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A MORAL DE UM FILME
Curso Online de Cinema - AULA 051

INTRODUÇÃO

Será que todos os filmes querem realmente transmitir uma certa moral específica? Faz sentido
gostar de um filme mesmo não gostando da “mensagem” desse filme?

Nessa aula, de tema mais livre, abordaremos essas questões a partir de várias dúvidas que
recebo. Utilizarei também o artigo Sobre o estilo, de Susan Sontag, que está no livro Contra a
interpretação e outros ensaios.

GRATIFICAÇÃO INTELIGENTE DA CONSCIÊNCIA

Em um trecho do artigo Sobre o estilo, Susan Sontag escreve:

"Uma obra de arte vista como obra de arte é uma experiência, não uma declaração nem uma
resposta a uma pergunta. Uma obra de arte é uma coisa no mundo, não apenas um texto ou
comentário sobre o mundo."

Em seu texto, Sontag defende algo que ela chama de gratificação inteligente da consciência,
que é quando a obra nos faz refletir de algum modo. Para a autora, esse seria o serviço moral
da arte, que é um fenômeno de envolvimento, uma forma de conhecer algo novo e não o
conhecimento sobre alguma coisa.

Isso é importante porque existem vários filmes que não querem passar uma mensagem
objetiva de modo didático. A função da arte não é apresentar uma mensagem direta sobre algo,
mas incitar a mente de alguma forma, essa seria a sua “responsabilidade”.

Um filme deve gerar reflexões interessantes, não importando tanto se você concorda
diretamente com o que ele defende ou não. O que importa é o modo como o filme gratifica sua
consciência e se a forma como ele gera tal reflexão é complexa e universal - não superficial.

A MORAL DE CLINT EASTWOOD

O trabalho de Clint Eastwood é um bom exemplo sobre o que Sontag diz. Ele é um diretor que
trata sobre temas mais conservadores - atualmente mais libertários -, porém faz isso de modo
complexo.

Percebo que algumas pessoas têm receio de gostar do diretor em razão dessa característica
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conservadora e, devido à complexidade de sua obra, existem muitas dúvidas sobre o que
Eastwood realmente defende em seus filmes.

Apesar de o diretor ser conservador, ele não faz uma defesa moral direta disso, seu cinema
não é panfletário, já que questiona alguns valores e tende até a desconstruí-los.

As pontes de Madison (1995) é um filme sobre uma paixão muito forte ou sobre a instituição
sagrada do casamento? No fim das contas, ele aborda as duas temáticas. Em última análise, o
filme pode até reforçar uma ideia mais tradicional, mas antes ele desconstrói tudo isso de modo
muito sensível.

Para algumas pessoas a mensagem de As pontes de Madison pode ser a rejeição da ideia
sagrada do casamento, mas isso só mostra como a interpretação dos valores morais de uma
obra pode variar de pessoa para pessoa. E isso acontece porque, no fim das contas, Eastwood
não está fazendo um filme diretamente sobre um tema, não está definindo um conceito, como
diz Sontag, mas sim nos envolvendo em algo novo.

Você pode até não concordar com algumas opiniões dele ou com a visão de mundo que ele
defende, mas seus filmes, no final, tratam de temas universais (como morte, velhice, amor,
liberdade individual) com uma sensibilidade muito grande.

Uma coisa que Sontag diz e que talvez se encaixe um pouco nessa relação mais universal de
Clint Eastwood com as coisas é que "grandes artistas atingem uma neutralidade sublime".

Apesar de considerar a palavra "neutralidade" perigosa, porque é difícil conceber que o artista,
como pessoa, é neutro, entendo que é possível que ele use a arte não apenas para defender
valores, mas para apresentar perspectivas complexas sobre esses valores. Eastwood faz isso
muito bem e por isso o considero um dos maiores diretores do mundo.

OS FILMES DE LENI RIEFENSTAHL

Em seu artigo, Sontag dá um exemplo bastante extremo de quando um trabalho possui uma
mensagem clara em seu conteúdo, mas sua forma de linguagem faz escolhas interessantes e
até inovadoras. Ela fala sobre a obra de Leni Riefenstahl, cineasta que fez filmes de
propaganda durante o nazismo.

O triunfo da vontade (1935) vende uma imagem de Hitler e do Partido Nazista, querendo impor
uma moral bastante perigosa e nociva. Porém, ainda assim, Sontag diz que os filmes de
Riefenstahl transcendem a categoria de filmes de propaganda. Suas escolhas formais e
estilísticas possuem uma moral que independe disso - guardadas as devidas proporções, é
claro -, porque projetam muito bem movimentos de encanto e sensualidade com a forma.
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Apesar de reconhecer que existe um desconforto inevitável ao assistir tais filmes, já que são
trabalhos nazistas, Sontag diz que o conteúdo do trabalho de Riefenstahl desempenha um
papel formal, como se a diretora usasse aquele contexto como uma "desculpa" para explorar
seu talento estilístico.

É claro que Riefenstahl sabia o que estava fazendo e era uma simpatizante do movimento,
então não se trata de justificar o seu trabalho, mas sim reconhecer que pode existir uma
importância histórica em suas escolhas estilísticas. Um filme como esse deve ser condenado
por tudo o que o seu conteúdo defende, mas não ignorado por seu papel na história do cinema.

A VISÃO DE SUSAN SONTAG

Na verdade, o que Sontag defende em todo o seu texto é que o conteúdo de uma obra de arte
é meramente um pretexto que leva a nossa consciência a se engajar em processos formais de
transformação.

Para ela, é como se o conteúdo já fosse uma espécie de escolha formal, porque ele sempre
estará submisso às escolhas estilísticas do artista. Até porque nosso impacto com a arte não
vem de uma relação direta com seu conteúdo, mas sim de uma relação complexa na maneira
como o artista lidou com a linguagem.

A visão de Sontag é relativamente radical e ela defende a forma de modo bem extremo. O que
não deixa de nos remeter a várias ideias da própria crítica de cinema, ideias que inclusive
vários críticos da Cahiers du Cinéma defendiam.

A ideia de que a moral de um filme está na sua mise-en-scène. A mise-en-scène é a unidade


estilística da obra. Os críticos da Cahiers acreditavam que a “mensagem” de um filme estava
nessa unidade estilística, nesse trato do cineasta com a linguagem.

UMA CRISE ATUAL DO CINEMA

Atualmente o cinema passa por uma crise justamente porque a relação específica com a
linguagem e com o estilo está sendo muito subestimada de modo geral. As pessoas cada vez
mais tendem a julgar um filme apenas pelo conteúdo, mas isso também não quer dizer que um
filme se reduz somente a seu estilo.

Na verdade, quando um filme te impacta você raramente percebe o estilo como algo
independente. Muito além da estética, você gosta de uma obra (seja ela mais estilizada ou
mais crua) porque ela te impactou emocionalmente.

Uma obra com uma boa construção estilística é uma obra cujo estilo nunca soa forçado e te dá
a impressão de que o artista não teve outra opção de linguagem que não aquela que você está
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vendo. Basta perceber que, quando você não gosta de um filme, você começa a enxergar
opções para o diretor, pensando que aquilo poderia ter sido feito dessa ou daquela forma.

Em seu texto, Sontag diz: "As obras de arte mais atraentes são as que nos dão a ilusão de que
o artista não tinha alternativa, tão inteiramente centrado está ele em seu estilo."

CONCLUSÃO

Mais do que se preocupar com a mensagem do filme ou concordar com o seu conteúdo,
preocupe-se em perceber esse equilíbrio e se envolver com a obra. Estamos aqui para
entender sobre essas relações complexas dos filmes com a linguagem. Não existe certo e
errado quanto a isso, existem, talvez, níveis de complexidade ou ambiguidade. A obra de Clint
Eastwood expõe isso muito bem.

É claro que, em casos extremos, com os filmes de propaganda nazista ou obras racistas, essa
moral impositiva do conteúdo pode e deve ser condenda, mas ainda assim são obras que
possibilitam um estudo formal.

CITAÇÕES DA AULA

LIVRO:
Contra a interpretação e outros ensaios - Susan Sontag

FILMES:
A Mula (2018) - Clint Eastwood
Menina de Ouro (2004) - Clint Eastwood
As Pontes de Madison (1995) - Clint Eastwood
Sniper Americano (2014) - Clint Eastwood
Triunfo da Vontade (1935) - Leni Riefenstahl
Olympia (1938) - Leni Riefenstahl
Tudo que o Céu Permite (1955) - Douglas Sirk
Amor à Flor da Pele (2000) - Wong Kar-Wai
A Palavra (1955) - Carl Theodor Dreyer

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