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Quem quer analisar um filme?

A análise do filme, ou, por favor professor, eu quero uma receita para fazer crítica de cinema.

Lisandro Nogueira*

Quem gosta de cinema sempre se pergunta sobre a análise do filme. Como fazer? Existe um
método? Um comentário no jornal pode ser chamado de crítica? No texto acadêmico cabem
análise e interpretação?

Para começo de conversa temos que distinguir “Crítica” de “Análise”. Segundo Jacques
Aumont, a primeira tem a “dupla função de informação e de avaliação”; a segunda, tem por
objetivo “esclarecer o funcionamento e propor uma interpretação da obra artística”.

Para um professor de cinema a análise do filme é um “nó pedagógico”. As ciências exatas e


da saúde comandam o meio acadêmico e levam a reboque as humanidades e as artes. O
modelo “científico”, duro e rígido, importante para as exatas e saúde, não é o melhor caminho
para as outras duas áreas. As humanidades e as artes deveriam trabalhar com o ensaio e não
acompanhar o “texto científico”.

Enfim, ficamos encalacrados no modelo 2 + 2 é 4 das ciências duras e somos diariamente


instados a aplicá-lo. Daí a ideia de que a análise do filme tem de ser objetiva. Não é possível
e não existe método nenhum para tal empreitada.

O que podemos vislumbrar são orientações e vários caminhos possíveis para uma
aproximação com o filme. O primeiro item a ser discutido é a relação do cinema com as
outras áreas do conhecimento.

O “pessoal do cinema”, como eram designados antigamente aqueles que se envolviam de


alguma forma com o estudo do cinema, sempre cobra das outras áreas do conhecimento
(psicanálise, sociologia, psicologia, pedagogia) que não usem o cinema apenas como suporte
para discutir ou debater temas..

Eu mesmo participei de inúmeros debates com psicanalistas que falam da psicanálise mas não
enxergam o filme. Fazem comentários extrafilme e utilizam os pressupostos de uma área
específica do conhecimento para “ver o filme”.

Não sou contra esse procedimento. Afinal, o cinema é uma prática social e pode e deve ser
usado para refletir sobre o mundo. Porém, não resta dúvida de que um psicanalista que busca
conhecer melhor o cinema, sua história e linguagem, vai enriquecer sua abordagem. Na
verdade, ele vai mesclar o extrafilme, que traz da psicanálise, com o seu cabedal
cinematográfico. Geralmente as análises feitas por Maria Rita Kehl e Jurandir Freire Costa
são próximas do que estou exemplificando.

Por outro lado, é extremamente desestimulante ouvir ou ler um psicanalista que não fala
sobre o filme. Ele descreve inúmeros personagens com um vocabulário psicanalítico distante
da forma cinematográfica. Raras vezes são psicanalistas bem preparados. Muitas vezes,
contudo, conquistam a plateia porque utilizam termos sedutores que vão ao encontro da
demanda afetiva das pessoas. Os bons psicanalistas são cuidadosos e tentam mesclar o
cinema com as teorias de Freud e Lacan.

Há também os “cine-chatos”. São aqueles que só aceitam o debate com o uso do


“específico-filmico”. São geralmente oriundos da cinefilia estruturalista dos anos 70. As
análises de origem estruturalista não conseguiram grandes resultados. Contribuíram muito até
um determinado momento (o conceito de texto de Cristian Metz), meados dos anos 70, mas
depois se mostraram insuficientes e inadequadas para abarcar o diálogo do cinema com as
outra áreas do conhecimento (e também com a complexidade da mistura do
narrativo-dramático com a emergência da nova plástica da imagem a partir da novas
tecnologias de captação) .

As análises do filme empreendidas naquele momento mais se assemelhavam a “equações


matemáticas” do que qualquer outra coisa.

Lembro-me também de uma aula na USP, no começo dos anos 90, sobre análise do
audiovisual. A professora era de uma simpatia sem tamanho. Ao mesmo tempo, seus
exemplos de análise, baseados em Greimas e Barthes (Barthes do anos 70 e não aquele dos
anos 80), eram terrivelmente equivocados. Brincávamos que bastava colocar o filme de
cabeça para baixo e estava pronta uma análise baseada em Greimas.

Dessa forma, para quem se pergunta sobre o “método” para a análise de filmes o melhor
mesmo é aproveitar algumas contribuições teóricas do cinema e de outras áreas do
conhecimento, gostar muito de ver e rever filmes, abusar da sensibilidade latente e lançar-se
na prazerosa tarefa da análise. Afinal, não há modelo ou receita para fazê-la.

Eu, por exemplo, utilizo três pilares: o comentário, a análise e a interpretação – oriundos dos
estudos literários. O professor Rubens Machado, da ECA-USP, trabalha com esses pilares. O
comentário pode ser dividido em dois ramos. O primeiro, denominamos comentário
extrafilme oriundo da informação. Essa é a atividade dos jornalistas. Geralmente reúnem
inúmeras informações (sobre o diretor, produção, detalhes do orçamento, marketing,
celebrização dos atores) e dão uma pitada de interpretação (opinião). É o que faz, por
exemplo, Isabella Boscov, crítica de cinema da revista Veja.

O comentário extra-filme oriundo do conhecimento é aquele que o analista faz utilizando os


estudos da psicanálise, da sociologia, da filosofia e outras áreas. Ele mescla com a descrição
do filme, trazendo à tona as especificidades da linguagem cinematográfica. O ato de
descrever o filme, seqüência por seqüência, já é a análise propriamente dita. Ao descrevê-lo
mesclando o extra-filme com a linguagem cinematográfica, temos em mãos a base que
suscita a interpretação. É necessário além da descrição (análise e comentários extra-filme) o
momento primordial do “colocar-se no texto”.

Os primeiros passos da análise

Lisandro Nogueira
A análise do filme propriamente comporta os três pilares: descrição (análise da obra
cinematográfica), comentário e interpretação. Conforme afirmei no post anterior, na
composição do texto os três se fundem, para constituir o que se denomina a análise do filme.
A apresentação separada dos três tem função exclusivamente didática.

Um artigo de jornal ou revista (dei o exemplo dos textos da Isabela Boscov da revista Veja)
comporta geralmente a interpretação (opinião jornalística) e o comentário. Não há a
descrição, que é a análise propriamente dita, pois o propósito é informar e fazer uma
avaliação, tendo em vista um objetivo mais imediato.

O que faço na TV Anhanguera, às sexta-feiras, é uma mistura de comentário (informações


extrafilme, sobre produção, atores, indústria etc.) com opinião e divulgação. Penso que o
espaço serve também para divulgar as salas de cinema, o “ambiente cinema”, difundir a ideia
de que é bom ir ao cinema ver um filme, compartilhar coletivamente um prazer bem
moderno.

A análise do filme

O comentário pode ficar no plano da informação, como no caso do jornalismo que acabei de
exemplificar, mas pode também alçar-se ao plano do conhecimento. Diferentemente da
crítica, a análise do filme, segundo Jacques Aumont, tem por objetivo “esclarecer o
funcionamento e propor uma interpretação da obra artística”. Por isso, o comentário
extrafilme oriundo do conhecimento (sociologia, psicologia, história, psicanálise) difere do
comentário jornalístico.

Ele é um dos pilares da análise do filme porque contribui decisivamente para compreender o
funcionamento da obra e para interpretá-la. Não adianta apenas ter conhecimento de cinema
(história e linguagem) para fazer a análise. É importante e fundamental que o conhecimento
de quem a faz, resultado do acúmulo de longos anos de vivência e estudo, faça sentido e que
o ajude efetivamente a descrever e interpretar a obra.

O professor Rubens Machado pergunta: “Quais são os procedimentos específicos da análise,


do comentário e da interpretação? Qual é o espectro de possibilidades práticas e estilísticas de
cada procedimento, e como se articulariam no conjunto do texto?”

Geralmente, peço ao aluno para “blocar” o filme. Isso significa separar a tabela em quatro
colunas. Ou seja, na primeira observar as sequências (cenas que comportam enquadramentos
e planos; planos que comportam os ângulos de filmagem), anotando o tempo (minutagem),
com um breve resumo do conteúdo (diálogos, vozes) e a indicação das alterações de
enquadramento, planos e cenas. Essa blocagem pode ser separada em quatro colunas,
deixando a mais à direita para breves anotações pessoais.

É um trabalho “chato”, conforme resmungam alguns alunos. Todavia, é o primeiro passo para
o sucesso da empreitada. Sem a blocagem o trabalho é ainda maior e o analista pode
encontrar sérios óbices mais adiante/lá na frente. Uma dica: feita a blocagem, fica fácil
recordar uma sequência importante, recuperar um diálogo determinante ou mesmo apreender
o “estilo” do cineasta.

A blocagem não precisa ser exaustiva (saturada e cheia de minúcias e detalhes), nos moldes
dos procedimentos estruturalistas dos anos 70. Na maior parte das vezes, os adeptos dessa
vertente teórica passaram a valorizar mais a “equação” do que o filme, daí a análise tornar-se
ser quase sempre ininteligível.

Após a blocagem, que só deve ser feita depois de ver o filme mais de uma vez, é hora de
iniciar a composição do texto.

No próximo post, vamos comentar a importância e as características da descrição (análise),


do comentário e da interpretação, antes de sugerir caminhos para a análise do filme.

Abaixo um pequeno trecho de um exemplo de blocagem: filme "Juventude Transviada":

00:00

RUA/ JIM-BEBADO

Câmara no chão

01:23

DELEGACIA/ JIM

PM/P. conjunto

02:11

DELEGACIA /JIM-JUDY

02:27

DELEGACIA/JUDY-DELEGADO- CONFLITO COM O PAI

PC/PM/Campo-Contracampo/Close

05:23

DELEGACIA/JIM-PLATÃO SOLIDARIEDADE
06:28

DELEGACIA/JUDY-DELEGADO (p.c.)

Profundidade de Campo

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