentes concebe o seu
recorre a diretores. fazer
conceitos Neste caso, cinematográfi-
cinematográficos sugere-se co, além de

25
” (Penafria, 1990, contrapor abrir para
p. 6) Griffith e pensar e
Carl Dreyer avaliar as
de Joana questões do
D’Arc. O mundo.
primeiro o
utiliza apenas
par dar
informação
ao
expectador,
ao passo que
o segundo faz
uma
utilização
dramática.

Para finalizar, é importante dizer que a metodologia acontece como


consequência do modelo de análise que se escolhe: “cada tipo de análise
instaura a sua própria metodologia” (PENAFRIA, 2009, p. 7)

E a mise-en-scène?
Afinal, esquecemos da mise-en-scène que mencionamos lá na
primeira seção? De jeito nenhum! Eis um bom momento para voltarmos ao
tema, agora que já fizemos o percurso que elucidou o nosso campo e
distinguimos as ferramentas teóricas que possuímos para lidar com ele.
Retrocedendo: a anedota sobre Truffaut e Bazin tem, além daquela
implicação referida no início desta apostila, uma pertinência essencial: ela
nos abre a possibilidade para a compreensão do que seja a crítica

26
cinematográfica praticada pela Escola Francesa, - importante porque
estabelece um conceito-base para a analítica do cinema moderno: o
conceito de mise-en-scène.
Citamos mais uma vez um dos maiores críticos de cinema do Brasil:
“as coordenadas de uma reflexão sobre a mise-en-scène que balizou a
discussão sobre os estilos do cinema moderno em oposição ao clássico”
(XAVIER, 2014, p. 389) são de André Bazin. Antes, predominava o eixo
teórico da montagem. (O que explica, aliás, a utilização e a permanência da
palavra francesa).
Para Fernão Ramos, outro importante teórico brasileiro, a noção de
mise-en-scène é de uma amplitude significativa, mas há um ponto pacific:
“na mise-en-scène a constituição cênica da imagem tem destaque num
contexto próximo da cena teatral”. (2011, p. 02)
Ou seja, mise-en-scène diz respeito à encenação, a tudo aquilo que é
posto em cena para que o espetáculo possa acontecer. Assim, ela envolve
cenário, figurino e personagens, entre outros elementos.

4 – EM BUSCA DE UM MÉTODO CRIATIVO

4.1 Memória e transversalidade

Recentemente, e cada vez com mais frequência e intensidade, a


memória tem sido evocada no campo das artes. Fale-se em memorialismo e
em arte da memória, muitas vezes no sentido de salvaguardar conteúdos, –
informações de certa natureza que, de outro modo, estariam sob o risco do
esquecimento. Que estariam relegadas ao plano do desconhecido, do
apagamento e da morte.

27
Não é demais lembrar o contexto histórico que determina este
verdadeiro boom memorialista: após a Segunda Grande Guerra surge a
necessidade de manifestar o luto pela perda e esfacelamento de vidas; além
disso, o surgimento e a intensificação das lutas anticolonialistas e a luta das
minorias pelos seus direitos de reconhecimento, se travam no campo da
cultura mnemônica. “Não podemos esquecer que essa cultura da memória
nasce da resistência (...).” (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 39)

Para compreender em profundidade o que seja a memória, é


necessário um conhecimento não raro erudito e abrangente, que pode
atravessar áreas tão distintas quanto a história, a psicanálise, a arte e a
sociologia; isso sem falar nas ciências cognitivas. Não é o caso aqui tomar
este rumo. Nossa direção é outra: volta-se para a leitura de produções
culturais (especificamente o cinema) através da memória.

A abordagem mnemônica da cultura é fruto do desenvolvimento das


próprias ciências humanas, resultado da descoberta do DNA e da
consciência de que memória é cultura. Ela está relacionada, para o âmbito
dos nossos estudos, com uma visão de mundo e com a construção de um
método: é assim que ela deve ser vista aqui. E é por isso que ela é
transversal: trabalha-se com a memória, evoca-se os estudos sobre a
memória e narra-se através do ato rememorativo. Ela não é um veículo
em si, como também não é tomada por nós, ou pelos seus estudiosos,
como conceito-categoria.

De novo: o que seria então a memória, aqui? Um modo a partir do


qual podemos pensar as artes, sobretudo em correlação à História
Contemporânea. Quem pode vir mais uma vez em nosso auxílio é um dos
maiores estudiosos brasileiros sobre o tema, o teórico e professor, já citado
anteriormente, Marcio Seligmann-Silva:

A noção escritural da memória (...) põe em relevo a afirmação (...)


segundo a qual a memória se localiza na imaginação. Se com a
imaginação ela compartilha esse caráter imagético ela mesma
constitui, graças a esse aspecto, um “espaço” nas nossas mentes

28
onde plantamos nossas paisagens mnemônicas e escrevemos com
imagens agentes. É essa localização entre o mundo sensível e o
mundo conceitual que caracteriza a imaginação que permite
também o funcionamento da arte da memória enquanto dispositivo
tradutório que ora traduz imagens, ora retraduz estas em novas
falas ou textos. A arte da memória tem como um de seus movimentos
básicos a transformação da história em uma escrita imagética e a sua
legibilidade posterior. (2006, p.38)

Vamos agora para uma aproximação prática, no intuito de tornar


visível aquilo que acabamos de conceituar abstratamente. A seguir
propomos uma análise crítica na qual utilizamos a memória como método.
Observe que se trata de uma análise fechada, ou seja, não vamos percorrer
um passo-a-passo, como no caso de Diário de uma busca. Vamos ao
encontro de um discurso fechado.

4.2 A Nostalgia da Luz, de Patricio Gúzman

A Nostalgia da Luz (2010), documentário dirigido pelo realizador


Patrício Guzman, se desenvolve a partir do mapeamento de três situações
espalhadas pelo Deserto do Atacama, no Chile: cientistas do mundo inteiro
pesquisam estrelas e planetas, a partir de telescópios gigantescos;
arqueólogos investigam resquícios pré-colombianos; familiares buscam
restos mortais de seus entes desaparecidos pela ditadura chilena – nos
fixaremos aqui.

O filme abre com a montagem de imagens do universo e o interior de


uma casa antiga. A simplicidade da morada mostrada ao espectador
contrasta com a grandiosidade da visão de estrelas e astros. São ambas
imagens e objetos de afeto do narrador de A Nostalgia da Luz. Esta
morada, nos conta a voice over, não é a original - o fogão à lenha, as janelas
venezianas e a cristaleira antiga que orna o ambiente, nada disso pertence à
casa de infância de Patrício Guzman, diretor e narrador do filme; assim
como a visão do universo em movimento é provavelmente uma
representação audiovisual (ao menos parcial) daquilo que seria, na
imaginação de Patrício, a galáxia. Tratam-se de representações que servem

29
ao que se está narrando: são os nossos pontos de partida, é o que parece
dizer a mensagem subliminar da voz.

O filme segue. "O tempo presente era o único tempo que existia",
escutamos: na tela, a imagem da fachada da casa velha é envolta por uma
luminosidade e pequenos pontos brilhantes. Essa luz varre a imagem antiga
e a substitui pela imagem do universo. O narrador diz: "essa vida tranquila
se acabou um dia."

A casa, assim, é metáfora para um tempo que já passou: a infância do


narrador. Foi numa atmosfera como essa que Patrício menino sonhava com
as estrelas - era um tempo durante o qual "a vida era provinciana e nunca
nada acontecia" e "os presidentes do país andavam na rua sem escolta".
Nesse passado, nasceu sua paixão por astronomia e o interesse pela
história chilena: nesse tempo, longínquo, havia toda a vida pela frente e
tudo, absolutamente tudo, podia acontecer ao Chile.

È assim que casa e universo, imagens em princípio antagônicas,


permitem a analogia e o percurso por entre dois tempos diversos, passado e
futuro do narrador. Patrício Guzman, através de narração em primeira
pessoa, constrói um testemunho de aproximadamente noventa minutos,
enleando o fio de sua memória ao fio das rememorações e falas das
personagens que o filme apresenta, perfazendo, assim, o tempo presente: o
tempo da narração . Não é por acaso que antes de o primeiro personagem
entrar em cena, a fala do narrador seja: “nosso planeta úmido tem apenas
uma mancha marrom onde não existe nenhum grau de umidade: o
imenso deserto de Atacama. Envolto pela poeira estelar, cientistas de
todo o mundo construíram aqui os maiores telescópios da Terra.”

Feita essa moldura narrativa – voz que vai costurar o filme todo,
pontuando, questionando, afirmando - a lente da câmera se volta a outras
vozes, em on (com a respectiva imagem), que então passam a compor a
narração, justapostas à voz de Patrício. Aos poucos, o espectador percebe

30
que o deserto do Atacama é como um palco dentro da narrativa - e nos
perguntamos: que história ele assenta? Por que o deserto?

O primeiro sujeito com voz em on, um personagem - para falar nos


termos do jargão do documentário audiovisual - é Gaspar Galaz, cientista
que pesquisa desde o interior dos telescópios gigantescos. Ele diz muitas
coisas, para ao final declarar: "de onde viemos é uma pergunta muito forte"
(...) "nosso trabalho, ao final, é sobre o passado".

A partir deste sujeito, a narrativa nos propõe outra situação: há os


cientistas que perscrutam o céu do Chile em busca de um certo passado,
como Galaz, mas há também os arqueólogos que escavam visando
resquícios de civilizações pré-colombianas, ou seja, que procuram o
passado - a lente da câmera, neste ponto, nos dá a visão de inscrições de
pastores ancestrais em pedras do deserto.

Além destes personagens, há outros.

Há, por exemplo, os atores sociais que perscrutam um passado


próximo, sobre o qual pouco se fala, muito se procura e quase nada se
compreende. Este passado emerge através da focalização de Chacabuco,
hoje uma ruína no meio do nada, mas em 1924 uma mina de extração de
nitrato. Durante o governo de Augusto Pinochet, foi transformada em
monumento histórico e nem precisou de reformas para voltar à atividade:
suas dependências foram transformadas em campo de concentração, abrigo
longínquo para onde foram enviados milhares de resistentes ao regime
ditatorial (1973-1990). Em Chacabuco, os presos políticos da ditadura
chilena observavam as estrelas, e desta forma mantinham sua liberdade
interior, nos conta Luís Henríquez. O próximo personagem confirma:
arquiteto, desenhou o local de memória, tão logo foi solto e conduzido ao
exílio. Miguel Lawner passava suas horas de cárcere medindo mentalmente
os espaços - então foi com muita naturalidade que desenhou seus mínimos

31
contornos de cabeça. O resultado – a tela nos mostra – surpreendeu até
mesmo os algozes do ex-prisioneiro.

Há mais. Neste mesmo deserto – que por definição deveria ser um


desterro de coisas, há mais. Patrício Guzman recorre ao arqueólogo
Lautero Nunez para falar deste “mais”: e este informa ao seu interlocutor, a
voice over - moldura presente nas entrevistas, interferindo e muitas vezes
se sobressaindo, trazendo outras perguntas e comentando - que, embora
sua busca seja muito distante daquela dos astrônomos, é igualmente
importante para o futuro. Tem a ver com buscar “restos de restos” – e com
isso somos aproximados, pela primeira vez no documentário, da voz de
Vicky Saavedra. Ela dá entrevista sentada no chão do Atacama, como se
essa lhe fosse uma terra íntima. E é. Antes, a personagem foi mostrada
num plano geral , ao lado de outras mulheres com pequenas pás em punho,
a escavar levemente a terra árida do Atacama. Vicky, Violeta Berríos e
mais quatro mulheres cujos silhuetas A Nostalgia da Luz compartilha
conosco, são a visão do insólito neste que se pretende somente um
documentário – e que portanto, por definição “(...) é também resultado de um
processo criativo do cineasta, marcado por várias etapas de seleção,
comandadas por escolhas subjetivas desse realizador” (PUCCINI, p. 15,
2015).

As familiares de desaparecidos políticos chilenos – os resistentes ao


governo ditatorial de Augusto Pinochet - mortos pelo regime de então e
cujos corpos jamais foram enterrados, são o testemunho de algo que
ultrapassa nossa compreensão e a própria noção de realidade plausível.
Elas empunham sua pazinhas – poderiam ser brinquedos de crianças – e
com elas revolvem a terra à qual pode ter se misturado um pouco “do que é
seu”: um ente querido convertido em ossada, resto mortal. Vicky Saavedra,
“durante a filmagem deste documentário”, avisa a voice over, encontrou os
restos de seu irmão, Paulo Saavedra: “um pedaço de rosto, um pé”. Ela

32
conta que levou o pé de seu irmão para casa, e ficou a olhar e a conversar
com ele, enquanto chorava sem parar.

O documentário avança, indo e vindo em personagens que já


apareceram lá no início; avança também rumo a outros personagens que
tiveram suas vidas marcadas pela brutalidade do regime de Pinochet:
Victor González, nascido no exílio, Valentina Rodríguez, cujos pais foram
sequestrados e assassinados. Suas histórias não são menos brutas – mas o
fato é que depois da visão das mulheres no deserto e suas diminutas pás,
algo mudou, nada mais nos toca tanto.

Quer dizer, talvez apenas o eco da voz de Guzman nos toque tênue
e profundamente: “os que tem memória são capazes de viver no frágil
momento presente”, ele diz em algum momento do filme. Revelando que a
memória além de nos permitir ver o filme, também proporcionou que ele
fosse feito.

4.3 Criar é transgredir, analisar é criar

Antes de continuarmos, mais um parênteses – ou uma pausa, como


queiram. Se, como já assumimos aqui neste espaço, somos partidários da
citação que diz que quando empregamos um método estamos, tacitamente,
reivindicando uma visão de mundo, reforçando ou rejeitando o senso comum
de uma época, uma certa dose de transgressão está implícita na criação de
um método próprio. Ou, ainda, na adaptação de um método “antigo” ao
nosso objeto e modo de fazer.

É assim que o exemplo que vamos apresentar a seguir dialoga com a


ideia de transgressão. Na próxima subseção, vamos comparar uma narrativa
fílmica com uma narrativa sequencial (“livro”) no sentido não de verificar a
questão da fidelidade – o que é muito comum no campo dos estudos
narratológicos. O que vamos fazer é comparar, justamente, para distinguir a
obra fílmica, para melhor analisá-la.

33
Também é importante dizer que, a exemplo do que fizemos em
Nostalgia da Luz, não se trata mais de apresentar o passo-a-passo da
análise e/ou sua conceituação e esmiuçamento de etapas. A seguir
apresentamos já o resultado da análise, ou seja, o discurso sobre o filme –
em correlação ao livro, no caso.

4.4 Persépolis: verso e reverso de memória

Persépolis, primeira obra de Marjane Satrapi, segue uma tendência


que surgiu com Maus, de Art Spiegelman, a história em quadrinhos (HQ)
ganhadora do Prêmio Pulitzer de 1992: a narrativa autobiográfica
incorporada à arte sequencial. É a própria Satrapi quem relata, em
entrevista à editora Françoise Mouly (2012) – esposa do autor de Maus –
como a obra lhe serviu de inspiração.

Philippe Lejeune (2008), nos seus estudos dedicados à autobiografia


como gênero artístico, cunhou uma das mais disseminadas definições sobre
a escrita de si. Diz o crítico que a questão central autobiográfica é a junção
do autor-narrador-personagem contida na obra. O que só seria possível de
ser apreendido através do modelo conceitual do “pacto biográfico” (2008, pp.
26). Este pacto, segundo o crítico, revela a confluência entre a experiência
vivida e a fabulação narrativa. E isso se confirma com a identidade autor-
narrador-personagem remetida ao nome do autor na capa do livro.

Todavia, apropriar-se de tal definição não é tão simples. Não basta a


nós um olhar de relance na capa, para que se comprove a hipótese de uma
autobiografia artística. As formas que o pacto biográfico pode tomar são
muitas, e nos levam ao pacto referencial. De maneira sucinta, podemos
dizer que a referencialidade é a ideia de que há uma verdade objetiva a qual
o texto se refere, uma realidade passível de verificação, para além da obra.
A distinção que Lejeune faz entre biografia e autobiografia nos ajuda a
compreender porque e como o referencial é considerado neste contexto. Ele
afirma:

34
O que vai opor fundamentalmente a biografia à autobiografia
éa hierarquização das relações de semelhança e de identidade;
na biografia, é a semelhança que deve fundamentar a
identidade, na autobiografia, é a identidade que fundamenta a
semelhança. (2008, p. 39):

Na narrativa autobiográfica, é substancial que o pacto referencial seja


fixado; entretanto, não é preciso que se tenha uma narrativa de estrita
semelhança com o real, a exemplo do que acontece no discurso científico
ou histórico.

A identidade, assim, parece ser o eixo fundamental do


autobiografismo artístico. E a questão para nós é saber como distinguir o
caráter da identidade na narrativa, como saber se é ela que está, de fato,
fundamentando a semelhança. Jeanne Marie Gagnebin (2012) explica que:

(...) a identidade é ligada à história e portanto à narração. A história, sentido


amplo da palavra, sempre tem um processo narrativo. (....) A identidade é
sempre uma questão de narrar a si mesmo. E você constrói a sua
identidade, você aliás a transforma, seguindo narrações diversificadas que
você faz da sua vida e da sua participação na vida mais ampla. Essa
narração também pode lhe transformar. (...) A nossa identidade é da
enunciação (...) Então essa questão da memória , da identidade e das
histórias, essas três questões são intimamente ligadas.

Como vemos, o assunto se elucida e, ao mesmo tempo, se complica.


Identidade, memória, e história são categorias interrelacionadas. Se por um
lado não há identidade sem memória, é, por outro, a enunciação de si
mesmo, a partir de diferentes pontos da temporalidade da vida que passou,
ou seja, da lembrança, que conseguimos engendrar as nossas identidades,
e, por consequência, histórias. A memória, desta forma, seria base para a
narração, e essa, por conseguinte, seria a definidora da identidade - será? É
como se entrássemos num labirinto circular: temos três questões
interdependentes - difícil ou impossível dissociá-las - se conseguimos sair de
uma, logo desembocamos em outra, e então retornamos uma “casa” que
parecíamos ter avançado.

35
Tomamos a hipótese de que a estratégia utilizada pela autora
Marjane Satrapi para levar a cabo a proposta de criação de uma HQ
autobiográfica, ou seja, o recurso de ter uma narradora-protagonista que
conta em primeira pessoa as suas memórias entrelaçadas à História política
contemporânea do Irã, encontra sua razão de ser na necessidade
derradeira – limite - de narrar.

A transposição para o filme seria, por consequência, dirigida pela


mesma necessidade vital de narração, já que Marjane Satrapi é, ela
mesma, ao lado de Vincent Parrounaud, a autora da versão fílmica. Temos,
assim, uma leitora-crítica de suas memórias, num movimento de
transmutação para uma segunda linguagem.

Dada a extensão das duas obras, e o espaço limitado de que


dispomos, optamos por fazer um recorte: na narrativa fílmica focalizaremos
apenas os cinco primeiro minutos. Já a HQ será através de suas sequências
narrativas – mencionadas e analisadas individualmente sempre que preciso
– e também observando as temáticas que estabelecem a linha divisória
entre as quatro partes distinguidas nas edições francesas4: 1 – Infância
de Marjane no Irã; 2 – Adolescência da narradora-protagonista, também
passada na sua terra natal; 3 – Adolescência na Áustria; 4 – Marjane e o
início de sua vida adulta no Irã, até imigrar para a França, aos 23 anos.

4.5 Marjane narra Marjane

A HQ foi publicada pela primeira vez na França, pela editora


L'Association, em quatro edições e volumes distintos, Persepolis 1 (2000);
Persepolis 2 (2001); Persepolis 3 (2002) e Persepolis 4 (2003).
Posteriormente, a mesma casa editorial compilou todos os volumes num só,
porém mantendo a divisão que orientava os quatro livros originais: 1, 2, 3 e 4

4
Persépolis HQ não tem as páginas numeradas.

36
são os numerais que demarcam a narrativa, nos fazendo lembrar do formato
primeiro de Persépolis. No Brasil, a obra chegou sob a forma de um único
livro, narrativa una, sem divisões internas. Exceto pelas sequências tanto da
edição francesa, como da brasileira. São elas: O Véu; A Bicicleta; A Cela
de Água; Persépolis; A Carta; A Festa; Os Heróis; Moscou; As Ovelhas;
A Viagem; Os F-14; As Joias; A Chave; O Vinho; O Cigarro; O
Passaporte; Kim Wilde; O Shabat; O Dote; A Sopa; Tirol; O Macarrão; A
Pílula; O Legume; O Cavalo; Esconde-esconde; Love Story; O
Croissant; A Volta; A Piada; O Esqui; O Concurso; A Maquiagem; A
Convocação; As Meias; O Casamento; A Parabólica; O Fim.

É curioso observar que a última sequência, O Fim, narra justamente


os meses derradeiros de Marjane-personagem no Teerã, entre 1993 e
1994, período no qual se divorcia de seu jovem marido e se gradua em Artes
Visuais - atitudes, que, ao invés de a colocarem numa situação de
independência, a oprimem. Afinal, uma mulher divorciada no Irã daquele
momento, não merece,– nem da sociedade, tampouco dos homens -
respeito. Além disso, Marjane é artista – como se expressar num país
confiscado pela autoridade ditatorial? A saída encontrada pela moça é o
aeroporto. Marjane toma o rumo de Paris. É neste contexto que, em O Fim,
o leitor é confrontado com o seguinte: se por um lado termina, de forma
aberta, a história da narradora-protagonista da HQ, por outro, a Marjane da
realidade, autora, deu seguimento ao destino desenhando, escrevendo e
publicando sobre seu Irã natal, em Paris. Mulher, imigrante, iraniana, a
Marjane da vida, de certa forma, confere liberdade à Marjane da narrativa.
Uma liberdade real para a autora; todavia, para as iranianas, simbólica: ao
mesmo tempo, é como se uma nova possibilidade identitária se inscrevesse
no horizonte do leitor que então vê/lê a mulher do mundo iraniano sob a
ótica da Marjane.

Mas retornemos ao início da obra. Para que possamos avançar


didática e metodologicamente, convém apresentar a narrativa que é ponto

37
de partida e apresentação de Persépolis, O Véu. Nela, a primeira imagem é
a de uma menina de braços cruzados, apoiados sobre uma bancada preta.
Ela veste o véu islâmico e seu semblante é misterioso: não sabemos ainda
se aquele é um olhar de tristeza ou medida complacência. A linguagem
verbal fiz: “Essa era eu quando tinha dez anos. Isso foi em 1980”.

É assim que a narradora-protagonista se apresenta já desde o


princípio: como condutora da trama. É através de seu olhar e de sua história
de vida que somos inseridos na narrativa, é assim que somos colocamos
dentro de Persépolis. Marjane - “Marji” - que assume esse mesmo nome
na capa do livro, conduz o leitor através do retrospecto. Trata-se de uma
visada autobiográfica em flash back:

Há (...) duas Marjanes em Persépolis, a personagem jovem que expressa-se


em discurso direto, dentro dos típicos balões; e a outra, adulta, que narra a
história em discurso indireto, dentro de letreiros (acima ou abaixo dos
desenhos). Assim, torna-se evidente o trabalho de recriação artística da
memória (MARRA, 2014, p. 12).

Abaixo podemos observar a primeira página de Persépolis (SATRAPI,


2007):

38
Quer dizer, temos a menina narrando a realidade política e social do Irã,
enleada ao fio de sua vida. É por isso que ao final de O Véu, como já
dissemos, sabemos que ela nasceu em 1970, no seio de uma família
progressista do Irã; então um Estado laico. Em 1979, com a Revolução

39
Cultural (ou Islâmica), o Estado Islâmico é instaurado naquele país, a
situação política muda, Estado e religião mesclam-se, transformando a
promissora vida da menina e da sociedade iraniana. Os pais e a avó,
personagens centrais, são introduzidos já nesse episódio: são eles que
interagem e dão esteio às ações da protagonista.

Mais adiante, na sequência narrativa A Chave, percebe-se na


narração um caráter pedagógico. Diante da aparente indiferença da mãe
frente aos mártires de guerra, “Marji” explica e contextualiza a situação
política daquele momento, “olhando direto” para o leitor – compartilhando
conosco sua reflexão acerca dos acontecimentos que se desenrolam no
cotidiano do Irã. Fatos marcados por uma violência para a qual a mãe
parece não dar muito importância, de tão corriqueiros que se tornaram.

É assim também que a narradora-protagonista estabelece uma


ligação de cumplicidade com o leitor, fazendo desse olhar direto um lugar
onde nos dá uma lição (no bom sentido), ou a oportunidade de aprender
sobre a tradição xiita e a mentalidade persa (SATRAPI, 2007).

A Chave, aliás, é exemplar neste sentido. O episódio desenvolve


como mini-narrativas de memórias acerca dos costumes, dos efeitos da
Guerra Irã-Iraque (1980/1988) na vida privada e dos ritos religiosos. São
como flash backs de insights da narradora, desenleando passado e
presente, apresentando ao leitor uma visão crítica – mas respeitosa – dos
costumes persas. Esse trecho que mostramos aqui , por exemplo, desvela
como o governo iraniano usou a religião para manejar o poder e influenciar a
opinião pública favoravelmente à Guerra:

40
É interessante perceber, contudo, que este caráter
“educativo” é tão integrado à narrativa, que não causa estranheza no leitor:

Persépolis não é uma simplificação pedagógica da


vida de uma iraniana, e justamente por isso ganhou
destaque entre o público e a crítica. O livro de
Satrapi é ao mesmo tempo transgressor a uma
política de Estado oriental, a iraniana, e ao
pensamento ocidental, acostumado a enxergar o
Oriente Médio como culturalmente atrasado e
fundamentalista. Satrapi utiliza-se do humor para
recriar seu passado artisticamente, ironiza a tradição
inventada em seu país e a si mesma. (MARRA, p. 14 e
p.15)

Convém ressaltar que, evidentemente, a existência do narrador5 está


no discurso. Mas o narrador também pode tangenciar com mais vigor o limite
entre a existência real e a ficcional quando é um narrador-protagonista.
Wayne Booth (1960) vai chamar este narrador de “narrador dramatizado”: é
ele o que ou quem atua em Persépolis – e não uma versão textual da vida
da autora identificada na capa. Entretanto, é verdade também que, ao se
imiscuir no ato de narrar através da narradora-protagonista, a Marjane
autora transforma sua autobiografia artística em possibilidade de

5 Segundo Ligia Chiappinni de Moraes Leite, “a voz que narra os acontecimentos, na ficção. Às vezes é
personagem, às vezes não”. (1994, p.90)

41
preservação tanto de sua identidade individual, como da identidade coletiva.
Talvez Persépolis seja uma daquelas obras com vocação para integrar a
memória cultural:

A possibilidade de escrever mais do que a memória


humana pode conter conduziu a uma ruptura do
equilíbrio na economia da memória cultural.
Desde então, o volume da memória e a carência da
recordação afastaram-se entre si e não podem mais
chegar a uma situação simples de aprumo, razão pela
qual, em sociedades marcadas pela escrita, não é mais
a preservação da memória, mas a escolha dos
valores de recordação e cuidado que ocupa posição
central. (ASSMANN, 2011, p. 438)

É também a historiadora e teórica da memória Aleida Assmann quem


afirma que espaços de recordação despontam por meio de uma iluminação
parcial do passado: “a partir de um determinado presente ilumina-se um
determinado recorte do passado de modo que ele descortina um
determinado horizonte futuro”. (2011, p. 437) Está aí implícita a ideia de
que a partir de rastros do que passou, é possível jogar luz em processos
históricos marcados por largas escalas de destruição . (GINZBURG, 2012, p.
127)

Nesta linhagem, memória é trilha, caminho, vereda – e dispensa


a visão e mundo que coloca passado, presente e futuro lado a lado.
Nasce daí também possibilidade de diálogo entre arte e História, no que
Persépolis é exemplar.

***
Se o caráter artístico de Persépolis se evidencia no trabalho de
recriação através da memória, o que, por outro lado, perfaz o caminho
memorialista da narração?

Conforme nos mostra um dos vídeos de divulgação da obra – e a


esse tipo de documentação conferimos especial valor, visto que a entrevista
é para o autor um momento de elaboração, quando reflete sobre seu

42
processo de criação e lhe dá contornos racionais – percebe-se que Marjane
é uma escritora e uma cineasta com consciência e domínio do fazer artístico:
“Todo mundo tem alguma coisa a dizer, é claro. Mas arte não é sobre ter o
que contar, a arte é sobre como você vai contar isso”. (2014)

Pois em Persépolis, a autora faz do ato da rememoração a linha da


narração6, repetindo o procedimento identificado pelo filósofo Walter
Benjamin na obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido: “o principal,
para o autor que rememora, não é absolutamente o que ele viveu, mas
o tecido de sua rememoração,” (2012, p. 38). A HQ confirma e reconfirma
esta assertiva, ao versar em torno da recordação do sujeito.

O leitor do romance – da narrativa sequencial, se preferirmos –


justamente, ao seguir o percurso narrativo, apodera-se desta matéria
rememorativa agudamente.

4.6 Marjane lê Marjane

A linguagem cinematográfica, diferentemente da literária ou da arte


sequencial, se preferimos, lida com diversas camadas de “emissores”
quando a narração está em engendramento. Se o narrador da literatura é a
entidade criada pelo autor para que a narração se estabeleça – e isso vale
também para o “autobiográfico e sequencial”, como evidenciamos
anteriormente - no audiovisual o tema se complexifica.

Para pensar a narração fílmica, é preciso utilizar uma estrutura


conceitual que contemple a cinematografia como um fazer coletivo. No
audiovisual, o foco narrativo7 (o ponto de vista do narrador), que na literatura
é fornecido pelo fazer linguístico do autor, passa a ser dado por olhares

6 Mais uma vez segundo Ligia Chiappini: “Recurso expressivo da prosa de ficção, como o diálogo, a
descrição e a dissertação. Às vezes usado com sinônimo de narrativa, mas impropriamente. Para
Barthes, o nível mais abrangente da narrativa é a narração”. Vale também esclarecer o que é narrativa
para esta autora: “termo geral para ‘prosa de ficção”. Pode englobar também a História”.(1994, p. 90-
91)
7 “Problema técnico da narração que supõe questionar ‘quem narra’, ‘como, ‘de que ângulo’. Para

muitos é sinônimo de ponto de vista (...)” (MORAES LEITE, 1994, p. 90)

43
intermediários. Ou seja, em filmes, não existe apenas um narrador
identificado pronominalmente – e isso ocorre mesmo quando o narrador
oculta-se por detrás da linguagem, ou quando ele se mostra inteiro, através
do uso do voice over em primeira pessoa, por exemplo. Há sempre um
narrador que passou por vários olhares durante o processo de criação, e
ainda, lá no final, mantém a marca do trabalho em equipe:

Aparentemente, para o receptor comum que assiste a uma narrativa


audiovisual, parece haver um narrador que mostra a história. No entanto, se
considerarmos a ideologia do diretor ou o seu estilo e tantos outros fatores,
enfim, não podemos, inocentemente, considerar que o narrador audiovisual
pode ser apenas o mostrar por imagens os acontecimentos inerentes às
aventuras vividas por seus personagens. (MOREIRA, 2005, p. 15)

É neste contexto que Marjane torna-se leitora de sua própria obra.


Para reescrever o que já estava escrito na arte sequencial, ela não apenas
criou um roteiro técnico, organizando-o em sequências e/ou cenas, e com
rubricas assinalando reações, diálogos, tons. Ela cumpriu pelo menos mais
duas etapas, apoiando-se no trabalho de vários técnicos – além de seu de
parceiro de direção Vincent Parronaud.

Vejamos como isso acontece.

Após os primeiros tratamentos do roteiro, é próprio da atividade


cinematográfica que se estabeleça um segundo roteiro, o shooting script.
Trata-se do instrumento no qual o diretor, com a participação eventual de
seu assistente e com o diretor de fotografia, estabelece os ângulos, os
movimentos e os enquadramentos de câmera. Este roteiro é usado durante
a etapa de filmagem. Justamente o momento no qual ganha preponderância
o olho da câmera: “Na narrativa audiovisual temos um elemento muito
peculiar que, essencialmente, a diferencia de sua precursora: a imagem.”
(MOREIRA, 2005, p. 31)

Por fim, na etapa seguinte, a montagem, não é difícil que o montador


estabeleça adendos ao roteiro original. A edição têm seu núcleo na arte de
escolher entre os melhores planos e cenas captados durante as filmagens –

44
mas é também, ao final (voluntariamente ou não), um novo olhar sob a
história. Este olhar informa ao diretor, não raro, a necessidade de adição de
uma nova cena – ou, ainda, sugere uma sequencialidade outra que a
descrita no papel/roteiro que recebeu. Pode também incluir novos planos ou
unidades organizativas, como takes de cobertura, paisagens sonoras, etc.
Tudo isso vai influenciar no delineamento da narração:

(...) o exercício narrativo de contar a história, organizando-a,


selecionando/editando, enfim, é um papel compartilhado por
diversos operadores de linguagem que compõem um exercício
peculiar a um formato igualmente peculiar de contar histórias
(MOREIRA, 2005, p. 31)

O making off oficial da versão fílmica de Persépolis, A Face


Escondida de Persépolis (tradição nossa), evidencia isso. O documentário
traz cenas de bastidores e alguns depoimentos de Marjane Satrapi. Num
deles, a diretora afirma ter recorrido ao ato de mimicar cada um dos seus
personagens, na hora de dirigir a dublagem do filme. Vemos a atriz Chiara
Mastroriani, por exemplo, ao microfone, pronta para interpretar a Marjane
personagem, com a autora a sua frente, repetindo os gestos e os
movimentos que o corpo da atriz precisava introjetar para que a fala saísse a
contento: aí um ato de deliberada leitura (neste caso, releitura) da versão
que Marjane criou para si enquanto personagem de uma narrativa
sequencial.

Assim, se a estratégia para dar conta da necessidade de narrar é a


memória, ou o manuseio narrativo da memória, a questão da
transposição reside em mais uma vez lidar com o ato rememoração, agora
decodificando e codificando face a uma nova linguagem que exige atributos
específicos tais como textura, cor, luz, em imagem; ou ruídos de cena, tom
de voz e música, em termos de som – isso só para citar alguns exemplos.

4.7 Do eu ao nós: entrelaces de sujeitos e linguagens

45
Maria Cristina Xavier de Oliveira (2008, p. 36) , citando Will Eisner
(2005), afirma que uma das características mais importantes das HQs é a
sequencialidade, isto é, a utilização das imagens de forma consecutiva, uma
ao lado da outra, para compor uma obra única. É por isso, diz a
pesquisadora, que Eisner considera o termo arte sequencial para denominar
a forma artística que coloca desenhos e verbo lado a lado, quase como num
storyboard (que tem uma função bem diversa daquela da HQ). Ela
estabelece a seguinte comparação entre HQ e animação fílmica:

Assim como os desenhos animados, os quadrinhos também se


constroem em sequência, mas diferem daqueles pelo seu aspecto
espacial, uma vez que, nos desenhos animados a animação é
sequencial em tempo – cada quadro é projetado no mesmo espaço,
que é a tela – enquanto nos quadrinhos, os quadros ocupam
espaços diferentes no papel. (OLIVEIRA, 2008, p. 46)

É patente que cada uma dessas linguagens resguardem uma gama de


especificidades que vão além da questão espacial. (Aliás, se fosse nossa
proposta uma análise textual de Persépolis arte sequencial e de Persépolis
filme animando, não poderíamos nos furtar a realizar um aprofundamento
neste sentido)

A seguir, analisaremos Persépolis tomando o encadeamento das


sequência narrativas ou episódios, procurando situar de que forma o filme
animado recebe “a tensão que atravessa o romance” (BENJAMIN, 2012, p.
230), uma vez que no suporte primeiro – a HQ - os quadrinhos são
visualizados em papel, de maneira estática, e no filme são visualizados na
tela, em movimento, conforme nos aponta a estudiosa Maria Cristina
Oliveira.

***

Marjane enquadra Marjane: Persépolis através do olho da câmera

Primeira cena: a câmera é baixa, mas está em movimento para cima,


enquanto vai nos mostrando a visão geral de um viaduto, e , atrás, um

46
aeroporto. Um avião decola. Corta. Câmera agora está próxima ao
aeroporto, frente à entrada de pedestres. Lemos: “Orly”. Trilha sonora
contínua. Outro corte e percebe-se que a animação é colorida, ao contrário
do HQ, inteiramente em preto e branco.

A cena subsequente é no interior do aeroporto. No saguão,


transeuntes para lá e para cá, até que a câmera focaliza o painel de partidas
e chegadas. Novo corte e vemos os pés de uma jovem – provavelmente
Marjane – em frente ao grande quadro com a lista dos voos. Close num
rosto (sim, é Marjane). A câmera fecha num detalhe do painel, onde se lê:
Cincinatti, Teheran, Saingapour. Fusão de imagens: Marjane, olhar
assustado, em plano médio, sobreposto ao painel e a diversos números de
voos, o mais central e visível o “846, Teerã”.

Marjane de repente aparece colocando o véu, amarrando-o debaixo


do queixo. Câmera afasta um pouco e ela ajeita o véu no contorno do rosto.
Descobrimos então que ela está em frente a um espelho. Corta. Outro close,
desta vez de uma mulher terminando de passar batom vermelho. No plano
seguinte, de conjunto, as duas estão de costas para a câmera e percebemos
que trata-se do banheiro do aeroporto. A mulher do batom vermelho, vestida
sensualmente, é enquadrada de maneira frontal, num plano médio – vemos
que ela olha de esguelha para Marjane, com ar de reprovação, inclusive
fazendo uma cara de nojo.

Corta mais uma vez. No balcão da Iran Airlines, a atendente pede a


passagem e o passaporte de Marjane – finalmente, a primeira fala da
animação. A nossa heroína mira a atendente, desolada e em silêncio. A
funcionária da companhia reitera o pedido, na fila todo mundo olha com
impaciência, e a câmera volta-se para Marjane, que baixa a cabeça. Fade: a
imagem escurece, ruídos de aeronave.

Nova cena. Marjane está agora sentada num sofá, no corredor


daquele mesmo aeroporto (Orly, Paris). Em plano geral, vemos a

47
protagonista fumando e olhando para baixo. Atrás dela, através da parede
de vidro, a pista com os aviões. (Os ruídos mais uma vez dão a ambiência).
A câmera se aproxima, a luz ao redor de Marjane baixa, fica mais escura.
Uma menininha, a “Marje” criança, em preto e branco, entra por cima do
quadro anterior: temos uma sobreposição de imagens, com a protagonista
em cena em duas fases distintas da sua vida – num agora indeterminado no
passado infantil.

A menina ganha o centro do enquadramento – sai correndo, a câmera


a acompanha, enquanto ela diz: “Olha, é Nioucha”. Uma voz adulta (voice
over) responde: “Marji, pare de correr”. Mas ela pula e desliza em direção
oposta ao local onde Marjane adulta está sentada – aliás esta some da tela.
Uma personagem adulta, provavelmente a Nioucha, aparece, e é abraçada
pela menininha, que salta por cima de seu corpo. Diz: “Marji, como você
cresceu”. A pequena responde: “Você me trouxe um presente? Como é
Paris? Você viu Bruce Lee? E a Torre Eiffel?”

A câmera então focaliza um grupo de adultos vindo ao encontro das


duas, no mesmo corredor que Marje menina percorreu; um homem diz para
Nioucha: “Bem-vinda ao Teerã outra vez, minha querida”. Outro corte e
vemos todos se abraçarem, em planos laterais; no meio disso, a fala:
“Sentimos tanto a sua falta”. Alguém diz: “Deixa eu levar suas bagagens!” A
câmera então volta-se para a pequena, que declara, assertiva: “Não, eu
levo!!”. E a cena seguinte começa com o carrinho de aeroporto entrando em
quadro, enquanto a voice over diz: “Eu me lembro, naquela época eu levava
uma vida tranquila e sem problemas, uma vida de menina” (Na tela, a Marji
pequenina empurra o carrinho abarrotado de malas; os adultos, num outro
plano, também lateral, aparecem andando em fila indiana) “Eu adorava
batatas fritas com ketchup, Bruce Lee era o meu herói preferido, usava tênis
adidas e tinha duas grandes obsessões: poder raspar as pernas e virar a
última profeta da galáxia”. Enquanto isso, a imagem já avançou. Ao terminar

48
de escutar essa frase, o espectador vê a tela toda preta e os seguintes
letreiros: Teerã, 1978.

Corta. Mais do que uma nova cena, entramos agora numa nova etapa
do filme. Já sabemos que a estrutura em flash back da HQ se manterá na
animação. A introdução acabou de nos demonstrar isso. E a voice over
contida nessa introdução confirmou: “Eu me lembro”, escutamos – e
sabemos que é a voz da Marjane. A narradora-protagonista entra aqui no
registro da recordação, tal qual a HQ, mas num ponto totalmente diferente
da história. (Ou: não no tempo diegético da HQ). Na versão da HQ,
tínhamos o início com o episódio “O Véu”. Conforme demonstramos aqui
neste espaço, Marjane se identificava de imediato: “Essa sou eu, com dez
anos de idade, em 1980”, enquanto sua figura de braços cruzados e face
apreensiva estava desenhada logo abaixo. Na versão fílmica, a alusão ao
ato de rememorar está na lembrança da personagem, não a protagonista
criança, mas sim a adulta que rememora, enquanto a imagem da pequena
se mescla a ela. No entanto a cena que abre o filme inexiste na HQ.

Mas voltemos à “Teerã, 1978”: o que acontece a seguir, que cena


substitui a tela preta e as letras brancas? Num plano sequência que se inicia
focalizando um garçom, com música alta e ruídos de festa, percebemos que
a nostalgia da Marjane adulta, lá em Orly, dá lugar a lembrança de uma
festa, ocorrida, por certo, em plena Guerra Irã-Iraque, com regime de
contenção dos costumes ocidentais e durante a vigência do Estado Islâmico.
O que isso significava? Nada de comemorações, álcool, mulheres e meninas
sem véus ou gente rindo alto e se divertindo – justamente o que a
sequência narrativa nos apresenta.

Para nossa análise, é importante perceber, primeiramente, que


esse “acontecimento” (a festa), na HQ, acontece no episódio “O
Vinho”, posterior à “A Chave”, e que é exatamente a décima quarta
sequência narrativa. Assim, se na escrita textual (livro) temos a
representação desta festa localizada na décima terceira parte da obra,

49
na narrativa fílmica ela se desloca para os três minutos iniciais da fita –
o que corresponde ao primeiro ato do filme. Além disso, é um conteúdo
que ganha uma amplitude muito maior no âmbito cinematográfico: o
plano sequência abre-se, vemos as pessoas dançando, corta para uma
roda de mulheres conversando assuntos femininos, corta para crianças
correndo no meio dos adultos, para o garçom mais uma vez (pedindo
calma com a bebida), para um casal que comenta a situação política do
Irã, para Marji fazendo travessuras e sendo repreendida pelo pai. No
texto, a festa resume-se ao quadrinho abaixo, seguido de um outro
quadrinho onde a luz de repente é desligada – o que culmina, dois
quadrinhos adiante, com um brinde no escuro e a sirene tocando (sinal
de bombardeio?) e a debandada geral da festa.

Como se vê, entre HQ e animação, não há equivalência em


termos de sequencialidade do enredo. Isso se deve, sem dúvida, às
questões técnicas e as especificidades de cada linguagem.

Após a sequência da festa, o filme entra com o plano geral de uma


cidade moderna, prédios e barulhos de carro. A voz em off é a da pequena
Marje, que diz; “Eu, Marjane, filha do profeta, decidi que primeiramente, todo
mundo deve ter um bom comportamento...” (e agora já estamos, como
espectadores, dentro de um dos apartamentos que antes foram mostrados
em plano geral; uma mulher – seria a mãe de Marji? - está cozinhando, à

50
beira do fogão)...”em segundo lugar, todo mundo deve dar a sua palavra” (e
a câmera é lateral, focando a avó que tricota e a netinha que lê seus
mandamentos) ...“em terceiro plano, todo mundo deve fazer uma boa ação”
(e agora, finalmente, a câmera está frontal na Marji, em plano médio)
...“quarto mandamento: os pobres devem comer pelo menos uma galinha
assada por dia “ (a câmera vai para a avó tricotando) ...“e, finalmente,
“nenhuma velhinha sofrerá”. Agora as duas são focalizadas lateralmente,
enquanto a vó pergunta: “Se é assim, eu quero ser sua primeira discípula!”
Marji pula de alegria: “ Verdade?! Genial”. A avó: “E como você pretende
fazer para que as velhas não sofram mais?”; Marji: ”É simples, será
proibido.” Avó: “Ah, claro, como não pensei nisso”. De repente, sons de
multidão e protestos, a mãe cruza a sala rapidamente, dirigindo-se à janela e
perguntando: “O que está acontecendo?”.

Pois, na HQ, essa pequena sequência se passa na quinta página,


ainda no episódio primeiro, que abre e apresenta os personagens da
história, “O Véu”. E o desfecho, nesta, não inclui a entrada da mãe em cena,
como podemos ver abaixo:

A linha da narração é o condutor-mestre. E o que possibilita que a


esta se estabeleça é o entrelaçar do fio da memória que antes, no livro, já foi
mesclado, quando do ato da primeira rememoração:

51
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na
esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é
sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e
depois. E, em outro sentido ainda, é a rememoração que prescreve
o rigoroso modo de textura. Pois a unidade do texto está apenas no
actus purus da própria rememoração, e não na pessoa do autor e
muito menos na ação.(BENJAMIN, 2012, pp. 38-39)

4.8 apontamentos finais: é tudo memória?

Certamente, há muito mais o que apontar com relação à transposição


ao filme Persépolis. Por ora, ficamos com as seguinte reflexões:

- Numa entrevista já citada aqui anteriormente, disponível no Canal


Sundance da plataforma Youtube, Marjane diz ao entrevistador:
“Se você tem que fazer um trabalho, você tem que fazê-lo, você
não tem alternativa, é isso. (...) Se eu não faço esse trabalho eu
fico fisicamente doente. Isso significa que se eu não pudesse fazer
nada daquilo (Persépolis), eu morreria, é certeza” (tradução
nossa). Quer dizer, estamos diante de mais uma evidência do
narrar como processo de sobrevivência – o que se decalcou à
narrativa de Persépolis, na medida em que essa perfez um
caminho de (re) construção de identidade de um eu (Marjane
Satrapi) que, na verdade , é um nós (sociedade persa).
- Rememorar, escrever, viver são faces quase indistintas de uma
narrativa pulsante que atinge o leitor no coração, remetendo-o, ao
mistério da vida e à busca incessante por um lugar seguro no jogo
de xadrez do viver.
- A narração de Marjane atualiza a narração de um
passado político que contém a estigmatização de um povo, o
persa, muitas vezes reduzido à visão ocidental. Temos, por isso,
Persépolis inscrita dentro de uma tradição que opera,
simultaneamente, como projeto político e como projeto

52
poético. É neste sentido que o eu, tanto do filme, como do livro,
pode ser tanto dos conterrâneos de Marjane, autora, como a
comunidade internacional.

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Produção: Marc-Antoine Robert e Xavier Rigault. Intérpretes: Chiara
Mastroianni; Catherine Deneuve, Gena Rowlands e outros. Roteiro:
Marjani Satrapi e Vincent Paronnaud. Música: Olivier Bernet. Los
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Extras, Color Produzido por Europa Filmes Cannes.

La Face Cachée de Persepolis. Making-of do filme Persépolis.


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https://www.youtube.com/watch?v=7jhHUb2Lk0w. Acesso em
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COGNÉ, Marie. La Face Cachée de Persepolis. Disponível em


https://www.youtube.com/watch?v=7jhHUb2Lk0w. Acesso em 07/01,
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Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GYlSTcaqIC0
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