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ESTUDOS
SOBRE LÍNGUA
E LITERATURA
PORTUGUESAS
C o or de n aç ão e di t or i a l
C o n ce ç ão gr á f ic a
I n f o gr a f i a da C a pa
Carlos Costa
I n f o gr a f i a
Margarida Albino
pr é - f or m ataç ão
Catarina Arqueiro
r e v i s ão d o s a r t ig o s
Print by
KDP
ISBN
978-989-26-1878-4
ISBN D igi ta l
978 -989-26 -1879-1
doi
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1879-1
d E p ó si t o lEga l
470099/20
© m a io 2020, I m pr e n s a da U n i v e r si da de de C oi m b r a
ESTUDOS
SOBRE LÍNGUA
E LITERATURA
PORTUGUESAS
(Página deixada propositadamente em branco)
NOTA AO PRESENTE VOLUME
Neste volume se reúnem vinte e oito estudos da autora, entre os muitos que
publicou sobre a temática geral da língua e literatura portuguesas. Porque não
foi possível localizá-la, ficou de fora a oração Os caminhos da harmonia de uma lín-
gua única, apresentada a convite da Academia Brasileira de Letras, que a autora
tinha planeado incluir entre os estudos que agora se publicam (vd. “Nota Prévia”
ao vol. I, pp. V-VI).
(Página deixada propositadamente em branco)
SUMÁRIO
I. LÍNGUA PORTUGUESA....................................................................................... 9
1. Elogios da Língua Portuguesa.......................................................................... 11
2. Breve história da ortografia da língua portuguesa....................................... 27
3. Para quê um acordo ortográfico?.................................................................... 33
4. Acordo ortográfico: uma questão premente.................................................. 37
A exortação vai prosseguir com o apelo ao paradigma grego e latino, como era
de regra entre os quinhentistas, mas logo diversificado pelos grandes cultores de
Espanha, França, Itália. Curiosamente, nos tercetos seguintes a equação amor à
pátria – amor à língua vai alargar-se a povos bárbaros, de modo que “getas, ará-
bios, persas e caldeus” surgem ao lado de “gregos e romãos e toda a outra gente”.
Perpassa em seguida a noção, já tantas vezes apontada pelos estudiosos, da
urgência em exaltar os feitos lusitanos no Oriente, aqui sugerida através do
*
Publicado em Máthesis 15 (2006), 257-273.
1
Cartas I, 13-18. Nas citações dos Poemas Lusitanos seguimos a edição de T. F. Earle (Lisboa, Fun-
dação Calouste Gulbenkian, 2000).
12 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
adynaton que resultaria de um capitão dar ordens de comando aos seus homens
em língua estrangeira 2.
De novo a obrigação para com a terra-mãe vai afirmar-se nas suas duas ver-
tentes (v. 66):
até se encaminhar para a famosa dicotomia que já vinha, também ela, da Anti-
guidade (lembre-se a insistência com que Cícero opunha arma e toga) e que atinge
o seu ponto mais alto nos versos 91-92:
A exortação adquire um tom mais veemente a partir do verso 104, até que
atinge a sua mais alta expressão no mais célebre dos tercetos do autor:
2
A. Roïg, “António Ferreira et l’aventure lusitanienne d’outremer”, Arquivos do Centro Cultural
Português (1980) 577-607, faz a lista dos poetas a quem Ferreira sugeriu a celebração desses temas,
mostrando expressamente a insistência (cinco exemplos) para com Andrade Caminha (p. 602).
3
T. F. Earle, nos comentários à sua edição, propõe 1554 para terminus ante quem da composição
da carta, e 1557 para a da Ode.
4
Dois séculos mais tarde, Filinto Elísio far-se-á eco deste verso na sua “Carta a Brito”, v. 804:
Bom Ferreira, de nossa língua amigo!
1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA 13
Está aqui subjacente, como agudamente escreveu aquele Professor, “uma refle-
xão mais profunda, surpreendentemente moderna, acerca das relações expres-
sivas, comunicativas, cognitivas, podemos mesmo dizer ontológicas existentes
entre a língua materna e o mundo interior, subjectivo, vivencial, representado no
poema”5.
Este valor do uso do idioma pátrio como meio privilegiado da comunicação de
sentimentos profundos vai-nos aparecer, efectivamente, na contemporaneidade,
como veremos adiante.
Voltando ao nosso quinhentista, não podemos deixar de referir aquele, aliás
bem conhecido, terceto final da elegia em que Diogo Bernardes pranteia o seu
desaparecimento:
Entretanto, vários indícios apontam para o que Maria Leonor Carvalhão Buescu
chamou “a polémica mais ou menos latente durante os séculos XVI e XVII entre
os decididos apologistas da língua nacional e os que reconheciam a superioridade
da castelhana como língua de maior circulação, expressividade e riqueza”6. A
questão está bem clara no Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem, de João de Barros,
5
A citação é do estudo introdutório à edição fac-simile de 1598 dos Poemas Lusitanos (Braga,
Universidade do Minho, 2000), p. XI.
6
A citação é da p. XXXI da Introdução à sua edição de João de Barros, Gramática da Língua Portuguesa
(Lisboa, Faculdade de Letras, 1971), onde, por sua vez, remete para o prólogo de Eugénio Asensio, A
Comédia Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos (Madrid, 1954), pp. XL-LII.
14 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
7
P. 399 da edição citada na nota anterior.
8
Parte primeira, canto primeiro, est. 6. A citação tomamo-la de J. A. Segurado e Campos, ed.,
Gabriel Pereira de Castro, Ulisseia ou Lisboa Edificada (Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 2004), vol.
II (Estudos Histórico-Literários), p. 311.
1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA 15
Porém, na centúria seguinte, surgirá, como se sabe, e por muito tempo, uma
nova ameaça à pureza da língua, porquanto, à miragem castelhana se substituirá
aquilo a que Garrett 9 chamou a “galomania” e outros o “francesismo”.
A moda do francesismo está ridicularizada, como é do conhecimento geral,
num episódio do Hissope, mas é de Filinto Elísio que lhe vem o grande ataque,
principalmente na “Carta a Brito”, no “Arrazoado” e no “Debique”. Aí, as invecti-
vas contra os que adulteram a língua materna e os louvores aos que a cultivaram
sucedem-se revelando ao mesmo tempo a criatividade linguística e estilística do
autor. A “Carta a Brito”, a mais marcadamente didáctica, imagina, a certa altura,
um diálogo com Correia Garção, e noutro momento, põe em cena o Padre António
Vieira a falar com um peralta e com Ribeiro. Por sua vez, o “Debique” encena um
encontro com Quevedo e um Francelho-Mor, opondo “latiniparlas” a “galiciparlas”.
O “Arrazoado” forja, mediante um sufixo verbal frequentativo, uma caricatura
da situação presente (59-67):
Contudo, escreve o poeta mais adiante, não lhe seria difícil exprimir-se nessa
língua, ele que há tantos anos vive exilado e isolado em Paris (221-228):
9
Bosquejo da História da Poesia e da Literatura Portuguesa, p. 496 do vol. I da edição de Lello e Irmão
(Porto 1966). Retomando expressões de Filinto, Garrett escreve ainda que “nos enxovalharam a língua
e a fama os tarelos, francelhos, galiciparlas e toda a caterva dos galómanos”. Da preponderância do
francês no século XIX, dá testemunho, entre outros, Eça de Queirós no seu artigo “O Francesismo”,
reimpresso na colectânea Últimas Páginas.
16 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
10
Sobre esta figura e a sua acção, veja-se em especial José Esteves Pereira, O Pensamento Político em
Portugal no Século XVIII. António Ribeiro dos Santos (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983).
1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA 17
tão apregoada, de começar a aprender uma segunda língua quando ainda não se
adquiriu um domínio razoável da própria.
Note-se porém, desde já, que Elpino Duriense tem uma noção clara da evolução
da língua (“ao tempo estão sujeitas as palavras, / umas se fazem velhas, outras
nascem”, como escrevera Correia Garção em clave horaciana)11, ao dedicar a Aléxis
uma epístola “Sobre a afectação dos que escrevem por linguagem velha”.
Mas mais importante é o relevo que Elpino confere ao paradigma (e aqui
novamente os nossos pedagogos actuais encontrarão matéria para reflectir). Duas
extensas Epístolas, ambas dirigidas a António Ferreira de Sampaio, e subordi-
nadas a uma epígrafe alógrafa tirada de António Ferreira a que de começo nos
referimos (“Floreça, fale, cante-se, ouça-se e viva / a Portuguesa Língua”) versam
“Sobre o estudo da Língua Portuguesa”, uma “pelo que respeita aos Prosadores”
e outra “pelo que respeita aos Poetas”. Ambas mencionam larga cópia de autores,
caracterizando-os muitas vezes com grande agudeza (é o caso de Fernão Mendes
Pinto – “As Viagens de Pinto / encantadoras / Heródoto de Lísia” I, 53-54 – e de
Frei Luís de Sousa – “O fácil Sousa, que a dicção volteia / e qual a mole cera, a move
e abranda, / e a faz flexível, onde quer que a leva”, I, 100-103). Mas não é menos
curioso observar o afloramento do jurista que era, acima de tudo, António Ribeiro
dos Santos, ao encetar os seus modelos de prosa pelas Ordenações Afonsinas. Não
faltam, de permeio, os elogios à riqueza, beleza, gravidade, melodia da Língua,
nem o topos, que já encontrámos noutros autores, da comparação com os idiomas
de outros povos (e atente-se em que já não são apenas referidos os românicos,
mas também os “Bretões” e os “Góticos Tudescos”)12; o tópico recorre na segunda
epístola, mas agora de forma mais limitada, porque se trata de comparar a sua
melodia “à língua Argiva” e “à Itálica”13. Aliás, nesta composição há todo um
proémio a exaltar as virtualidades da língua portuguesa, que culminam numa
quase divinização (II, 38-40):
11
Respectivamente, Sátiras II. 52-56 e Arte Poética 60-62.
12
“A António Ferreira de Sampaio”, I. 1-13.
13
“A António Ferreira de Sampaio”, II.20-21.
18 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
………………… ………………quanto
cabedal de expressões não volve a Língua,
costumada a falar ao mar, e aos ventos,
a falar c’os Tritões e co’ as Nereides,
co’os deuses todos no cerúlio império!
14
Citamos pela versão portuguesa de Celso Cunha (Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982), p. 56. Na
nota 41 (pp. 105-106) encontra-se a bibliografia fundamental deste assunto.
15
“Nota sobre o vocalismo antigo português: valor dos grafemas e e o em sílabas átonas”, Revista
Portuguesa de Filologia 12 (1962) 12-73 = Estudos Linguísticos (Coimbra, Atlântida Editora, 1969), vol. II,
pp. 75-103. Agradecemos também à Doutora Maria José de Moura Santos alguns esclarecimentos
sobre esta matéria.
16
Como o poema “A D. Francisco Rafael de Castro nomeado Reformador Reitor da Universidade
(Poesias I, pp. 3-7), que o reporta a 1786.
17
“O Autor às suas Musas” (Poesias I, pp. 247-249, 265, 269).
20 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Uma vez que nenhum destes dados se pode considerar decisivo (compare-se
com o caso de Verney, que, nascido em Lisboa de pais franceses e habitando em
Roma desde os vinte e seis anos, durante a maior parte da sua vida, não perdeu a
capacidade de observar que os nacionais “pronunciam mal muitas letras no meio,
mas principalmente no fim das dicções”, nem de distinguir pronúncias dialec-
tais e de colocar a norma ortoépica na pronúncia da Estremadura)18; voltando ao
testemunho da epístola de Elpino Duriense, apenas poderemos, por conseguinte,
observar que ele torna possível supor que a redução de e e o pretónicas tenha
ocorrido só nos começos do século XIX.
É ocasião de perguntarmos qual o sentir dos poetas portugueses da contem-
poraneidade perante a sua própria língua. Propomos quatro exemplos para aná-
lise: Fernando Pessoa, Alberto de Lacerda, Jorge de Sena e Rui Knopfli, todos eles
marcados pelo factor comum do bilinguismo, ou porque fossem educados num
país de língua e tradição cultural anglo-saxónica (caso do primeiro e, em parte,
do último19) ou porque nele se estabeleceram por um longo período da sua vida
(caso dos três outros). Veremos que a língua materna se vai agora tornar sobretudo
num factor de identidade espiritual, cultural, e não político nem social.
É assim que o semi-heterónimo Bernardo Soares – aquele que proclamava ter
como livros de cabeceira a Retórica do P.e Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua
Portuguesa de Cândido Lusitano – é assim, dizíamos, que ele afirmava, em frase
muitas vezes repetida, que citamos sem a retirar do contexto:
18
Respectivamente, pp. 105-106, 71-72, 45, da edição de António Salgado Júnior na Colecção
Clássicos Sá da Costa (Lisboa, vol. I, 1949).
19
É o próprio poeta que, em “Explicação Necessária”, que serve de prefácio a Memória Consentida
(Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982), p. 391, se refere a “um período em que fui vaga-
mente estudante em Johannesburg”.
20
Lisboa, Ática, 2 vols. O fragmento encontra-se no vol. I, p. 17.
1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA 21
raros que já haviam sido impressos, neste caso específico numa revista saída em
193121. Assim se compreende que muito antes daquela data a frase central tenha
emigrado para outros poetas, como em breve veremos.
Antes disso, porém, vale a pena atentarmos nalgumas afirmações, estas con-
tidas no livro do ortónimo, publicado por Luísa Medeiros sob o título genérico de
A Língua Portuguesa22. É na segunda parte, intitulada “Defesa e Ilustração da Língua
Portuguesa”, que se encontra esta curiosa história 23:
Estes textos não estão datados, mas a sua incidência em torno da Reforma
Ortográfica de 1911 e do Acordo Ortográfico de 1931 permite atribuir-lhes um
terminus post quem.
O célebre dito de Bernardo Soares vai ecoar em dois poetas da segunda metade
do século: Jorge de Sena (“Em Creta com o Minotauro”) e o moçambicano Rui
Knopfli (“Pátria”).
21
Descobrimento. Revista de Cultura 3 (1931), 409-410.
22
Lisboa, Assírio e Alvim, 1997.
23
A Língua Portuguesa, p. 109 (texto bilingue, de que citamos a versão portuguesa).
24
Ibidem, p. 145. Mais adiante, p. 151, em texto também bilingue, pode ler-se: “Para o que quere-
mos aprender leremos inglês; para o que queremos sentir, português. Para o que queremos ensinar,
falaremos inglês; português para o que queremos dizer”.
22 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
25
Pertencente a Peregrinatio ad Loca Infecta (Lisboa, 1969) figura actualmente em Poesia – III (Lis-
boa, Edições 70, 1989), pp. 74-75.
26
Paris, Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 1998. As citações que se seguem provêm de pp.
112-113. Para outra interpretação, vd. Helder Macedo, “De amor e de poesia e de ter pátria” in Gilda
Santos (org.), Jorge de Sena em Rotas Estrangeiradas (Lisboa, Edições Cosmos, 1999), pp. 136-137.
27
Proveniente de Exorcismos e também incluído em Poesia – III, p. 145.
1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA 23
Sigo da margem
o rio dos teus versos
Alguma vez todos os poetas
se encontram contigo.
……………………………………… legado
de palavras, pátria, é só a língua em que me digo
28
No ensaio citado na nota 26, pp. 138-139.
29
“Pessoa Revisited”, Memória Consentida (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982), p. 90.
30
Portugal e a Herança Clássica e Outros Textos (Porto, Edições Asa, 2003), pp. 171-180. Também Luís
de Sousa Rebelo chama a atenção para estas intertextualidades, no prefácio a Memória Consentida,
pp. 17-21.
31
Memória Consentida, p. 387.
32
Memória Consentida, p. 364.
24 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Esta terra
paraíso da humana dignidade
é a ditosa pátria minha amada
enquanto a outra
disser à luz ao amor à liberdade
que não
33
Memória Consentida, p. 387.
34
Oferenda I (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984), p. 413.
35
Oferenda I, pp. 316-317. O poema faz parte de Exílio, mas, contrariamente ao que sucede com
a maioria dos que pertencem a essa colectânea, não está datado. É, no entanto, provável que, como
outros, tenha sido composto entre 1961 e 1962.
1. ELOGIOS DA LÍNGUA PORTUGUESA 25
assassinadíssima
por quase todos que a falam
este requebro
esta ânfora
cantante
esta máscula espada
graciosíssima
capaz de brandir os caminhos todos
de todos os ases
de todas as danças
esta voz
esta língua
soberba
capaz de todas as cores
todos os riscos
de expressão
(e ganha sempre a partida)
esta língua portuguesa
capaz de tudo
como uma mulher realmente
apaixonada
esta língua
é minha Índia constante
minha núpcia ininterrupta
meu amor para sempre
minha libertinagem
minha eterna
virgindade
36
Podem ver-se mais exemplos (que incluem também escritores brasileiros) na antologia orga-
nizada por Agostinho de Campos, Paladinos da Linguagem (Lisboa, Bertrand, 1920-1926), 3 volumes.
(Página deixada propositadamente em branco)
2. BREVE HISTÓRIA DA ORTOGR AFIA
DA LÍNGUA PORTUGUESA*
*
Introdução histórica e lexicológica ao Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa.
Lisboa, Academia das Ciências (1992), XXI-XXVI.
1
Também vale a pena lembrar a atualidade da frase com que Fernão de Oliveira termina o capí-
tulo XI da sua Gramática: «Sigamos uma certa regra de escrever, e a mais fácil.»
28 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
estas letras, como w e y, tomaram lugar no alfabeto por uma razão semelhante:
a necessidade de saber localizá-las no dicionário em antropónimos, topónimos,
siglas e unidades de medida de curso internacional, necessidade essa que, aliás,
se estende ao aprendizado de outras línguas modernas.
Seguem-se, no século XVII, Álvaro Ferreira de Vera (1631), Bento Pereira (1666)
e João Franco Barreto (1671). Este último, que é um grande crítico das regras de
Duarte Nunes Leão, ainda «é dos teóricos que, em seu século, mais aproxima a
relação grafema-fonema em sua própria escrita» e «vai procedendo à simplificação
dos grupos consonantais imperfeitos que os eruditos teimariam em recuperar,
as dilações vocálicas, as dissimilações e as assimilações usuais, muitas das quais
retornariam à escrita pelas mãos dos humanistas conservadores»2.
No decurso do século XVIII, outros tratados procuram novas soluções, criti-
cando frequentemente os dos seus antecessores, como o de D. Luís Caetano de Lima
(1736), precedido em dois anos pelo de Madureira Feijó. Este último, apoiado nos
vocabulários latino-portugueses de Bento Pereira e de Rafael Bluteau, conhece
uma grande divulgação, ao ponto de ser editado pela sexta vez em 1802.
É, porém, nos meados do século XVIII (1745) que se publica o Verdadeiro Método
de Estudar, de Luís António Verney. Na parte relativa à ortografia, tem a vantagem
de proclamar a necessidade de simplificação do método de escrita mas, por outro
lado, propõe, como observou Martins Araújo, «uma desastrada regra generali-
zadora de ligação dos vocábulos clíticos e vocábulos principais, tão inexequível
que ele próprio se deu conta disso, e ao fim daquela, a invalida». Ainda no mesmo
século, outras tentativas se sucedem, como a de Frei Luís do Monte Carmelo
(1767), que procuram, sem grande êxito, a simplificação da ortografia. As que
atravessam o século XIX estão consignadas sobretudo no importante estudo, de
Ivo de Castro e Isabel Leiria, «As reformas ortográficas: do romantismo à actuali-
dade»3.
É a partir do último quartel desse século que se acentua cada vez mais a ten-
dência para regularizar e simplificar a escrita. Herculano de Carvalho, de quem
tomamos as citações que se seguem, enumera os precedentes que irão conduzir
à mais notável das reformas, a de 1911: a elaboração das bases de uma ortografia
«em sentido sónico», por uma comissão de que José Barbosa é, a partir de 1985,
o impulsionador e relator. O projeto é apresentado três anos depois à Academia
2
As citações são de A. Martins de Araújo, «Breve notícia da ortografia portuguesa», in Miscelâ-
nea de Estudos Lingüísticos, Filológicos e Literários. ln Memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1995, pp. 431-448. Sobre todas estas questões, veja-se também o artigo de J. G. Herculano de
Carvalho na Enciclopédia Verbo, s.v. «Ortografia», e ainda as introduções de Maria Leonor Carvalhão
Buescu às suas edições de Fernão de Oliveira (1975), João de Barros (1971) e Duarte Nunes de Leão
(1983).
3
ln Ivo de Castro, Inês Duarte e Isabel Letria, org., A Demanda Ortográfica Portuguesa. Edições João
Sá da Costa, 1987, pp. 204-218.
2. BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA 29
das Ciências «que lhe não deu seguimento»; depois, novas bases são traçadas por
Gonçalves Viana, em colaboração com G. de Vasconcelos Abreu, «que procuram
conciliar os princípios da simplificação e da unificação com respeito pelos hábitos
tradicionais cientificamente fundamentados na história da linguística». Porém,
só 15 anos depois têm acesso à Academia, onde são recebidas com «desinteresse
quase geral».
Até que, em 1911, o ministro do Interior, António José de Almeida, decide
nomear uma comissão encarregada de estudar a reforma proposta, para a qual
designa o próprio Gonçalves Viana e outros notáveis especialistas, entre os quais
Adolfo Coelho, Carolina Michaëlis, Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo.
Em 1 de setembro desse mesmo ano, um decreto do governo da I República ofi-
cializa aquela que ficou justamente conhecida por a reforma de Gonçalves Viana.
A esse mesmo filólogo se devem o Vocabulário ortográfico e ortoépico da língua por-
tuguesa (1909), seguido do Vocabulário ortográfico e remissivo da língua portuguesa
(1912), com umas 90 000 palavras, número que em edições posteriores foi suces-
sivamente sendo aumentado. Quanto ao período de adaptação, foi de apenas
três anos.
Embora tenha encontrado alguma resistência, ela dissolveu-se no clima
de entusiasmo criado pelo advento do nosso regime. O grande erro consistiu,
porém, conforme já tem sido afirmado, em não se ter efetuado um acordo com
o Brasil, precisamente o país que já então estipulava, no artigo 3.º da sua Cons-
tituição, que «a Língua Portuguesa é idioma oficial da República Federativa do
Brasil».
No entanto, desse lado do Atlântico, já em 1907 Medeiros e Albuquerque apre-
sentava à Academia Brasileira de Letras uma proposta de reforma ortográfica
que, aliás, conheceu forte oposição. Sem que nada ficasse consolidado, foi preciso
aguardar até 1931 para as duas Academias, a lusitana e a brasileira, efetuarem um
primeiro acordo, porém só ratificado em 1933, e mesmo assim sem consequências
práticas.
Em 1943, os dois países assinaram uma convenção ortográfica que não pro-
duziu, no entanto, o efeito desejado. O mesmo sucedeu quando, dois anos depois,
se efetuou um novo encontro, também em Lisboa, entre as Academias dos dois
países, em que tiveram papel fundamental, do lado português, Rebelo Gonçalves
e, do brasileiro, Sá Nunes. Outras tentativas, de um e de outro lado, foram sendo
feitas. Mas as pequenas alterações propostas em 1973 não foram aprovadas pelo
Brasil e as tentativas de entendimento em 1975 tiveram contra si a turbulência
política no nosso país.
Façamos aqui parênteses para lembrar a declaração conjunta de 14 professores
brasileiros e portugueses, entre os quais se contavam muitos dos maiores filólo-
gos de então, elaborada por ocasião do I Simpósio Luso-Brasileiro sobre Língua
Portuguesa Contemporânea, realizado na Universidade de Coimbra, em 1967. Aí
30 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
*1
Publicado em Diário de Notícias. Lisboa (16 de Abril de 1989), 21.
34 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A maior e mais ousada reforma da ortografia portuguesa foi, como todos sabem,
a de 1911, feita por Gonçalves Viana e um grupo de outros grandes especialistas,
nomeado pelo então ministro do Interior, António José de Almeida, essa figura a
quem a Educação em Portugal tanto deve, e precisamente aquele que, numa visita
de Estado ao Brasil, já como Presidente da República, pronunciou a famosa frase:
«Venho ao Brasil para lhe agradecer ter-se tornado independente».
Voltando à reforma de Gonçalves Viana, forçoso é lembrar que a resistência
a tamanha inovação foi grande, mas o ambiente de entusiasmo e de expectativa
criado pelo advento da I República superou todas as oposições. Um defeito, con-
tudo, lhe tem sido apontado com toda a razão: é que a reforma não foi acordada
com o Brasil, o país cuja Constituição declara, no seu artigo 3.º, que «a Língua
Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil».
Por outro lado, muitos anos mais tarde, em 1943, o Acordo Ortográfico pro-
posto pela Academia das Ciências de Lisboa (que é, como se sabe, a consultora
do Governo em matéria de Língua Portuguesa) e ainda em uso entre nós, salvo
pequenas alterações entradas em vigor em 1973, acabou por não ser aprovado por
aquele que já há muito era considerado o país-irmão.
Em contrapartida, quando em 1967 se realizou na Universidade de Coimbra o
I Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, elaborou-
-se uma «proposta para a unificação da ortografia portuguesa», que foi subscrita
por 14 professores brasileiros e portugueses, entre os quais muitos dos maiores
filólogos de então, quer de um quer do outro lado do Atlântico. Vale a pena
transcrever, pela sua permanente actualidade, o parágrafo inicial do respectivo
preâmbulo:
*1
Publicado em Jornal de Letras 30.1 (2008), 20.
38 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Sublinhe-se ainda que, nesse mesmo volume, figuram também pareceres favoráveis
subscritos por grandes especialistas, como Rui Vieira de Castro e Óscar Lopes. E
lembra-se que um dos mais notáveis linguistas que até hoje tivemos, José Gonçalo
Herculano de Carvalho, embora discordasse de alguns pontos, elogiou o trabalho
no seu conjunto e até publicou um artigo na nova grafia, para demonstrar a faci-
lidade da sua aplicação prática.
Em resumo, se uns se manifestaram com conhecimento de causa e isenção,
muitos mais foram os que se excederam, falando de imperialismo e de cedência.
Chegou a existir um «Movimento contra o Acordo Ortográfico» e, a nível oficial,
mas sem apresentar propostas, a CNALP.
Entretanto, a questão da uniformização ortográfica foi-se tornando mais pre-
mente, mesmo sobre o ponto de vista internacional, à medida em que o acesso aos
grandes organismos, como a ONU, requeria o uso de um mesmo sistema de escrita
para uma só língua. Da importância e urgência de uma solução se tem ocupado
nos últimos tempos a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que,
após a entrada de Timor Leste, reúne os oito Estados de língua oficial portuguesa.
Surgiram já dois protocolos modificativos, o segundo dos quais de 2004, que prevê
que a entrada em vigor do Acordo exija apenas que três desses países o ratifiquem,
o que já sucedeu por parte do Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Observe-se que, se pusermos os olhos noutros países de língua românica
facilmente encontramos provas da importância política e cultural da existência
da comunidade de um idioma. Tomemos como exemplo a entrada na língua fran-
cesa dos vocábulos francophonie e francophone que, tendo surgido a primeira vez
nos últimos decénios do séc. XIX (1880), se generalizaram a partir de 1960, tendo
o primeiro deles ascendido, em 1990, a figurar no nome do Ministère de la Culture
et de la Francophonie e passado, em 2002, a designar uma Secretaria de Estado do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, com o título genérico de Coopération et
Francophonie (dados obtidos junto Embaixada de França em Lisboa).
Exemplo vindo de um país que compreendeu a vantagem, e mesmo a neces-
sidade, de apertar os laços históricos e culturais que mantinha com os Estados
independentes, suas antigas colónias, e de procurar fazer frente, ao mesmo tempo,
à vaga crescente da anglofonia. Recorde-se também, de passagem, que esse País
dispõe de magníficos instrumentos de trabalho nessa área, graças, sobretudo, à
actividade da Academia Francesa, reconhecida consultora do Governo francês em
matéria linguística. Situação semelhante é a que se verifica nos vastos domínios
da Hispanidad.
Se referimos estes exemplos, aliás bem conhecidos, é porque existe entre nós
o arreigado hábito de invocar a todo o propósito «o que se faz lá fora». Tanto
quanto sabemos, tal invocação só se fez ainda, a avaliar pelo que lemos e ouvi-
mos em debates e não menos pela preciosa recolha de informações contida no já
mencionado livro de Ivo de Castro et alii, e ainda no de Edite Estrela, A Questão
40 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
*
Publicado em Humanitas 35-36 (1988-89), 352-363; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia
Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 139-148.
1
Damiani Goes Equitis Lusitani Vrbis Olisiponis Descriptio. Reeditada em 1603 na Hispania Ilustrada,
e em 1791, em Coimbra, só veio a ser traduzida para português por Raúl Machado, em 1937 (Lisboa
de Quinhentos. Descrição de Lisboa. Texto latino de Damião de Góis. Lisboa, Livraria Avelar Machado).
Na citação que fizemos, adoptámos a versão daquele latinista. O elogio de Lisboa aparece noutros
humanistas, v.g. André de Resende, Oratio pro Rostris (ed. de Miguel Pinto de Meneses e A. Moreira
de Sá [Lisboa, 1956], pp. 54-55).
44 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Em troca disto, o «bom Sá» recorda a vida de convívio são e amor às letras que
tinham na Quinta do Senhor de Basto, e, num entretecido de reminiscências clás-
sicas, em que se perfilam o famoso e tantas veres glosado O fortunatos nimium, sua
si bona norint / agricolae, das Geórgicas II.457-458, e uma sentença do De Agricultura
de Catão (até aqui não identificada pelos comentadores), prossegue4:
2
Estrofe 5.
3
Estrofes 34 e 36.
4
De agricultura, prefácio, 2: Et virum bonum quom laudabant, ita laudabant: bonum agricolam bonum-
que colonum.
1. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA 45
5
Livro I, Carta X, a Manuel de Sampaio, em Coimbra, versos 28-33, 40-42 e 103-108.
6
Epístola II.2. A Carta de António Ferreira é a IV do Livro II, e os versos citados vão de 13 a 24.
46 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Não surpreende, por isso, que o mesmo António Ferreira tenha louvado o
«Mestre das Musas, mestre da virtude» pela sua retirada para longe da corte7:
7
Livro II, Carta IX, a Francisco Sá de Miranda. Os versos citados são 13-18 e 22-23.
8
A única – e breve – alusão que a ela encontrámos é a de Luís Forjaz Trigueiros, no artigo «Lis-
boa», do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho.
1. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA 47
9
Seguimos o texto da edição das Poezias publicada pela Academia das Ciências de Lisboa em 1791.
48 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A sexta estrofe retoma a palavra-chave com que abrira a Ode – louvarão – para
resumir o que foi dito e o transferir para um plano moral que lhe aniquila o valor,
prenunciando uma axiologia diversa:
A composição termina com votos de uma longa vida assim passada na quietude,
de «ânimo constante e peito puro».
1. UMA DESCRIÇÃO POÉTICA DA CIDADE DE LISBOA 49
Uma ode que mantém o seu interesse, por conseguinte, quer por conter uma
descrição coeva da Lisboa dos Descobrimentos10, quer pela importância histórico-
-literária do seu destinatário, quer ainda por testemunhar a reacção do seu círculo
de amigos à retirada para o campo de Sá de Miranda.
Mas, com estas observações, não esgotámos a apreciação do pequeno poema.
É que o motivo do louvor a cidades ou sítios famosos, postergado em favor do de
um remanso campestre, provém, como tantos outros dos temas dos Quinhentistas,
da fonte horaciana. É, aliás, a própria palavra-chave do começo, a que há pouco
nos referimos, que remete leitor para a célebre Ode VII do Livro I, a que principia:
10
Em nota manuscrita ao seu exemplar das Poezias, existente na Faculdade de Letras da Univer-
sidade de Coimbra, propôs Carolina Michaëlis a data-limite: «vor 57». Como se sabe, o ano da retirada
da corte do Poeta do Neiva tem sido fixado em 1530 e o do seu falecimento em 1558.
11
III.7.26. Citado por R. G. M. Nisbet and Margaret Hubbard, A Commentary on Horace: Odes. Book I
(Oxford, 1970), p. 92. A discussão do sentido desta ode pode ver-se ibidem, pp. 90-94.
12
E. g. Aubrey Bell, A Literatura Portuguesa (Coimbra, 1931), pp. 191-192; António José Saraiva e
Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa (Porto, 81975), pp. 380-381. O historial do apreço pelo
Poeta foi feito por Adrien Roïg, no estudo citado infra, nota 15, de pp. 105 a 110.
50 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
13
Livro I, Carta III.
14
Soneto 96. Cf. também, do mesmo, a Carta XI.
15
No estudo complementar da tradução portuguesa da obra de Carolina Michaëlis, acabada de
citar, vertida por Olívio Caeiro com o título de Pedro de Andrade Caminha. Subsídios para o Estudo da Sua
Vida e Obra (Lisboa, 1982), p. 164.
2. UM ELOGIO SETECENTISTA
DA CIDADE DO PORTO *
Nos seus Portuenses Ilustres, consagra Sampaio Bruno escassas três páginas1
a uma das mais notáveis figuras nascidas nesta Cidade: o erudito Doutor Antó-
nio Ribeiro dos Santos, um dos grandes lustres do nosso renovamento cultural
da segunda metade do séc. XVIII, lente de Direito Canónico na Universidade de
Coimbra, primeiro director da sua Biblioteca – e mais tarde da Nacional de Lisboa
– detentor de inúmeras honrarias, o sábio autor de ensaios e memórias sobre a
língua, a literatura e a história portuguesa, e o poeta que, sob o nome arcádico de
Elpino Duriense, exprimiu, através das formas então em voga, ora o deslumbra-
mento pelas conquistas da filosofia e da ciência, ora o gozo das coisas simples e
dos sentimentos puros. Se os ensaios e memórias, cujo valor e novidade têm sido
reconhecidos2, se encontram apesar disso em grande parte inéditos, aos três tomos
de Poesias, publicados de 1812 a 1817, também se não tem prestado a devida aten-
ção, não obstante o elogio que lhes fez Garrett no Bosquejo. Que saibamos, apenas
o Prof. Hernâni Cidade deu o devido relevo ao significado histórico-cultural de
muitos dos seus poemas3:
*
Publicado em Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto (1967), 74-81; Temas Clássicos na Poesia
Portuguesa. Lisboa, Verbo (11971, 22002), 149-153.
1
Tomo I. Porto, 1907, pp. 268-270.
2
Leiam-se, por exemplo, as apreciações contidas no Dicionário Bibliográfico de Inocêncio, s.v.
3
«No 2.º Centenário de António Ribeiro dos Santos», O Tripeiro, V. Série, n.º 7, Novembro de 1945,
p. 150.
52 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Em outras composições, o autor fala-nos dos seus estudos, dos seus gostos e
desilusões, num tom de confidência que o aproxima do grupo dos pré-românticos.
Entre essas se situa uma epístola4 em tercetos rimados, endereçada ao seu colega,
amigo e conterrâneo, Doutor Ricardo Raimundo Nogueira, estando este em férias
na Foz do Douro, e Elpino nos arredores de Coimbra. É aí que, por entre as evoca-
ções mitológicas que vêm animar a paisagem marinha, nós podemos subitamente
avistar o mar embravecido da costa:
4
Poesias, Tomo I, pp. 123-132.
5
No Gabinete de História da Cidade existe uma gravura coeva, que representa a “Perspectiva da
entrada da Barra da Cidade do Porto e fortaleza que a defende”, e que se encontra reproduzida na p.
44 do vol. III da História da Cidade do Porto, dirigida por Damião Peres e António Cruz (Portucalense
Editora, 1965).
2. UM ELOGIO SETECENTISTA DA CIDADE DO PORTO 53
6
Sobre o número e proveniência dos navios empregados no comércio de importação e exporta-
ção, leia-se o artigo da Prof.ª Virgínia Rau, “O movimento da barra do Douro durante o século XVII”,
Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, 21, 1-2 (1958).
54 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
7
Cf. o capítulo sobre “Comércio Externo”, da autoria de J. A. Pinto Ferreira, incluído na História
da Cidade do Porto, cit., Vol. III, pp. 35-69, e bibliografia aí referida.
8
A ponto de ser possível definir um “barroco portuense”, como fez Robert Smith, A Talha em
Portugal, Lisboa, 1962. Cf. também o capítulo de B. Xavier Coutinho sobre “Arte: Do Barroco ao Neo-
-Classicismo” na História da Cidade do Porto, cit., Vol. III, especialmente pp. 186-187.
9
Tomo II, pp. 101-102.
10
A quem darão de Pindo as moradoras (numeração da edição das Rimas pelo Prof. A. J. da Costa
Pimpão, Coimbra, 1953).
2. UM ELOGIO SETECENTISTA DA CIDADE DO PORTO 55
o rio Douro. Fê-lo numa das suas melhores composições11, em que perpassa,
renovando-se, o velho tema dos rios personificados – desta vez, Douro e os seus
afluentes:
11
Tomo II, pp. 94-96.
56 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
É bem claro, num e noutro passo da Ode, o propósito de exaltar, sob esta roupa-
gem mítica, as próprias filhas da Cidade. Na Ode seguinte, «Ao mesmo assunto»12,
onde «as belas Ninfas do paterno Doiro» se individualizam com nomes que ora são
de Nereides (Eurínome, Alcipe, Dinamene) ora anagramas de sabor neo-clássico
(Isbela, Arima), torna-se evidente a sua aplicação a figuras reais.
As Dórides do erudito autor setecentista não tiveram a fortuna literária das
Tágides do não menos erudito humanista eborense, porque não entraram nos
ritmos de um poeta de génio que as universalizasse. E, no entanto, ficaram como
uma curiosa tentativa de renovamento mitopoiético, numa época de exaustão
de formas e temas clássicos. É nesse mesmo contexto histórico-literário que se
insere a Ode «Em Louvor da Cidade do Porto», onde aliás, através de uma gasta
adjectivação e de uma cansada metonímia, irrompe, a vivificá-la, a sugestão da
actividade estuante da urbe em plena carreira ascensional.
12
Tomo II, pp. 97-100.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE *1
*1
Publicado em Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Verbo (11971, 22002), 171-182.
58 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
da Monarquia até aos fins do século XV; no século XVI; no século XVII; no século
XVIII), bem mereceram as palavras de Ferreira Gordo1, quando afirmou que nelas
«se disse pela primeira vez entre nós algum bem dos judeus, depois de se haver
dito tanto mal deles, extremando-se aqui o merecimento real da sua literatura das
preocupações da sua crença». Hernâni Cidade pôs em relevo o significado do seu
ensaio Sobre a antiguidade da observação dos astros, da bússola e de outros instrumentos
ao uso da navegação, em que, antes do Visconde de Santarém e mais de um século
antes de Joaquim Bensaúde, chegou «a formular a verdade hoje assente sobre o
modo como foram realizadas»2. Mais recentemente, G. Braga da Cruz demons-
trou a sua importância na nossa história do Direito, considerando-o «o primeiro
abolicionista, plenamente convicto, do pensamento criminalístico português»3.
Mas a sua obra literária, recolhida em três tomos de Poesias, editados de 1812 a
1817, não tem recebido a demorada atenção que lhe é devida, não tanto pelo seu
valor artístico, que, aliás, não é inferior ao de outros autores contemporâneos,
não eliminados das antologias, como pelo seu valor documental, que nos permite
reconstituir uma nobre figura de erudito, a um tempo sujeito e objecto da reno-
vação da mentalidade portuguesa que se processa na época. E contudo, depois de
ter sido muito admirado pelo círculo dos seus amigos, recebeu ainda de Garrett,
no Bosquejo, uma homenagem que vale a pena registar:
Também Castilho, ao declarar quanto lhe devia a sua iniciação poética, reco-
nheceu nele o homem
1
Apud Inocêncio, Dicionário Bibliográfico, art. «António Ribeiro dos Santos».
2
«No 2.º Centenário de António Ribeiro dos Santos», O Tripeiro, V Série, n.º 6, Outubro de 1945,
p. 132.
3
«O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte em Portugal (Resenha histórica)»,
Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, X, 1967, p. 98.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 59
4
A Primavera, Obras Completas de A. F. de Castilho, vol. 7, Lisboa, 21903, pp. 146-150. As citações
são, respectivamente, de pp. 147 e 148.
5
O Tripeiro, V Série, n.º 6, Outubro de 1945, pp. 131-132, e n.º 7, Novembro de 1945, p. 150. A cita-
ção é da segunda parte do artigo. Pode ver-se também uma curta apreciação («Poeta, e emérito, foi
também aquele eminente erudito») nas páginas que lhe consagrou Sampaio Bruno em Portuenses
Ilustres, t. I, Porto, 1907, pp. 268-270.
6
Sonetos É difícil, Senhor; mas não é raro (vol. II, p. 315); Não é, Senhor, tão raro um bom Soneto (II,
316); Os Poetas, ó Castro, consentiram (II, 319); Eu prometi, Senhor, que já neste ano (II, 320). (Em todas as
60 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A parte da obra de Elpino Duriense que nos parece mais válida é a constituída
pelas odes e epístolas, em que, sob uma expressão elegante, polidamente arcádica,
se vão reflectindo os novos anseios culturais, os defeitos da sociedade contempo-
rânea e, não raro, a atraente personalidade do autor, seus estudos, seus gostos,
suas desilusões, num tom de confidência que o aproxima do grupo dos chamados
pré-românticos, que já então se distinguia em meio da anódina literatura sete-
centista.
A importância da primeira temática referida foi já devidamente salientada
por Hernâni Cidade, em termos tão ajustados e expressivos que vale a pena
transcrevê-los7:
escreve ao seu amigo Almeno (P.e Fr. José do Coração de Jesus), exortando-o «a
cantar objectos dignos da sua lira»8. E o tema repete-se na epístola seguinte9,
endereçada ao mesmo, cujo princípio é típico:
citações de Elpino Duriense feitas neste artigo, o número romano indicará o tomo das Poesias, e o
árabe as páginas).
7
«No 2.º Centenário de António Ribeiro dos Santos», cit., O Tripeiro, V Série,· n.º 7, Novembro de
1945, p. 150.
8
Epístola Enquanto cem Poetas, caro Amigo (I, 38-40).
9
I, 41-44a.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 61
Repete-se também na que começa Que delírio, Nogueira, que mania 10, quando
aponta ao seu colega e amigo quais os objectos dignos da poesia; nas que escreve
a Francisco de Borja Garção Stockler, sobre o Génio das Matemáticas e sobre os
Estudos da Natureza11; ou nas que endereça ao médico José da Silva Xavier, exor-
tando-o sucessivamente a cantar em versos os grandes filósofos do século XVII12
e os do século XVIII13, ou novamente a Garção Stockler, quanto aos matemáticos
modernos das duas últimas centúrias14, ou mesmo os do século XVI15.
Em todas se revela o entusiasmo pelos progressos da ciência e pela capacidade
do ser humano em geral, sentimento esse que igualmente transparece em José
Agostinho de Macedo, em José Anastácio da Cunha, na Marquesa de Alorna, e até
mesmo em Bocage.
É ainda dentro do mesmo espírito que exalta a figura do Infante D. Henrique
e a sua acção nos Descobrimentos, quer em epístolas16, quer em odes17. Embora
revestidas da roupagem mitológica indispensável ao gosto da época, estas e outras
composições denunciam claramente o saber do erudito, que lhes serve de suporte,
e até o emprego dessa terminologia reminiscente da Antiguidade concorre para
pôr em relevo a importância da actuação do Príncipe de Avis, quando chama à sua
escola de Sagres o «Liceu Turdetano»18. De mistura com estes sentimentos, o da
admiração pelo passado glorioso da sua pátria, quer nesta última ode, dedicada a
Bartolomeu Dias, quer nas que consagra a Martim de Freitas19, a Nuno Gonçalves,
alcaide do Castelo de Faria 20, a D. João de Castro21, a Vasco da Gama 22. O seu entu-
siasmo pelos feitos nacionais não exclui, porém, a celebração de um navegador
10
I, 58-62.
11
Respectivamente, S’eu pudesse cantar, ó sábio Stockler (I, 75-77) e Qu’alto conceito não farás, Amigo
(I, 167-169).
12
Demos louvor, ó Silva, aos Varões sábios (I, 270-275).
13
Amigo, pois que minha carta pôde (I, 276-279).
14
Os teus severos, ínclitos estudos (I, 289-297).
15
Porque nós, ó meu Stockler, não daremos (III, 10-12).
16
Demos louvor aos nossos: tu, ó Soisa (I, 35-37). Deixa os estranhos: dêmos, caro amigo (III, 15-17).
17
Fervia ao longe com fragor medonho (II, 27-31); Pois que grande Cantor do excelso Gama (III, 38-41).
18
Ode Aos Lusos Soberanos não bastaram (II, 35). Cf. III, 41 (Assim do alto Liceu da ilustre Sagres).
19
Qual génio, ó Musas, inspirou sublime (II, 22-24).
20
No recontro fatal vencido e preso (II, 25-26).
21
Entra, que a Musa soberana, ó Castro (II, 39). Cf. também o soneto Eu não te louvo, ó Castro valoroso
(II, 299).
22
O mar Oriental, tão encoberto (III, 44-46); Sobre sólidas bases às estrelas (III, 47-51); e cf. também
os sonetos Os encantos do mar té li cerrado (III, 101) e Deixado, ó Gama invicto, o pátrio Ninho (III, 102).
62 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Garcia de Orta
23
Era segredo eterno um novo Mundo (III, 41-43).
24
II, 40-42.
25
III, 15-17.
26
Tens lido de Franceses, de Toscanos (I, 255-259).
27
Perguntas-me, se nossa Língua, sendo (I, 260-264).
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 63
Fileno «sobre quais Poetas devia ler»28, quer passando em revista, para benefício
do mesmo amigo, os épicos portugueses29.
A penúltima das composições citadas termina com o elogio, quase a apoteose, de
Sá de Miranda e António Ferreira, que eram os grandes mestres do autor30. Desde
a sua juventude que Elpino Duriense consagrara a Ferreira um dos seus melhores
sonetos31, e a admiração pelo magistrado, que fora lente, como ele, da Universidade
de Coimbra e com quem tinha tão numerosas afinidades intelectuais e artísticas,
não cessa de se afirmar ao longo de toda a sua obra: ele é o cantor da «sã doutrina»32,
o «ínclito Ferreira»33, «Ferreira grave e nobre»34, o «imortal Ferreira»35,
........................... meu grão-mestre,
de bom saber, de siso, de são gosto,
de proveito geral a todos36.
Elpino Duriense rende a merecida homenagem aos coros da Castro37, mas vai
sem dúvida longe de mais em muitos outros passos laudatórios, nomeadamente
quando se refere a
as Éclogas gentis do meu Ferreira,
que nos assopros da silvestre avena
o Siracúsio e o Mantuano excede38
28
Tu me pedes conselhos, quais Poetas (I, 280-284).
29
Porque tu, meu Fileno, tanto exalças (I, 136-141).
30
Os dois nomes aparecem associados com frequência: epístolas Tu dizes que estou só, e vivo triste
(I, 45 e 49), Que má ventura, meu Aléxis, corre (I, 65), Tu me pedes conselhos, quais Poetas (I, 282); odes Neste
lugar solitário (II, 256); Ó Grosfo, jás estou cansado (II, 265 e 267). De Sá de Miranda afirma (Is, 248):
que inda mais me ensinou, que a douta Atenas
e de Ferreira, (ibidem):
que eu amo ternamente, e sempre leio,
e quanto mais o leio, mais o estimo.
Esta admiração era partilhada, aliás, por outros poeta coevos, entre eles Filinto Elísio, que o
associa, na pureza do idioma, a Camões: a língua de Camões nem de Ferreira (Obras Completas, Paris, 1817,
vol. I, p. 312); Camões sublime, altíloquo Ferreira (ibidem, vol. I, p. 342).
31
Quis dar o Céu a Lusitana Gente (II, 301). Sobre a época da composição deste poema, cf. I, 114
(Parto informe de meus primeiros anos).
32
Soneto cit. na nota anterior, v. 13.
33
Epístolas Tu dizes que estou só, e vivo triste ( I, 49); Pois tens lido de Gregos, de Romanos (I, 69).
34
Epístola Quanto, Fileno Amigo, com a idade (I, 92).
35
Ode Jura o sagrado Teio, que os teus versos (II, 111).
36
I, 286.
37
Epístolas Pois tens lido de Gregos, de Romanos (I, 69), Eu vos mando, Senhora, esse Soneto (I, 120), Tu
me pedes conselhos, quais Poetas (I, 282-283); ode Jura o sagrado Tejo, que os teus versos (II, 111 ).
38
Epístola Vinde, Senhora, pois que já me destes (I, 201).
64 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
39
Tu costumado a ler o teu Catulo (I, 188-190). A influência do epitalâmio de Tétis e de Peleu é mais
nítida na écloga I, Archigamia, onde figura também um cortejo dos deuses a caminho dos esponsais
e a glorificação do herdeiro, através do canto das Parcas.
40
Epístola Eu vos mando, Senhora, esse Soneto (I, 116).
41
II, 275-277.
42
II, 278-280.
43
«Alguns aspectos do classicismo de António Ferreira», in Temas Clássicos na Poesia Portuguesa,
Lisboa, Verbo (1972), pp. 37-76. A écloga X é estudada de pp. 72 a 75. O idílio XXI de Cruz e Silva também
se intitula Os Segadores, mas é bastante diverso, pois decorre todo na hora de descanso:
Acompanhados pela lira de um terceiro, Fárrio, cantam amoibeios de elogio às respectivas ama-
das, até ao momento em que são advertidos do adiantado da hora:
e todos três se levantam. É este final o único passo em que o realismo à maneira de Teócrito se
evidencia.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 65
Tu semeaste
em hora escura
Aristo trigo
em pedra dura.
66 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
............................................ quanto
cabedal de expressões não volve a Língua,
costumada a falar ao mar, e aos ventos.
44
I, 255-259.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 67
Novo elogio na epístola a Fileno, «que pedia conselho sobre quais Poetas
devia ler» 46, misturado de censura para com os que maculavam a sua pureza ori-
ginal:
A mesma indignação freme na epístola a Aléxis47, «No dia dos anos de D. Fran-
cisco Rafael de Castro (...) tendo-se pouco antes falado, entre eles e o autor, acerca
do desprezo em que estava o estudo da Língua e Poesia Porguesas»:
45
I, 260-264.
46
I, 280-284.
47
I, 63-67.
48
I, 78-79.
68 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A mesma carta nos fornece preciosas indicações sobre a manutenção das vogais
átonas abertas na pronúncia setecentista, quando diz, por exemplo, que
........................................ corre livre
sem o cigano cecear travado;
sem muitos sons nasais que desagradam,
sem tantos mudos és, que a França aumenta,
nem tantos us sorvidos, que ensurdecem.
A epístola a Aléxis51, por sua vez, critica asperamente os «que escrevem por
linguagem velha» – o que, aliás, o não impede de, desprezando os conselhos de
Correia Garção na sátira II, empregar com frequência imigo52, e até al53 e estê54.
Esta preocupação com a pureza e sublimação da língua nacional estava dentro
da linha de pensamento dos grandes poetas da época (lembre-se a famosa objur-
gatória de Cruz e Silva contra o francesismo, no Hissope, e as epístolas e sátiras de
Correia Garção – dois autores que o Duriense tanto prezava, que não sabia a qual
dar a preferência 55 – e ainda a carta a Brito de Filinto Elísio).
49
III, 8-9. Sobre os francesismos no nosso século XVIII, veja-se Manuel de Paiva Boléo, O problema
da importação de palavras e o estudo dos estrangeirismos ( em especial dos francesismos) em português, Coim-
bra, 21965, especialmente pp. 29-33.
50
III, 13-15.
51
I, 186-187.
52
I, 137, 166; II, 19, 23, 25, 54, 59, 129, 304, 312.
53
I, 124 e 133.
54
I, 33.
55
Epistola «A António Álvares, da Congregação do Oratório, havendo perguntado ao autor o
juízo que formava do merecimento dos dous Poetas Diniz e Garção, e a qual dava a preferência» (I,
183-185). Ao elogio de Garção dedicou também os sonetos Junto da Fonte Santa, antigos Lares (II, 311)
e Garção, Senhor do plectro d’oiro fino (II, 313), endereçados ao sobrinho do poeta, Francisco de Borja
Garção Stockler.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 69
Dentro das tendências postas em voga pelos árcades, estava também o uso de
latinismos, em que Elpino é pródigo56, bem como de neologismos57, e a preferência
pelo verso branco58.
O poeta que assim procedia era também, não o esqueçamos, aquele que ela-
borara diversas e eruditas memórias, quer sobre a literatura antiga, quer sobre
a língua portuguesa e suas origens. Citemos apenas alguns dos títulos alinhados
por Inocêncio no seu Dicionário Bibliográfico: «Das Origens e Progressos da Poesia
Portuguesa», «Memórias da Poesia em Portugal», «Da conservação da antiga lín-
gua geral da Espanha em todo o tempo do senhorio dos Romanos», «Elegâncias
da língua portuguesa, extraídas dos seus clássicos», e uma série de monografias
sobre o que nós hoje chamaríamos fontes celtas, gregas, latinas, visigodas, árabes,
orientais e indianas do léxico português.
A erudição de Elpino Duriense transparece, de resto, em muitos outros poe-
mas, em que o indigitado tradutor e certo comentador da Poética de Aristóteles,
estampada em Lisboa, em 1799, que verteu também a lírica de Horácio para
versos portugueses59, mostra a sua familiaridade com autores gregos e latinos.
Tal conhecimento demonstra-se por três formas: as apreciações que lhes faz, as
reminiscências ou imitações e as traduções. Estão no primeiro caso as epístolas
Enquanto cem Poetas, caro Amigo60, Tu me pedes conselho, quais Poetas61, Salve, ó meus
56
E. g.: alígero (I, 102); alipotente (I, 62, 184) astripotente (III, 10); aurícomo (I, 48, 191, 215); avito
(II, 49, 131); caprípede (I, 48); diro (I, 46); flamívomo (I, 36); gemífera (I, 198; II, 65);horríssono (I, 35);
ignífero (I, 168); melífero (I, 215); navígero (I, 36); pulcrícomo (II, 65); tirsígero (I, 173, 199); undívago
(I, 174; II, 33); veloce (I, 163).
57
E. g.: crujar (II, 151); damejar (II, 79); ebrifestivo (II, 225); loirar (I, 117); rusticar (I, 227).
58
Advogada por Correia Garção em passo muito citado da epístola I. Elpino Duriense, em ode ao
Principal Castro (II, 247), escreve:
Veja-se, sobretudo, a primeira parte da epístola «Sobre o prazer da leitura dos poetas na solidão»
( I, 45-49).
61
I, 280-284.
70 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
62
I, 285-288.
63
II, 227, que adapta à bebida o motivo do carme V.
64
É curioso discernir reminiscências de um passo da descrição da criação do mundo nas Meta-
morfoses (I, 12-14) numa epístola «científica» (I, 8-10) nos versos:
Também na ode à Virtude (II, 5-6) traduz, por vezes quase literalmente, a descrição da Idade do
Ouro. Para solicitar a leitura ou exaltar a qualidade da versão do poema feita pelo seu amigo Almeno,
resume todo o livro I e os versos 1 a 400 do II na epístola de I, 99-102; e II, 401-875, na seguinte
(I, 103-109). Outro resumo do livro ocupa a ode de II, 108-109.
65
A epístola a Nogueira de I, 29-31 glosa o tema da aurea mediocritas, rasando de perto Carmina II,
18, 17-19 e, sobretudo, I, 4, 15. A epístola de I, 170-176 acusa o modelo de Carm. I, 1, II, 18 e IV, 7, 19-20.
A epístola de I, 228-229, desenvolve os lemas que adopta de I, 9 e III, 29. Na de I, 238-240, há recordações
de I, 9 e epodo XIII. A de I, 241-243, é uma espirituosa adaptação do epodo V, com actos de magia, em
que a vítima é o próprio autor, que acaba por acordar daquele pesadelo para cair num outro castigo
ainda pior, profetizado pelas bruxas: os cáusticos que o aguardam. A ode de II, 11-14 lembra de perto
o Carmen Saeculare, cujas segunda e terceira estrofes verte quase literalmente, substituindo Roma por
Lísia. A quarta estrofe da ode de II, 17-18, aponta para a primeira de Carm. III, 3. A segunda estrofe de
II, 72-74, é um eco de Carm. II, 10, 19-20, tal como II, 113-115 o é de I, 31. A ode «Em louvor da vida do
Campo» (II, 131-132) é uma paráfrase do epodo II, e a «Sobre os diversos cuidados e prazeres do homem»
(II, 135-136) tem uma entrada reminiscente de I, 1. A de II, 147 contém parte de III, 30. A de II, 156-157
observa em nota que foi feita sobre Carm. I, 24. O final da ode de II, 162, dá-nos o primeiro verso de
Carm. III, 3. A estrofe final de II, 166-167, é uma adaptação dos dois últimos versos de Carm. I, 1. A fons
Bandusiae de III, 13 inspirou-lhe duas odes (II, 205-206; II, 211-212). Na ode de II, 233-234, distinguem-se
reminiscências de IV, 7, 21-24; II, 18, 31-32 e talvez de II, 10, 1-4. A ode a Castálio (II, 236-237) lembra III,
8 e III, 29. O princípio da de II, 239-240, é um eco de I, 9, a que não falta, como em Correia Garção (ode
III) o acrescento do ponche. A epístola de III, 3-5, apresenta-se como derivada de Carm. I, 5. Finalmente,
as odes de III, 32-34 e III, 35 -37 são dadas como paráfrases, respectivamente, de Carm. I, 3 e II, 14.
66
A epístola de I, 45-52, ao falar de Virgílio (p. 46), parafraseia a proposição da Eneida; a descrição
do pomar do autor, em I, 191-202, enfeita-se com alusões à Bucólica I. O conhecido passo de Buc. III,
64-65 serve de lema à ode de II, 283-284.
67
É curioso discernir reminiscências de um passo da descrição da criação do mundo nas Meta-
morfoses (I, 12-14) numa epístola «científica» (I, 8-10) nos versos:
A terceira espécie está representada nos volumes das Poesias, quer por versões
do grego quer do latim. Dois excertos da Ilíada (I, 1-120 e VI, 466-493), o idílio de
Bíon à morte de Adónis, seis Anacreontea (das quais duas com dupla versão), a cha-
mada «Ode de Safo a Fáon», e o Amor Fugitivo de Mosco compõem a parte helénica.
Da latina, dois episódios de Lucrécio (o exórdio, I, 1-20, e o trecho sobre a origem
da linguagem, V, 1028-1090); os primeiros trezentos versos da Eneida; o prefácio e
a primeira fábula de Fedro.
Deixando ficar as versões do latim, geralmente fiéis e respeitadoras do espírito
do texto, reparemos que Elpino Duriense se não limita a exercitar-se em poemetos
tardios, inúmeras vezes traduzidos ou parafraseados, como o Ἔρως δραπέτης de
Mosco, de que António Ferreira fez a sua elegia VII e Pedro de Andrade Caminha
a elegia VIII, e que foi aproveitado por Gil Vicente para a sua Frágua de Amor68 e,
mais tarde, vertido por Bocage; ou ainda como o lamento pela morte de Adónis,
que Bocage também verteu «fielmente da tradução literal em latim», como refere
a didascália. Num e noutro caso, a ciência e técnica do verso de Elpino não atin-
gem, como é de esperar, a musicalidade e fluência de Elmano, embora haja de
reconhecer-se que a versão de Bíon pelo primeiro mantém uma bela cadência.
Também desde o tempo de António Ferreira que os vates lusitanos se ensaiavam
a verter o que eles – e quase toda a gente, ao tempo – julgavam ser poemas de
Anacreonte. Escolheu Elpino Duriense as Anacreontea 4, 7, 23, 24, 33, 5169 (a que dá
os números, respectivamente, de 17, 11, 1, 2, 3, 33), observando com felicidade o
movimento e a intenção dos poemetos. De sublinhar, o erudito cuidado com que
anota e discute certas dificuldades de interpretação das três primeiras.
A sua tradução do frg. 31 Lobel-Page de Safo pode considerar-se notável pela
aproximação do original, sem perder a elegância da linguagem e da métrica,
e não nos surpreende que o autor se desvie um pouco da letra na mutilada estrofe
quarta. Mas a versão de «o rosto amarelece», expressão tirada de António Ferreira,
que Elpino declara em nota ter preferido ao literal «estou mais verde que a erva»,
a pretexto de que «esta imagem por muito vulgar não sairia bem em nossa Língua»
esbate desnecessariamente muito do poder comunicativo da poetisa.
De especial interesse é a versão das primeiras 120 linhas e da despedida de
Heitor e Andrómaca (VI, 466-493) da Ilíada. A passagem dos hexâmetros homéri-
cos a hendecassílabos portugueses é sempre difícil, particularmente no que toca
Também na ode à Virtude (II, 5-6) traduz, por vezes quase literalmente, a descrição da Idade do
Ouro. Para solicitar a leitura ou exaltar a qualidade da versão do poema feita pelo seu amigo Almeno,
resume todo o livro I e os versos 1 a 400 do II na epístola de I, 99-102; e II, 401-875, na seguinte (I,
103-109). Outro resumo do livro ocupa a ode de II, 108-109.
68
Vide o nosso estudo publicado na colectânea citada na n. 43, p. 55, n. 1, e p. 151.
69
Destas, a 23 foi traduzida também por Cruz e Silva e por Garrett (nas Flores sem Fruto); a 24, por
António Ferreira, José Anastácio da Cunha e Garrett; a 33, por António Ferreira.
72 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
aos epítetos. A Marquesa de Alorna, que, pela mesma época70, não hesitara em
empreender a difícil acrobacia métrica de trasladar em 123 estâncias de oitava
rima os primeiros 516 versos do poema, resolve a dificuldade, eliminando-os quase
todos. Apenas fica «a moça d’olhos pretos» para ἑλικώπιδα κούρην e «o deus do
arco argênteo». Em nota ao primeiro (t. III, p. 292), explica o pouco que ao tempo
se sabia sobre o assunto:
Estes e outros epítetos de que usa Homero, como, por exemplo, olhos
bovinos, que emprega falando de Juno; pés argênteos, que atribui a Tétis,
etc., são para dar uma ideia da beleza particular, ou da qualidade e ofício
da personagem de quem fala.
Outro tanto havia de fazer, já no século XIX, um Félix Pereira, na sua descui-
dada versão dos Poemas Homéricos.
Não assim o nosso erudito poeta. Porém, se foi hábil na sua equivalência de de
fina greva para ἐϋκνήμιδες e de donzela de negros olhos para o já citado ἑλικώπιδα
κούρην, se podemos ainda aceitar o latinismo de pulcrícoma para ἠΰκομος, não
podemos deixar de censurar, como uma distorção ao espírito da língua, o longe-
-vibrador, largo-atirador, longe-frechador, trazedor d’arco fúlgido, para os epítetos de
Apolo; o veloz-cursor, para o de Aquiles; o largo-ressonante, para o mar71.
Grande número das composições de Elpino Duriense não excede o âmbito do
poema de circunstância, muito em voga na época. É o caso das que se destinam
a louvar uma pessoa importante72 , a festejar os seus anos73 ou a convidar um
70
A publicação do tomo I de Elpino Duriense data de 1812. Sabe-se que a Marquesa de Alorna
se dedicou às traduções por volta de 1810 (Hernâni Cidade, A Marquesa de Alorna, Porto, 1930, p. 37) e
que as suas obras só foram editadas postumamente, em 1844.
É natural que António Ribeiro dos Santos, que pouco tempo frequentara a tertúlia do locutório de
Cheias (cf. Hernâni Cidade, op. cit., pp. 16-17) e, portanto, perdera o contacto com Alcipe, não tivesse
conhecimento desta outra tentativa.
A ode Das Apolíneas vestes adornado (II, 62-64) é também uma paráfrase do episódio inicial da
71
74
Epístolas Honra ilustre de Febo, amor das Musas (I, 95-98), É tempo, Almeno, de deixar o Sado (I,
99-102), Que saudades não tenho, que desejos (I, 103-109), Sampaio, Amigo, eis o meu dia é este (I, 144-145),
A um só alvo, Amigo, ambos tiremos (I, 228-229), Passou Amigo, o dia de hoje, e temos (I, 238-240); odes O
dia está sereno, a mesa pronta (II, 216), Aléxis, fecha os Livros e as Pandectas (II, 219), Convido-te, que venhas
neste dia (II, 220-223), De nós o dia se despede: dize (II, 224-225), Sacudamos da frente esta velhice (II, 226),
Convido-te a jantar, Mirtilo, deixa (II, 227), Tu a quem Baco desde a tenra idade (II, 228-229), Co’a nota de dez
anos assetada (II, 230), Este dia, Montano, vai fugindo (II, 235).
75
I, 191-202.
76
I, 203-210.
77
I, 211-221.
78
I, 224-227.
79
I, 170-176. Tal gosto reflecte-se na sua poesia, composta só de «graves versos», com exclusão
dos temas amorosos, como declara ao defender-se das censuras que por tal motivo lhe foram feitas,
na sua epístola Tu me acusas, Amigo, de mau gosto (I, 155-157).
74 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
80
É interessante comparar esta descrição com a de Castilho, na nota apensa à Primavera (pp.
147-148), que citámos no começo deste ensaio:
A morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está formosa-
mente situada, longe do bulício, como bem cabia à sua índole pacífica e génio estudioso, é
um templo de Musas, religiosamente vedado aos olhos e vozes dos profanos, isto é, dos maus
e ignorantes, únicos de todos os entes para quem sua porta e ânimo não eram hospedeiros.
Por aquelas salas, gravemente ataviadas à laia dos nossos antigos, de sedas e arrases,
alcatifas, tremós, espaldares, e soberbos quadros dos mais peregrinos pintores, reina o silên-
cio, e uma lembrança dos antigos e abundantes tempos de nossos avós...
Era a biblioteca o íntimo retiro deste ermitão do Parnaso, fugida para longe das casas,
posto que tão quietas, e frescamente assentada em meio de muitas sombras, verduras e
aromas de seu jardim, hortas e pomares.
Grandíssima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos, e entre os
quais se estremavam no número e riqueza os Gregos, os Romanos, e os antigos Portugueses, ali
estavam juntos, entre o sussurro estudioso das ramas e os cantares descuidosos dos pássaros.
Um Apolo de mármore com a sua lira em punho parecia estar-se mui bem cabido e
contente no meio daquele seu alcáçar, cercado de tantos seus cultores, servido por tão vene-
rando Sacerdote.
81
I, 177-180.
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 75
O cultivo das Musas é o seu deleite; na companhia delas deseja terminar os seus
dias82. A outra fonte de prazer são os livros, aos quais endereça uma bela epístola83,
reveladora das suas preferências literárias: autores gregos, latinos, portugueses
e ainda outros, «de Nações várias, de diferentes Línguas», enchem as estantes.
Sente-se ainda a devoção do bibliófilo naquela ode a um amigo84 em que o carpe
diem horaciano se transmuda na saudade de uma despedida dos livros, visionada
com a precisão do profissional e o requinte estético do amador de coisas belas:
82
Epístolas Nestes últimos dias, que me restam (I, 247.-249) e Eu quero ser só vosso, ó Musas; quero (I, 265).
83
Salve, ó meus Livros, Livros escolhidos (I, 285-288).
O tempo escapa, ó Cordes, vão com ele (IIs, 175-176). O final da epístola citada na nota anterior
84
O poeta vive «em plácido retiro», todo entregue ao estudo dos Celtas. É ele
mesmo quem no-lo diz, numa epístola 85 a um amigo, conterrâneo e colega de
Direito, em que, depois de enumerar grande parte dos seus trabalhos, relembra a
mocidade e a avidez de saber de ambos, num quadro desalentado, em que perpassa
o esplendor das cerimónias universitárias coimbrãs:
......................................... S’ambos
quiséssemos conter nossos desejos,
........................................................
do pátrio Doiro as Thyoneas ribas
não deixáramos ambos; nem nas margens,
que as águas banham do ancião Mondego
iríamos fazer dura campanha;
nem borla verde a mim, a ti vermelha,
por fim de mil fadigas e cuidados,
sobre a lassa cabeça pesaria,
que nem nos faz melhores, nem mais sábios,
nem mais sadios; mas o luxo altivo
entrou em tudo; até entrou nas Letras.
85
Epístola Perguntas-me que faço: vivo agora (I, 151-154). Cf. Epístola Aléxis, tu querias, que eu cantasse
(I, 133-135); odes Quão diversos não são, ilustre Cordes (II, 135-136), Tu, Senhor, de mim te queixas (II, 250-
-255).
86
Que cuidas tu, que eu rogo aos altos Deuses (II, 113-115). Cf. a epístola De quantos modos, meu Barroso
amigo (I, 93-94).
3. RELENDO O POETA ELPINO DURIENSE 77
Um lugar à parte ocupam as evocações da sua cidade natal, de que não nos
ocuparemos aqui, porque o faremos noutro lugar87. Notemos somente que a ode
«Em Louvor da Cidade do Porto, pátria do Autor» é um dos melhores exemplos
de combinação de modelos e formas clássicas com motivos da actualidade. Passa
nessas estrofes, apesar da sua severa contenção formal, o frémito de vida que
animava as actividades ribeirinhas da cidade em plena expansão comercial,
fomentada pelo Tratado de Methwen e pelas medidas de protecção ao vinho do
Porto, tomadas pelo Marquês de Pombal. Na outra ode, «Em louvor das Dórides»,
a ficção classicista mantém-se todo o tempo, revelando, aliás, uma capacidade
mitopoiética notável, sobretudo na estrofe em que se personificam os afluentes do
Douro.
Estamos tão longe do pregoeiro entusiasta do «famoso Barão de Verulâmio»
(Bacon), do «sábio Locke», do «douto Malebranche», do «excelso Newton»88, como
do apreciador das «Quintilhas saborosas / do claro Tolentino», que colocava
acima de todos os poetas do seu século89, do crítico severo dos cáusticos, que lhe
tiravam o seu precioso tempo90, como do amigo que chora sentidamente a morte
de Almeno91 ou convida os que estima a deleitarem-se com ele na leitura dos seus
autores predilectos92. Dentro deste círculo de interesses, em que o passado clas-
sicista e arcádico alterna com o deslumbramento perante as novas perspectivas
culturais, é que se tornou possível a fusão de dois mundos, aliás não irreconciliá-
veis, cuja mais nítida expressão é talvez este passo da epístola «Sobre os objectos
dignos da Poesia» (I, 58-62), em que introduz o elogio de Locke e Clarke através
de um símile mitológico:
87
Vide supra, «Um Elogio Setecentista da Cidade do Porto».
88
Expressões tiradas da epístola Em quanto cem Poetas, caro Amigo (I, 38-40).
89
Ode Sacudamos da frente esta velhice ( II, 226). A apreciação crítica de sábios e poetas contem-
porâneos pode ler-se na epístola Eu estendo, Nogueira, pelo mundo (III, 17-21).
90
Epístolas Acusais-me, Senhor, que me encastelo (I, 232-233), Hei-de contar-te, Amigo, um caso triste
(I, 241-243 ), Amigo, s’eu pudesse ter sobejo (I, 244-246). Odes Tu, Senhor, de mim te queixas (II, 250-255), Ó
Grosfo, já estou cansado (II, 264-268).
91
E.g.: Odes Devido à lei fatal da natureza (II, 147), Quando o prazo fatal, que os Céus marcaram (II,
149-150).
92
E.g.: Epístola Quanto, Fileno amigo, com a idade (I, 91-92).
78 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
O preceito horaciano do utile dulci era bem conhecido de Alcipe, que traduziu
toda a Arte Poética durante o exílio em Inglaterra, no mesmo período da sua vida
em que se dedicava também a verter poetas ingleses e alemães. É assim que ela
exprime os passos mais relevantes sobre a dupla finalidade aí atribuída à poesia1:
É fora do nosso propósito renovar aqui a discussão sobre um tema que atraves-
sou séculos, a despeito da conhecida advertência de Aristóteles, de que «nada há
de comum entre Homero e Empédocles, a não ser o metro»2. O certo é que, entre
muitos poemas que tinham tentado conciliar as duas finalidades, e que, na sua
maioria, se situam no que hoje se chama paraliteratura, conta uma obra-prima,
*
Publicado em Boletim da Faculdade de Direito (1983), 827-852 (Miscelânea Paulo Merêa e Guilherme
Braga da Cruz); Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional –
Casa da Moeda (1988, 22012), 193-215.
1
Obras Poéticas (Lisboa, 1844), 6 vols. (de onde serão feitas todas as citações de escritos em verso,
embora modernizando a ortografia). O texto referido é do tomo V, p. 45, e corresponde aos versos
333-334 e 343-344 do original latino. Sobre a origem helenística, provavelmente de Neoptólemo de
Paros, desta doutrina, vide C. O. Brink, Horace on Poetry. The ‘Ars Poetica’ (Cambridge, 1971), pp. 352-
353. Note-se que as versões setecentistas portuguesas da Arte Poética são em número considerável,
como pode ver-se no artigo “Traduções”, de Luís de Sousa Rebelo, para o Dicionário da Literatura, dir.
Jacinto do Prado Coelho (Porto, 31973).
2
Poética 1447b.
80 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
não a mais admirável, mas a mais perfeita das que Virgílio compôs: as Geórgicas.
E que o séc. XVIII, com a sua sede de saber e de desvendar os segredos da Natureza,
tinha esse modelo especialmente em conta, quando se multiplicava em poemas
didácticos. Mesmo assim, ainda era possível ouvir, em França, um desabafo destes,
saído da pena de um tradutor de ambos os poemas maiores do Mantuano3:
Quem assim falava, em 1780, tentou, vinte anos depois, ensinar e descrever o
pitoresco da Natureza em L’Homme des champs ou les Géorgiques Françaises, e foi muito
apreciado e influente na sua época, a ponto de ser possível pronunciar sobre ele
hipérboles como esta:
É neste contexto – a que muitas outras obras haveria a juntar, como as British
Georgics de Grahame, o Botanical Garden de Erasmo Darwin (traduzido em portu-
guês pelo Dr. Vicente Pedro Nolasco da Cunha), A Agricultura de Rosset (de que
Bocage verteu os cinco primeiros cantos), o Consórcio das Flores de La Croix (tam-
bém traduzido por Bocage) e tantas mais – que se situam as Recreações Botânicas
da Marquesa de Alorna. Já Hernâni Cidade escreveu a este propósito que o poema
«mostra-a tomada dos interesses mentais dominantes na Europa»5. Aliás, a autora
3
Jacques Delille (1738-1813), que aos trinta e um anos ganhou fama com a versão das Geórgicas, e
em 1802 publicou a da Eneida, que foram êxitos literários na época. O trecho citado provém do prólogo
ao seu poema Les Jardins, na tradução de Bocage (Opera Omnia, dir. Hernâni Cidade [Lisboa, 1973], tomo
VI, p. 13; é nesta edição que se basearão todas as transcrições de Bocage). Sobre a moda das Geórgicas
na segunda metade do séc. XVIII, veja-se R. Pichon, Virgile. Oeuvres Complètes (Paris, 31936), p. 684.
4
Tradução de Bocage, Opera Omnia, tomo VI, p. 164.
5
Lições de Literatura e Cultura Portuguesas, vol. II (Coimbra, 51968), p. 413.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 81
conhecera pessoalmente Delille, por ocasião das suas viagens pelo Sul da França6,
e toma-o em parte como modelo7.
Alcipe desejava atrair as senhoras portuguesas, a quem dedica a obra (embora
os três primeiros cantos tenham como destinatário imediato cada um uma filha)
ao estudo da Natureza e das suas imensas riquezas. Pretende dar-lhes a conhecer
o sistema de classificação das plantas por Lineu e levá-las a herborizar, como os
dois grandes sábios nacionais, Brotero e Correa da Serra. A propósito do primeiro,
alude à organização do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra8:
6
Obras Poéticas, «Noticia biográfica», tomo I, p. XXV. Cf. também Hernâni Cidade, A Marquesa de
Alorna (Porto, s.a.), p. 31.
7
Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, p. 413. Na edição das Obras
Poéticas de Alcipe, tomo IV, Carlos Manuel Soyé aponta, na nota 9 da p. 148, um passo do Canto III (p.
58), a que dá por modelo o Abade Delille.
8
Obras Poéticas, IV, p. 8. À data da composição do poema (Abril de 1813), Brotero, jubilado havia
dois anos, era, na realidade, director do Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, segundo os dados
de Abílio Fernandes no artigo respetivo da Enciclopédia Verbo. Sendo assim, põem-se duas hipóteses:
ou que Alcipe, no seu exilio em Londres, não tivesse ainda conhecimento da mudança do cientista
para Lisboa, ou que essa parte das Recreações tenha sido composta antes de 1811. A primeira solução
afigura-se-nos mais provável. Note-se, de passagem, que a célebre Flora Lusitana foi publicada em
1804, e a Exposição sobre a decadência do ensino da Botânica é de 1816. Como é sabido, foi Vandelli,
com outros italianos, o encarregado do traçado do Jardim Botânico pelo Marquês de Pombal (cf.
Maximino Correa, «A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra e os Italianos», Estudos Italia-
nos em Portugal, 13 (1954), 3-25, especialmente pp. 12-15), mas o seu acabamento só se fez no segundo
quartel do séc. XIX. É a partir de 1791 que se situa a grande actividade de Brotero, como encarregado
da cadeira de Botânica e Agricultura. Cf. J. Ferreira Gomes, «A Reforma Pombalina da Universidade»,
Revista Portuguesa de Pedagogia, 6 (1972), 25-63, especialmente pp. 50-51 e nota 3.
9
Obras Poéticas, VI, p. 9.
82 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
10
Obras Poéticas, IV, p. 12.
11
Obras Poéticas, I, pp. XXXIII-XXXIV.
12
Obras Poéticas, IV, p. 63.
13
Obras Poéticas, IV, p. 64.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 83
Mas noutros passos a alusão é bem clara, sobretudo se fala do carvalho, nome
por que os poetas setecentistas costumavam designar o Marquês de Pombal14. Eis
uma amostra15:
Essas árvores, «do triunfo símbolo», levam-na a evocar os heróis gregos, como
Teseu, Aquiles (com alusão ao Canto XXIV da Ilídia e a Mémnon), os Jogos Olímpicos
(sem esquecer a estátua de Fídias, no templo de Zeus Olímpico). A mesma palavra-
-chave a transporta subitamente à actualidade, numa longa apóstrofe a Sir Arthur
Wellesley e sua glória, ensombrada embora pela Convenção de Sintra, da qual, aliás,
o não culpa. Este elogio do futuro Duque de Wellington e vencedor de Napoleão, a
cuja glorificação há-de dedicar uma Ode17, traz consigo uma recordação pungente,
14
«Carvalho» é o título da Écloga IV de Reis Quita. É curioso notar a frequência com que os Árcades,
e mesmo os Dissidentes, festejavam o estadista em verso. Assim, o mesmo Reis Quita consagrou-lhe
também as Éclogas V e VI, a Ode IV e os Sonetos IV, V, VI, VII e VIII. Cruz e Silva escreveu, em honra do
Marquês, o Idílio XVI, o Ditirambo VIII e as Odes IV, V, VI, VII e VIII. Correia Garção celebrou, na Ode
XXXI, a elevação de Carvalho a Conde de Oeiras. Fora da Arcádia, temos um exemplo em José Anastácio
da Cunha (p. 79 da edição de Hernâni Cidade, Coimbra, 1930), outro em Filinto Elísio («Ode ao Grande
Marquês de Pombal», publicada em O Investigador Português em Inglaterra, vol. VIII, n.º 29, pp. 24-27).
15
Obras Poéticas, IV, p. 44. Mais adiante, p. 99, reencarece:
Os dezoito anos de Chelas não esqueciam facilmente, mesmo quando os perseguidores tinham
passado a ser Pina Manique e outros ...
16
Obras Poéticas, IV, p. 111.
17
Obras Poéticas, II, pp. 89-91 (a propósito de uma Ode de José Agostinho de Macedo a Lord Welling-
ton).
84 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
No final das Recreações Botânicas, não é o «Luso Turno», mas a visão do Frígio
Eneias que lhe serve de comparação, quando a sombra de Heitor lhe aparece no
momento em que Tróia se arrasava19. É esse sonho que a leva a reagir, e a terminar
o poema com a jura, perante os deuses, de vingar o herói, pois não passarão dois
anos antes que trema / ou caia do usurpado trono o monstro / que da miséria humana se
alimenta. Caso raro, a História deu-lhe razão...
Das diligências e do êxito na reabilitação do 3.º Marquês de Alorna dão teste-
munho as cartas de Alcipe ultimamente publicadas20.
Este exemplo já permite fazer uma ideia da agilidade com que a autora extra-
vasa da aridez do sistema de classificação das plantas para os problemas, gerais
ou pessoais, que a preocupam. Também o Canto V terminava com uma após-
trofe (trazida pela referência à nogueira) a Ricardo Raimundo Nogueira, um dos
membros da Regência, a quem exorta a governar com mais doçura e a escolher o
caminho da verdade e da pacificação21. No Canto II, a referência ao alho levara-a
ao Epodo III de Horácio e à túnica de Nessos, e daí à resistência ibérica às invasões
francesas22. Numa tonalidade mais pessoal, o Canto I conclui com a descrição da
sua residência no Gloucestershire23, em que se reflecte o gosto pela Natureza,
que Thomson (de quem traduziu livremente a Primavera) pusera na moda. Essa
descrição, porém, aviva-lhe as saudades de Lisboa, onde este calor vital que sinto /
teve a cálida origem. Outros enquadramentos naturais adornam o poema: a vista
18
Obras Poéticas, II, pp. 92-94. Alcipe consagrou a este acontecimento uma Ode imitada da XXI
do Livro I de Horácio (Obras Poéticas, II, pp. 122-123).
19
Obras Poéticas, IV, p. 115. Cf. Eneida II.268-297.
20
Sobre as condições em que o Marquês foi obrigado a combater nas campanhas napoleónicas,
veja-se Aníbal Pinto de Castro, «Uma carta inédita da Marquesa de Alorna», Revista da História Lite-
rária de Portugal, 4 (1975), 405-412, e bibliografia aí citada. A carta em questão, datada de 1822, é de
grande interesse. Muito elucidativa também, porque escrita sob a pressão dos acontecimentos, é a
carta ao Conde da Barca, publicada por A. Luís Vaz, A Marquesa de Alorna. Cartas do Exílio em Londres
(1804-1814) (Braga, 1974), p. 114, que começa assim: «Finalmente conseguiu Bonaparte os desejos e
desígnios malévolos com que arrancou de Portugal o mais fiel e honrado dos homens».
21
Obras Poéticas, IV, p. 101.
22
Obras Poéticas, IV, pp. 39-40. Cf. também p. 141, nota 27.
23
Obras Poéticas, IV, p. 26. A própria autora esclarece em nota (p. 132): «Na confluência da Vaga
e do Saverno estava situada a casa de Wye-Cottage, onde eu compunha as Recreações Botânicas».
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 85
24
Obras Poéticas, IV, p. 97.
25
Obras Poéticas, IV, pp. 41-43.
26
Que estas lembranças eram bem vivas, prova-o a introdução da referência à famosa fonte na
imitação da Primavera de Thomson (Obras Poéticas, III, p. 24).
27
Obras Poéticas, IV, p. 43. Também no Canto V, p. 99, há uma alocução aos campinos de Almei-
rim, considerados exemplos daquela simplicidade de costumes que vosso valor mantém, e a glória Lusa.
28
Obras Poéticas, IV, p. 89.
29
Obras Poéticas, IV, pp. 86-87.
30
Obras Poéticas, IV, p. 79.
31
Para mais pormenores, veja-se A. Maiuri, Pompei (Roma, 1949), pp. 7-9.
32
O Jardim Botânico de Darwin. Poema com notas filosóficas traduzido do inglês por Vicente Pedro
Nolasco da Cunha (Lisboa, 1803). Canto II, vv. 396-403.
86 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Logo adiante, nos versos 412 seqq., se passa à cerâmica, nesta inspirada, de
Wedgewood:
Acerca destes textos, existe uma elucidativa nota, na p. 80: «Etrúria pode
disputar à China a antiguidade das suas artes [...]. O carácter peculiar destes
vasos de terra consistem [sic] na admirável beleza, simplicidade, e diversidade de
formas que contêm os melhores modelos para os artistas de hoje, em uma espécie
de pintura encáustica não vidrada, que no tempo mesmo de Plínio era contada
entre as artes perdidas d’antiguidade, mas que foi restaurada ultimamente
pelo engenho, e indústria de Mr. Wedgewood. Supõe-se que as manufacturas
principais eram junto a Nola ao pé do Vesúvio, por quanto naquela vizinhança
se acharam as maiores quantidades de vasos antigos, e diz-se que eles influem
aparentemente sobre o gosto geral dos habitantes; de maneira que estrangeiros
vêm a Nápoles, ficam surpresos de ver a diversidade, e elegância mesmo dos
vasos mais ordinários do uso comum. Vede os discursos preliminares de Han-
carville da colecção magnífica de vasos de Etrúria, publicada por Guilherme
Hamilton».
Ora a Collection of Etruscan, Greek and Roman Antiquities from the Cabinet of the
Honourable Hamilton, publicada por D’Hancarville em quatro volumes, em 1766 e
1767, foi a primeira grande obra sobre vasos gregos. A colecção de Hamilton veio
a ser adquirida pelo Parlamento inglês, facto de onde resultou ter sido o British
Museum a primeira galeria de arte a revelar ao público, em 1772, a beleza dos
vasos gregos33.
Como é sabido, os vasos gregos foram durante muito tempo julgados, e, como
tal, denominados etruscos34. Além disso, era frequente dizer-se que tinham sido
comprados nas escavações de Herculano e Pompeios (assim sucedeu, por exemplo,
com os da Colecção do Duque de Palmela, que foram trazidos por Dom Manuel
33
Cf. R. M. Cook, Greek Painted Pottery (London, 1960), p. 292, onde também figura a informação
sobre as tentativas de criar um estilo baseado neste, por Wedgewood.
34
No nosso País, só por volta de 1905 se abandonou a terminologia errada, como mostrámos no
nosso estudo Greek Vases in Portugal (Coimbra, 1962), p. 8.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 87
35
Obras Poéticas, IV, respectivamente pp. 62 e 150.
36
Obras Poéticas, IV, pp. 35-36.
88 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
37
São bem conhecidos os eventos principais: Atacado pelos exércitos napoleónicos, Fernando II
refugia-se na Sicília, enquanto na cidade se instaura a República Partenopeia; em 1806, o monarca
é substituído por José Bonaparte, e depois por Murat, em 1808. Só em 1816 virá a restauração da
independência, sob o nome de Reino das Duas Sicílias.
38
Respectivamente, Estácio, Silvas IV.4.51-55 e Plínio-o-Moço II.7.8.
39
Ossa eius Neapolim translata sunt, tumuloque condita, qui est Via Puteolana intra lapidem secundum
(«os seus ossos foram transladados para Nápoles, e colocados num túmulo, que fica na estrada de
Pozzuoli, antes do segundo marco miliário») – escreve Donato, que ainda acrescenta o tão famoso
como modesto dístico em que o poeta teria resumido a sua vida e obra:
40
Dados colhidos em A. Maiuri, I Campi Flegrei. Dal Sepolcro di Virgílio all’ Antro di Cuma (Roma,
1949), pp. 9-13.
41
Idem, ibidem, pp. 12-13. Maiuri esclarece que a forma do sepulcro é a de um columbário romano
de família, de obra cimentícia; com revestimento reticulado, da época de Augusto, mas não há «nenhum
vestígio sobre o pavimento ou à volta das paredes de outro lóculo que fosse destinado a conter a
urna do poeta».
42
Cap. VIII, pp. 144-185.
90 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Vista exterior e interior do túmulo de Virgílio (gravuras do séc. XVIII)
Ora o texto de Alcipe fala, como vimos, de um sombrio objecto... / em fúnebre basalto
levantado, e de um verdejante círculo, dentro do qual se situa o túmulo, que cercam
/ de funérea Verbena as verdes folhas, e da proximidade das rochas do Pausilipo. Estaria
a autora a fazer uma descrição de visu, que como tal teria também um interesse
histórico, a contrapor às informações algo distintas que acabámos de ver? Em vão
procurámos nos seus biógrafos a referência, em meio das suas muitas viagens,
a uma ida a Itália. Apenas a indicação de que, em 1803, o Regente lhe mandara
passar cartas aos nossos representantes nas capitais aonde se dirigisse – Madrid,
Paris, Berlim, Viena e Nápoles43. Nada confirma, porém, que este itinerário tenha
sido cumprido. Pelo contrário, sabe-se que, estando em Madrid, se dirige, em 1804,
para a Corunha, onde embarca para Inglaterra.
Nestas condições, e embora não seja de excluir a possibilidade de qual-
quer informação oral44, parece poder-se concluir que o breve descritivo das
43
Vide Hernâni Cidade, Marquesa de Alorna. Inéditos. Cartas e Outros Escritos (Lisboa, 1941), pp.
XXXV-XXXVI, que informa em nota que os originais desses documentos se encontram no Arquivo
da Casa de S. Domingos de Benfica (hoje transferido para a Torre do Tombo, segundo informação do
Doutor Aníbal de Castro).
44
Sendo as Recreações Botânicas datadas de Abril de 1813, uma fonte provável de informação
poderia ser o então Conde de Palmela, que nascera em Turim, iniciara a carreira em Roma, e chegara
a Inglaterra em Janeiro desse ano, e desde logo estabelecera com Alcipe as melhores relações. Outra
hipótese a considerar, a de um modelo literário em Thomson, não se confirma, segundo informação
que agradecemos à Doutora Maria Irene Sousa Santos. Tão-pouco a origem se pode procurar na
Italienische Reise de Goethe, como teve a amabilidade de verificar, a nosso pedido, o Doutor Ludwig
Scheidl.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 91
Neste poema todo voltado para o entusiasmo pela ciência de Lineu, a Anti-
guidade não deixa de estar presente a cada passo. Seria difícil, de resto, que
um poeta setecentista, mesmo que rotulado de pré-romântico, se esquecesse
das Metamorfoses de Ovídio ao falar de certas plantas. Efectivamente, ora em
breves referências (Narciso, na p. 39, Píramo e Tisbe, Átis e Cipreste na p. 100),
ora em desenvolvido episódio (Dafne, nas pp. 44-45; Leucótoe e Clície, nas pp.
92-93)45, os adornos mitológicos não faltam. Um outro mito, também narrado
nas Metamorfoses (XIV.623-770), o de Pomona e Vertumno, aparece, no Canto I,
ligado aos Jardins de Alcínoo, localizados, como era tradição antiga, na ilha de
Corcira46:
Em nota, Alcipe esclarece melhor o episódio, sem repetir o reconhece que não
condiz com a narrativa grega (mas mantendo a forma errada no nome da princesa
feace), o que leva a supor que a tradutora de um extenso trecho da Ilíada47 não
conhecia tão bem a Odisseia...
Outro jardim famoso, o das Hespérides, é mencionado no Canto IV48:
45
Respectivamente, Metamorfoses III.339-510; IV.55-166; V.47-73; X.106-142; I.452-567; IV.190-270.
46
Obras Poéticas, IV, p. 24. Também Rosset, em A Agricultura, alude aos Jardins de Alcínoo (cf. a
tradução de Bocage, Opera Omnia, VI, p. 256).
47
Alcipe traduziu, em oitava rima, os primeiros 506 versos da Ilíada (Obras Poéticas, III, pp. 233-274).
48
Obras Poéticas, IV, p. 80.
92 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
49
Pelo menos, do tempo de Antífanes (séc. IV a. C.). Sobre o assunto vide M. L. West, Hesiod:
Theogony (Oxford, 1966), p. 228.
50
Respectivamente, p. 155 e 230 das traduções de Bocage, Opera Omnia, VI. Também O Jardim
Botânico de Darwin se lhe refere (tradução de Nolasco da Cunha, Canto I, vv. 452-457).
51
De Horácio vem a metamorfose em cisne, o Bósforo, a Getúlia, e outros lugares distantes, o
Hebro e o Reno (no original, o Ibero e o Ródano).
52
Lusíadas I.14. Segundo a genealogia estabelecida na Nota biográfica anteposta às Obras Poéticas,
D. Leonor de Almeida descendia do primeiro Vice-Rei da Índia.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 93
Esta nota pessoal – mais ou menos alongada – é, aliás, uma constante no terminar
dos diversos cantos53.
Muitas mais reminiscências clássicas poderiam apontar-se neste poema todo
votado às novidades científicas do Século das Luzes. Ficaria, no entanto, muito
incompleta a ideia que dele faríamos, se não mencionássemos dois episódios de
proveniência diferente – precisamente aqueles dois que o Doutor Caetano Maria
Ferreira da Silva Beirão, que, a pedido das filhas da Marquesa, comentou o saber
botânico das Recreações, achou mais notáveis.
Pertence um deles ao Canto II, e começa assim54:
O episódio [...] pela sua novidade é um dos mais belos tópicos desta Obra.
Fazer do espectro solar, representado no arco-íris, a estrada que, baixando
dos Céus à terra, é trilhada pelo Génio Botânico que inflamara Lineu; e isto
numas Recreações Botânicas; é com efeito tirar das Ciências Naturais todo o
partido poético que é possível.
53
Com excepção do Canto V, que acaba com uma breve parénese às filhas, a propósito da Sensitiva.
54
Obras Poéticas, IV, p. 46.
55
Obras Poéticas, IV, p. 143, nota 38.
94 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
56
Obras Poéticas, II, pp. 29-33. O passo citado é da p. 30.
57
Marquesa de Alorna. Inéditos. Cartas e Outros Escritos, p. XXI. A carta de Alcipe em que ela narra
o episódio figura no mesmo livro, pp. 51-53.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 95
O outro trecho que despertou o entusiasmo do Doutor Silva Beirão foi o episó-
dio de Viriato e Armínia, contado a propósito do gerânio, a planta simbólica da
simplicidade e justiça 58, sobre o qual escreveu o seguinte59:
58
Pelo menos, são os atributos que lhe supõe a mesma Epístola que citámos na nota 56, ao dizer:
Oferece a Armínia sua alma heróica e mão. Esta, porém, põe em primeiro lugar
a devoção à causa lusitana, e só quando
O Lusitano parte para a guerra. Armínia não fica a gemer saudosa, que amor
heróico é mudo e firme. Planta um gerânio, consagrado aos Numes, para que por ele
se exprima a protecção dos deuses. As flores, cuidadosamente tratadas, crescem
e prosperam. Viriato triunfa... Mas eis que um dia os céus sobre o gerânio enviam
densa névoa: / as flores morrem; toda a folha encrespa, / pela saraiva espessa mal-tratada.
Apenas Armínia compreende o presságio. Viriato, sem temor, aceita a paz que os
três embaixadores lhe propõem. Alta noite, é a traição. A pátria geme, os Deuses acu-
sando... Mas os Céus não ouvem, e a dor de Armínia, que mil vezes morre / sem cessar
de durar, excede os tormentos infernais. Então a história, até aqui desenvolvida
em tons românticos, termina de súbito numa comparação mítica:
Estes diversos exemplos, que seleccionámos ao longo dos seis cantos do poema,
demonstram que, embora ele seja fundamentalmente um extenso e rigoroso catá-
logo de espécies botânicas – com toda a monotonia potencial em tal género – e,
como escreveu Hernâni Cidade, aproveite «tesouros de valor bem pouco poético»62,
conseguiu, no entanto, criar uma certa variedade, recorrendo à inserção de
62
A Marquesa de Alorna, p. 61.
4. VTILE DVLCI NAS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA 97
Na época das Luzes, todos o sabemos, as ciências e as artes não eram ainda
antagónicas.
Prova disso é a verdadeira moda das Geórgicas de Virgílio, que surgiu na segunda
metade do século XVIII com as Geórgicas inglesas de Graham, o Jardim Botânico do
médico e naturalista Erasmus Darwin, A Agricultura de Rosset, o Consórcio das Flores
de La Croix, As Plantas de Castel, Os Jardins de Delille – estes quatro últimos vertidos
parcial ou totalmente por Bocage, o mesmo Bocage que ousou dizer, no prólogo
da sua tradução de Castel, sobre este tão celebrado vate no seu tempo, que era
Por sua vez, o já referido poema de Erasmus Darwin foi traduzido por Vicente
Pedro Nolasco da Cunha.
Estes exemplos mostram como tal gosto entrou cedo no nosso País. E não só
em traduções como em obras nacionais. Já Hernâni Cidade (1945: 132) notou que
o interesse pelos progressos da Ciência e pela capacidade do ser humano em geral
aparecem também em José Agostinho de Macedo e José Anastácio da Cunha,
e salientou o especial significado de um ensaio como o de António Ribeiro dos
Santos “Sobre a antiguidade da observação dos astros, da bússola e de outros ins-
trumentos ao uso da navegação”. Este mesmo erudito setecentista, na sua veste
arcádica de Elpino Duriense, compôs longas epístolas em verso sobre temas como
“O Génio da Matemática” e “Os estudos da Natureza” – ambas dirigidas a Francisco
de Borgia Garção Stockler.1
*
Publicado em A Arte da Cultura (Homenagem a Yvette Centeno). Lisboa, Edições Colibri (2011), 555-565.
1
Mais exemplos podem ver-se em Rocha Pereira (2008: 127-148).
100 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
O mesmo Bocage (1969, vol. III: 67-70) celebrou em oitavas a subida de Lunardi
em balão aerostático. Algo de semelhante fez a Marquesa de Alorna (1844, vol.
II: 180), ao compor um soneto “A Robertson, subindo em um balão e descendo
no pára-quedas”. Dele entendemos salientar a quadra inicial, que formula uma
comparação mitológica:2
e o terceto final, que contém uma exortação aos seus jovens contemporâneos:
O gosto de Alcipe pela ciência, pelo estudo, pela filosofia – para já não falar
da poesia – vinha de longe, como sabemos, porquanto está bem documentado
pelas cartas ao pai nos seus tempos de clausura em Chelas, cartas essas publi-
cadas por Hernâni Cidade em 1941. Lembrem-se, entre outros exemplos nelas
contidos, a referência à sua discussão com os frades a propósito do aparecimento
de dois cometas, que eles queriam interpretar através de Santo Agostinho, e a
defesa do verso solto contra o rimado (Cidade: 1941b). Novos dados surgiram a
este respeito o ano passado com a edição do volume, por Vanda Anastácio, da
correspondência com Tirse (D. Teresa de Mello Breyner), quando a poetisa estava
ainda em Chelas. Em várias dessas cartas, as duas jovens mostram-se por vezes
em desacordo acerca da leitura de Rousseau, de Montesquieu, ou até simples-
mente sobre os méritos de António Dinis da Cruz e Silva (Anastácio, 2007: 112-144
e 154).
Os anos passaram. Em 1800, Alcipe está melancólica na sua casa de Almeirim,
e escreve uma longa epístola em verso, em resposta ao seu genro, o Conde da Ega,
em que à sensibilidade pré-romântica a cada passo aflorada, se junta o interesse
pela natureza. E afirma (27-30):
2
As citações desta edição serão feitas com a grafia actualizada. Ao contrário de outros sonetos
do mesmo grupo, ou seja, compostos depois da saída de Chelas, este não está datado. Cidade (1941a:
137) reprodu-lo na sua antologia.
5. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO 101
3
Note-se que Alcipe dá crédito à fábula segundo a qual Atenas teria sido fundada pelo rei
egípcio Cécrops.
4
Não muito longe desta, quanto à mundividência de Alcipe, anda a sua “Epístola a Godefredo”, ou
seja, ao Conde de Sabugal, D. Manuel de Mascarenhas, defensor da tradição escolástica, em oposição
ao estudo das Ciências Naturais. Cidade (1941a: XXX-XXXII) mostrou a existência do plano numa carta
à sobrinha Dona Laura da Câmara e noutra à filha Frederica. Ver também Esteves Pereira (2003: 373-
-385).
5
Canto I. 272-284. A localização da paisagem é da autoria da própria Alcipe, pp. 131-132, que
termina dizendo que era aí que “eu compunha as Recreações Botânicas”.
6
Canto V. 356-363. O gosto pelas belezas naturais aflora em muitos outros passos do poema,
desde os homéricos Jardins de Alcínoo (também presentes nas Geórgicas), aos de Schönbrunn, numa
cena em que brilha a magnanimidade da imperatriz Maria Teresa de Áustria (I.199-211 e II.302-342,
respectivamente).
7
O esclarecimento quanto às eleições é dado pela própria Alcipe, p. 89; a exemplificação rela-
tiva à Perpétua pertence ao comentário do Doutor Caetano Maria Ferreira da Silva Beirão, ibidem,
p. 163.
5. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO 103
Daí passa ao seu caso especial de exilada “sem desígnio” (49) e principia a
exaltar Lineu, cuja classificação se expandirá nesta obra, até descrever todas as
classes. E prossegue (64-65):
8
Sobre a precisão da análise das diversas plantas e sobre o valor terapêutico de muitas, veja-
-se Pina (1953: 7-51).
5. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO 105
O deus Apolo, apaixonado por Dafne, persegue “a altiva ninfa”, que tenta
esquivar-se e pede ela mesma aos deuses que a transformem em rocha ou tronco.
Operada a metamorfose em Loureiro, logo Apolo decide (II.416-417):
Para este mito etiológico havia, com muitos pormenores idênticos, o modelo das
Metamorfoses de Ovídio (I.452-567), onde o Sulmonense vai ao ponto de acrescentar
que os ramos dessas árvores serão usados na cerimónia do triunfo e ornamentam
a porta da casa de Augusto.
Muitos outros mitos figuram apenas em breves alusões, bem conhecidos que
eram dos leitores das Metamorfoses, como o de Jacinto (II.229-232), de Narciso
(II.229-232), de Afrodite e Adónis (III.89-98), de Píramo e Tisbe (V.437-440), de
Átis (V.441-444), de Ciparisso (V.445-448), de Perseu e Andrómeda (VI.22-29). Com
maior ou menor brevidade, a eles se faz alusão a propósito das espécies vegetais
em análise. Enumerá-los todos seria infindável, além de inútil.
Diferente, porém, é o caso da origem do Gerânio, para a qual a Marquesa de
Alorna afeiçoa uma nova lenda de Viriato, em que cerca de duzentos versos são
consagrados à paixão do chefe dos Lusitanos por Armínia (IV.41-222), que lhe põe
como condição para corresponder ao seu amor (IV.81-83),
9
Conforme se lê na Notícia Biográfica a Alorna (1844: vol I, XXXIII-XXXIV): “Nessa época é que a
Condessa escreveu o poema das Recreações Botânicas, composição sua original, onde reluzem claramente
os sentimentos da autora, como boa Portuguesa. Nele se desafogam todas as suas mágoas, achando
em várias plantas raras analogias com as propriedades dos seus perseguidores e com a inocência dos
seus parentes processados. E por esta razão não consentiu que se imprimisse, durante a sua vida”.
5. AS RECREAÇÕES BOTÂNICAS DA MARQUESA DE ALORNA – ENTRE A CIÊNCIA E O MITO 107
10
Tanto quanto pudemos saber, Alcipe não terá conhecido de visu o monumento em causa,
conforme referimos no nosso estudo citado anteriormente.
11
Eneida II.268-297.
108 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Bibliografia
E steves P ereira , José (2003), “Alcipe e a ideia de Natureza no século XVIII”, in Aníbal de
Castro et alii, Alcipe e as Luzes, Lisboa, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna e
Edições Colibri, pp. 373-385.
Rocha Pereira, Maria Helena da (1988, 22012), Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia
portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pp. 203-205.
______ (2008), Temas clássicos na poesia portuguesa, Lisboa, Editorial Verbo, [2.ª edição
revista; 11972].
Pina, Luís de (1953), “A Botânica na Poesia da Marquesa de Alorna”, Studium Generale, vol.
I, 1-2, pp. 7-51.
(Página deixada propositadamente em branco)
6. NOTAS SOBRE TRÊS SONETOS DE BOCAGE *1
*1
Publicado em Boletim de Filologia 28 (1983) 253-258 (Miscelânea Rodrigues Lapa); Novos Ensaios sobre
Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 217-223.
112 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
e XXIV. A proximidade foi desfeita por Inocêncio, que colocou o terceiro, talvez
devido ao teor do seu começo, entre os «Sonetos eróticos»1, e o primeiro e o
segundo entre os «morais e devotos»2.
Nas edições de Hernâni Cidade, a primeira composição está enquadrada na
série «O poeta perante o mundo»3, e as outras duas em «No cárcere»4.
Em todas elas, o texto procede, sem alterações, das edições revistas pelo Poeta.
Qualquer uma está dentro da temática e da perfeição formal características de
Bocage, e encontra paralelos fáceis na sua própria obra. Todas se relacionam com
o perigo que o espreita e com a consequente profissão de inocência.
O primeiro Soneto é um momento de fraqueza, em que a constância estóica,
defendida no que principia Em sórdida masmorra aferrolhado5, cede o lugar à débil
natureza ameaçada.
O segundo é uma autêntica profissão de fé, em que, para além da ausência de
crimes graves (delação, assassínio, sacrilégio), se afirmam como virtudes principais
a sabedoria, a compaixão, a beneficência, a amizade, o amor da Pátria, a observância
das leis. Antes de enumerar estas qualidades, insistira-se na crença religiosa, no
temor da Eternidade, em termos que remetiam o ouvinte mais desprevenido para
a Pavorosa ilusão da Eternidade, de que é manifestamente uma palinódia (outra está
no famoso Já Bocage não sou..., que por isso mesmo cremos autêntico)6. Tal como no
Soneto anterior, a inocência é palavra-chave de toda esta defesa7. Outra palavra-
-chave é virtude, que aparece no começo da segunda quadra.
É essa palavra que vai terminar o terceiro Soneto, em que, depois de dar como
pólos da sua vida o Amor e a Poesia, faz nova profissão de fé na moral e vincula
a maquinação de que está a ser vítima à fama de que goza. Esta, inseparável da
glória, permanecerá com ele, tal como a virtude, ainda que a liberdade o abandone.
Sonetos, como se vê, muito ligados à fase final da vida do Poeta, nada mais
teríamos a acrescentar, se não se desse caso de se nos ter deparado, na Biblioteca
Pública de Évora, no códice CXIV d./1-34 entre curiosos epigramas em latim à
estátua equestre de D. José e outras composições, uma cópia, também em letra
1
Livro I, CXVII, p. 119.
2
Respectivamente, Livro II, n.º XXVII, p. 195, e n.º XXVIII, p. 196.
3
Na p. 175 de Sonetos e 140 de Opera Omnia, vol. I.
4
Nas pp. 156 e 191 de Sonetos e 156 e 154 de Opera Omnia, vol. I.
5
P. 137 do vol. I de Opera Omnia (edição a que doravante nos reportaremos, citando apenas o
número da página). Note-se que Bocage se mostra desiludido do Estoicismo nos Sonetos Às rígidas
lições do férreo Zeno (p. 180) e Dura filosofia audaz forceja (p. 108).
6
1 Cf. ainda o final do Soneto Néscia, vil ignorância, injuriada (p. 158):
do séc. XVIII, de «Sonettos feitos por Manoel Maria Bocage em sua justificação».
São precisamente as três composições a que temos vindo a referir-nos, mas com a
diferença de estarem numeradas e isoladas, sendo Não sou vil delator, nem assassino
a primeira, Tenho assás conservado o rosto enxuto a segunda, e Aceso no almo ardor,
que a mente inflama a terceira.
Reside o seu interesse no facto de apresentarem variantes. Para efeitos de
comparação, transcreveremos sucessivamente os três Sonetos na ordem em que
surgem, observando a ortografia própria (excepto a ligação entre o artigo e o
substantivo, a copulativa e o verbo), e comparando-os com o texto das Rimas.
SONETTO PRIMEIRO
SONETTO SEGUNDO
Se podemos considerar que, no verso 9, «Já ser» por «Jazer» é um simples erro
de copista, também não é improvável que se trate de uma lição diferente, uma vez
que a construção com «já» vem da quadra anterior, e, além disso, todo o terceto
é diverso do correspondente das Rimas:
8
Supra, nota 5.
6. NOTAS SOBRE TRÊS SONETOS DE BOCAGE 115
a «Filosofia» do verso final. Quer dizer que, tal como no caso anterior, temos nas
Rimas uma versão melhorada do texto.
O terceiro exemplo é menos significativo do que qualquer dos outros, como
veremos em seguida, e confirma, logo de início, a hipótese que formulámos rela-
tivamente ao verso 9 do anterior, de não estarmos perante um copista pouco
entendedor. Efectivamente, um escriba ignorante teria certamente transformado
«Aceso no almo ardor» do verso 1 no mais fácil e corrente «Aceso na alma ardor».
Mas vejamos a transcrição completa:
SONETTO TERCEIRO
9
Sobre este terceto, veja-se o breve comentário de Hernâni Cidade, Bocage (Lisboa, 21955), p. 91.
116 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Com variantes mais ou menos expressivas, podemos concluir que todas elas
convergem no sentido de a cópia eborense representar uma versão menos per-
feita do que aquela que o texto impresso nos oferece. Que o repentista Bocage
era ao mesmo tempo um torturado da forma, como geralmente o são os grandes
poetas, prova-o um autógrafo existente na mesma Biblioteca, e reproduzido por
Hernâni Cidade10.
Pelas razões aduzidas supomos que o apógrafo que temos estado a analisar é
cópia de uma versão primitiva, que chegou a circular, destes mesmos Sonetos, e
que não é por acaso que eles estão juntos, tal como na edição das Rimas, revista
pelo Autor. Permitimo-nos mesmo avançar uma outra hipótese. Conforme se
depreende da declaração «Ao Leitor», anteposta ao Tomo II, todo o conteúdo deste
volume foi furtado a Bocage e reconstituído por ele de memória. Avisado pelos
amigos do que lhe acontecera, e «temendo a perda do que, para mim ao menos,
era precioso, examinei o livro interior, que me não podem roubar, e com efeito
copiei dele tudo o que dou à luz». E, mais adiante: «A maior parte das Poesias que
publico, foi recobrada com a memória.»
Seria o manuscrito eborense cópia da forma primeira dos três Sonetos? Parece-
-nos assaz provável. Se a alteração, a partir do tal «livro interior», foi consciente
ou não, é que não temos elementos para dizer. A espantosa retentiva de Bocage,
por um lado, e o perfeccionismo que lembrámos atrás, por outro, parecem apontar
para a resposta positiva.
10
Na obra citada na nota anterior, p. 108, e no prefácio aos Opera Omnia, vol. I, p. XXXVII, com a
observação: «Os esmerados cuidados da forma estão patentes nas correcções feitas».
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA
NA POESIA DE SETECENTOS *
*
Publicado em Bracara Augusta 28 (1974), 313-329; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Por-
tuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 171-191.
1
A descrição da cerimónia pode ler-se no curioso documento «Diário da Visita do Marquês
de Pombal a Coimbra na Reforma da Universidade», publicado por António de Vasconcelos, Escritos
Vários, Coimbra, vol. I, 1938, pp. 337-388.
2
Recordem-se as críticas contidas na correspondência de António Ribeiro dos Santos (MSS da
Biblioteca Nacional, vol. 130, fol. 203 e 205), publicadas por Teófilo Braga, História da Universidade de
Coimbra, Lisboa, 1898, tomo III, pp. 569 e 571; e ainda a Dissertação Crítica sobre os Estatutos da Universidade
de Coimbra, manuscrito setecentista da Biblioteca Municipal de Elvas, dado à estampa por Adelino
de Almeida Calado, Coimbra, 1954.
3
O estudo de Teófilo Braga, incluído no tomo III da História da Universidade de Coimbra, é de 1898.
Note-se que, na celebração do 1º Centenário da Reforma Pombalina, em 1872, portanto, se fez uma
Memória Histórica de cada Faculdade.
4
Encontram-se em curso publicações comemorativas do 2º Centenário da Reforma Pombalina,
cuja celebração ficou determinada pelo Senado Universitário de Coimbra, da presidência do Reitor
Gouveia Monteiro, em sessão de 21 de Abril de 1970.
5
Ensaio sobre A Crise Mental do Século XVIII se chamava o livro, publicado em Coimbra, em 1929,
e sucessivamente revisto e reimpresso, sob o nome de Lições de Cultura e Literatura Portuguesas,
2º volume, até atingir, em 1968, a 5ª edição — como sabem as sucessivas gerações de estudantes que
por ele têm aprendido.
118 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
6
Sobre as alterações que teria sofrido o texto deste panegírico, em que a informação clássica
e o apreço pela ciência contemporânea se dão as mãos, veja-se a nota de António José Saraiva na
sua edição das Obras Completas de Correia Garção, Lisboa, 1958, tomo II, p. 157. Em todas as citações
que se seguirem, servimo-nos dessa edição para Corydon Erimantheo; para Elpino Nonacriense,
das Poesias, de António Dinis da Cruz e Silva, Lisboa, 6 tomos, 1807-1817; para Alcino Micénio, das
Obras Poéticas de Domingos dos Reis Quita, Lisboa, 1766; para António Ribeiro dos Santos, das Poesias
de Elpino Duriense, Lisboa, 3 tomos, 1812-1817, citando, para este último, o número do volume em
romano e o da página em árabe.
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS 119
informa que foi cantado a três vozes e composto por António Dinis da Cruz e Silva,
como tenor, e Teotónio Gomes de Carvalho, sendo os versos do primeiro notados
com um asterisco. O coro entoa vivas, ora ao Marquês («o Grande Carvalho»), ora
à «Grande Marquesa».
Nestes encómios — quer do rei, quer do seu ministro — não costumam faltar as
referências concretas às principais medidas governativas tomadas pelo Marquês,
designadamente a da criação das Companhias do Grão-Pará e do Alto Douro e da
reconstrução de Lisboa7.
A glória da reedificação da capital, enobrecida com uma série de paralelos da
epopeia antiga, ocupa mais de uma tríade na já citada Ode XXXI de Correia Garção.
A VII das Odes Pindáricas de Dinis retoma o motivo, quinze anos mais tarde. Mas,
nessa altura (1774) já pôde acrescentar-lhe um outro, na antístrofe 5ª:
Não era a primeira vez que António Dinis erguia os seus louvores à Reforma da
Universidade, em ligação com os outros grandes empreendimentos pombalinos.
Também a ela se alude nestes versos que o Deão profere no Hissope8:
7
Exemplos de Cruz e Silva são a Ode IV e a I, V e VII das Odes Pindáricas; de Correia Garção, a
Ode XXXI. Na sua Écloga V, «Dalmido», Reis Quita celebra a restauração do comércio; no Soneto V, a
partida dos primeiros navios da Companhia do Maranhão. Sobre as poesias consagradas à estátua
equestre de D. José, vide infra, nota 27.
Também existe um breve elogio ao Marquês, de carácter alegórico, feito por José Anastácio da
Cunha (a p. 79 da edição de Hernâni Cidade, A Obra Poética do Dr. José Anastácio da Cunha, Coimbra,
1930). Sobre a supressão de grande parte da poesia laudatória, depois da queda do Marquês, vide
Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, Lisboa, 1898, tomo III, p. 572.
8
O facto foi notado por Teófilo Braga, op. cit., III, pp. 571-572. Mesmo que admitamos que a res-
tauração das ciências e das artes se encontrava in fieri, pelo menos desde a nomeação da Junta da
Providência Literária, em 1770, teríamos de baixar um pouco a data da composição do poema herói-
-cómico, que geralmente se supõe teria sido principiado cerca de 1768.
120 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Mas o tema mereceu a Elpino Nonacriense uma das suas composições de maior
fôlego, a VI das Odes Pindáricas, em sete tríades, endereçada «Ao Marquês de Pom-
bal, Sobre a Reforma da Universidade de Coimbra».
Principia com o tópico, que há pouco vimos retomado na VII das Odes Pin-
dáricas (e que estava consagrado desde a famosa estância de Os Lusíadas sobre a
fundação dionisiana9 da comparação de Coimbra com Atenas, a qual ocupa toda
a primeira tríade, extravasando ainda, à maneira do Poeta Tebano — que na fase
de maior esplendor tende a dissociar as unidades métricas das sintácticas — ,
para a estrofe 2ª:
Estrofe 1ª
Bella Ninfa do Ilisso, alta princeza
Da populosa Grecia, insigne Athenas,
Da passada grandeza
Em vão batendo as orgulhosas pennas
Às nuvens te remontas,
Inda que os Numes entre si se armassem,
E rivaes dar-te o nome disputassem.
Antístrofe 1ª
Sei de quanto fulgor a fronte augusta
De Minerva te ornou o ilustre braço:
Sei que Némesis justa
9
Canto III, estância 97, sobretudo os versos:
Epodo 1º
Sei que no eterno alcaçar da Memoria
Indelevel gravárão
Socrates e Zenon a tua gloria;
E Solon, que prudente as leis modera,
Que de sangue mão avida escrevera:
Estrofe 2ª
Sei que teu nome á eternidade vôa:
Mas nem por isso esperas arrogante,
Roubar a immortal croa,
Que na frente hoje cinge triunfante
A famosa Coimbra;
Pois de Pombal a coruscante estrella
Com seus ralos a cobre, e faz mais bella.
Depois deste pórtico, que teve como ponto de partida a apóstrofe a Atenas —
processo literário inspirado, como o próprio Dinis adverte em nota, no modelo
grego10 — principia a enumeração dos benefícios outorgados aos diversos ramos
do saber.
Invertendo a ordem tradicionalmente aceite11 e até a dos próprios Estatutos,
o antigo escolar de Leis principia por exaltar a reforma dos estudos de Direito
(antístrofe 2ª) e só depois passa à Teologia (epodo 2º). A «suspirada Astreia» já
estava, aliás, preludiada, como o principal título de glória da cidade de Palas, na
antístrofe 1ª e epodo lº, sem olvidar que foi na Hélade que se estabeleceram as
bases do futuro edifício do Direito Romano. Agora o poeta insiste em que se rasgou
«o denso véu com que a cobria/ a ignorância feia». Uma longa nota ao primeiro
destes versos, com não poucas abonações, precisa quem são os visados: «Accursio
e sobre todos Bartholo, e Baldo, e os sequazes, nascidos em um século falto de
10
A nota 1 (tomo V, pp. 118-119), depois de justificar cuidadosamente a invocação de «Bela ninfa do
Ilisso», dada a Atenas (abonando-se, até, em Pausânias in Atticis — que corresponde a I.22.3), esclarece
que «com semelhantes Prosopopeias principia Píndaro muitas de suas Odes: veja-se particularmente
a 1ª das Neméas, a 7ª das Isthmiacas, a 2ª e 12ª das Pythias, e a 5ª das Olympias» A estes paralelos,
todos exactos, falta acrescentar um dos mais conhecidos, a abertura da 1ª Ístmica.
11
A ordem definida, por exemplo, nos Estatutos de 1559, era: Teologia, Cânones, Leis e Medicina
(cap. 80, p. 237 da edição de Serafim Leite, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1863).
122 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
12
Poesias, tomo V, p. 123.
13
«Romanismo e Bartolismo no Direito Português», Boletim da Faculdade de Direito XXXVI (1960),
p. 31 da separata. O mesmo historiador do Direito observa (ibidem, p. 30 e n. 43) que Verney não
foi tão incisivo contra o jurista italiano, pois não deixou de lhe reconhecer sabedoria. Efectiva-
mente, o Verdadeiro Método de Estudar afirma (edição de António Salgado Júnior, Lisboa, 1952, vol.
IV, pp. 158-159): «Tendo assim começado as explicações, aumentaram-se sensivelmente no seguinte
século XIV, no qual apareceu uma turba imensa de Jurisconsultos: Bártolo, Baldo, Tartagna, Sali-
ceti, Paulo de Castro, Jasone, etc. Estes homens naquele tempo eram venerados; mas, para dizer
a verdade, eram, ainda que doutos, ignorantes das antiguidades; de sorte que abriram a porta a
mil subtilezas, o que deu matéria de engrossar tanto os volumes legais, que hoje não se podem
suportar».
14
Vide Mário Júlio de Almeida Costa, op. cit. p. 32 e n. 49 (da separata).
15
Poesias, tomo V, pp. 124-125 (notas 16 e 17).
16
Relação Geral do Estado da Universidade, pp. 34 e 41, respectivamente.
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS 123
tríade, repartindo os seus louvores pela Física, Lógica, Teologia Natural, Ética e
Direito Natural (as «innatas leis»). De caminho, não perde o poeta a oportunidade
de encarecer as vantagens do abandono da Filosofia Peripatética, em benefício
do experimentalismo:
17
A expressão é da nota 20, à palavra «Liceu» (vol. V, pp. 126-127).
18
Idem, ibidem. Sobre o desprezo pela Escolástica, confronte-se o passo do Hissope em que se diz
que no Génio das Bagatelas:
O louvor derrama-se ainda pelo epodo 5º, onde transparece o tópico antigo
da surpresa causada pelo aparecimento de navios desconhecidos22. A estrofe 6º
sumaria, novamente em termos míticos, o período da expansão portuguesa em
todos os mares.
A advertência dirigida pelo poeta à sua própria lira, na antístrofe 6ª, convi-
dando-a a voltar-se de preferência para o «novo herói», é uma maneira hábil de
sugerir que os feitos de Pombal se situam à altura dos do descobridor das Índias.
Uma breve alusão ao modelo pindárico, reminiscente, ela mesma, do final da VI
Ístmica 23, tempera o exagero com as graças poéticas:
O elogio que segue, constituindo o epodo 6º, retoma um motivo muitas vezes
explorado pelos panegiristas de D. José e do Marquês: a superioridade da «pax
Augusta», de que se goza, sobre os grandes feitos bélicos24.
22
Cf. Virgílio, Eneida VIII, 90-93. A XVII das Odes Pindáricas, consagrada a Vasco da Gama, con-
trasta o glorioso feito lusitano com a expedição dos Argonautas.
23
Vv. 74-76. Na Ode IV, recitada na Arcádia a 29 de Outubro de 1757, António Dinis fora muito
mais longe, pois colocara o futuro Marquês de Pombal não só acima das grandes figuras do passado
português, como de Colbert, Mazarino e outros.
24
Na V das Odes Pindáricas, apresentada em 1759, na sessão pública da Arcádia em que se celebrou
a elevação de Carvalho a Conde de Oeiras, já se lia na estrofe 4ª:
Cf. a Ode XXXI de Correia Garção, e, do mesmo autor, as Orações Primeira e Terceira; e também
o poema latino de Elpino Duriense Ad Josephum I Lusitanorum Regem De Pace Eius Auspiciis Reddita (III,
209-210).
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS 125
A estrofe 7ª vem trazer, à boa maneira clássica, um exemplo, que vai preparar a
conclusão. Tal exemplum provém do plano mítico: é o caso do antigo Egipto, tirado
do «cahos da ignorância» por Ceres, a quem o povo, reconhecido, ergue estátuas
e altares. Uma nota esclarece e tenta justificar, aliás com inegável habilidade,
esta estranha escolha, explicável pelas limitações da época no conhecimento
da Antiguidade: «Não só por nascer nelle a Filosofia, mas porque muitos tempos
depois foi Alexandria o asilo de todas as sciendas e artes»25. A seguir, louva-se em
Plínio e Diodoro Sículo, para a equivalência de Ceres a Isis, com a consequente
aceitação do que, em termos da ciência actual, chamaríamos a teoria da origem
egípcia dos Mistérios de Elêusis26.
Estava preludiado o tema da glorificação de Pombal por Elisia «em duro bronze,
em marmore de Paros», que constitui o motivo da antístrofe 7ª, e, de certo modo,
justifica antecipadamente a famosa estátua por Machado de Castro, cujo projecto
tinha principiado em 177027. Mas uma promessa de imortalidade pode já ser feita
— a daquela que é conferida pela poesia— , e com essa afirmação, novamente na
esteira do Poeta Tebano, encerra a Ode28:
25
Nota 36, pp. 131-132 do tomo V.
26
O passo de Plínio (VII.56-57) apenas afirma que Ceres descobriu o trigo e ensinou a Ática a
moer e amassar; o resto dos preparativos coube à Sicília. Em Diodoro Sículo (1.13.4) lê-se que Saturno
teve como filhos Osíris e Ísis, ou Jove e Juno, e que deles nasceram cinco filhos. Logo a seguir, porém
(1.13.5), estabelece a identidade entre Osíris e Baco, e Ísis e Ceres (note-se que tal equivalência vinha
já de Heródoto, II. 59, 156 e 171).
A tese da origem egípcia da religião de Elêusis ainda teve defensores no nosso século, como P.
Foucart (Les Mystères d’Eleusis, 1914), mas ficou fortemente abalada pela argumentação de Ch. Picard
(«Sur la patrie et les pérégrinations de Déméter», Revue des Études Grecques 40 (1927), 321-330) e ainda
mais pelos resultados finais das escavações no santuário, que não revelaram um único objecto daquela
proveniência (cf. G. E. Mylonas, Eleusis and the Eleusinian Mysteries, Princeton University Press, 1961,
pp. 15-26).
27
O próprio poeta havia de celebrar a inauguração da estátua equestre, na III das suas Odes
Pindáricas (datável, portanto, de 1775). Por sua vez, Reis Quita glorificou separadamente o busto de
Carvalho, no Soneto IV. Elpino Duriense alude à obra-prima de Machado de Castro numa Ode (II, 9-10)
e dedica-lhe quatro epigramas latinos (III, 210-211). Quanto a Correia Garção, sabe-se que a família
do poeta contava que a sua bela composição Fala do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, aos Portugueses,
querendo-lhe levantar uma estátua pelo seu bom governo, o que ele não consentiu se destinava a condenar
o projecto em curso; mas, por outro lado, o manuscrito do Cónego Figueiredo tem escrito à margem
«Para a Academia dos Ocultos, 1754» — o que invalida a hipótese. Sobre o assunto, veja-se a citada
edição de António José Saraiva, vol. I, pp. XXV-XXVI e 283.
28
E.g. Píticas III.114-115, e Ístmicas IV.41-42.
126 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
29
Na História da Universidade de Coimbra, tomo III, pp. 681-684, Teófilo Braga transcreve excertos
de duas cartas em que António Ribeiro dos Santos se defende da acusação (MSS., vol. 130, fol. 93 e
fol. 27-31; a frase citada vem na p. 683). O Reino da Estupidez, que primeiro circulou manuscrito, foi
editado repetidamente (vide a relação em Teófilo Braga, ibidem, nota da p. 697).
30
Algumas estrofes de O Zelo encontram-se transcritas no mesmo volume, nas pp. 685-689; da
Ode a Fileno, nas pp. 689 a 696. A discussão da totalidade da questão principia na p. 675.
31
Sobre o assunto, vide Mário Brandão e M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra. Esboço
da sua História, Coimbra, 1937, pp. 114-115.
32
MSS. vol. 130, fol. 205, apud Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, tomo III, p. 571.
Pode ver-se um sereno e equilibrado juízo de conjunto sobre as medidas educativas de Pombal em
Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, pp. 211-216.
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS 127
33
E.g.: I, 146-147 (Louvem-te, ó Castro, ao doce som da lira); I, 148-150 = III, 5-7 (Que quereis vós, Senhor,
que lá vos mande); II, 70-71 (Sangue dos Lusos Deuses, alto objecto); II, 153-155 (Eu te mando Senhor, os áureos
versos); II, 163-164 (Passou teu claro dia, e meu, ó Castro); II, 165 (Os justos Céus, Senhor, não consentiram);
II, 250-255 (Tu, Senhor, de mim te queixas); II, 261-263 (Neste tempo, em que a virtude); II, 34 (Lá te mando,
Senhor, meu parabém).
34
Tomo I, pp. 3-7.
128 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Das dificuldades da tarefa que aguarda o seu amigo, tem plena consciência
Elpino Duriense, que não hesita em compará-la, com exata e mitológica proprie-
dade, ao esforço de Atlas:
35
A cronologia encontra-se em António de Vasconcelos, «Relação dos Reitores da Universidade
desde a reforma e instalação definitiva em Coimbra por el-rei D. João III em 1537», incluída em Escritos
Vários, Coimbra, vol. II, 1948, pp. 7-29.
36
Tomo II, pp. 52-55.
37
Epístola a Almeno, I, 41-44 (o verso é o 3 da p. 41).
38
Epístolas a Francisco de Borja Garção Stockler, respectivamente em I, 75-77 (S’eu pudesse cantar,
ó sábio Stockler) e I, 167-169 (Qu’alto conceito não farás, Amigo).
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS 129
A missão do novo Reitor é de novo comparada à dos heróis do Oriente. Ele tem
de acudir «à Mãe das Musas»:
39
Epístolas a José da Silva Xavier, respectivamente, em I, 270-275 (Demos louvor, ó Silva, aos Varões
sábios), e I, 276-279 (Amigo, pois que minha carta pôde).
40
Epístola a Garção Stockler, I, 289-297 (Os teus severos ínclitos estudos).
41
Da Oração Fúnebre nas exéquias de D. Francisco de Lemos, pelo Dr. Fr. António da Rocha (apud
Teófilo Braga, op. cit., tomo III, p. 599).
130 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Para cantar a obra magnífica que antevê, gostaria o poeta de ter a inspiração
de Píndaro, como exclama numa estrofe em que se sente passar a recordação do
final do Livro II das Odes de Horácio42:
42
Odes II.20.
43
Odes I, XXXI e XXXIV. Sobre o valor das odes pindáricas de Corydon Erimantheo, vide Hernâni
Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, p. 265.
44
Apenas uma, que pode ler-se na pp. 33-38 da edição de Hernâni Cidade, A Obra Poética do Dr.
José Anastácio da Cunha, Coimbra, 1930, e que, embora assim classificada pelo autor, não obedece aos
cânones consagrados.
45
No vol. I das Obras Completas, Paris, 21817, de pp. 174 a 212, uma longuíssima ode em vinte e
quatro tríades, para a qual se assinala, no começo, uma imitação da VI Pítica. O vol. III inclui, na pp.
437-446, outra ode do mesmo tipo, em oito tríades, A Vénus Física.
46
Frei José do Coração de Jesus, o tradutor de Ovídio, poeta muito estimado por Elpino, que
havia de o preitear, num só epitáfio, com o Principal Castro (III, 156). Ambos ficaram sepultados na
Igreja de S. Francisco de Enxobregas. A ode citada, que se encontra no tomo II das Poesias de Elpino,
pp. 153-155, era acompanhada de versos de Almeno.
7. ECOS DA REFORMA POMBALINA NA POESIA DE SETECENTOS 131
47
II, 70-71. Não só em verso, mas também em prosa, António Ribeiro dos Santos defendeu a
acção do seu amigo, como se pode verificar pela carta do MS. 130, fol. 106, publicada por Teófilo
Braga, História da Universidade de Coimbra, vol. III, p. 700. O Reitor, por sua vez, recorria ao muito
saber e ponderação de Elpino Duriense. Foi a ele que pediu que lhe comunicasse o seu parecer sobre
o Plano de Educação Nacional que fora apresentado à Academia das Ciências (Teófilo Braga, ibidem,
p. 749).
48
Sobre a acção do Principal Castro, veja-se Teófilo Braga, op. cit., vol. III, pp. 698-751, e Mário
Brandão e M. Lopes de Almeida, A Universidade de Coimbra, pp. 115-118. Outros elementos ainda podem
ver-se em J. Ferreira Gomes, «A Reforma Pombalina da Universidade (Nótula Comemorativa)», Revista
Portuguesa de Pedagogia VI (1972), 25-63, especialmente, pp. 58-59.
49
Como escreveu Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, vol. II, p. 277, as Odas
Pindáricas eram «a poesia lírica dignificada, assim, em órgão de glorificação patriótica e pedagogia
colectiva». Na p. 278 da mesma obra, põe-se em relevo a curiosidade científica demonstrada no Idílio
XV, «Proteu». Todo este capítulo, aliás, se intitula com muita propriedade «A realidade histórica,
científica e exótica no lirismo de António Dinis da Cruz e Silva (Elpino Nonacriense)» (pp. 275-
-284).
132 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Com efeito, o escritor que admiramos como um dos mais egrégios prosadores
do séc. XIX nasceu em Lisboa. Não, certamente, formado pelo convívio dos «inte-
lectuais do Grémio e da porta da Havanesa», mas talvez um pouco modelado pela
cultura do Cenáculo de Antero de Quental e, muito principalmente, preparado
pelo Mistério da Estrada de Sintra, produzido pelas Farpas. «As Farpas, autoras de
Ramalho Ortigão», como sintetizou Eça, num dos paradoxos mais sugestivos e
mais exactos que saltaram da sua pena.
Considerando os factos desta maneira, poderíamos ser levados a supor, como
tem sido o caso de alguns críticos, que Ramalho foi um escritor de formação tardia.
A asserção é inexacta. Encontramos prosa sua estampada no «Jornal do Porto» a
partir da fundação deste, em 1859, ou seja, dos vinte e três anos do autor. Mas ele
*
Publicado em Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto 13.1-2 (1950), 122-147.
1
Carta a Joaquim de Araújo, in Renascença, Porto, Fevereiro de 1878, mais tarde incluída nas Notas
Contemporâneas. Todas as citações das obras de Ramalho Ortigão, quando não levam expressamente
declarada a edição de que foram extraídas, são referidas à edição das Obras Completas, que a Livraria
Clássica Editora de Lisboa começou a publicar em 1942.
134 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
mesmo afirmou ter começado muito antes, uma vez que declarara na autobiografia
escrita, em 1891, no álbum do filho2:
que faz recuar para 1856 a sua estreia literária 3. Por outro lado, lemos na bela
carta a Alberto de Oliveira4:
... não lhe falo como escritor, não lhe direi que o primeiro artigo que
escrevi o escrevi no dia em que morreu Garrett, para agradecer à sua memó-
ria a impressão que na convalescença de uma febre escarlatina me deixou
a leitura das Viagens na Minha Terra, gerando a psicose da minha puberdade
e decidindo do destino artístico de toda a minha vida.
2
Publicada postumamente em «O Primeiro de Janeiro» de 1 de Outubro de 1915 e incluída no
volume Costumes e Perfis, da edição das Obras Completas.
3
Cf. ainda As Farpas, III, pág. 55: «Foi no «Jornal do Porto... que eu comecei a escrever aos 20
anos de Idade».
4
Publicada in «Lusitânia», vol. II, págs. 28-29.
5
As Farpas, XIV, págs. 185-192.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 135
Este peso da prosa vernácula sobre o estilo de Ramalho nos seus tempos de
professor de francês no Colégio da Lapa e de folhetinista do «Jornal do Porto»
nem sempre se abatera nesses primeiros trabalhos. Cumpre-nos ressalvar, pelo
menos, duas excepções brilhantes: uma é o debate sustentado em três artigos
no «Jornal do Porto», respectivamente, em 21 de Agosto, 3 e 11 de Novembro de
1862, contra o D. Jaime de Tomás Ribeiro e os críticos que o defenderam (Castilho,
Leonel de Sampaio e Pinheiro Chagas); outra é o opúsculo Literatura de Hoje, que
em 1866 deflagrou no meio da Questão do Bom Senso e Bom Gosto como uma das
suas granadas mais poderosas.
A famosa intervenção de Ramalho na Questão Coimbrã já estava em gérmen,
como se pode ver, na disputa de 1862. Somente aí havia apenas um contendor. Em
1866, o ataque tinha de dirigir-se em dois sentidos opostos. O esforço era maior
e pedia uma independência de pensamento e uma agilidade verbal enormes.
Esta última, que se manifestara com desigualdade no primeiro folheto, surge
agora do princípio ao fim do artigo com uma unidade que não se esperava ainda.
A polémica começara já a aguçar o estilo de Ramalho Ortigão. Apenas era preciso
dar-lhe continuidade nos seus objectivos.
Entretanto chega o ano de 1868. Ramalho Ortigão fora nomeado primeiro ofi-
cial da Secretaria da Academia das Ciências6. A 3 de Agosto já está em Lisboa, de
posse do novo cargo. Quando Eça regressa da sua viagem ao Egipto e à Palestina,
6
Sobre a data exacta da partida de Ramalho para Lisboa, poucos biógrafos concordam. De tal
maneira, que foi necessário recorrer ao «Livro 50 B – de registo das actas das Sessões do Conselho
e das Assembleias Gerais da Academia Real das Ciências de Lisboa – de 22 de Outubro de 1851 a 9 de
Fevereiro de 1911, pertencente ao Arquivo da Secretaria da Academia das Ciências de Lisboa», FI. 137
sqq., para esclarecer o assunto. Pelo interesse que tem a acta da sessão extraodinária de 1 de Agosto
de 1868, em que o caso se tratou, se transcrevem a seguir alguns passos:
«Ao meio-dia foi aberta a sessão pelo Senhor Presidente, Conde d’Ávila, estando presentes os
Senhores... O Senhor Presidente disse que, logo que chegasse o Senhor Secretário Geral se tomaria
resolução e que entretanto se trataria de substituir o oficial da Secretaria que a tinha abandonado.
Que o Sr. Dr. Tomás de Carvalho lhe tinha indicado para este lugar um cavalheiro conhecido de alguns
académicos presentes – o Sr. J. Duarte Ramalho Ortigão, o qual tinha habilitações muito superiores às
que se exigiam para o lugar vago. O Sr. Augusto Soromenho se lhes propusera para ocupar o lugar de
bibliotecário. Que ainda que estes provimentos tinham de ser feitos pela Assembleia Geral, o Conselho
os podia preencher interinamente. O Sr. Beirão propôs que o lugar de Oficial da Secretaria seja dado
por concurso. O Sr. Silva Túlio apontou os inconvenientes do concurso para este lugar, atendendo a
que deve ser pessoa da confiança do tesoureiro, visto que lhe faz a escrituração e os recebimentos.
Entrou o Sr. Tomás de Carvalho e, confirmando as abonações do mérito do Sr. J. Duarte Ramalho
Ortigão, disse que ele próprio o afiançava, além da fiança pecuniária que o Conselho arbitrasse para
provimento do lugar. Entrou o Sr. Secretário Geral. O Sr. Felner propôs que, em lugar de se fazer
uma nomeação interina, se requisitasse um empregado do Ministério do Reino para desempenhar
as funções de Oficial da Secretaria enquanto se não provesse definitivamente.
Depois de ser ouvido neste ponto o Secretário Geral, resolveu-se que fosse nomeado interina-
mente para o lugar de Oficial da Secretaria o proposto J. Duarte Ramalho Ortigão, prestando fiança
ao tesoureiro até à soma de 900.000 rs. e com a cláusula de lhe não dar esta nomeação direito de
preferência, se o lugar fosse a concurso. (...)
a) J. Maria Latino Coelho.
136 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A verdade é que o que se diz de Eça se verifica também com Ramalho, cujos
raros estudiosos se têm ocupado quase exclusivamente, salvo poucas excepções12,
com estudar a evolução das suas ideias políticas, a despeito da pouca importância
literária que tal problema possa assumir. Sobre a evolução do estilo de Ramalho,
ninguém se exprimiu até hoje com mais objectividade e exactidão do que o seu
maior amigo. Eis o que ele nos diz do resultado das Farpas:
Apenas nas Farpas, Ramalho Ortigão bem depressa achou a sua forma:
desembaraçou-se da velha armadura quinhentista – e saltou de dentro,
rápido, vivo, brilhante, vergando e sacudindo a sua frase como uma lâmina
de florete... O folhetinista dilettante acabara; começava o panfletário ilustre13.
Mas não é este o tema que agora nos propomos estudar. Um estudo estilístico
das obras de Ramalho Ortigão, feito em moldes científicos, como os que seguiram
no estrangeiro um Marcel Cressot, um Leo Spitzer, e entre nós, Gomes Ferreira,
na sua monografia sobre o Eurico14, só poderia ser fruto do trabalho de muitos
anos. Esse estudo teria de dividir-se em duas partes: antes e depois das Farpas,
como já notou Eça. E temos a certeza de que projectaria a mais intensa luz sobre o
primeiro aspecto sob que se pode considerar o Porto na Obra de Ramalho Ortigão.
O outro aspecto sob que podemos encarar o assunto constitui o tema deste
nosso breve estudo. Surpreender imagens da cidade na vasta galeria de quadros
de Ramalho – reflexos dos seus monumentos, das suas ruas, dos costumes, dos
tipos mais característicos, do seu meio social – eis o nosso objectivo. Tudo junto
dá-nos um quadro bastante completo do velho burgo durante a segunda metade
do séc. XIX.
11
Incluída no volume II de Figuras e Questões Literárias, págs. 7-19.
12
Ocupa um lugar à parte o opúsculo de Ricardo Jorge intitulado «Ramalho Ortigão», Lisboa, 1915.
13
Na citada carta a Joaquim de Araújo.
14
A. Magina Gomes Ferreira, «O Estilo de Eurico o Presbítero», Suplementos de Biblos, Coimbra,
Faculdade de Letras, 1945.
138 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
É claro que, aqui também, se impõe uma divisão: a cidade vista pelo crítico
portuense, e constituindo o tema quase obrigatório dos seus artigos, por um lado,
e, por outro lado, a cidade que aparece com frequência nas obras escritas em
Lisboa, como recordação, como evocação, ou como objecto de crítica.
Nas obras de Ramalho escritas na «cidade das camélias», como lhe chama
algures15, há dois contos das Histórias Cor de Rosa16 que decorrem no ambiente por-
tuense: a primeira parte de Gastão, Memórias da Mocidade e a famosa Visita de Pêsames
(Página da Vida Burguesa), que se passa no bairro da Sé. Se no primeiro a notação
do ambiente é vaga e indefinida, a do segundo é bem característica. Lá estão as
velhas lojas do bairro da Sé, as procissões das confrarias, as festas de igreja, as
figuras típicas do sirgueiro, do merceeiro, da criada, dos caixeiros; e, por último,
a cena magistral da visita de pêsames, às escuras e num silêncio a custo mantido.
É aos folhetins do «Jornal do Porto», hoje enfeixados sob os títulos de Primei-
ras Prosas e Crónicas Portuenses, especialmente a estes últimos, que cabe, como é
natural, a primazia nos quadros citadinos. E, a despeito de ir desabafando que
«nesta abençoada terra revistar é pescar à cana, na bacia do lavatório, intentar o
folhetim é querer fisgar salmões em poça de água chilra»17, os sucessos da cidade
vão-lhe dando margem a exercitar a sua crítica.
É assim que vai desfilando diante de nós a vida da cidade naquela época. Os
quadros giram sobre dois gonzos basilares: o meio intelectual e artístico e a vida
em sociedade, com descrição dos tipos citadinos, dos divertimentos, dos costumes,
e até dos meios de transporte. No meio intelectual e artístico tomam grande relevo
as crónicas teatrais e, em especial as óperas no S. João, os dramas no Baquet não
passam despercebidos à pena do crítico. É o tempo em que se sucedem as com-
panhias líricas italianas, em que Emília das Neves, Santoni e Ristori enchem os
palcos portugueses com o seu vigoroso talento dramático. E os próprios edifícios
vão sendo acompanhados nas suas transformações, nos seus melhoramentos, como
verdadeiros focos de cultura que eram na cidade.
As Belas-Artes dão ao futuro autor do Culto da Arte em Portugal motivo a uma
extensa crónica, em que analisa com grande penetração crítica as peças apre-
sentadas a concurso pelos candidatos a professores de escultura na Academia.
De onde a onde, a notícia de um concerto, a criação de uma escola popular de
música, e a apresentação em público de alguns meninos-prodígios da época, em
festa do Natal realizada no Palácio de Cristal. Um desses meninos-prodígios era
15
Histórias Cor de Rosa, Ele e Ela, pág. 104 da colectânea de Contos e Páginas Dispersas.
16
As Histórias Cor de Rosa, se bem que dadas à estampa em Lisboa, em 1870, haviam sido já escritas
e impressas parcialmente, segundo se deduz da carta a Manuel Fernandes Reis, publicada por Júlio
de Oliveira na sua obra «Ramalho Ortigão e Eça de Queirós», Porto, 1945, pág. 69.
17
Crónicas Portuenses, «Revista do Porto», pág. 41.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 139
nem mais nem menos do que Moreira de Sá, que já então despertara o entusiasmo
da crítica.
A literatura ocupa um lugar de grande relevo. É aí que começa a expandir-se
a veia cómica de Ramalho, em observações mordazes e certeiras que prenun-
ciam a evolução do seu espírito. A análise às ridículas coplas que circularam no
Teatro de S. João, na despedida da cantora Deroissi18, a crítica ao livro de versos
de Eugénia Câmara19, às peças de teatro que então se representavam, são outros
tantos artigos em que já se afirma a independência e sagacidade do futuro autor
da Literatura de Hoje.
A vida em sociedade entrevê-se aqui e ali, em leves traços, com que alude ao
regresso dos banhistas, aos passeios dominicais ao Jardim de S. Lázaro, «aos ele-
gantes do Club, da porta do Moré e da superior do Teatro de S. João»20, às recep-
ções da Sociedade Filarmónica, que oferece vinho às senhoras nos seus bailes,
ante a indignação ilimitada do folhetinista, às cerimónias da Semana Santa, aos
julgamentos sensacionais, aos casamentos de aparato, que atraem uma multidão
de curiosos. Lá se fala também das distribuições de prémios da Real Sociedade
Humanitária. E, acerca dos transportes da cidade, elucida-nos a primeira parte do
artigo «Do Porto a Aveiro»21, em que o autor descreve jocosamente os solavancos
que sofreu no trajecto da Praça Nova à estação das Devesas. Este «char-à-bancs»,
antepassado literário da incrível diligência, que um dia entrará no friso de cari-
caturas das Farpas, leva dentro alguns tipos citadinos característicos, como o
comerciante trabalhador e económico, a burguesa anafada, que viaja com o marido
e a filha, o inglês frio e altivo.
Oiçamos agora, para terminar esta rápida enumeração dos motivos portuenses
na primeira fase da obra de Ramalho, o resumo da história caricatural da vida na
cidade, que figura nas Crónicas Portuenses22:
18
Crónicas Portuenses, pág. 50 sqq.
19
Ibidem, págs. 115-127.
20
Ibidem, pág. 280.
21
Primeiras Prosas, págs. 254-245.
22
Crónicas Portuenses, págs. 92-95, passim.
140 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
23
Tais são as conclusões apresentadas por Júlio de Oliveira no citado trabalho «Ramalho Ortigão
e Eça de Queirós», conclusões essas que fundamenta em factos e cartas bastante convincentes. Nesta
ordem de ideias é que os editores das Obras Completas reuniram essa colaboração anónima, em dois
volumes, com o título geral de Correio de Hoje.
24
Correio de Hoje, II, págs. 106-107.
25
Ibidem, II, pág. 155.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 141
obstáculo para que fossem ao mesmo tempo homens do mundo, passando nos
salões com tanta distinção e com tanto aplauso como nos jornais»26.
As Farpas, que são uma revista geral do país inteiro, como é sabido, consagram
muito particularmente a sua atenção às duas cidades, à volta das quais gira a vida
nacional. Assim, «A Capital» é o título de conjunto do sétimo volume das Farpas.
Mas o Porto aparece também com abundância, ora contemplado através da recor-
dação do escritor, ora escalpelizado pela sua crítica. Não passam despercebidas
a Ramalho as manifestações intelectuais e artísticas da cidade. O programa de
concurso na Academia de Belas-Artes27, dá-lhe margem a uma série de observações
da mais requintada ironia sobre a natureza dos temas propostos. A fundação de
um jornal intitulado «O Jogo»28, as apreciações feitas às Farpas por outro periódico
portuense, «A Luta»29, são acontecimentos que caem também na alçada da sua
ironia. Mas ao falar de Cruz Coutinho30, a sua evocação do antigo meio jornalístico
da Invicta toma um tom de saudade comovida. Lá se refere a fundação do austero
«Comércio do Porto» e a do «Jornal do Porto», com pretensões a literário; lá se
fala das reuniões de escritores na livraria de Cruz Coutinho, aos Caldeireiros, do
tempo agitado de Camilo, Custódio José Vieira, Conçalves Basto, Evaristo Basto,
que muitas vezes iam completar com o manuseamento do casse-tête as sátiras
mordazes dos seus folhetins; e de passagem entrevemos o ambiente citadino:
«a pacatice orgânica do chá com biscoitos de Avintes», os bailes, os passeios nos
omnibus da Foz.
Quando correm boatos sobre a possível dissolução do Club Portuense, «esses
salões que deram à cidade eterna a sua carta de dandismo»31, Ramalho protesta
e afoga em torrentes de ironia as causas da ridícula desavença. A Sociedade de
Instrução do Porto merece-lhe, pelo contrário, os mais rasgados elogios em diver-
sas ocasiões, e especialmente quando da exposição de trabalhos mecânicos e das
indústrias caseiras, que promoveu, em Abril de 1882, no Palácio de Cristal32. Não
nos deve surpreender este entusiasmo de Ramalho, porque o programa da dita
Sociedade era a realização das suas mais caras aspirações de dignificar o trabalho
caseiro e rural, de tornar o povo consciente da sua própria arte.
26
Ibidem, I, págs. 100-101.
27
As Farpas, IX, págs. 99-105.
28
Ibidem, XIV, págs. 149-154.
29
Ibidem, XV, págs. 101-102.
30
As Farpas, III, págs. 58-64. Cf. o que se disse acima acerca da estadia de Ramalho na redacção
do «Jornal do Porto» e da sua saída desse periódico. Como se vê, a desavença não deixou vestígios na
maneira calma e objectiva como retrata Cruz Coutinho e como define o seu próprio papel dentro do
jornal. É mais uma prova da completa lealdade e inteireza de ânimo que caracterizam o pensamento
do autor de As Farpas.
31
Ibidem, XIV, págs. 193-195.
32
Ibidem, IX, págs. 65-74.
142 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
33
Ibidem, II, pág. 76.
34
Ibidem, I, págs. 84-92.
35
Ibidem, I, págs. 223-240.
36
Ibidem, I, pág 260.
37
Ibidem, I, págs. 47 e 68-69.
38
Ibidem, I, pág. 233.
39
Ibidem, XI, págs. 123-129.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 143
40
Ibidem, III, pág. 140.
41
Ibidem, XV, págs. 167-174.
144 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Até aqui temos visto apenas notas esparsas, pequenos momentos isolados da
vida da cidade, considerada através das Farpas. Guardei propositadamente para
o fim o grande quadro de conjunto do volume I42. É aí que Ramalho, «turista em
viagem na sua própria terra», conforme ele mesmo declara, pinta, ora a largos
traços de impressionista, ora em enumerações minuciosas de cronista, o aspecto
geral e os melhoramentos da cidade. Toda a vida e o ambiente portuense de então,
comparado com o da mocidade do escritor, se vai desenrolando aos nossos olhos.
E desde as carruagens americanas que, a abarrotar de gente, cestos de fruta,
canastras, trouxas de roupa branca e caixotes, trazem os viajantes da estação de
Campanhã para o centro, à notação minuciosa das novas ruas (como a de Mousi-
nho da Silveira e de Passos Manuel) e bairros (como os do Palácio e da Duquesa
de Bragança) e das velhas ruas demolidas (como a dos Mercadores, da Bainharia
e da Reboleira), tudo é vivo de pitoresco, de graça, de cor. Lá vem a descrição do
aspecto do casario:
42
Ibidem, I, págs. 141-169.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 145
43
Ibidem, I, pág. 143.
146 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
44
Farpas Esquecidas, I, pág. 133.
45
Ibidem, II, págs. 59-60.
46
Ibidem, II, págs. 78-81 e 88-92.
47
Ibidem, II, págs. 148-149.
48
A Holanda, II, págs. 96-97.
49
Borghi-Mamo, incluído nos Costumes e Perfis, págs. 243-259.
50
Arte Portuguesa, II, artigo intitulado A Pintura de Malhoa, pág. 223.
51
Banhos de Caldas e Águas Minerais, pág. 109.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 147
Tripas «onde assistiam as fressureiras que deram aos do Porto nome de tripeiros,
vendendo-lhes os miúdos das reses, cuja carne elas haviam espontaneamente cedido
à armada de D. João I para a expedição de Ceuta»52, lamentando ao mesmo tempo
a falta de estética dos prédios do seu tempo, a incúria dos seus conterrâneos em
recordar por meio de estátuas e pela toponímia das ruas os filhos mais egrégios
da sua terra. No meio deste desinteresse geral, apenas a já citada Sociedade de
Instrução do Porto e o Museu Industrial tinham conservado por algum tempo
uma documentação digna dos vindouros. Mas nem esses subsistiam já à data da
publicação do discurso – 190453.
A cidade antiga, tal como a descreve Garrett no Arco de Santana, atrai a sua
pena ávida de novos panoramas e de novas formas. É com traços palpitantes de
realismo que nos descreve o castro portucalense, construído «em torno da velha
Catedral do séc. XIII, nos antigos bairros da Sé e da Bainharia, ao longo das íngre-
mes congostas, que do paço acastelado dos seus bispos serpenteiam pelos declives
da Pena Ventosa, angustiadas e escuras, rumorosas de vida e de trabalho, através
das muralhas desmoronadas de Afonso IV e de Pedro-o-Cru, pela Chã das Eiras
e por Cimo-de-Vila, desembocando pelos Arcos da Senhora Santana e da Virgem
da Vandoma, pela Porta do Olival e pela Porta Nobre, e alargando-se sucessiva-
mente até se espraiarem nas almoinhas suburbanas de S. Cosme, de Paranhos, de
Cedofeita e de Miragaia»54.
O Porto da sua mocidade também lhe acode com frequência à memória. É o caso
da evocação dos antigos bailes dados pelas famílias nobres de Gaia, que atraíam as
lindas jovens da outra banda, que, com as suas rendas e as suas sedas claras, eram
levadas de cadeirinha até ao cais e depois passavam o rio em barcos toldados55. É o
caso da descrição pitoresca da feira na Rua das Hortas, que aos sábados se enchia
de burros dos ferreiros dos arrabaldes, que vinham carregados de pregos, e depois
subiam em longas filas a Rua do Almada, batendo com as ferraduras no lagedo56.
É ainda o caso da descrição movimentada e colorida dos antigos carroções, que
transportavam famílias inteiras da Foz para a cidade, puxados por bois, e levando
apenas, a fazer o trajecto da ida e da volta, com o tempo para banho, um dia!
Depois, os omnibus que vieram substituir aquele demorado meio de transporte,
e por fim, os chars-à-bancs, que, partindo do Carmo e da Porta Nobre, levavam
dezenas de banhistas por dia. Todo o quadro da vida que então se fazia na Foz
perpassa por estas páginas que Ramalho escreveu em As Praias de Portugal57: as suas
52
O Culto da Arte em Portugal, in Arte Portuguesa, I, pág. 70.
53
Soares dos Reis, in Arte Portuguesa, III, págs. 208-211.
54
Garrett, in Figuras e Questões Literárias, I, pág. 238.
55
Soares dos Reis, in Arte Portuguesa, III, pág. 204.
56
O Último Prego, Narrativa Minhota, in Contos e Páginas Dispersas, págs. 197-198.
57
Págs. 45-68.
148 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
58
A Banheira, in Costumes e Perfis, págs. 15-19.
59
John Bull, págs. 7-12.
60
Reproduzido no I volume das Figuras e Questões Literárias, págs. 243-297.
8. O PORTO NA OBRA DE RAMALHO ORTIGÃO 149
Tal é, a largos traços, o enorme painel que Ramalho pinta do burgo portuense
de há cem anos, com as suas ruas características, os seus transportes antiquados, a
sua classe de comerciantes tão pacífica quanto rotineira, que abalavam e sacudiam
as proezas dos estouvados e talentosos dandies dos últimos tempos do romantismo.
Depois desta demorada viagem através da obra de Ramalho Ortigão, uma con-
clusão se impõe principalmente: é que as descrições da sua cidade vão ganhando
em vulto e em beleza à medida que se forma o seu estilo, mas também à medida
que o tempo e a distância vão dando perspectiva à sua visão. Os folhetins do «Jor-
nal do Porto» parecem desbotados e artificiais, comparados com aquelas páginas
dificilmente ultrapassáveis, como são, por exemplo, para só citar as melhores, o
capítulo do vol. I de As Farpas, ou o prefácio da edição monumental do Amor de Per-
dição. Aí o autor atinge aquela elegância formal, aquele rigor do pormenor, aliado
a uma compreensão harmónica do conjunto, aquela expressão colorida, sonora,
cintilante, que é um dos toques mais sugestivos do seu inconfundível estilo.
9. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA
DE GUERR A JUNQUEIRO *1
À Sr.ª Dr.ª Maria Emília Duarte Costa, que me ensinou Literatura Portuguesa
Entre os grandes poetas que brilharam na secunda metade do nosso século XIX,
nenhum provocou mais desencontradas críticas à volta da sua obra do que Guerra
Junqueiro. Erguem-no uns às culminâncias do Parnaso, precipitam-no outros nos
abismos sombrios dos versejadores sem poesia. Contudo, quem ler atentamente
esses trabalhos consagrados a Junqueiro encontra não raro apreciações mais ou
menos apaixonadas à sua acção política e religiosa; encontrará dados mais ou
menos exactos sobre a sua biografia e o seu carácter; mas só excepcionalmente
avistará a imagem do Poeta. (Tudo o que acabo de dizer aplica-se, é claro, ao caso
geral; as poucas excepções existentes confirmam a regra). Quais serão os motivos
desta atitude? Um deles é sem dúvida a falta de perspectiva no tempo, que não
permite ainda uma visão serena e objectiva de uma obra tão presa à sua época,
qual é a de Junqueiro. É que, dentre todos os géneros literários, a sátira é o mais
marcado pelos anos, o de interesse mais efémero. Uma vez passadas ou alteradas
as condições em que se originou, difícil se torna a sua exacta compreensão. E só
o decorrer do tempo, nivelando as paixões antigas e fazendo sobressair o que há
de permanente na substância da sátira — as constantes ridículas da natureza
humana — é capaz de revalorizar essas centelhas extintas da criação poética.
Parece-me cedo, por esse motivo, para tentarmos analisar esse aspecto da obra
de Junqueiro, que tendo sido, no seu tempo, aquele que lhe trouxe a glória, não é
hoje o que nos interessa mais. Ocupar-nos-emos da lírica, o que não quer dizer,
evidentemente, que possamos cindir a obra do Poeta em duas partes determinadas;
*1
Porto, Livraria Portugália, 1950. Conferência lida, em 24-5-1950, no Museu Nacional de Soares
dos Reis, nas festas do “Maio Florido”.
152 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Do reino vegetal tira Junqueiro algumas das suas mais formosas metáforas.
Basta citar aquela em que nos dá a sugestão da frescura, como por exemplo, em
«A Moleirinha»:
Os mesmos que no «In Pulvis» lançam «olhos d’oiro» à «miséria Humana». São
ainda os bois do «Préstito Fúnebre» que
No episódio «Ao Cair das Folhas» de A Morte de D. João, as árvores estão «ungidas
de harmonia austera e mansa» e são
................................................. cenobitas
que em burel de estevas amortalha Deus!
Podemos notar desde já que a maioria dos exemplos citados — e ainda outros
que omiti por brevidade — são extraídos de Os Simples. Nem admira que assim seja,
porque os protagonistas desse poema não são somente a moleirinha, o pastor,
o cavador, os pobrezinhos, mas também o castanheiro, as ermidas, os montes
escalvados, as eiras ao luar. Eis porque abundam as humanizações de todas essas
figuras, que têm o seu papel ao lado das outras, como elementos constitutivos da
vida dos simples, que na verdade são.
O começo da composição «Manhã», que abre as Poesias Dispersas, dá-nos ainda
um exemplo compósito dos recursos pictóricos do nosso Poeta.
Um grande número das imagens de Junqueiro é tirado da simplicidade da vida
diária. Mas encastoadas no ritmo do verso adquirem uma beleza nova e um valor
emotivo de puro quilate, como é o caso daquele conhecido passo do prefácio «Aos
Simples» de A Velhice do Padre Eterno:
Algumas vezes as imagens são mais raras, de mais requintado gosto, como
nestes versos do episódio «Ao Cair das Folhas», de A Morte de D. João:
Véus brancos, linhos de fiandeira, rendas de ondas do mar, são as imagens cuja
sucessão evoca a visão das «Eiras ao Luar».
Outras vezes ainda é o reino das pedras preciosas que dá os símiles, como na
poesia árabe, nestas quadras do «Idílio» de A Musa em Férias:
Os insectos deslumbrantes,
Inflamados como brasas,
São ametistas, diamantes,
São carbúnculos com asas.
Ocupam grande lugar as imagens tiradas do céu e dos astros, como aquela em
que se implora, no «Préstito Fúnebre»:
Por vezes as metáforas são unicamente abstractas, como é o caso nestes versos
da Introdução de A Morte de D. João:
Resta-nos falar de um outro processo, que é o das palavras que só por si criam
uma imagem, pela riqueza do seu conteúdo semântico. A metáfora reside quase
no verbo que se emprega, como por exemplo na «Sesta do Senhor Abade» de A
Velhice do Padre Eterno:
1
Introdução a A Morte de D. João.
2
«ln Pulvis».
3
«As Ermidas».
9. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA DE GUERRA JUNQUEIRO 161
A ave canta
Sonorizando aurora na garganta...
Verdilhão, toutinegra, rouxinol
Declamam luz, gorgejam sol.
162 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Na «Melancolia», a lua toma a figura humana e com ela se anima todo o céu:
No episódio romântico «Ao Cair das Folhas» o Poeta faz incarnar a lua numa
figura de Shakespeare:
A última imagem renova, com o arrojo da sua metáfora, cuja força reside
essencialmente no verbo, o tema romântico da lua e do amor triste. Na oração
inicial «Aos Simples», de A Velhice do Padre Eterno, a lua aparece revestida de um
símile que completa a delicada religiosidade do quadro:
As «Eiras ao Luar» são todas uma sugestão branda da luz da lua. As imagens
fluidas e brancas deixam-se arrastar por um ritmo suave em que a alternância
das rimas — quase todas em ei ou i, contrastando com a, uma vez só com o — se
casa harmoniosamente com a suavidade do quadro que se quer sugerir. Dentro de
cada estrofe, os quatro primeiros versos, descritivos, espraiam-se na onda sonora
do dístico que a termina; as rimas mudam no último verso de cada parte, como
para descansar o ouvido em tons novos. E esse contraste acentua-se no dístico da
primeira e da última estrofe da composição, que pouco diferem, em que o primeiro
verso é quase todo em i ou ei, e o segundo em a:
àquelas poesias que o autor publicou na sua forma definitiva, e por isso não deve-
mos usá-las nos exemplos que apontamos.
As peças de «Os Simples» merecem quase todas uma análise especial sob o
ponto de vista da musicalidade. «A Moleirinha», que todos temos bem presente,
tem aquele ritmo peculiar que lhe comunica a onomatopeia toc, toc, toc, que aparece
em todas as estrofes, de preferência no princípio, às vezes no meio, para cortar
a monotonia, marcando a continuidade do movimento, sem se quebrar nunca,
enquanto o Poeta fala.
O «Préstito Fúnebre» é das composições mais ricas sob o ponto de vista do
significado dos sons. Nota-se que as estrofes que se referem à gentil boieirinha
têm todas as rimas em i, o i que é na nossa língua a vogal por excelência da lin-
guagem em que as mães falam às crianças, a dos diminutivos de matiz afectivo 4.
E, pelo contrário, as estrofes em que se descreve o andar dos bois acabam nas
vogais abertas, como a, nas escuras, como o, nos ditongos nasais mais pesados,
como ões. Algumas vezes, chegam a cruzar-se os dois tipos de rima na mesma
estrofe, conforme o verso se refere aos bois ou ao castanheiro e aos passarinhos
ou à boieirinha. O contraste nota-se bem nestas duas estrofes que vou recordar
a seguir:
4
Cf. Castilho, Tratado de Metrificação Portuguesa, I, apud João da Silva Correia, A Linguagem da
Mulher, Lisboa, 1935.
9. AS IMAGENS E OS SONS NA LÍRICA DE GUERRA JUNQUEIRO 167
A «Canção Perdida» é toda ela uma peça musical. Aquele contraste entre os
longos tercetos em alexandrinos que evocam o ambiente, o verso solto que anuncia
o seguinte numa arrastada onda sonora, como esta:
e a quadra de sabor popular, cujo final se repete como um eco, faz deste «dueto
no infinito» de duas almas, como lhe chamou Leonardo Coimbra, uma obra-prima
de emoção.
O «Cavador» é todo ritmado por aquele verso cavo e soturno:
Ó dor, ó dor!
É o mesmo processo adoptado para descrever o mar num passo das «Confis-
sões» das Poesias Dispersas.
A sensação de hostilidade da montanha abrupta ao «Pastor» é dada nestes
dois versos:
Tem memória da primeira vez que teve contacto com a poesia de Guerra Junqueiro?
É difícil, até porque toda a gente sabia de cor poemas dele. Mesmo a minha
mãe e o meu pai, que ainda foram seus contemporâneos, recitavam versos dele. Os
versos de Guerra Junqueiro são muito cadenciados, entram facilmente no ouvido.
Por outro lado, os meus pais também me falavam da extrema consideração que
havia por ele em todo o lado.
Sim, é verdade. Entre os poetas portugueses do séc. XIX e começos do séc. XX,
poucos se podem comparar em popularidade com Guerra Junqueiro. Havia, como
disse, quem soubesse de cor trechos seus (lembre-se em especial a abertura e o
episódio do “Melro” em A Velhice do Padre Eterno) e pode dizer-se que todas as pes-
soas com alguma cultura absorviam o ritmo vibrante dos seus versos. No Porto,
a sua popularidade era tal que o alfaiate não lhe levava dinheiro pelos fatos e o
laboratório médico não lhe cobrava as análises (o que ele agradecia referindo-se
em especial ao “grátis que vem no fim”). Ele às vezes respondia com uns versos
a agradecer.
o seu envolvimento nas grandes questões que então agitaram o País. Lembre-se
apenas que no primeiro ano da República o povo do Porto fez uma romaria de
homenagem à casa do Poeta.
*1
Publicada em Pereira, Henrique Manuel, À Volta de Junqueiro. Vida, obra e pensamento. Universidade
Católica, Porto (2010), 150-162.
172 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Estará a referir-se aos mais de quatrocentos versos que Guerra Junqueiro eliminou da
Pátria?
Sim, e dos quais João Grave e Luís de Magalhães deram testemunho, não é?
Refere-se a Eugénio de Andrade. Com efeito, escreveu ele, em 1973: “Eu creio que Jun-
queiro está lá ao fundo do século dezanove muito contente por lhe estarmos a festejar mais
um aniversário. Deve estar convencido que ainda damos por ele, e assim parece. Mas não é
verdade – os últimos ecos da sua charanga levou-os José Régio para a cova. Esperamos que
para sempre”. Eugénio de Andrade, como crítico, parece-me bem inferior ao extraordinário
Poeta que é.
Sem menosprezo por ninguém, preferia que se citasse mais a si mesma, caso subscreva
ainda (ou não) o que escreveu há cinquenta e nove anos. Em 24 de Maio de 1950, proferiu,
no Museu Soares dos Reis, uma conferência subordinada ao tema As imagens e os sons
na lírica de Guerra Junqueiro. Teria então, se não erro, 24 anos de idade, o que é notável,
atendendo à qualidade do texto.
Sim, tinha essa idade, é verdade, e tinha por trás de mim o Desterrado, veja
que honra.
Volvidos que estão quase sessenta anos sobre essa data, recorda-se do repertório desse
recitativo.
Não. Apenas que depois houve outra conferência, passado algum tempo, mas
devo dizer que não me lembro de mais.
174 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Não, não as conhecia. Mas recordo-me que a viúva teve um comentário muito
curioso, talvez não muito lisonjeiro, que me está agora a lembrar: “Agora as Senho-
ras também fazem conferências...”. E repare que eu não era a primeira senhora
a fazer conferências, já tinha havido mais.
A sua conferência foi muito aplaudida. Por parte de D. Maria Isabel recebeu alguma
manifestação?
Não me recordo de ela dizer nada, penso que me terá felicitado, mas não me
recordo em pormenor. Era naquela sala enorme, onde estão as obras principais
de Soares dos Reis, a tal onde está o Desterrado. Lembro-me de que estava a sala
cheia, houve pessoas que gostaram, outras não sei.
Certo é que teve eco na imprensa da época. Aliás, o texto foi publicado nesse mesmo
ano, pela Livraria Portugália do Porto.
Junqueiro considerou Os Simples a melhor das suas obras. Sabemos, porém, que os
critérios de avaliação estão condicionados pela perspectiva e pela subjectividade. Porquê
essa sua abordagem especial a Os Simples?
10. ENTREVISTA 175
Porque as peças dessa obra merecem quase todas uma análise especial sob o
ponto de vista da musicalidade. Veja a tão conhecida “A Moleirinha”: tem aquele
ritmo peculiar que lhe comunica a onomatopeia toc, toc, toc, que aparece em todas
as estrofes, de preferência no princípio, às vezes no meio, para cortar a monotonia,
marcando a continuidade do movimento, sem se quebrar nunca, até ao final do
poema. E o “Préstito Fúnebre”, por exemplo, é das composições mais ricas sob o
ponto de vista do significado dos sons. Note-se que as estrofes que se referem à
gentil boieirinha têm todas as rimas em i. O i, curiosamente, é na nossa língua
a vogal por excelência da linguagem em que as mães falam às crianças, a dos
diminutivos de matiz afectivo. A “Canção Perdida” é toda ela uma peça musical.
Aquele contraste entre os longos tercetos em alexandrinos que evocam o ambiente,
o verso solto que anuncia o seguinte numa arrastada onda sonora...
Não é por acaso que também Os Simples mereceu particular apreço por parte dos nossos
compositores musicais. Prova-o, aliás, o trabalho A Música de Junqueiro, onde, de resto,
se gravaram quatro temas sobre a “Canção Perdida”.
Por isso, como escreveu, estabelecendo um equilíbrio ideal entre a ideia e a forma,
Guerra Junqueiro “assegurou a Os Simples um lugar de eleição entre as obras-primas da
lírica nacional”.
Uma autêntica sinfonia. Talvez por isso, depois de a ler, Luís de Freitas Branco compôs
um esboço sinfónico que intitulou “Fantasia para Orquestra”.
É que ela aproxima-se, de facto, mais do tom épico do que do lírico. De todas
essas sonoridades procurei dar exemplos no trabalho que referiu.
Não podia ocupar-me de toda a obra. Fiz-lhes uma rápida alusão, sim. Essas
obras ocupam um lugar à parte na lírica do nosso Poeta. Especialmente na Oração
à Luz, as imagens sucedem-se, alternando constantemente entre o abstracto e o
concreto, para melhor dar o indefinível do que se pretende mais sugerir do que
descrever. As metáforas vêm quase todas da liturgia – “claro mistério”, “eucaristia
santa”, “virgem ígnea”, “fiat”, “verbo”, “calvários”... As transposições de termos
do seu sentido próprio dão imagens de grande beleza. Relativamente à Oração à
Luz, melhor do que qualquer análise, fala o sortilégio estranho dos seus versos.
Relativamente às “imagens”...
Como vê, seria oportuno pensar-se numa reedição de As imagens e os sons na lírica
de Guerra Junqueiro... A saudade é também uma marca na obra de Junqueiro.
Uma das ideias daquele seu trabalho é esta: “As imagens são tiradas com a mesma
abundância de qualquer reino da natureza, dos sentimentos, das abstracções. E que seguem
um caminho ascensional desde as primeiras grandes obras até a Os Simples, para se espiri-
tualizarem, livres já de todo o contacto com a matéria, nos versos aéreos da Oração à Luz.
E observamos que os sons seguem uma evolução paralela”. Subscreve ainda hoje este texto?
Para além do uso da língua latina – desde logo em títulos como Mysticae Nuptiae
(1886), Finis Patriae (1891), etc., – é sensível a cultura da Antiguidade Clássica na obra de
Guerra Junqueiro?
Sim, mas não creio que, nessa área, os seus conhecimentos se elevassem acima
da média. Repare, no tempo de Junqueiro aprendia-se latim ao longo de todo o
liceu. No entanto, há um deslize, um erro sintáctico, que podemos apontar em
um dos primeiros poemas de Os Simples: “In Pulvis”.
É um facto. Tanto que João Grave, no prefácio a O Caminho do Céu (1925) não perdeu
a oportunidade de o emendar para “In Pulverem”.
Os processos literários não divergem dos das outras obras. Do projecto que
conhecemos, pode dizer-se que oscila entre o histórico e o simbólico. A partir de
um diálogo entre Prometeu no Cáucaso e Cristo no Calvário, cada um defende um
178 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Para o estudioso actual, talvez seja difícil entender esta periodização da história da
humanidade.
Sim, até porque, no Canto II, começa na fase “desde Alexandre até Heliogábalo”
até à “bacanal naturalista”. Ora, se é certo que o último dos Severos e toda essa
dinastia em geral cometeu toda a espécie de crimes, não pode englobar-se nesse
rol a brilhante cultura helenística nem a Pax Augusta, para já não falar nos cha-
mados “bons imperadores” antoninos. De passagem, o poeta deixa entrever, no
entanto, certos conhecimentos da crónica imperial, quando enumera atrocidades
e extravagâncias de alguns Césares.
Para além dos esquemas, Luís de Magalhães publicou ainda um trecho chamado
“O Infinito”, uma poderosa sequência de alexandrinos composta em 1879, e outra “A Ressur-
reição Pagã”, além de uma quadra, talvez do Canto II, que devia concluir a cristianização
posterior ao sermão de S. Paulo...
espiritualizada”). Nem todas estas inovações são felizes e, para quem conhece
a dispersão do poeta por actividades políticas, agrícolas e até de antiquariado,
torna-se compreensível que ele tenha deixado arrastar-se durante anos a com-
posição desta obra.
Segundo o próprio poeta, de todas essas atividades dispersivas, teria pesado mais
“a infernal política”. Se não fosse ela, estava convicto, teria feito do seu Prometeu “um dos
maiores poemas contemporâneos”.
Como quer que seja, dir-se-ia que no percurso combativo, cheio de ilusões, de
Prometeu, até alcançar a verdadeira felicidade, a felicidade proveniente da harmo-
nia espiritual, se prefigurava um itinerário autobiográfico que só no entardecer
da vida se aproximara da realização plena.
(Página deixada propositadamente em branco)
11. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO:
DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE *
A cena passa-se na cidade de Lisboa, depois das cortes de 1439, em que, «antre
as outras graças e liberdades, que o Infante Dom Pedro em nome d’El Rey outorgou
ao povo, foy que nom ouvesse apousentadorya em Lixboa, fazendo estaos e casas,
em que se El Rey e sua Corte podessem alojar». Estas palavras lêem-se hoje no
final do cap. XLIX da Crónica do Senhor Rey D. Affonso V, pouco antes da fala de João
Gonçalves, procurador da Cidade do Porto, que vai reclamar a entrega da educa-
ção do pequeno monarca e de seu irmão ao Regente. Se este texto e os capítulos
que se lhe seguem são de Rui de Pina, não será aqui o momento para o discutir.
Pensamos, com Rodrigues Lapa e Lopes de Almeida1, que uma análise estilística
cuidada desse autor em confronto com Fernão Lopes seria um dos meios mais
seguros de comprovar a veracidade da afirmação de Damião de Góis, segundo a
qual o primeiro dos nossos historiadores teria levado as suas Crónicas até Alfar-
robeira 2, e observamos desde já que uma primeira abordagem do processo, quer
quanto à ordenação frásica, quer quanto ao curso rítmico, quer ainda quanto à
*
Publicado em Biblos 69 (1993), 417-428.
1
M. Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval (Coimbra 101981), p. 380; M.
Lopes de Almeida, Introdução às Crónicas de Rui de Pina (Porto 1977), p. XXII. Num contexto diferente,
J. Veríssimo Serrão, Cronistas do Século XV Posteriores a Fernão Lopes (Lisboa 1977), p. 66, acentua o valor
artístico dos capítulos dedicados à batalha de Alfarrobeira e à exclamação à morte do Infante. Por
sua vez, António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa (Porto 161992), p. 141,
apontam no que chamam com razão a primeira parte da Crónica de D. Afonso V, ou seja, a da Regência,
uma «perspectiva muito semelhante à de Fernão Lopes, embora em estilo discreto, quase oficioso».
2
Referimo-nos principalmente ao passo do cap. VI da Crónica do Príncipe D. João em que se lê: «Ha
qual historia geral, Fernão Lopes continuou atte ha morte do Infante dom Pedro, quomo ho mais
largamente tratto na quarta parte da chronica delrei dom Emanuel cap. xxxvii, que compus alguns
annos depois desta» (ed. Graça Almeida Rodrigues, Lisboa 1977). São menos claras, embora mais
extensas, as críticas da Crónica de D. Manuel, e talvez demasiado confiantes nos dons do autor para
distinguir «antre stylo e stylo», como notou Hemâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas,
I (Coimbra 51968), pp. 74-75.
182 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
disposição dos episódios, de molde a convergir para o grande quadro final, aponta,
em nosso entender, nesse sentido3.
Aceitamos no entanto, embora com reservas, que o texto é de Rui de Pina.
Dois capítulos adiante, vem a parte que nos interessa directamente. É aquela
onde se lê que os cidadãos de Lisboa, para comemorar o enorme benefício, «lhe
quyseram com seu consentimento ordenar hũa estatua de pedra sobre a porta dos
Estados, que o Infante novamente mandou fazer, e preguntando-lhe em que forma
a averia por melhor que estevesse, o Infante com o rostro carregado de tristeza
e pensamento, o desviou e defendeu, dizendo-lhes, como verdadeira profecia de
sua fim; ‘Se a mynha ymagem ally estevesse esculpida, ayuda virám dias, que em
gallardam dessa mercêe, que vos fyz e doutras muitas, que com a graça de Deos
espero de vos fazer, vossos Fylhos a derrybaryam, e com as pedras lhe quebrariam
os olhos. E por tanto Deos por ysso me dê bom gallardam, cá de vós em fym nam
espero outro se nam este que digo, e por ventura outro pior.’ Das quaaes pallavras
foram entam os Cidadaaõs tam maravylhados, como foram despois certifycados,
que dizia verdade, quando assy o viram comprir.»4
O cronista observa que era de presumir «que o Infante alguma revelaçam
tynha de sua morte», o que comprova com o diálogo havido mais tarde em Coim-
bra, quando o Regente, a caminho da Porta de S. Bento, na companhia do Infante
D. Henrique, avista as armas da Cidade, que estavam sobre a ponte, e, rejeitando a
interpretação alegórica favorável que delas faz o irmão, as explica de outro modo:
o cálice significa sangue, «em que mais claro parece, que de meus trabalhos, ser-
viços e beneficios, esse ha de ser meu gallardam».
O motivo do pressentimento ouvir-se-á de novo, mais próximo do desenlace,
quando o Duque de Coimbra passar pela Batalha (cap. CXVII), onde «esteve olhando
com muita tristeza a sepultura ainda vazia, que em sua Capella lhe fora ordenada
sobre que dysse muytas cousas, que pareciam ja revellaçooes d’alma, e sentymento
da carne que a cedo avia de povoar». 5
Um e outro episódio estão ausentes de outros escritos da época que falam
desta figura, a Tragedia de la insigne Reyna Dona Isabel, do Condestável D. Pedro, e
3
Veja-se, a propósito de Fernão Lopes, o estudo pioneiro de A. E. Beau, «A preocupação literária
de Fernão Lopes», Boletim de Filologia 14 (1954) = Estudos I (Coimbra 1959), pp. 1-39. Quanto à ordenação
dos episódios no mesmo cronista, «em torno de pontos de convergência», leia-se António José Saraiva,
Fernão Lopes (Lisboa 1955), pp. 64-71.
4
As citações de Rui de Pina são feitas pela edição de M. Lopes de Almeida referida na nota 1.
5
Os presságios, astrologicamente fundamentados ou não, são frequentes nesta Crónica: eclipse
(talvez parcial) do Sol, durante duas horas, aquando do falecimento do Rei D. Duarte, tal como já suce-
dera no de D. João I e no da Rainha D. Filipa (cap. I); regulação, por Mestre Guedelha, da hora e ponto
favorável ao levantamento de D. Afonso V por rei e à prestação de obediência (cap. II). Recordem-se
ainda as advertências frustradas do mesmo «físico» (Crónica de D. Duarte, cap. II) e o modo como o Rei
não pôde ordenar festas de regozijo pela imposição de óleo aos filhos (ibidem, cap. IX).
11. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE 183
6
Na sua edição da Crónica Geral de Espanha de 1344, vol. IV (Lisboa 1990), pp. 550-551.
7
Na sua introdução à edição das Crónicas dos Reis de Portugal reformadas pelo Licenciado Duarte
Nunes de Leão (Porto 1975), M. Lopes de Almeida comenta (p. XXXI): «O inventário completo e a
análise comparativa das fontes das Crónicas dos Reis, mesmo quando não fossem exaustivos, pediam
um estudo particularizado, que mostrasse a aptidão selectiva e crítica do escritor, a marca funda-
mental da sua cultura e preparação geral. Até que ponto se apoderou e valeu das crónicas antigas
portuguesas ou castelhanas?»
8
Sobre a aposentadoria, condenada implicitamente por Fernão Lopes na Crónica de D. João I, veja-
-se José Hermano Saraiva, «A Revolução de Fernão Lopes», in Outras Maneiras de Ver (Lisboa 1979) cit.
por João Gouveia Monteiro, Fernão Lopes. Texto e Contexto (Coimbra 1988), p. 139, nota 22. Este último
autor sustenta a tese de que o nosso primeiro historiador defende indirectamente a actuação política
do Regente, ao reconstituir o tempo de D. João I.
184 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A razão, como se vê, é outra, embora o autor das Vidas Paralelas e dos Moralia
tivesse começado a ser um dos grandes educadores da Europa, como se lhe tem
chamado, já na Idade Média latina, e circulassem versões em aragonês e em tos-
cano de obras suas desde o final do séc. XIV9.
Mais próxima estaria a razão invocada por Tibério, quando quiseram erigir-lhe
um templo na Hispania Vlterior, pois, escreve Tácito, «o que importa é que digam
que desempenhou bem o seu lugar, se não desprezá-lo-ão como um sepulcro»
(Anais IV.38-39)10. Mas os seis primeiros livros dos Anais apenas se conservaram
num manuscrito copiado em meados do séc. IX na Alemanha e só foram difundi-
dos a partir de começos do séc. XVI. Portanto, a simples história da transmissão
do texto invalida a hipótese11. De qualquer modo, o segundo dos imperadores
romanos estava longe de ser um paradigma moral...
Outro exemplo conhecido surge em Valério Máximo IV.1.6, e esse diz respeito
a uma grande figura da Antiguidade, Cipião-o-Africano. Também a ele quiseram
os seus contemporâneos erigir estátuas em todos os lugares principais de Roma;
por último, até na cella do templo de Júpiter Óptimo Máximo. Mas esta e muitas
outras manifestações de admiração, todas ele recusou, de tal modo que «quase
se esforçou tanto a recusar honrarias como o fizera a merecê-las».
Se houve autor menor lido e mesmo traduzido no séc. XV, foi este: vinte edi-
ções, só nos alvores da imprensa. Mas antes disso fora muitas vezes copiado e a
corte de Avis conhecia-o bem: é citado na Virtuosa Benfeitoria, no Leal Conselheiro,
na Tragedia de la Insigne Reina Dona Isabel, nas Crónicas de Zurara. Na biblioteca de
D. Duarte havia um exemplar em latim, outro «per aragões».
Porém, o que ressalta das palavras do Regente não é simplesmente a modéstia
dos grandes homens, a quem importa só cumprir o seu dever, não vê-lo reconhe-
cido. É antes a consciência da inconstância da gratidão humana, visualizada até
ao pormenor: «vossos fylhos a derrybaryam, e com as pedras lhe quebrariam
os olhos». Falava o mesmo príncipe que jurara que «os que bem e dereitamente
vivessem, esperassem delle em nome d’El Rey seu Senhor, bem e mercêe, e assy
pena e castygo aos que o contrairo fizessem»12. São estes os dois grandes tópicos
9
Cf. D. A. Russell, Plutarch (London 1973), p. 147. Plutarco (Alexandre 72; cf. Moralia 335e) refere
ainda a proposta que um arquitecto fez ao famoso general de transformar o Monte Atos da Trácia
na sua estátua gigante, o que ele não aceitou. A mesma história é mencionada com variantes em
Vitrúvio (De architectura II, praef.), Estrabão (XIV.641) e Luciano (Quomodo historia conscribenda sit 12
e Pro imaginibus 9).
10
Devo a localização deste passo ao Dr. Carlos Alberto Louro Fonseca.
11
Sobre a transmissão dos Anais, vide L. D. Reynolds, ed., Texts and Transmission. A Survey of the
Latin Classics (Oxford 1983), s.v. A versão de Suetónio, Tibério 26 é um pouco diferente: «Permitiu-o
só com a condição de não serem colocadas entre as estátuas dos deuses, mas entre os ornamentos
dos templos».
12
Rui de Pina, Crónica do Senhor Rey D. Affonso V, cap. XLIX.
11. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE 185
13
As duas últimas, publicadas pela primeira vez por António José Saraiva, na sua edição das
Obras Completas de Correia Garção (Lisboa 1957), 2 vols., cujo texto seguiremos.
14
Estes dez versos faltam, segundo António José Saraiva, no MS. FG 8609 da Biblioteca Nacional
de Lisboa. Mas figuram também no MS. 392 Manizola da Biblioteca Pública de Évora, quase sem
variantes.
Agradeço a localização deste segundo códice aos Doutores Aníbal Pinto de Castro e Vítor Manuel
de Aguiar e Silva, o que me permitiu consultá-lo. Efectivamente, à data em que fez a edição do nosso
poeta, António José Saraiva dera-o como de paradeiro desconhecido (Vol. I, p. LIV, n.° 3).
186 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Mas, com esta breve análise, o interesse do poema fica longe de estar esgo-
tado. É que ele tem toda uma história por trás: aquela que, segundo uma tra-
dição conservada na família do poeta, via na escolha deste tema uma censura
velada à dedicação da estátua de D. José, a qual teria sido a causa do misterioso
encarceramento do autor até à morte. Seria, por conseguinte, «um documento
de oposição ao governo pombalino», na frase de António José Saraiva15. O mesmo
professor recorda os dois argumentos principais em contrário: a nota à margem
do manuscrito setecentista do Cónego Manuel de Figueiredo, que atribui ao poema
15
A discussão deste assunto figura no prefácio da edição citada, Vol. I, pp. XXV-XXVII.
11. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE 187
a data de 1754 e afirma ter sido lido na Academia dos Ocultos; e a existência de
uma ode e uma epístola de Garção que celebram o futuro Marquês de Pombal nos
mais encomiásticos termos.
A primeira objecção resulta de uma incompatibilidade de datas, uma vez que a
Academia dos Ocultos terminou com o Terramoto e o projecto da famosa estátua
equestre data de 1770, ao passo que a sua inauguração, festejada com uma grande
manifestação pública e consagrada em odes e epigramas em português e em latim,
se realizou em 177516; a segunda será explicável pela necessidade de compor um
poema de circunstância para a sessão de homenagem da Arcádia à elevação de
Carvalho e Melo a Conde de Oeiras17 (poema esse em que, aliás, A. J. Saraiva dis-
tingue, nalguns versos, «uma oposição particular e secreta», a relacionar com o
facto de o poeta contar entre os seus amigos outros perseguidos pelo Marquês,
como o Conde de S. Lourenço e a família Alorna). Poderemos recordar ainda que
a Epístola parece ter-se destinado a solicitar um favor ao seu destinatário. Mas,
por outro lado, não deixa de ser estranho que o poeta da «Fala de D. Pedro» tenha,
em 1759, ao celebrar na Arcádia a concessão do título de Conde de Oeiras numa
extensa ode pindárica, incluído nela uma estrofe (vv. 139-146) em que se contém
a sugestão de «uma soberba estátua / de rico jaspe, como tu mereces», e, talvez
não muito antes disso, na extensíssima Epistola IV18, fizesse perpassar, também,
no meio de uma enumeração dos mais conhecidos actos governativos do Ministro
de D. José, a sugestão das honras de uma estátua (vv. 189-191):
16
Exemplos desse fervor poético (que, de resto, a obra-prima de Machado de Castro bem merecia)
são a Ode III de António Dinis da Cruz e Silva e quatro epigramas latinos de Elpino Duriense (Poesias,
Vol. III, pp. 210-211), além de uma alusão numa Ode (II, 9-10). A este conjunto podemos juntar outro
grupo De Equestri Regis Iosephi I Statua Epigrammata, contidos no MS. 1-54 da Biblioteca Pública de Évora.
Quanto às cerimónias da inauguração, observa José-Augusto França, A Arte em Portugal no Séc. XIX
(Lisboa 1966), Vol. II, p. 204, que foram as grandes manifestações públicas em Lisboa anteriormente
ao tricentenário de Camões (apud Antonio Filipe Pimentel, «O cortejo cívico das comemorações
camonianas de 1880» in Romantismo – Figuras e Factos da Época de D. Fernando II (Sintra 1988), p. 281). Reis
Quita dedicou o Soneto IV só ao busto do Marquês. A outra face da medalha pode ver-se na antologia
organizada por Alberto Pimenta, Musa Anti-Pombalina (Lisboa 1982), Sonetos 115 e 116.
17
Sobre a data a atribuir-lhe, vide op. cit., Vol. I, pp. 209-210 nota 1.
18
Vejam-se outros exemplos no nosso livro Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa
(Lisboa 1988), pp. 172-173.
188 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
podemos repetir com A. J. Saraiva, que «a hipótese de que tenha razões políticas
o encarceramento de Garção não é portanto desprovida de verosimilhança. Mas
nada mais se pode adiantar»19. Não deixa, porém, de ser interessante que a uma
obra-prima da escultura portuguesa ande associado um poema de Correia Garção,
que terá ido buscar este exemplum histórico de uma figura que cedo entrara na
lenda como um modelo de governante perfeito e justo, a quem o favor dos homens
fora adverso.
O episódio da recusa da estátua pode ver-se também, de passagem, em alguns
dos dramas sobre a vida do Infante D. Pedro: é o caso do mais célebre, O Regente
de Marcelino de Mesquita, e ainda da peça de Henrique José de Castro, O Duque
de Coimbra, e da de Francisco Manuel Trindade, O Pajem de Alfarrobeira, ambas
anteriores àquela 20. O historiador Oliveira Martins também lhe faz referência 21.
Mas não é desses pequenos ecos da questão que vamos agora ocupar-nos. Pelo
contrário, vamos avançar mais de duzentos anos sobre o poema de Correia Garção,
para chegarmos a 1981, data em que Manuel Alegre publicou Atlântico, aquele que
João de Melo considerou «livro central de toda a sua obra», pois, continua o mesmo
crítico, «capta esse universo sombrio e empresta-lhe o sopro de uma energia que
atinge a transparência e a luz de uma autêntica contra-epopeia lusitana»22.
Estamos agora perante um poeta que, como Correia Garção, conheceu as agru-
ras do cativeiro, embora, muito ao invés do árcade setecentista, tenha gozado o
momento da vitória das ideias por que lutara e sofrera. Um poeta que conhece e
medita os textos antigos e que exprime, através desse reviver de histórias emble-
máticas, contadas muitas vezes com um ritmo encantatório (caso especial de «Nova
do Achamento») ou em dois níveis narrativos (caso de «Crónica de Abril segundo
Fernão Lopes»), exprime, dizíamos, a tensão entre a linha pura de um passado
temperado em altos princípios de ética e um presente de valores oscilantes, que
precisa de se resgatar. Porque, como escreve no poema «Esquerda como canção»23:
19
Op. cit., Vol. I, p. XXVIII.
20
Dados colhidos no artigo de José Pereira Tavares, «O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra e
Senhor de Aveiro na Literatura», Arquivo do Distrito de Aveiro 122 (1965), p. 151 e nota 1.
21
Fazendo uma comparação, que não nos parece feliz, do Regente com Hamlet (Os Filhos de D. João
I [Lisboa 61936] p. 501). Melhor viram, em nosso entender, quer o Condestável D. Pedro (na Tragédia
de la insigne Reina D. Isabel), quer Vasco Fernandes de Lucena (no prólogo à sua tradução da oração do
Deão de Vergy), que o equipararam às figuras das antigas tragédias.
22
Na apresentação do Vol. I das Obras do poeta, O Canto e as Armas (Lisboa 1989), p. 18.
23
Vol. II, p. 124.
11. A ESTÁTUA DO INFANTE D. PEDRO: DE RUI DE PINA A MANUEL ALEGRE 189
É tudo isto que enforma os seis poemas que constituem o «Romance de amor e
morte do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra». Destas composições, a primeira é
uma balada assente no Livro das Sete Partidas de Gomes de Santo Estêvão, ao passo
que a terceira, quarta e quinta têm epígrafes alógrafas tiradas do próprio texto
de Rui de Pina.
Todo o conjunto forma um verdadeiro políptico, em que o poema que mais nos
interessa neste momento, «A Estátua», ocupa um lugar central.
Formalmente, temos dezassete decassílabos rimados que glosam, na aparência, a
narrativa de Rui de Pina. Lá está a recusa da estátua em pedra na porta dos Estaus;
o motivo do futuro e previsível quebrar da estátua pela geração seguinte; ecos
verbais que remetem para diferentes passos da crónica medieval, como ‘galardão’
e ‘vilanagem’ (e não esqueçamos como são frequentes as intertextualidades em
Manuel Alegre)24. Também ressoa aqui a segunda profecia atribuída ao Regente
(a da interpretação da divisa da Cidade de Coimbra), na lembrança do sangue que
será seu galardão. O poema ergue-se, porém, a partir destes dados, a motivações
mais altas – a inteireza do seu ser, que há-de resistir muito para além da dureza
do material da estátua:
Rui de Pina, Correia Garção, Manuel Alegre – três mentalidades tão diversas,
como diversas foram as circunstâncias epocais que os moldaram –, embora com
referentes comuns, por se inscreverem todos eles em período de crise de valores,
trabalham o mesmo tema – histórico ou não – da recusa da estátua pelo Infante
24
Cf. João de Melo, cit., p. 21.
190 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
D. Pedro. Coloca-se a primeira narrativa num contexto de presságios, que são afi-
nal uma forma de tornar bem clara a experiência que o Regente, o culto, viajado
e meditativo Regente, tinha colhido da fraqueza, versatilidade e ingratidão do
ser humano em geral. É a segunda principalmente uma apologia da Justiça e das
qualidades do bom governante. O poema de Manuel Alegre – tanto quanto é lícito
desinseri-lo do conjunto a que pertence – está construído sobre uma afirmação
de grandeza moral que se perfila, inatingível e invulnerável, acima da «inveja
fingimento ingratidão» em que ele se sente envolvido. Todo o «Romance» vai ter,
de resto, este leit-motiv, até culminar com o poema final, «Alfarrobeira», onde
novamente, no meio de uma série de versos em enjambement, que sugerem a pre-
cipitação do desfecho iminente, se ouve retumbar um dos motivos de «A Estátua»:
Os versos finais deste poema são uma exortação para servir no futuro. Algo
que podia estar no hipotexto de Garção, se na verdade ele se relaciona com a
resistência ao despotismo e suas manifestações externas. Mas que, aqui, ressoa
alto como um clarim.
12. «SONETOS DO OBSCURO QUÊ»*1
*1
Publicado em Jornal de Letras 600 (4-10.1.1994), 14-16.
192 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Poder-se-á lembrar que uma das teses mais conhecidas sobre a origem do
soneto lhe aponta também origem popular, resultante da fusão de dois estram-
botos sicilianos, um de oito, outro de seis versos. Mas este esquema versificatório
teria sido em breve reelaborado por poetas maiores: Cavalcanti, Dante e, sobre-
tudo, Petrarca. É consagrado principalmente à expressão do amor e à reflexão.
A sua melodia própria (e não é mesmo a noção de «melodia» que está no étimo
da designação?) exige um domínio da forma e dos sons que poucos possuem; e
bem assim a concentração num conceito final, que surge como uma conclusão
natural, ou então como uma farpa aguda, a apontar noutra direcção. Ora todas
estas capacidades estavam presentes há muito na arte deste poeta.
E havia mais. Dante, que compôs, em La Vita Nuova e em Rime o Canzoniere, alguns
dos mais belos sonetos da lírica italiana, teve no seu tempo uma activa participa-
ção política, que lhe valeu uma vida errante e levou para longe «di quella nobil
patria» (Inferno X.26). Às afinidades daqui decorrentes vem juntar-se outra que
está na essência deste novo livro: a ansiedade ante a fragmentação que ameaça
a «soberba Europa belicosa», justamente numa fase da sua longa história em que
as aparências decorrentes de actos públicos que deveriam ter um alcance sem
precedentes proclamam a união. Era essa a posição de Dante perante as lutas
que dividiam a Itália que ele sonhava unificar. Por isso, não é por acaso que nesta
obra de Manuel Alegre o trovador Sordello aparece mencionado no «Soneto 2»,
numa réplica ao v. 74 de Purgatorio VI, precisamente com uma parte da frase que
precede a apóstrofe do poeta à Itália dilacerada da época. No mesmo sentido da
identificação vai o verso do «Soneto 3»: «Todos somos exilados de Florença».
O livro abrira da sob a égide de uma epígrafe dantesca da Vita Nuova, anuncia-
dora da forma escolhida: «l’arte del dire parole per rime», que vai ser o soneto. Esta
é a forma disciplinada, ordenada, da grande tradição europeia, que se oporá, no
«Soneto 4», qual vento de Pentecostes, à Babel e Nemrod da segunda composição
(e note-se a simetria da colocação destes topoi):
Cada uma das dez partes em que se divide o livro terá, além disso, a sua epígrafe
dantesca, tirada, ora de Vita Nuova, ora da Divina Comédia. Apenas se exceptua,
ocupando quase o centro (na parte VI), uma citação das Rimas, de Cavalcanti,
12. «SONETOS DO OBSCURO QUÊ» 193
extraída do começo da mais famosa das suas baladas, a que compôs ao sair de
Florença sem esperança de regresso (que, de resto, acabou por se consumar mais
tarde, devido à doença do poeta). Deixando de parte a vexata quaestio da partici-
pação de Dante, aliás seu grande amigo e admirador, na ordem de exílio imposta
pelos priores da cidade do Arno, salientemos apenas que este é outro poeta do
exílio. Como ele, Manuel Alegre canta feitos e figuras contemporâneas suas (os
dois sonetos anteriores exaltam a mensagem de Maio de 68 e a de Che Guevara),
culminando na evocação aos «camaradas dos campos de batalha/ as armas e as
guitarras destroçadas». Por isso o último terceto dessa última peça do grupo
clama, apoiando-se na polissemia de «barbarismo», que tanto é o da linguagem
como o da guerra:
A aliteração deste último verso, que remete para os círculos do Inferno, após
um requisitório aos crimes do homem moderno e às suas ousadias, vai regressar
na penúltima linha, para fechar com o mote dantesco inicialmente memorado:
– já não há Virgílio
para guiar-me a um reino de harmonia.
Por isso o meu cantar é outro exílio.
Espécie de poética do soneto, passando mais uma vez sob a sombra de Dante
e seguindo O’Neill com mestria no seu difícil e famoso exercício dos «Quatorze
Versos», em «Soneto do Soneto», e formando um não menos hábil contraste entre
os homeoteleutos em catadupa das duas quadras de «Eloquentia» e a acalmia final
do último terceto, a lembrar os preceitos do tratado do Florentino:
a nona série vai culminar com uma composição que é indirectamente mais um, e
não dos menos belos, elogios da Língua Portuguesa, aquela que Afonso Lopes Vieira
dissera estar habituado a falar ao mar e aos ventos. E mais uma vez perpassam
neste poeta embebido de camonismo, trechos de Os Lusíadas, que o próprio nome
do nosso poeta máximo vem convocar.
196 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Sabem todos os leitores da Divina Comédia que as suas três partes terminam
com a palavra stelle, que no Florentino é metonímia do céu e da sua felicidade
inalterável, a que o autor aspira. Tem, portanto, como afirmam os comentadores,
um valor premonitório e ao mesmo tempo augural. Não é, porém, esse o papel
emblemático que assumem aqui as estrelas. Elas funcionam como o símbolo da
meta principal das viagens espaciais, da tentativa de desvendar as origens e os
limites do Cosmos, velha questão que os primeiros filósofos gregos equacionaram
no seu espírito e no seu ensino e que a moderna astronáutica pretende resolver
com os nunca sonhados meios técnicos de que dispõe.
Mas este e muitos outros progressos da ciência não despertam no poeta o calor
do entusiasmo que no chamado Século das Luzes percorre tantas obras de vates
setecentistas, extasiados com os progressos do Homem. É que este saber não é
gerador de esperança, mas de ansiedade. E esta ansiedade, que começara por se
manifestar ante a desagregação de povos e nações, está agora confrontada com
o «Obscuro quê» que dá o nome ao livro e ao seu penúltimo soneto. Por isso, um
advérbio de dúvida («mas cuidado com os advérbios», lia-se na página anterior)
é tudo quanto resta da esperança para religar de novo o desalento presente ao
luminoso verso de Dante:
Estas são algumas das várias leituras possíveis que um notável livro de poesia
nos pode oferecer. Mas uma obra de verdadeira arte tem sempre muitas mais, que
não caberiam numa simples apresentação. Quem o ler julgará por si, na certeza de
que, para além da sedução dos ritmos e da forma, encontrará sempre por trás um
espírito empenhado nos grandes problemas do nosso tempo, alguém que sente e
reflecte e nos convida a meditar sobre o destino do homem e, em ligação com ele,
sobre o destino e a missão da poesia.
III. CAMONIANA VARIA
(Página deixada propositadamente em branco)
1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA
DOS DESCOBRIMENTOS *
*
Publicado em Oceanos 21 (1995), 65-70.
1
Desde Wilhelm Storck, seguido por Epifânio e outros. F. Rebelo Gonçalves, na sua exaustiva
análise de «A Fala do Velho Restelo», incluída nas suas Dissertações Camonianas (São Paulo, 1937),
pp. 91-177, cita, a propósito, uma frase feliz de Afrânio Peixoto, Camões e o Brasil, p. 201: «O Velho do
Restelo, por si só, é como um coro de tragédia antiga, que fala à razão, com o bom senso popular,
com a experiência da idade, e também para não ser ouvido, ou atendido».
2
IV. 90-91. Sobre as fontes clássicas destas duas falas, para além das conjecturas desmesuradas
de Faria de Sousa, ver Rebelo Gonçalo, Dissertações Camonianas, pp. 114-122. Pouco importa, de resto,
ao nosso propósito, que haja reminiscências quase contínuas de Virgílio e de Ovídio na estrofe 90.
A cena da partida das naus de Vasco da Gama aparece em outros autores do século XVI, como João
de Barros, Décadas IV.2 («lançar juízos segundo o que cada um sentia daquela partida»), Fernão Lopes
de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, I, 2, e Damião de Góis,
Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Parte I, cap. 24. Mas só em D. Jerónimo Osório, De Rebus Emanuelis
Gestis, Livro I, se faz ouvir «a fala de muitos», mais próxima, aliás, conquanto muito mais breve, da
do Velho do Restelo.
200 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
3
Carta XXIII. «Tende mão, filha: sabeis latim, criastes-vos em mosteiro, tendes marido na
Índia? Ora ide-vos embora, e vinde cá outro dia, que vos é força que tragais muito que dizer, e eu
estou hoje com muita pressa». Algumas linhas atrás, D. Francisco Manuel de Melo tivera, ao menos,
a inteligência de reconhecer: «o ponto está em que o latim não é o que dana; mas o que consigo traz
de outros saberetes envolto aquele saber».
4
Talvez possamos encontrar os primeiros exemplos, no território que havia de ser Portugal, ainda
no século X. Um é o célebre testamento que Mumadona fez das suas vilas ao Mosteiro de Guimarães
onde figura uma biblioteca latina de vinte «libros eclesiasticos e alios spirituales», a maioria próprios
do culto, mas também os Moralia in Job de S. Gregório Magno e as Etymologiae de Santo Isidoro de
Sevilha. A dúvida está em saber em que medida a doadora tinha conhecimento destas obras. Outro
exemplo figura na contemporânea Vita Sanctae Senorinae, a aceitarmos a versão dos Acta Sanctorum,
quando diz exacte martyrum acta legebat, onde a tradução portuguesa, talvez do século XIV, escreve
que eram lidas «perante si per linguagem». Se seguirmos este texto, teremos de recuar cerca de
duzentos anos os primórdios da língua portuguesa escrita. Para mais pormenores, veja-se o nosso
artigo «As biografias medievais de Santa Senhorinha», in Actas do 1º Ciclo de Conferências S. Rosendo e o
século X, Santo Tirso 1992, pp. 127-137. Os exemplos de alfabetização feminina vêm, como é sabido, da
tradição monacal. Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, (trad. port.: Lisboa, 1994), pp. 184-185,
1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS 201
doutas, ou, como frequentemente se dizia então, às mulheres latinas. Já não são,
portanto, as que ficaram na praia ou nas casas, mas as que, no claustro ou no
paço, difundiam o saber em sua volta.
«Mulheres latinas» eram, com efeito, desde os primórdios do Humanismo,
predominantemente as aristocratas, muitas delas princesas ou até mesmo rai-
nhas, patronas das artes e letras, que atraíam à sua corte poetas e eruditos, e com
eles se carteavam. Sucedia isto na Itália, pátria do Humanismo, onde a paduana
Maddalena Scrovegni é a primeira a brilhar, ainda no século XVI. Muitas se lhe
seguem, nesse e noutros países.
No nosso, era costume situar este florescimento da cultura no feminino na
corte da infanta D. Maria. Nos últimos decénios, porém, os estudos de A. Costa
Ramalho 5 têm vindo provar que tal fenómeno pode recuar pelo menos meio
século, até ao tempo de D. João II. Efectivamente, os trabalhos desse professor
vieram datar a entrada do Humanismo em Portugal de 1485, após a chegada de
Cataldo Parísio Sículo, que, convidado a ensinar D. Jorge, o filho bastardo do Rei,
contará entre os seus discípulos mais brilhantes a filha do Marquês de Vila Real,
D. Leonor de Noronha.
Esta é, portanto, uma das primeiras grandes figuras femininas, como pode
deduzir-se dos elogios que o mestre lhe tece nas suas cartas e da obra que deixou,
a tradução da Crónica Geral do humanista italiano Marcantonio Coccio Sabellico,
que verteu em português, e a História da Nossa Redenção6. Vale a pena transcrever
a versão da parte da Carta ao rei D. Manuel em que Cataldo se refere a esta bri-
lhante discípula7:
fala de uma linha de estudiosas entre o século X e o século XIV, que principia em Hrotswitha de
Gandersheim, cujas obras viriam a ser publicadas séculos depois.
5
Da sua vasta obra, refiram-se sobretudo os artigos contidos em Estudos sobre a Época do Renasci-
mento, Coimbra, 1969, Estudos sobre o Século XVI, Lisboa, 1983, Para a História do Humanismo em Portugal,
vol. I, Coimbra, 1988 e vol. II, Lisboa, 1994, e ainda a antologia Latim Renascentista em Portugal, Coimbra
1985. Foi-nos ainda especialmente útil a consulta do Prefácio com que antecede a reedição fac-similada
do estudo pioneiro de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e
as suas damas [daqui em diante citado só A Infanta D. Maria]. Sobre outros aspectos do Humanismo
em Portugal, perspectivado sobretudo no enquadramento europeu, vejam-se os trabalhos de J. V.
Pina Martins, nomeadamente Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal. Les deux regards de Janus,
2 vols. Lisboa, 1989.
6
Veja-se o artigo sobre D. Leonor de Noronha na Enciclopédia Verbo, em que A. Costa Ramalho
prova que a aristocrata portuguesa não foi aluna de André de Resende, como supôs Barbosa Machado
e outros. A enumeração das obras e outros esclarecimentos encontram-se no Prefácio de A Infanta D.
Maria, pp. IX-XI. Nesse mesmo prefácio, o autor chama a atenção para as considerações sobre a arte
de traduzir, contidas na dedicatória à rainha D. Catarina (p. X).
7
Tradução de A. Costa Ramalho, Prefácio a A Infanta D. Maria, p. IX. O ambiente era propício,
pois, no palácio do Marquês de Vila Real, não se ouve a língua portuguesa, «... ao passo que a latina
floresce, reverdece, vigora» – testemunha Salvador Fernandes na Oração que pronunciou na entrada
do titular no seu marquesado (tradução de A. Costa Ramalho, Latim Renascentista em Portugal, p. 113).
202 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Além disso, não calarei que na minha humilde situação encontrei uma
coisa do céu: a Sibila de Cumas que, se ao presente o não é de todo, dentro
de poucos anos se revelará como tal, plenamente. Ela excede, em talento,
memória, graças de conversação, não só os nossos contemporâneos mas
todos os antigos. Tudo quanto ouve logo o entende, e quando entende mais
facilmente aprende, e o que aprende conserva tenazmente. Chama-se Leonor
e é filha do marquês.
As outras «mulheres latinas» coevas são de posição social ainda mais elevada:
a mãe desta, D. Maria Freire, Marquesa de Vila Real; a infanta D. Catarina, filha
do Rei D. Duarte; a princesa Santa Joana; a rainha D. Leonor, mulher de D. João
II; a rainha D. Maria, segunda esposa de D. Manuel. Conhecida sobretudo pelas
suas excelsas virtudes e pela bela pintura primitiva em que os seus traços che-
garam até nós8, a Princesa que dizia ter encontrado no claustro de Aveiro a sua
«Lisboa a pequena», emerge dos quinze poemetos que lhe dirigiu Cataldo com um
novo perfil de educadora severa de seu sobrinho D. Jorge, de boa conhecedora do
Latim, e até de alvo de um amor platónico, aliás não correspondido, por parte do
humanista9.
Aquela que podemos agora chamar a segunda geração de «mulheres latinas»,
é a que tem o seu centro na infanta D. Maria, a que foi festejada por poetas e his-
toriadores e até enfeitada, pela erudição moderna, com os ouropéis de suposto
objecto de algumas das mais belas líricas camonianas. Ponhamos também de parte
a tradição dos «serões da Infanta», vigorosamente rebatida por Carolina Michaëlis
de Vasconcelos10. Fica-nos ainda larga matéria para encómio, mesmo que descon-
temos, por exemplo, no Panegírico que lhe dedicou João de Barros, as hipérboles
que a colocam acima de todas as mulheres célebres de várias épocas e que lhe
auguram a capacidade, se necessário, de «governar gente armada», como a sua
bisavó Isabel, para além de sugerir a comparação com o filósofo-rei da República
de Platão11. Mais importante e verosímil é que o autor das Décadas declare que «o
8
«O mais belo retrato da pintura antiga portuguesa», atribuível ao próprio Nuno Gonçalves,
lhe chama Pedro Dias, História da Arte em Portugal, vol. 4, O Gótico (1986), p. 168.
9
Embora outros autores se tenham ocupado da matéria, foi mais uma vez A. Costa Ramalho,
no seu estudo «Cataldo, a Infanta D. Joana e a educação de D. Jorge», Humanistas, 41-42 (1989-1990)
3-22, agora incluído em Para a História do Humanismo em Portugal, vol. II, pp. 51-68, quem, partindo da
análise objectiva dos textos, repôs os factos na sua verdadeira perspectiva.
10
A Infanta D. Maria, pp. 27-28. No artigo «A Infanta D. Maria e o seu Tempo» in Para a História do
Humanismo em Portugal, vol. I, p. 102, A. Costa Ramalho anuncia que «a própria vida da Infanta terá
de ser escrita de novo, à luz das informações documentadas que já hoje possuímos».
11
A citação é da p. 180 da edição dos Panegíricos por M. Rodrigues Lapa (Lisboa, 1943). Mais
adiante (p. 188), a propósito da mercê acabada de fazer à irmã por D. João III, que certamente é a
concessão do senhorio de Viseu, aplica-lhe o famoso verso 6 da IV. Bucólica de Virgílio (Iam reddit et
uirgo, redeunt Saturnia regna). O acontecimento data o panegírico de cerca de 1546, segundo Alexandre
1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS 203
tempo que lhe sobeja dos diversos ofícios e orações gasta no estudo das letras, a
que tanto se dá», e que «alcançou inteiro conhecimento da língua latina» e, mais
ainda, que «quanto mais cobiçosas são as letras deste tempo, tanto maior é o
louvor de V. Alteza, pois a causa final de as querer entender não é falta de honra
nem de outra cousa, senão um santo desejo de saber»12.
Se da sobriedade de Damião de Góis, que em capítulo datado de 1567 refere
longamente, como facto político e económico que era, a sucessão de esponsais
malogrados com os mais eminentes reis e príncipes da Europa e os muitos haveres
que lhe couberam em sorte13, nada poderíamos deduzir quanto ao aspecto que nos
interessa, já assim não sucede com outro historiador coevo, D. Jerónimo Osório,
que dela escreveu que ingenio et animi magnitudine exelluit14. Louvaram-na outros
grandes humanistas da época, como André de Resende, Inácio de Morais, Vaseu15.
O primeiro dedica-lhe a Oração Panegírica em honra de D. João III, proferida no Colé-
gio das Artes em 1551, e aí refere, a certa altura, que «poderia nomear mulheres
que se medem em erudição com toda a antiguidade, estando em primeiro lugar
Maria, irmã do mesmo Rei»16.
O célebre canonista Martín de Azpilcueta dedica-lhe o Commentarius de Jobeleo et
Indulgentiis Omnibus, por ocasião da visita da família real à Universidade de Coim-
bra, onde ele professava com grande brilho. O prefácio desse livro, na primeira e
na segunda edição, contém dados importantes sobre a Infanta. Em 1550, escreve
ele: «Encontrei a cada passo quem apregoasse os seus louvores, mas detractores
seus (e isto é talvez uma glória dela só) não encontrei nenhum (...) a ti que prezas
ser ornada das letras de que és tu própria o mais alto ornamento. Tu que acolhes
a literatura e os homens letrados com extraordinária, com maravilhosa benevo-
lência, e te comprazes sumamente no serviço e companhia das mulheres letradas
que tens em tua casa»17.
No seco relato de Damião de Góis sobre a vida de D. Maria, de que atrás falá-
mos, perpassa, ainda que em segundo plano, o fio emocional da saudade, causada
à rainha D. Leonor pelo afastamento de sua filha, que durou quase toda a vida.
Lucena e Vale, No Quarto Centenário de João de Barros, Viseu, 1970, apud A. Costa Ramalho, Para a História
do Humanismo em Portugal, vol. I, p. 87, nota.
12
Pp. 179-180 da edição citada dos Panegíricos.
13
Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Coimbra, 1955, Parte 4, cap. 68.
14
«Que muito se avantajou com a Idade, em juízo, grandeza de ânimo», na versão de Filinto Elísio
(edição actualizada e prefaciada por Joaquim Ferreira, Porto, 1944, vol. II, p. 282).
15
As referências podem ver-se em Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, pp. 29-30 e notas res-
pectivas.
16
Tradução de Gabriel de Paiva Domingues, Um Discurso de André de Resende, Coimbra, 1945; reed.
em 1982, p. 51.
17
Tradução de A. Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. I, pp. 93-94, feita
do Tratado do Jubileu.
204 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Mandara ela que a pequena Infanta aprendesse Latim. Dos documentos mais
interessantes que nos chegaram é a carta em que a jovem Princesa dá conta à
sua progenitora dos progressos feitos, e o faz na língua do Lácio, em estilo «juve-
nil, de graciosa simplicidade e elegância». Carolina Michaëlis, a quem pertence
esta apreciação, refere depois outra epístola latina, endereçada a Maria Tudor, a
felicitá-la pelo êxito sobre a revolta conduzida pelo Duque de Northumberland. Se
se trata de uma sincera congratulação à recém-entronizada rainha de Inglaterra,
e não de um convencional exercício de estilo, teríamos aqui uma sublime marca
de superioridade, uma vez que fora em favor desta parenta que Filipe II prete-
rira os já aprazados desposórios com a infanta portuguesa. Mas, como observa
Carolina Michaëlis, que chama a atenção para o facto e transcreve o original da
carta, seria necessário conhecer a correspondência entre ambas para tirar uma
conclusão segura18.
A epístola em verso de André de Resende visiona-a como uma divindade
semelhante a Palas (não fora a coroa de louros, em vez da lança, elmo e escudo,
e confundira-a com a deusa), acompanhada de Joana Vaz e Luísa Sigea. Coincide
com João de Barros no topos da comparação com grandes nomes femininos da
Antiguidade e no do amor da sabedoria. Mas onde o historiador se desvia para
o paralelo com o filósofo-rei da República, o humanista assevera: «Como te atrai,
enchendo-te de espanto, a sábia eloquência de Platão, ou como te agrada acumu-
lar livros»19. Quanto ao conhecimento de Platão, fica-nos a dúvida se o tinha ou
não no original, pois o primeiro erudito a elogiar em público o estudo das letras
gregas20 e que, por sinal, assina o poemeto nessa língua, não o explicita. O gosto
pelos livros, a posse de uma excelente biblioteca, esses ressaltam bem claros da
dedicatória do Duarum Virginum Colloquium de Luísa Sigea, que afirma expressa-
mente tê-lo composto naquele espaço privilegiado, utilizando os melhores dos
seus livros. Qual fosse o conteúdo exacto dessa biblioteca, ninguém ousa dizê-lo.
Mas o certo é que, para além da Bíblia e dos Padres da Igreja, que, segundo os cál-
culos de Odette Sauvage21, perfazem mais de dois terços das citações, as restantes
provêm de catorze autores gregos e latinos (das quais treze de Platão, feitas no
18
Vide A Infanta D. Maria, pp. 33-34 e notas 117 a 121. A questão do casamento falhado e as possí-
veis interpretações políticas do facto, bem como as observações de Martin de Azpilcueta no prefácio
da 2ª edição do seu De Iubelaeo, são analisadas por A. Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em
Portugal, vol. I, pp. 97-100.
19
Tradução de Gabriel de Paiva Domingues, «A ‘Sempre-Noiva’. Carta de André de Resende à
Infanta D. Maria», Humanistas, 27-28 (1975-1976), pp. 53-69.
20
Na célebre Oratio pro Rostris, proferida na abertura das aulas da Universidade em Lisboa, em 1534.
21
Na introdução à sua edição, com tradução francesa e notas, desta obra: Louise Sigée, Dialogue
de deux jeunnes Filles sur la vie de cour et la vie de retraite (1552), Paris, 1970, pp. 49-53, especialmente
pp. 49-50 e nota 105.
1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS 205
22
«Que a donzela venerou, e cujas artes exercitou», v. 73 da edição com tradução francesa de
Odette Sauvage, «Sintra, poème latin de Luisa Sigea», Arquivos do Centro Cultural Português, V, 2, (1972),
560-570.
23
Traduções de A. Costa Ramalho no ensaio sobre «Joanna Vaz, femina doctissima» in Estudos
sobre a Época do Renascimento, pp. 346-352.
24
Estudos sobre a época do Renascimento, p. 346. As cartas de Rodrigo Sanches a Joana Vaz ou sobre
ela encontram-se publicadas e traduzidas pelo mesmo Professor na sua antologia Latim Renascentista
em Portugal, pp. 154-159.
206 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Este convívio epistolar é uma das características mais salientes da vida cultural
do Renascimento. Não está fora dele a outra grande mestra que os quinhentistas
viam sempre ao lado da Infanta: a toledana Luísa Sigea 25. Sobre a sua origem e
formação, ela mesma se pronuncia na carta que enviou, em 1559, a Filipe II: «Sendo
eu natural de Toledo, mas criada em Portugal e de origem francesa, e instruída
na língua latina, grega e hebraica, calcaica e árabe de modo não vulgar pelo meu
pai e outros mestres, fui admitida e bem recebida na corte dos reis de Portugal e
desempenhei não sem êxito o cargo de preceptora da Sereníssima Infanta Maria.
Desposei um cidadão de Burgos, homem de não despicienda categoria, nem de
sangue obscuro, que me transportou para a sua pátria»26.
Toledana é, pois, o etnónimo que se atribui a que, na dedicatória de Duarum
Virginum Colloquium acrescenta o epíteto de polyglossa, de que tanto se orgulha.
O direito ao título, comprova-o na epístola dirigida ao Papa Paulo III, em 1546,
nas cinco línguas antigas que sabia, a acompanhar o seu poema Sintra. Destas
cinco versões só chegou até nós a latina 27, e outro tanto sucedeu com a resposta
quinquelíngue do Sumo Pontífice. Mas o feito alcançou-lhe fama universal28. Não
admira, por isso, que, mais tarde, depois de se ter retirado da corte portuguesa
sem que lhe concedessem uma tença, a rainha viúva da Hungria, D. Maria, lhe
desse o lugar de «dama latina»29.
Voltando à carta a Filipe II, acima referida, atente-se ainda no papel desem-
penhado pelo pai na educação de Luísa Sigea. Este facto coloca-a naquela estirpe
de letradas quinhentistas que eram ensinadas pelos seus progenitores ou por eles
confiadas a mestres de nomeada para o fazerem. Os exemplos são numerosos,
principalmente em Itália, com Laura Careta e Alessandra Scala e tantas outras,
25
Por essa naturalidade ficou conhecida e é referida nos seus próprios livros. Segundo Léon
Bourdon in L. Bourdon et Odette Sauvage, «Recherches sur Luisa Sigea», Bulletin des Études Portugai-
ses, 31 (1970) 33-176, há documentos que a dizem natural de Tarancón, pertencente também à região
castelhana (pp. 43-44, com bibliografia). A publicação actualizada das cartas da humanista, acom-
panhadas da versão francesa e de um estudo, feita por esses especialistas, veio esclarecer muitos
pontos obscuros da biografia e da personalidade desta figura.
26
Modernamente publicada e traduzida para francês por Odette Sauvage no artigo em colabo-
ração, referido na nota anterior, pp. 115-118. A versão apresentada é da nossa autoria. A língua aqui
chamada caldaico é o sírio, conforme já advertiu Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 89, nota 160.
27
A carta da Sigea e a resposta de Paulo III vêm a seguir uma à outra (pp. 80-83 do artigo citado
na nota 25). A humanista diz ter sido instada a apresentar o seu poema, bem mais importante do
que os que lhe mandara em tempos, pelo «egrégio poeta e filósofo Britónio», que A. Costa Ramalho,
Estudos sobre o Século XVI, pp 191-194, identifica com o italiano Girolamo Britonio.
28
Sobre esta carta e o êxito que alcançou no mundo culto, veja-se L. Bourdon et Odette Sauvage,
«Recherches sur Luisa Sigea», pp. 38-39, e Odette Sauvage, Dialogue de deux jeunes Filles, p. 17 e nota
27. Sobre apreço pelo poema «Sintra», idem, ibidem, p. 46.
29
Os múltiplos incidentes ocorridos em meio destas diligências e o curto êxito que lograram,
devido ao falecimento da Rainha, figuram em L. Bourdon et O. Sauvage, op. cit., pp. 54-56.
1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS 207
precedidas ainda de Christine de Pizan 30. Ora Diogo Sigeu frequentara a Univer-
sidade de Alcalá de Henares e, depois de vários incidentes, aceitara ser preceptor
de D. Teodósio e dos outros filhos de D. Jaime, Duque de Bragança, em 1530, o que
lhe permitiu mandar vir a família para junto de si. Luísa teria então oito anos
apenas, segundo a biografia estabelecida por L. Bourdon31. É isso que lhe permite
asseverar naquela carta que fora nutrita tamen apud Lusitanos.
O corpus das suas obras publicadas (faltam, por exemplo, os poemetos ofere-
cidos a Paulo III) não é muito vasto, mas é valioso: vinte cartas, o poema Sintra, o
Duarum Virginum Colloquium. Todos os seus escritos testemunham uma erudição
invulgar, um grande domínio das três línguas sagradas – aquela em que escreve,
o latim, e o grego e o hebraico, de que faz citações e traduções constantes –,
a capacidade de reflectir sobre uma problemática que já vinha da Antiguidade – a
oposição entre a vida pública (neste caso, da Corte) e a vida retirada – e de o fazer
com uma apreciável independência de espírito.
Da irmã, Ângela Sigea, conhece-se, pelo testemunho de Vaseu32, a sua formação
in utraque lingua e o seu talento musical, que lhe permitiu ensinar essa arte no
Paço da Infanta. Na música também se distinguiu Paula Vicente, mais conhecida
pelo privilégio real obtido para publicar as obras do pai, privilégio esse que lhe
é passado designando-a por «moça de câmara da minha muito amada e prezada
tia» (o trabalho viria a ser executado, como se sabe, pelo irmão). O verdadeiro
papel da filha de Gil Vicente na preparação da Copilaçam está envolto em lendas
que é difícil destrinçar da realidade; e a hipótese de ter composto uma gramática
inglesa e outra holandesa, numa época em que as línguas modernas começavam a
alcançar a custo o direito de cidade no estudo sistemático dos idiomas, é um bom
exemplo da tendência para acumular fantasias sobre figuras, sobretudo femininas,
que se distinguiam em tempos antigos33.
Pela mesma razão, aquela que terá sido a primeira doutora portuguesa, Públia
Hortênsia de Castro – que hoje sabemos ter pertencido também a este cenáculo, ao
contrário do que se julgava 34 – atraiu sobre ela numerosas lendas, entre as quais
avulta a do consagrado topos da «mulher vestida de homem», segundo o qual teria
frequentado as aulas na Universidade de Coimbra disfarçada em trajes masculinos,
na companhia de dois irmãos. A este propósito, Carolina Michaëlis comenta com
30
Exemplos numerosos em Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, pp. 192-194.
31
No artigo citado na nota 25, pp. 39-47.
32
Vide Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 42 e nota 186.
33
Vejam-se as prudentes reservas de Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 43 e respectivas
notas.
34
Devido ao achado de novos documentos por Maria de Lourdes Flor de Oliveira, que tem no
prelo uma monografia sobre a humanista calipolense.
208 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
ironia: «Aos poetas, que não quiserem abandonar a ideia do disfarce, lembrarei
apenas que o traje dos estudantes era o talar preto, a roupeta dos jesuítas»35.
Que aos dezassete anos Públia Hortênsia sustentou publicamente, mas em
Évora, teses de filosofia moral, está claramente expresso numa carta famosa de
André de Resende, em passo que transcrevemos na versão de Carolina Michaëlis36:
Pena foi realmente que não entrasses nesta cidade (...) porque, ainda
que mais nada tivesses encontrado, de que te regozijasses (e, para dizer a
verdade, temos aqui algumas cousas bonitas), poderias ter assistido, seis
dias depois da tua partida, a um espectáculo único. Ouvias a Públia Hor-
tência de Castro, uma menina de dezassete anos, instruída além do vulgar
nos estudos aristotélicos, disputar publicamente, desfazendo com suma
perícia e graça os arguciosos argumentos que lhe opunham muitos homens
doutos, esforçando-se por combater as teses dela. E mesmo tu, ó sábio
jurisconsulto, terias confessado que nunca presenciaste um torneio mais
formoso, nem poderias ter negado que uma cidade que produz tal donzela
(de mais a mais de figura muito agradável), era digna de ser visitada, e fosse
somente por causa dela.
35
A Infanta D. Maria, p. 116. Na página anterior, observando que Venturino pusera Salamanca
onde os nacionais escreveram Coimbra, e que lhe atribuíram dois irmãos, em vez do único que se
conhece, comenta: «deste modo, a história de Hortência ficou demasiadamente parecida com a de
outras mulheres ilustres, como, por exemplo, a da célebre castelhana D. Isabel Vergara».
36
A Infanta D. Maria, p. 112. A carta figura no De Antiquitatibus Lusitaniae (Romae 1597), de André
de Resende.
37
Cf. Margaret L. King, A Mulher do Renascimento, pp. 219-220.
38
Dados colhidos na obra citada na nota anterior, pp. 207-209.
1. PRESENÇAS FEMININAS NA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS 209
veio a estar em evidência em situações similares. Uma foi numa obrigação, que
não chegou a desempenhar, por falta de tempo, em meio dos festejos de recepção
à embaixada chefiada pelo cardeal Alexandrino, em Vila Viçosa, em 1571. Tratava-
-se de discursar perante o legado do Papa. É a esse facto que se refere a tão citada
descrição de J. B. Venturino39:
Vila Viçosa tem formosas mulheres, e, entre outras, uma que não o é
menos da alma que do corpo, da idade de vinte e três anos, filha de Tomé
de Castro, à qual, por sua muita literatura, chamam Públia Hortênsia. Esta
donzela, que frequentara Salamanca, quis defender conclusões naturais e
legais, o que não teve lugar, por causa da súbita partida do Legado.
39
Tradução de Carolina Michaëlis, A Infanta D. Maria, p. 113. Sobre a confusão de Universidades
já falámos atrás.
40
Carolina Michaëlis, que transcreve o alvará, o qual se encontra na Torre do Tombo, não deixa
de observar que o quantitativo da tença é igual ao da do autor de Os Lusíadas (A Infanta D. Maria, p. 114).
41
Vide Carolina Michaëlis, op. cit., p. 110. A. Costa Ramalho, no artigo que escreveu para a Enciclo-
pédia Verbo relativo à humanista, observa que «O seu nome latinizado de humanista, se é o mesmo do
baptismo, inculca-a nascida de gente cultivada e entendida nas Humanidades». A Realencyclopädie de
Pauly-Wissowa regista uma única mulher de nome Publia – uma cristã que afirmou a sua fé perante
o Imperador Juliano (Teodoreto, História Eclesiástica, III, 19. 1 sqq.). A ser este modelo, a intenção seria
conciliar valores pagãos com valores cristãos, no mesmo nome.
42
Exemplos numerosos de combinação da virgo docta com a virgo sacra em Margaret L. King, A
Mulher do Renascimento, pp. 212-213.
(Página deixada propositadamente em branco)
2. O «HONESTO ESTUDO» DE CAMÕES *1
Num livro que fez época, Ensaio sobre os Latinismos dos Lusíadas (Coimbra, 1931),
Carlos Eugénio Corrêa da Silva aproximou com muita propriedade, pela primeira
vez, estes três predicados – estudo, experiência, engenho – das três qualidades
*1 Publicado em Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacio-
nal – Casa da Moeda (1988, 22012), 27-30.
212 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
fundamentais do orador, que Cícero requeria nos seus tratados de retórica. Temos,
portanto, que, ao lado dos dons naturais e da prática, é necessário o estudo. Mas
será esse o sentido da palavra aqui?
Observe-se, antes de mais, que a ocorrência é única na epopeia. Mas o verbo
da mesma família estava já na estrofe anterior, num exemplum tirado do De Oratore
(II.18.75-76) de Cícero:
1975], pp. 2-3). Formas como argento, divícias, exício, íncola, inópia, plaga são apenas
algumas amostras de um riquíssimo tesouro vocabular desta origem, com que
enriqueceu a nossa língua.
Outra prova – e esta muito curiosa – pode tirar-se de um dos nomes mais
famosos da lista das suas amadas. Nada menos do que Dinamene! O apelido,
reconhecido como «nome fingido» por Faria e Sousa, é na verdade um helenismo
de sentido bem claro (tal como o Filodemo do auto), que certamente não escapou
a Camões: é o particípio do presente de um verbo que significa «poder», e deve,
portanto, traduzir-se por «a poderosa». Era o nome de uma nereide, quer na Ilíada
(XVIII. 43), quer em Hesíodo (Teogonia 248) – em verso repetido nos dois poemas.
Desaproveitado, por razões que se adivinham, nas breves enumerações de ninfas
aquáticas de Os Lusíadas (II.20 e VI.88-91), surge no enigmático catálogo da Écloga
dos Faunos, no qual alguns quiseram ver uma alegoria à corte da infanta D. Maria
(Faria e Sousa deu largas à imaginação sobre a matéria, e outros o seguiram), aliada
a nomes que são anagramas evidentes (Belisa); e aparece também na Écloga VI,
como amada de Agrário. Se esta figura acaso se identifica com a dos dois formosos
e dramáticos sonetos, Quando de minhas máguas a comprida e Ah! Minha Dinamene!
Assi deixaste, temos de concluir que ambas as éclogas lhes são anteriores.
Ora, para este nome, Faria e Sousa aponta o passo de Hesíodo acima referido
e acrescenta que em Garcilaso, Écloga III, aparece Diamane «que corresponde a
Dinamene». Mas a verdade é que, ainda quando a palavra castelhana fosse, de
facto, uma corruptela, é evidente que não podia ser dessa forma errada que Camões
colheu a sua. A fonte inspiradora tão-pouco pode ter sido Virgílio, onde esta
nereide falta na breve enumeração do Canto IX.102-103 da Eneida ou no pequeno
catálogo do Canto V.825-826. Foi certamente um dos poetas gregos, quer os lesse
no original, quer nas versões latinas, que já então corriam impressas1.
Os exemplos linguísticos que apontámos podiam, se necessário fosse, multi-
plicar-se, se lhes acrescentássemos os que provam os conhecimentos científicos.
Mas o trabalho está feito em numerosos livros e artigos de indiscutível autoridade,
que todos os especialistas conhecem.
Ao terminar estas breves reflexões, ocorre-me indagar a razão do actual recru-
descer das dúvidas sobre o saber de Camões, quando é esta uma das poucas faces
da sua obscura carreira em que podemos prescindir da dúvida. Talvez a tendência
para aceitar aquilo a que chamaremos o mito da ciência infusa, que entre nós se
opõe com tradicional facilidade ao quadro, menos romântico, do poeta aplicado
e diligente, que cultiva o seu engenho no estudo e na meditação. Os Antigos já
sabiam, porém, que a mãe das Musas era Mnemósine...
1
Para uma discussão mais completa deste ponto, veja-se o final do ensaio «Nomes de Ninfas em
Camões», impresso neste volume (pp. 250-252).
(Página deixada propositadamente em branco)
3. SOBRE O TEXTO DA ODE
AO CONDE DO REDONDO *
*
Publicado em Revista Camoniana (1984-1985), 107-128; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia
Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2012), 83-108.
1
Um exemplo, não registado na errata, é o do fol. 60v, onde se lê epardor arcadio. A comparação
com a forma correcta, emperador arcadio, que se encontra na página anterior, e o facto de a história,
relativa à conservação multissecular de um pau de canela, ser conhecida de outras fontes (e. g., Diogo
do Couto, Década V. I. 7, que remete para Heitor de Laguna) e dizer respeito a uma figura conhecida,
evita que o leitor se perca num mar de conjecturas.
216 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
pois, a comparação com outras versões antigas do poema que abrirá caminho à
restituição do texto original.
Efectivamente, embora a Ode falte na primeira edição da Lírica (1595) e não
tenha aparecido, até agora, nos diversos «Cancioneiros de mão» descobertos ou
publicados nos últimos anos, temos dela uma versão sobejamente conhecida, a da
segunda edição das Rimas (1598), que apresenta considerável número de variantes2.
Que as diferenças entre a edição de Goa e a segunda das Rimas eram de natureza
a levar à conclusão «de que não foi certamente o livro de Garcia de Orta a fonte
donde a houve o respectivo editor, mas sim outra qualquer cópia, cuja procedência
não conhecemos», soube já vê-lo Xavier da Cunha, num opúsculo raro e pouco
conhecido, em que tenta reconstituir o texto, tendo em conta aquelas duas versões,
os comentários de Faria e Sousa e as sucessivas edições da Lírica 3.
Uns anos antes, em 1867, Teófilo Braga, em estudo igualmente raro, que precede
a sua edição de A primeira poesia impressa de Luiz de Camões no Livro do Doctor Garcia
d’Orta intitulado Colóquios dos Simples e Drogas, fizera referência a um manuscrito «que
anda como apenso junto à edição de 1595, da Biblioteca Nacional», e acrescentava
que «pelo estudo das variantes chega-se ao conhecimento de que o poeta retocou
por vezes a Ode magnífica». Sem aproveitar devidamente este dado, comenta a
seguir: «Há pelo menos quatro lições da Ode, com retoques importantes: o pri-
meiro esboço, como o publicou o poeta nos Colóquios dos Simples, em 1563; o texto
achado por Estevam Lopes; o texto apurado sobre diferentes manuscritos por Faria
e Sousa, e o códice descoberto pelo Visconde de Juromenha. A comparação dá a
vantagem aos textos retocados pelo poeta, trasladados para as compilações dos
amigos» 4.
Porém só em 1974, com a publicação póstuma, num só volume, dos importantes
e bem fundamentados estudos de Emmanuel Pereira Filho, As Rimas de Camões5, se
analisou e valorizou o já referido testemunho do manuscrito apenso ao exemplar
2
Agora tornada acessível graças à reprodução fac-similada mandada executar pela Universi-
dade do Minho (Braga, 1980), e valorizada com um estudo de Vítor Manuel Aguiar e Silva. Também
o texto dos Colóquios dos Simples e Drogas, de que restavam tão poucos exemplares, teve idêntico
tratamento, por ocasião do quarto centenário da edição original, por iniciativa da Academia das
Ciências de Lisboa (1963).
3
O opúsculo, comemorativo do 4.º aniversário do Tricentenário Camoniano, tem o signifcativo
título A Ode de Luiz de Camões ao Conde do Redondo restituída à sua primitiva lição (Lisboa, 1884). Apenas o
encontramos referido, e em termos elogiosos, pelo Conde de Ficalho, Garcia da Orta e o seu tempo (1886,
reimpr. Lisboa, 1983), p. 213, nota 1, e no Catálogo da Exposição Bibliográfica, Iconográfica e Medalhística
de Camões, organizado por José V. de Pina Martins (Lisboa, 1972), p. 364. (Agradecemos a obtenção
de fotocópias do estudo de Xavier da Cunha, bem como do de Teófilo Braga, mencionado na nota
seguinte, à Doutora Maria de Lourdes Flor de Oliveira.)
4
As citações são das pp. 6 e 7. O opúsculo, editado em Lisboa, traz a data «Anno 363 do nasci-
mento de Luiz de Camões, Auctor dos Lusíadas».
5
Rio de Janeiro, Aguilar, 1974. (Agradecemos ao Doutor A. Costa Ramalho ter-nos facultado o
uso do seu exemplar.)
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 217
das Rhythmas (1595) da Biblioteca Nacional de Lisboa, que, embora mencionado não
só por Teófilo Braga, como já vimos, mas também por Costa Pimpão e A. Salgado
Júnior nas suas edições, não fora ainda sistematicamente aproveitado6.
Nesse livro, a despeito das limitações provenientes de não ter levado a última
demão do autor 7, figura o fac-símile e transcrição diplomática do apógrafo, a
descrição do códice, o estudo da questão da autoria e das relações com a edição
de 1598, tudo feito segundo as normas da moderna crítica textual. As conclusões
principais, que subscrevemos inteiramente, são de que o referido manuscrito (MA)
é uma cópia quinhentista, elaborada entre 1595 e 1598 como trabalho prepara-
tório da segunda edição das Rimas; que o copista utilizou, como fontes, mais de
um documento e «se impôs o cuidado de cotejar aqueles textos que porventura
encontrasse em mais de uma fonte... podemos contar com um máximo de fide-
lidade às fontes eventualmente manuseadas, o que a faz portadora fiel de uma
tradição precedente e, portanto, mais próximo dos arquétipos desconhecidos»8.
O mesmo estudioso brasileiro trata, em capítulo separado, da «Ode ao Conde
de Redondo»9, para a qual aduz um quarto testemunho, o códice de Juromenha,
aparentemente do séc. XVII, que supõe ser, pelo menos em relação à Ode, um ramo
da mesma família de MA, dada a semelhança da epígrafe10:
6
Cabe a Leodegário de Azevedo Filho o mérito de ter chamado a atenção dos especialistas para
a importância da obra de Emmanuel Pereira Filho, ainda antes de a referida colectânea ter sido publi-
cada. Veja-se, daquele camonista brasileiro, o estudo preliminar da edição crítica das Rimas, que tem
em preparação, intitulado O Cânone Lírico de Camões (Rio de Janeiro, 1976), especialmente pp. 14 e 26-27.
7
A esse respeito, veja-se Leodegário de Azevedo Filho, op. cit. p. 27.
8
Citações da p. 242.
9
Preferimos dizer Conde do Redondo, e não de Redondo, por ser essa a forma adaptada pelos
Colóquios e também pelos historiadores coevos, como Diogo do Couto.
10
Op. cit., p. 243. Não obstante as regras da crítica textual prescreverem que se use uma só letra
maiúscula, quando muito seguida de uma minúscula, servir-nos-emos daqui em diante, por comodi-
dade, das siglas deste camonista: a já mencionada MA para o Manuscrito Apenso à edição das Rimas
existente na Bibllioteca Nacional de Lisboa, GO para a edição dos Colóquios dos Simples e Drogas (Goa,
1953), RI para a 2.ª edição das Rimas (1958) e JU para o Manuscrito Juromenha.
11
Na comunicação que apresentámos à III Reunião Internacional de Camonistas, organizada pela
Universidade de Coimbra em Novembro de 1980, «A Transmissão Manuscrita de Os Lusíadas. Alguns
Aspectos», publicada na Revista da Universidade de Coimbra 33, 1985, 51-65.
218 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Note-se, de passagem, que este comentador cita com frequência, e por vezes até
com elogio, as lições da edição de Goa que nos ocupa.
Voltando ao livro de Emmanuel Pereira Filho e seu exame à transcrição do texto
da Ode ao Conde do Redondo, lembraremos aqui que ele faz um cotejo exaustivo
daquilo que designa por “variantes internas”, ou seja, todas aquelas que excedem
o âmbito da elisão, ortografia ou pontuação que não altere o significado12. Essas
variantes atingem, numa Ode de 66 versos, a elevada cifra de trinta, em que MA
diverge de GO, sendo que em vinte e dois desses casos as lições do manuscrito
são seguidas por RI, o que vem confirmar, por uma larga margem de certeza, a
dependência de RI em relação a MA, e mostrar que o editor já não dispunha de
qualquer exemplar de GO13. Observamos ainda que, das variantes registadas no
manuscrito de Juromenha, que são apenas seis, três coincidem com GO (uma no
v. 50, uma no v. 58 e outra no v. 59), duas (vv. 50 e 58) são idênticas a MA, RI, e
uma (v. 57) apresenta um texto distinto de qualquer dos outros testemunhos. O
que nos faz supor que JU, que na sua generalidade tem os errores significativi de RI,
seja um manuscrito contaminado.
A finalidade de Emmanuel Pereira Filho, no capítulo que vimos examinando,
era comprovar, com base na comparação das variantes deste texto, a dependência
de RI em relação a MA e, sobretudo, como ele mesmo escreveu, fazer ressaltar
«os critérios de correcção adaptados por RI», os quais «nem sempre foram tão
gratuitos quanto se pode crer a uma primeira observação», pelo que «nenhuma
das suas lições poderá ser rejeitada sem que uma cuidadosa análise justifique a
selecção crítica»14.
Assim fizeram, de resto, os editores modernos na sua grande maioria15, sem
excluir Costa Pimpão (11944, 21953, 31973), Hernâni Cidade (1955) e António Salgado
Júnior (1963). O primeiro, no entanto, restaurou, no v. 16, e muito correctamente,
como veremos adiante, o epíteto de Febo intonso, e não intenso. Mais recentemente
(1981), Maria de Lourdes Saraiva regressa à edição de Goa, por ter sido impressa
em vida de Camões e, segundo supõe, «feita certamente com a sua assistência»,
pelo que o texto que transcreve é o de 156316. Não obstante, adaptou lições da edi-
ção de 1598, como a indispensável introdução da condicional no v. 17 (se o temido
12
Op. cit., pp. 225-226.
13
A contagem figura na p. 246 da obra referida, e as conclusões na p. 248. Poderemos acrescentar-
-lhe, no v. 27, pera GO, MA, para RI.
14
Op. cit., p. 248, passim.
15
Conforme já observou, para o seu tempo, Xavier da Cunha, op. cit., p. 10.
16
Luís de Camões, Lírica Completa III (Lisboa, 1981), p. 125. Quanto à presença de Camões, não
conhecemos dados seguros para a confirmar, nem para a negar (como fez W. Storck, Vida e Obras de
Luís de Camões, trad. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lisboa, 1897, reimpr. 1980, p. 628, nota 1).
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 219
O copista de MA, pouco versado em mitologia, não entendeu o que era a ciência
Podalíria, e transformou o adjectivo em pôde a lyra, pelo que no verso seguinte teve
de mudar vence em vencer. Tão-pouco foi capaz de decifrar o nome do Centauro,
que transformou em Achyron. Nos três passos, RI concorda com GO. Emmanuel
Pereira Filho interpreta-os como outros tantos exemplos de «restauração impe-
cável», embora reconheça a dificuldade de admitir que RI tenha podido voltar a
GO «por simples devinatio» [sic] (p. 247).
O nome do filho de Asclépios – e de seu irmão Macáon – também não costu-
mava faltar nos elogios aos tratados de Medicina quinhentistas. É o que sucede
no livro de Garcia de Orta, para o qual Tomás Caiado compôs um epigrama latino,
onde se lê este dístico:
O que é curioso é que RI não deu provas da mesma cultura clássica no v. 16, ao
substituir intonso, de GO, MA por intenso, variante esta que encontrou inexplicável
acolhimento em editores modernos. A este respeito, escreveu Emmanuel Pereira
Filho que «embora susceptível até de muita discussão, fica todavia como exemplo
único de alteração introduzida por RI, diluindo-se, com seu carácter de lectio facilior,
na índole correctiva dessa edição». Além do mais, bem poderia ser também uma
«gralha», ou quando muito uma divergência RH-RI (Égloga II: Ao longo do sereno)
17
Modernizamos a pontuação e a grafia em todas as citações, excepto quando, como aqui, é
importante reproduzir o texto exacto.
220 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
(v. 504)
Vinha o intenso Apollo alli culpando (RH 91v.)
Vinha o intonso Apollo alli culpando (RI 112v.)18
Os defeitos da primeira edição (RH) são, como se sabe, realçados por Estêvão
Lopes no «Prólogo ao Leitor» da segunda (RI):
... Procurei que os erros, que na outra por culpa dos originais se comete-
ram, nesta se emendassem, de sorte que ficasse merecendo conhecer-se de
todos por digno parto do grande engenho de seu autor [...] porque certo em
muitas fábulas, que toca o Autor em diversas partes e textura dos versos,
assi se introduziram os erros de quem os tresladava, que já quase na opinião
do vulgo se tinham por próprios de Luís de Camões. E se ainda assi não
ficarem na realidade de sua primeira composição, basta que em quanto pude
o comuniquei com pessoas que o entendiam, conferindo vários originais, e
escolhendo deles o que vinha mais próprio ao que o Poeta queria dizer, sem
lhe violar a graça e termo particular seu, que nestas cousas importa muito.
Julgamos que, no caso da Écloga II, estamos perante uma dessas escolhas
acertadas. Na verdade, um autor imbuído de humanismo como Camões não podia
ignorar que um dos epítetos homéricos de Febo Apolo era ἀκερσεκόμης, ou seja,
«de cabelo não-cortado» – maneira de indicar a juventude do deus –, o que em
latim se diz intonsus. Um exemplo bem conhecido é o do Livro I das Metamorfoses
de Ovídio19, em que Apolo profetiza a Dafne:
Sendo assim, não se nos afigura que o caso seja «susceptível até de muita
discussão». De resto, a explicação aproximada já fora dada por Faria e Sousa, que
18
Op. cit., p. 246.
19
Vv. 564-565. Cf. também: intonsosque agitaret Apollinis aura capillos, de Horácio, Epodos XV.9, e
nam decet intonsus crinis utrumque deum (sc. Apolo e Baco), de Tibulo, I.4.38. Que Camões conhecia bem
as Metamorfoses, provam-no inúmeros passos de Os Lusíadas e da Lírica. Do assunto tratámos já em «O
tema da metamorfose na poesia camoniana», Biblos 51 (1975), especialmente pp. 128-129 e 133. Quanto
ao mito de Apolo e Dafne, lembre-se em especial o Soneto 79 e ainda a Égloga dos Faunos, vv. 352-
355. (Nas citações da Lírica usaremos sempre a numeração da edição de A. J. Costa Pimpão, Coimbra,
1973).
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 221
escreveu: «el intonso, que vale desbarbado, es epíteto suyo frequente en los Poetas»,
citando a seguir o passo da Écloga II.
Um caso diverso deste é o do v. 64, onde há duas variantes: uma é poluorosa,
em que GO está contra MA e RI, que lêem sanguinosa, outra é Indica, de GO, que em
MA aparece transformado em indigna, e RI emenda para Turca.
Na p. 225 do seu livro, Emmanuel Pereira Filho observa que «não há sombra de
dúvida de que o copista foi enganado pela grafia indiqua (= índica, da Índia), que este
é o adjectivo que vemos na lição publicada em vida de Camões». E mais adiante,
na p. 248, conclui: «chega-se pelo menos a um gentílico, alusivo ao povo asiático,
hostil aos portugueses de então, o que é muito mais próximo do índica do que
do insuportável indigna». A esta interpretação acrescentaremos que estamos, no
caso de RI, perante um erro separativo bem claro e que, no de GO e MA, se aplica
o conhecido princípio da crítica textual lectio quae alterius originem explicat potior.
Quanto a sanguinosa, a qualificar guerra, que MA, RI apresentam em vez de poluorosa
de GO, tem o seu apoio no confronto com armas sanguinosas do v. 8 da Canção VI.
Temos até agora examinado variantes discutidas pelo grande especialista
brasileiro de forma geralmente exemplar. Poderíamos ainda aditar a essa série a
«restauração impecável» de RI no v. 17 (que s’, onde GO tem uma omissão evidente,
ao ler que, e MA restitui a condicional, mas erra no pronome relativo, que grafa
quem20, e, no v. 25, o erro separativo de MA, RI, que apresentam a vos ó excellente,
em vez do ó vos excellente de GO (explicado nas pp. 230-231)21.
Há, todavia, outras variantes que, ou não foram por ele discutidas, ou poderão
ser interpretadas doutro modo. De algumas dessas trataremos seguidamente.
Deixando de parte as de menor relevância, como a prática de repetir ou omitir
a proposição ou o artigo em enumerações bimembres ou trimembres (vv. 2, 22, 30),
ou a simples troca de preposições (nos vv. 33-35, GO lê do, onde MA, RI preferem co;
no v. 58, GO, JU lêem na, MA de e RI da 22), ou ainda alternâncias entre o singular
e o plural (v. 22, sciençias, de GO, menos provável do que sciencia, de MA, RI; v. 48,
as leis de GO, igualmente menos aceitável do que a lei de MA, RI), deter-nos-emos
nas que possuem maior interesse, quer linguístico, quer literário, quer mesmo
histórico-cultural. O primeiro da série é o do v. 4, onde GO lê da eternidade, e MA,
20
Há ainda outra variante neste verso, que é o qualificativo do filho de Príamo (cujo nome apa-
rece latinizado em MA, RI, e com vocalização do c em GO – tal como em Lusíadas X.60.4-5). Aí, GO e RI
lêem temido, contra MA, que tem tímido. Trata-se de um caso que poderá explicar-se pela oscilação
na pronúncia da época, a qual parece reflectir-se na lição das duas edições de 1572 de Os Lusíadas,
quando em IX.16.8 têm do mar incerto, temidos e ledas, emendado desde a edição dos Piscos para do mar
incerto, tímidos e ledos, e aceite pelos modernos.
21
Faria e Sousa emendou, sem necessidade, para vós, ó excelente, que Xavier da Cunha aprova.
22
A lição na Medicina parece preferível. Emmanuel Pereira Filho, que alude a estas variantes,
chama «péssima» a lição de MA e comenta, a respeito de RI: «Restaura-se, pelo menos, o artigo à do
original» (p. 248).
222 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
RI da fama eterna. Faria e Sousa foi o primeiro, que saibamos, a tentar explicar a
variante. Depois de muito fantasiar sobre o templo da Fama e sua relação com os
estilos arquitectónicos, discute a possibilidade de um pagão lograr glória eterna,
e continua: «Deste escrupulo deviô resultar el mudarse este verso, porque en la
impression del Libro de Orta hecha en Goa dize: Da Eternidade ter perpetuo dia.» Seria
assim um caso a incluir no grupo dos que Emmanuel Pereira Filho classifica de
«censura religiosa preventiva», da qual fornece alguns exemplos23. O argumento
poderá encontrar algum apoio na comparação com Lusíadas I.9.3-4 e I.11.7-8,
onde a D. Sebastião são prometidos o eterno templo e o templo da suprema eterni-
dade. Em todo o caso, nas Oitavas ao Vice-Rei da Índia D. Constantino de Bragança
(1558-1561), Camões não receia afirmar, a propósito de Hércules (vv. 41-44):
23
Op. cit., pp. 227-228.
24
A substituição de palavras vulgares por latinismos é um dos processos que avultam, quando
comparamos a versão do Canto I de Os Lusíadas no Cancioneiro de Luís Franco Correa com a da edição de
1572. Sobre o assunto, veja-se o nosso trabalho citado na nota 11.
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 223
Para além das já mencionadas alterações na preposição nos vv. 33 e 35, e ainda
no adjectivo cambaico, que aparece com outro sufixo em MA, RI (cambaio) – o que
pode ser um erro de cópia, tanto mais que cambaico é a forma de Os Lusíadas (quer
para adjectivar a costa, em X.60.6, quer o rei, em X.64.1, e o etnónimo correspon-
dente é idêntico na formação – os Cambaicos cruéis, de X.32.8) – e da própria Lírica
(Cambaico Damão em Oitavas II.100) – temos em MA, RI no v. 34, uma lição diversa:
25
Exemplos frequentes nas próprias odes, de que salientamos os da Ode VII.9-10 (roxa Clóris/
branca Dóris), 14 (Nereides e Napeias), 16-17 (Anfíon/Aríon), 59 (Tejo/Douro), 60 (Marte/Febo).
26
Embora, como se sabe, o a da penúltima seja breve em latim, apenas encontramos a conse-
quente acentuação proparoxítona em Castanheda II.22, que escreve Taprôbana. A leitura paroxítona
ficou definitivamente consagrada por Lusíadas I.1.4, que a rima fixou para sempre.
27
Note-se que Plínio era lido e analisado, na Índia quinhentista, em versão toscana, por portu-
gueses altamente colocados, como aquele Vice-Rei que Garcia de Orta refere nos seus Colóquios (fol.
83r), em passo citado pelo Conde de Ficalho, Garcia de Orta e o seu tempo, o qual supõe tratar-se de
D. Pedro de Mascarenhas (p. 206), e que pensamos ser o mesmo de quem no fol. 50r o médico traça
224 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
este interessante retrato intelectual: «Foi um Visorei nesta Índia muito curioso de saber, e posto
que não sabia latim, em toscano entendia Plínio e desejava de saber a certeza dalguns simples e
encomendava-me que lho dissesse quando os achasse...»
28
Obras I (Lisboa, 1940), p. 176 («Passaram o rio Ganges tam nomeado, a grande Taprobana e
as ilhas mais orientais») e p. 180, onde, criticando Ptolomeu, escreve: «E como põe a Çamatra onde
está Ceylão».
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 225
29
Agradecemos a colaboração na pesquisa deste e de outros dados dos historiadores quinhen-
tistas à Dr.ª Zélia Sampaio Ventura. Acrescentamos ainda que Tomé Pires, na sua Suma Oriental, ed.
Armando Cortesão (Coimbra, 1978), descreve ambas as ilhas (Livros IV e V, respectivamente), mas
não discute a questão.
226 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Por outro lado, X.124 descreve «a nobre ilha de Samatra» como resultante
da separação da Península de Malaca, o conjunto a que os Antigos chamavam a
«Áurea Quersoneso»30. Do facto é ainda reminiscente X.135.
Mas, voltando a Taprobana, falta-nos examinar uma outra ocorrência, menos
clara, mas mais universalmente conhecida: a da proposição do poema (I.1.4). Aí,
o topónimo é tomado como meta mais longínqua dos conhecimentos geográficos
dos Antigos, e a grande glória dos Portugueses é terem-na ultrapassado. No seu
comentário a este passo, Epifânio, depois de aduzir vários trechos de autores
latinos, anota: «A Taprobana dos antigos é a ilha de Ceilão, segundo o próprio
Camões diz expressamente em X.107 e indirectamente em X.51; mas havia quem
a identificasse com a ilha de Sumatra (por exemplo, Castanheda II, cap. III,
D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa [ ... ] e é possível que o Poeta, ao compor
esta estância, ainda pensasse deste modo. (Na ode estampada à frente dos Coló-
quios de Orta, publicados em 1563, ainda ele diz «co sanguinolento/Taprobânico
Achém») .»
Também um passo da Lírica (Écloga I.364) dá como limites do poderio português
o remoto mar de Taprobana 31.
A precisão e amplitude dos conhecimentos geográficos de Camões tem já sido
objecto de estudo32 e de admiração por parte de sábios como Humboldt. É provável
que as perdidas Tábuas de João de Barros tivessem sido, como geralmente se pensa,
a sua fonte principal33, e já vimos qual a posição do famoso historiador quando à
localização de Taprobana. A Década III, que então citámos (e na qual se anunciava
a intenção de compor as Tábuas), só veio a ser publicada postumamente – curiosa
30
Ptolomeu I.13.
31
Em trecho referente ao nascimento de D. Sebastião, portanto, datável de 1554. Ora Afonso
de Albuquerque tomara Malaca em 1511. Além disso, os Portugueses chegaram às costas de Bornéu
em 1523, à ilha de Celebes em 1525, ao noroeste da Nova Guiné em 1527. O nome de Taprobana está
ainda no Soneto 162, em contexto que a indica como um ponto longínquo a Oriente. Quanto ao passo
da Écloga I, o Doutor Luís Albuquerque, a quem consultámos sobre a matéria, pensa que tal limite
do império, anunciado naquela data, já não deve dizer respeito a Ceilão, mas a Samatra. Não pode
esquecer-se, ainda, segundo observa o mesmo historiador da náutica e dos descobrimentos, que o
famoso e influente planisfério dito de Cantina (1502) coloca a legenda «Taprobana» sobre a ilha de
Samatra. Cf. Luís de Albuquerque, Estudos de História IV (Coimbra, 1916), pp. 181-221.
32
Especialmente o livro de António Borges de Figueiredo, A Geografia dos Lusíadas (Lisboa, infra),
e, recentemente, o belo artigo de Orlando Ribeiro, «Camões e a Geografia», Finisterra 15 (1980), 153-
-199.
33
Assim pensa Orlando Ribeiro, op. cit., pp. 160, 175.
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 227
coincidência! – em 1563. A Década V de Diogo do Couto foi por este enviada a Filipe
II na armada de 159734. Por outro lado, Pedro Nunes e D. João de Castro situavam,
como vimos, a discutida ilha em Samatra e Garcia de Orta hesitava.
Todos estes dados apontam, em nosso entender, para uma hipótese: em 1563,
ainda Camões identificava Taprobana com Samatra, e assim podia chamar ao Achém
Taprobânico. A leitura de parte da Década VII de Diogo do Couto consagrada ao
vice-reinado de D. Francisco Coutinho (1561-1564), mostra que o Conde tinha esse
povo da ilha de Samatra nas suas preocupações. Logo no início do cap. 16 do Livro
X se lê: «Todo este Inverno gastou o Conde Viso-Rei em reformar a armada com
que determinava partir entrada de Setembro pera o Achém... e pera esta jornada
fez todas as preparações que lhe pareceram necessárias.» Porém, uma das naus
que vinha para levar a carga da pimenta soçobrou, e, não tendo ficado mais que
duas para o efeito, «determinou de as despedir muito cedo, e desistiu da Armada
do Achém, e não sabemos porquê, ou se lhe veio algum regimento de novo, de que
não tivemos notícia.»35 É curioso que o próprio Camões viria a celebrar, poucos
anos mais tarde (1568), o feito de Dom Leonis Pereira, de ter defendido Malaca
do poder dos Achéns, e que o tenha realizado noutro dos raros poemas líricos
publicados em vida sua, a Elegia VII (sobre livro de Pero de Magalhães Gândavo,
História da Província de Santa Cruz).
Na vigência do governo do Conde do Redondo também houve perturbações em
Ceilão36, e o rei de Cambaia era sempre um oculto inimigo nosso, como se depre-
ende da narrativa de Diogo do Couto37. Os habitantes de Ceilão, refere o mesmo
historiador, que a princípio nem conheciam espingardas, tinham aprendido de
tal maneira as artes bélicas que pouco e pouco foram «consumindo em despesas,
gente, e artilharia tanto que ela só tem gastado com suas guerras mais que todas
as outras conquistas deste Oriente»38.
A tentativa (abandonada, como vimos) de expedição ao Achém, data-a Couto
de 1563, no passo acima referido. A ferocidade destes habitantes do Noroeste de
Samatra ficou perpetuada em termos semelhantes aos da Ode na já mencionada
Elegia VII.70-8739:
34
Epístola a Filipe II de Portugal, citada por A. J. Costa Pimpão na sua edição das Rimas de Camões
(Coimbra, 1973), p. LXVI. O mesmo especialista refere que na Epístola que precede a IV Década (a
Filipe I), o autor diz ter concluído seis Décadas (a contar da IV). Mas não pretendemos entrar aqui
na inextricável questão da transmissão manuscrita da obra histórica do grande amigo de Camões.
35
Cf. também Década VII, Livro X, caps. 2 e 9.
36
Década VII, Livro X, cap. 14.
37
Sobre o ataque dos capitães de Cambaia, vide Década VII, Livro X, caps. 7 e 8.
38
Década V, Livro I, cap. 5.
39
Outra alusão à vitória no Soneto 165, Vós, Ninfas da Gangética espessura, que, tal como a Elegia,
também foi publicado com a História da Província de Santa Cruz (Lisboa, 1576).
228 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
e que a variante seja do próprio Poeta, que corrigia e aperfeiçoava as suas obras,
conforme testemunhou o mesmo Diogo do Couto a propósito de Os Lusíadas40. Mas
é igualmente possível que a correcção tenha sido introduzida por alguém que,
conhecedor do texto das Décadas, entendesse dever dissociar os dois etnónimos.
Esse alguém podia mesmo ser o copista de MA, que efectuou o seu trabalho nos
últimos anos do séc. XVI.
Se, à data da feitura da proposição de Os Lusíadas, quando D. Sebastião não era
mais que um tenro e novo ramo florecente (I.7.1), o Poeta ainda entendia que Tapro-
bana era em Samatra e, portanto, o passar-lhe além representava o transpor do
mundo conhecido dos Antigos, até à entrada do Pacífico, é uma hipótese que, como
vimos, Epifânio formulou, e que nos parece merecedora de consideração, tendo
presente a similitude com o passo, que citámos, da Écloga I. Com os dados de que
actualmente dispomos, não nos parece possível avançar mais41.
Na mesma estrofe, v. 36, há uma variante menor: Que qualquer delles treme ao
nome vosso (GO) aparece transformado em Que qualquer delles teme o nome vosso
(MA, RI). Diferença paleográfica mínima, que conduziu a uma pequena alteração
sintáctica, mas que resulta numa frase mais vulgar e menos expressiva. Como
escreveu Faria e Sousa, treme ao nome vosso «es mejor». Deve notar-se, no entanto,
40
Década VIII, cap. 28.
41
Convém não esquecer, além disso, que a chegada dos Portugueses a Ceilão, em 1505, foi facto
que suscitou uma admiração que deixou rasto em textos de humanistas italianos escritos entre 1505
e 1510, como mostrou A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos (Lisboa, 1980), pp. 13-15 e 24, que põe
em relevo o valor simbólico de Ceilão (aí identificada com a Taprobana de Plínio), como extremo
limite do mundo conhecido pelos Antigos, situado ainda mais além das conquistas de Alexandre
Magno.
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 229
42
A observação da escrita cursiva do séc. XVI mostra grande oscilação no emprego do grafema
u para a consoante. Assim, e para só citar exemplos camonianos, o copista de MA usa sempre u, bem
como o do Cancioneiro Fernandes Tomás, ao passo que o Cancioneiro de Luís Franco Correa escreve sempre
v; em caracteres impressos, reserva-se v para a posição inicial e u para a posição medial.
43
Na apresentação da obra por Dimas Bosque, é utilizada uma linguagem semelhante: «Receba
pois o discreto leitor o fruto que desta orta de simples e fruitas da Índia o Doutor Garcia d’Orta lhe
oferece.»
44
Colóquios dos Simples e Drogas, fol. 151v.
45
Tanto mais de notar quanto é certo que Garcia de Orta diz planta (fol. 199r), plantas (fol. 1v) e
plantam (fol. 38r). O facto de Os Lusíadas manterem pranta é significativo, pois, conforme procuramos
mostrar no nosso trabalho citado na nota 11, havia inúmeras formas vulgarizadas no manuscrito
donde Luís Franco Correa trasladou o Tomo I, que aparecem latinizadas na editio princeps.
230 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
46
É neste mesmo prólogo que se historia a formação científica de Orta, em Alcalá e Salamanca
(confirmada no título do Colóquio I), o seu ensino «lendo nos estudos de Lisboa por alguns anos», a
sua longa experiência na Índia, «não somente na companhia dos Vice-Reis e Governadores, mas em
algũas cortes de reis mouros e gentios.»
47
Não julgamos provável a hipótese de Teófilo Braga, A primeira ode impressa de Luís de Camões,
pp. 9-10, de que o soneto em causa fosse do próprio Poeta, embora pudesse ter dado uma «ajuda»,
como a que ofereceu a Heitor da Silveira, quando este mandou umas trovas ao Conde do Redondo
(Redondilhas, 109).
48
Sobre esta figura, cuja acção se estendeu do Brasil ao Oriente, vide Conde de Ficalho, Garcia
de Orta e o seu tempo, cap. III.
49
Destes interessantes e reveladores textos nos ocupámos já, traduzindo-os e comentando-os,
em «Louvores latinos aos Colóquios dos Simples e Drogas», em folheto que veio a ser reimpresso em
apêndice à nossa colectânea Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1972), pp. 221-233.
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 231
50
Sobre o assunto, vide Conde de Ficalho, op. cit., cap. XIV. É curioso notar que Orta afirma na
dedicatória a Martim Afonso de Sousa que «bem pudera eu compor este tratado em latim, como
o tinha muitos anos antes composto, e fora a Vossa Senhoria mais aprazível, pois o entendeis
milhor que a materna língua, mas traiadeo [sic] em português, por ser mais geral, e porque sei
que todos os que nestas indianas regiões habitam sabendo a quem vai intitulado folgarão de o ler».
Ao passo que Dimas Bosque é mais restritivo: «O qual teve começado em lingua latina, e por ser
mais familiar a matéria de que ele escrevia, por ser importunado de seus amigos e familiares, para
que o proveito fosse mais comunicado determinou escrevê-lo na língua portuguesa a modo de diá-
logo...» No seu já citado epigrama latino, Tomás Caiado, como bom humanista que era, censurou a
escolha.
51
O facto de o título estar em latim (o mesmo que emprega Dimas Bosque na sua recomenda-
ção ao Doutor Tomás Rodrigues: doctorem Garciam ab Horto [ ... ] de simplicibus scribentem), conjugado
com os dados referidos na nota anterior, faz-nos conjecturar que Camões tivesse composto a sua
Ode para a versão primitiva do livro. Efectivamente, o derivado latino publicado por Clusius não é
designado daquele modo.
Em abono da hipótese que avançamos quanto aos efeitos de uma damnatio memoriae, recorde-se
que o Conde de Ficalho, op. cit., pp. 386- -388, menciona duas versões directas, embora ampliadas
(não dependentes, portanto, do Epítome de Clusius) em castelhano: uma, de Madrid, 1572, por Juan
Fragoso, que dá como autor e nada confessa sobre o seu modelo, na parte respeitante à Índia, e outra
de Cristóvão da Costa, publicada em Burgos, em 1578, que especifica «en el qual se verifica mucho
de lo que escribió el Doctor Garcia de Orta». Em Portugal, só viria a fazer-se segunda edição dos
Colóquios dos Simples e Drogas em 1872...
232 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
52
Para a primeira acepção, cf. Lusíadas III.13.7-8:
Com quem tu, clara Grécia, o céu penetras,
e não menos por armas, que por letras.
3. SOBRE O TEXTO DA ODE AO CONDE DO REDONDO 233
53
Apenas alguns exemplos: abrindo as pandas asas vão ao vento (IV.49.2), assi fomos abrindo aque-
les mares (V.4.1), quando subindo ireis ao eterno templo (I.9.4), novos mundos ao mundo irão mostrando
(II.8).
234 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Tal situação, porém, não se manterá por muito tempo. É o próprio poeta que
vai ao encontro do Outro, e que em breve se afirmará capaz de se exprimir em
geta9. Mais ainda, compõe um livro na língua local, o que lhe valeu ganhar fama
entre os nativos10.
Com esta breve digressão, quisemos pôr em evidência as dificuldades de
aculturação que podiam ocorrer no maior dos impérios antigos, e não menos o
inesperado paradoxo de ter sido na região que havia de conservar até hoje uma
língua derivada do latim – a actual Roménia, não obstante estar enquadrada por
países eslavos e por um (a Hungria) que nem sequer pertence à área indo-europeia
– que se deram estes factos que estão a completar vinte séculos.
Mas voltemos ao clima inóspito e ao isolamento, que, esses sim, são topoi que
passarão à posteridade, bem como o da consolação propiciada pela escrita (carmi-
nibus quaero miserarum oblivia rerum – «nos carmes busco o olvido da desgraça»11
– será um lema constantemente evocado por poetas portugueses setecentistas,
como Bocage e a Marquesa de Alorna). Ligado a este tema está o da esperança na
imortalidade futura da obra12, tema esse que atingira a sua mais alta expressão
no carme que encerra os três primeiros livros de Odes de Horácio (monumentum
6
E.g. Tristia II.11.9-10, III.14.37-40, V.10.35-36.
7
Tristia V.2.67-68.
8
Tristia V.10.37-38.
9
Tristia V.7.55-56; Pontica III.2.40. Noutros lugares confessa que chegou a ver-se na necessidade
de conversar consigo mesmo em latim (Tristia V.7.61-64) e de recear dar erros de latinidade nos seus
versos, misturando palavras pônticas com as latinas (Tristia III.14.49-50).
10
Pontica IV.13.17-22.
11
Tristia V.7.67.
12
Tristia III.3.71-80, III.7.45-52, IV.10.127-132; e, sobretudo, IV.9.17-26.
4. A ELEGIA III DE CAMÕES 237
aere perennius13) e será retomado, por sua vez, pelo próprio Sulmonense, no epílogo
das Metamorfoses14.
Conferem variedade a esta poesia predominantemente confessional – a que
não faltam pedidos aos amigos para intercederem por ele junto de César – as
invocações aos lugares famosos da Roma monumental 15 e das cerimónias do
triunfo, que podem ocupar toda uma elegia, como sucede com a celebração do
de Tibério16. Um sem número de figuras mitológicas, que encarnavam a amizade
e a lealdade, o amor, a dor da separação, a fidelidade conjugal, ora evocada sob
a forma de catálogo, ora ocupando todo um poema, o uso repetido do adynaton
para realçar uma impossibilidade pela firmeza da negativa – são outros tantos
processos retóricos que asseguram a variatio nestes dois livros.
Teve este preâmbulo em vista conduzir-nos a uma leitura e exegese – das várias
possíveis – daquele poema camoniano que Wilhelmn Storck17 chamou «a elegia
do desterro», ou seja a Elegia III, conquanto tal designação conviesse igualmente
às duas anteriores, sem esquecer, embora, que elas se encontram dispostas na
ordem cronológica inversa dos acontecimentos, conforme já notara Faria e Sousa18.
Efectivamente, esta tem por cenário «o brando Tejo» (58), quer fosse composta
em Santarém, conforme supôs o mesmo Storck, quer em Constância, como man-
tém uma tradição que se afigura mais fundamentada19; ao passo que a segunda
decorre em Ceuta, onde o autor terá permanecido entre 1549 e 1551; e a primeira
descreve a sua partida para a Índia, em 1552, e a expedição vitoriosa contra o rei
de Chembe, na qual tomou parte, mal chegado a Goa.
Têm todas elas em comum o arquitexto ovidiano, sendo a primeira a que con-
tém a descrição da tormentosa viagem para o exílio, que partindo de Tristia I.2 do
Sulmonenese, aparece aqui remodelada em termos que prenunciam a tempestade
marítima de Os Lusíadas20. As três elegias evocam, no final, figuras mitológicas
tradicionais do Além.
13
É o famoso poema de Odes. III.30.
14
Metamorfoses XV.871-879.
15
E.g. Pontica I.8.29-38.
16
Tristia IV.2 e Pontica II.1, respectivamente.
17
Vida e Obra de Luís de Camões (Tradução de Carolina Michaëlis de Vasconcelos), Lisboa, reed.
1980, p. 396.
18
Rimas Várias de Luís de Camões, Lisboa, 1689, Tom. IV, 2ª Parte, p. 23.
19
Sobre a biografia do Poeta, seguimos a prudente reconstituição de Aníbal Pinto de Castro,
Camões Poeta pelo Mundo em Pedaços Repartido, Lisboa, Instituto Camões, 2003, especialmente p. 6. Na
numeração e citações do texto camoniano utilizaremos a edição de A. J. da Costa Pimpão (reed.
revista e prefaciada por Aníbal Pinto de Castro), Coimbra, 1994.
20
A Elegia I contém, além disso, ecos bem audíveis de Virgílio, sobretudo de Geórgicas II.452-474,
e de Horácio, Odes II.18.
238 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
O motivo dos amigos, quer dos fiéis, quer dos ingratos (que há-de preencher
elegias inteiras do autor latino, devidamente escudado por exemplos mitológicos)
foi substituído pelo dos amados filhos (que Ovídio não refere, nem podia referir,
porque ele tinha apenas uma filha, já casada, que vivia na Líbia). Esta alteração,
aliás, de efeito dramático mais imediato, pode, no entanto, explicar-se pelo cru-
zamento com um passo de Tristia III.11.15-16, onde ao afastamento dos pignora
(palavra que habitualmente designa por metáfora os filhos) se junta a expulsão
do país natal:
21
Designadamente, Gessey Georgette Berge Yahn, O Homem sob o Signo do Desterro. Uma Elegia
de Camões, Rio de Janeiro, 1971 (a que não tivemos acesso); Carlos Ascenso André, Mal de Ausência. O
Canto do Exílio na Lírica do Humanismo Português, Coimbra, 1992, pp. 230-231; Maria do Céu Fraga, Os
Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, Coimbra, Centro de Estudos Camonianos, 2003, pp. 208, 216,
passim.
22
Alguns exemplos são, respectivamente, Tristia III.3.7-8; III.10.25-34, 71-75. Em Pontica tão-pouco
escasseiam dados semelhantes, e.g., I.3.49-50, II.7.69-74, III.1.11-24.
4. A ELEGIA III DE CAMÕES 239
seguinte poderá parecer estranho ao leitor habitual dos Antigos, revelando, ape-
nas, a erudição do nosso poeta, criado na ciência do Renascimento. No entanto,
também aqui, segundo julgamos, «o curso das estrelas contemplava» (10) é uma
contrapartida à invocação às constelações da Ursa Maior e da Ursa Menor, que o
poeta dos Tristia dizia que observavam o universo sem nunca mergulhar nas águas
marinhas23. Recordemos, de passagem, que Camões havia de insistir nos dados
trazidos pelos Descobrimentos a este respeito: bastará lembrar a Elegia I.113-115
(«debaixo estando já da Estrela nova,/ que no novo Hemisfério resplandece,/ dando
do segundo axe certa prova») e, mais ainda, o conhecido passo de Os Lusíadas
V.15.7-8 («vimos as Ursas apesar de Juno/ banharem-se nas águas de Neptuno»).
O quarto terceto preludia uma descrição da natureza em tons suaves, a con-
dizer com a realidade das margens do Tejo, que adiante surgirão, dulcificando,
portanto, os dados observados por Ovídio. Efectivamente, o Sulmonense, ao des-
crever o insuportável Inverno cítio, não se esquece de mencionar que via os peixes
presos no gelo, conquanto parte deles ainda estivesse viva 24. Os outros animais aí
referidos são os cavalos dos inimigos e os bois que puxam os carros dos Sármatas,
passando a vau sobre a superfície gelada do Danúbio25. Paralelamente, para se
poder incorporar nesta contemplação o terceto seguinte (16-18):
apenas virá à colação o extenso catálogo dos rios que desaguam no Mar Negro,
desde as costas da Ásia Menor ao Danúbio26.
A propósito destes tercetos, escreveu Maria do Céu Fraga, muito acertadamente,
que «na terra do exílio reina a harmonia», e ainda que «o poema camoniano acen-
tua lexicalmente a ordem do universo ao mesmo tempo que sublinha a integração
de cada elemento no seu meio natural»27. Acentuaremos, pela nossa parte, que
23
Tópico este que se repete muitas vezes, e.g., Tristia I.2.29, IV.3.1-6.
24
Tristia III.10.49-50. Os peixes que nadam no mar, e que são incontáveis, figuram numa série
de adynata em Pontica II.7.28.
25
Tristia III.10.29-34.
26
Pontica IV.10.45-64. A descrição culmina com a referência aos efeitos da entrada de tamanha
massa de água nas salgadas águas marinhas – observação esta ratificada pelos geógrafos actuais,
como refere Jacques André na sua edição dos Pontica, Paris, 2ème tirage, 2002, p. 143, nota 1.
27
Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, p. 209. Julgamos menos provável a afirmação, contida
na página seguinte, de que Camões «parece lembrar-se destes versos [Tristia III.8.23], desenvolvendo
a partir dele os seus próprios versos numa correlação quase perfeita». Mas não concordamos com a
mesma especialista quando põe em paralelo o início deste poema com o diálogo de que parte a Elegia
«O poeta Simónides, falando», que assenta em Cícero, De Finibus 2.32, 104.
240 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
os dados originários, quer dos Tristia, quer dos Pontica, pintam sempre com cores
sombrias o lugar do desterro.
Os dois tercetos seguintes (19-24) voltam à dor do isolamento em terra estranha,
apenas atenuado porque «sua doce Musa o acompanha / nos versos saüdosos que
escrevia». Até que ponto a poesia era o seu lenitivo, lê-se repetidamente em Ovídio,
especialmente em Tristia IV.10.111-112. E de Tristia IV.1.95-96 correm também «as
lágrimas com que ali o campo banha» (24).
Logo a seguir, opera-se a transição para o presente do nosso poeta (25-27)28:
Tal como sucederá depois na Elegia II, «Aquela que de amor descomedido»,
o triste poeta sobe a um monte (neste caso, localizado no Calpe – 47), para aí se
concentrar nas suas recordações e na expectativa da libertação, que, aliás, mal
ousa esperar. A oscilação entre um presente sombrio e um passado ridente aparece
simbolizada no primeiro esboço de paisagem (55-57), logo substituído pela visão
do «puro, suave e brando Tejo» (58), com as suas barcas, movidas pelo vento ou
pelos remos (58-63). E repare-se como estes topoi são precisamente o inverso dos
de Tristia III.10.47-48:
28
Maria do Céu Fraga, Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, pp. 211 e 312, vai ao ponto
de classificar este quadro inicial do poema como um símile, embora tal designação não seja aqui a
mais apropriada.
4. A ELEGIA III DE CAMÕES 241
Entre o poeta latino que «aos montes e às águas se queixava» (8) e o lusitano,
que apostrofava as águas do Tejo (64-67) há uma continuidade de motivos que
tentámos pôr em evidência. Mas o paralelismo das situações está longe de ser
29
Maria do Céu Fraga, Os Géneros Maiores na Poesia Lírica de Camões, p. 213.
30
A comparação com os supliciados no Além é o tema recorrente da Canção II, «A instabilidade
da fortuna», que desde Faria e Sousa é costume aproximar da Canção XV de Sannazaro, «Qual pena,
lasso». Tratámos desta questão em Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, Lisboa,
1988, pp. 79-81.
242 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
total. Ao exilado de Tomis consola-o a companhia dos seus versos. Camões dirá
de si que (85-87):
Até que, por último, a esperança de «aquele dia desejado» (92) se desvanece.
É nestes tons menores, que hão-de alcançar a sua mais alta expressão nalgumas
Canções, designadamente a IX e a X, que termina a Elegia III, aquela que terá sido
o seu primeiro poema de degredo, composto a partir da evocação do Sulmonense
Ovídio.
5. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES *
Entre todo o maravilhoso pagão de que Camões se serve nos seus versos, pas-
sando sem esforço – ao contrário da maioria dos seus comentadores – deste para
a humana realidade ou até para a espiritualidade cristã, têm lugar de eleição as
divindades femininas dos campos e das águas, nas quais a transição da beleza
natural para a beleza corporal se esbate facilmente1.
Veja-se um exemplo encastoado n’Os Lusíadas, numa sequência de estrofes que,
na terminologia consagrada do género épico, teria de se chamar, aridamente,
o catálogo das conquistas de D. Afonso Henriques:
Aqui temos, numa fugaz miniatura, um tema a que Camões volta muitas vezes:
as Ninfas perseguidas pelo Amor. O exemplo mais célebre, o da chamada Ilha dos
*
Publicado em Biblos 51 (1980), 315-325; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa.
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 31-44.
1
É frequente o poeta sugerir a beleza da amada comparando-a a uma Ninfa (e.g. Odes II.15-21,
XIII.1-7) ou designá-la por sua Ninfa (Sonetos 101 e 106) ou ainda tratá-la por Ninfa (Écloga 3.167, 232).
Também nós não distinguiremos entre umas e outras neste estudo. (Todas as referências à Lírica são
feitas pela edição das Rimas de A. J. Pimpão (Coimbra, 1973)).
244 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
2
«Camões’ manieristische und Tassos barocke Gestaltung des Nymphemnotivs (Lusíadas IV.54-89
und Gerusalemme XV.55-XVI.58)», Portugiesische Forschungen der Görresgesellschaft III (1963), 91-109.
3
Por motivos adiante explicitados, não nos parece provável, neste caso (ao contrário do exemplo
detectado por José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas (Lisboa, 21979), pp. 56-57, para Lampetusa, em
I.46.8 – exemplo esse que, aliás, Epifânio resolve de outro modo) a hipótese da utilização de obras
como as Genealogiae de Boccaccio ou a Officina de Ravísio Textor.
4
Os nomes de forma adjectiva, como Silvana, amada de Duriano na Écloga IV, e a Daliana da
Écloga VII e dos Sonetos 69 e 70, representam outro tipo de criptónimo. Para a primeira, Faria e Sousa
sugere duas hipóteses: o mesmo que Sílvia, anagrama de Luísa, ou derivado do apelido Silva. Parece
mais simples supor que é o feminino de Silvano, divindade campestre (o Dicionário Latino de Lewis
and Short refere a ocorrência, numa inscrição, de Silvanae como deusas dos bosques). Silvano é um
dos segadores da Écloga X de António Ferreira. Na Écloga Montano, Sá de Miranda intitula Silvestre
um dos seus pastores, e o mesmo faz Bernardim Ribeiro na Écloga III. Por sua vez, Sílvio é um dos
pastores das Éclogas I e X de Diogo Bernardes, enquanto Sílvia dá o nome à Écloga XIV do mesmo
autor, e a uma Elegia de António Ferreira contida só no Cancioneiro Fernandes Tomás (no seu estudo
sobre esse códice (Coimbra, 1922), p. 89, Carolina Michaëlis recorda que «Caminha festejara também
uma Sílvia na sua mocidade (D. Margarida da Silva)»; no próprio Camões, figura uma Sílvia no Soneto
74 e Sílvio no 78 (sobre as variantes do nome no primeiro destes sonetos, vide Arthur Lee-Francis
Askins, The Cancioneiro de Cristóvão Borges (Braga, 1979), p. 193).
5
Anagrama será seguramente na Écloga VII de Diogo Bernardes. A identificação com Inês de
Lima, filha de D. Francisco de Lima, Visconde de Vila Nova de Cerveira, foi feita por Delfim Guimarães,
Arquivo Literário, VII, pp. 218-220 (apud ed. Marques Braga de Diogo Bernardes, vol. II (Lisboa, 1946), p. 51).
5. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES 245
que figura tanto no catálogo das Nereides de Hesíodo (Teogonia 249) como no da
Ilíada (XVIII.40)6 e que significa «a que vive nas ilhas» (como Ἀχταίη é «a que
habita nos promontórios», Ἠιόνη «a que mora nas margens» e Ψαμάθη «a das
areias»).
No passo de Os Lusíadas, Nise está junto com Cloto e Nerine. Que em Cloto
houve troca de nome com uma das Parcas, quando se devia dizer Doto (Δωτώ Il.
XVIII.43 = Th. 248), foi primeiro notado por Trigoso no Exame crítico comparativo das
primeiras cinco edições dos Lusíadas, segundo informa Epifânio no seu comentário ad
locum. O erro vinha das edições da Eneida do séc. XVI, que, por gralha tipográfica
facilmente explicável, substituíram D por Cl em Aen. IX.1027.
O mesmo Epifânio afirma, a propósito do terceiro nome, que é «um patronímico
equivalente a filha de Nereu». Efectivamente, a palavra figura nessa qualidade,
a acompanhar nome de Galateia (Nerine Galatea), em Virgílio, Bucólicas VII.37. No
passo acima citado do Canto IX da Eneida (102-103), lê-se também8:
6
Colocámos intencionalmente Hesíodo primeiro, não porque alinhemos no grupo dos que têm
a Teogonia por anterior à Ilíada, mas porque, seguindo na esteira de Zenódoto e de Aristarco, reco-
nhecemos na enumeração homérica (onde, aliás, em vez dos cinquenta nomes das filhas de Nereu em
Hesíodo, figuram só trinta e três, dos quais apenas dezassete são comuns) o modelo do poeta da Beócia.
7
Pudemos verificar o facto na edição de 1515, existente no Instituto de Estudos Clássicos da
Universidade de Coimbra. A hipercorrecção ao texto de Os Lusíadas principiou na versão francesa de
Duperron de Castera, em 1735, segundo Gomes de Amorim (apud Epifânio, comm. ad locum). Note-se
que, de duas das fontes geralmente apontadas como prováveis para os conhecimentos mitológicos de
Camões, as Genealogiae de Boccaccio e a Officina de Ravísio Textor, a primeira diz Doto e a segunda Cloto.
8
«... tal como a Nereide Doto e Galateia cortam com o peito o mar espumante.»
9
Exceptua-se, tanto quanto pudemos saber, Júlio Nogueira, Dicionário e Gramática de «Os Lusí-
adas» (São Paulo, 1960), p. 285, que, seguindo na esteira de Otoniel Mota, identificou Nise com a já
citada Ninfa virgiliana Nesaee (Aen. V.826 = Georg. IV.338); quanto a Nerine, supõe-no equivalente de
Nereida e compara-o com o patronímico de Nerine Galatea de Buc. VII.37, mas fica na dúvida (citado
por Emanuel Paulo Ramos – a quem agradecemos estas informações – no seu comentário ad locum).
Na sua tradução inglesa comentada de Os Lusíadas (New York, 1950), Leonard Bacon também diz:
«Camões’ Nereids, Burton succeeds in linking up with the Iliad and Aeneid, but Nerina [sic] seems to
be the Portuguese’s own invention» (p. 71). António Salgado Júnior nota apenas que Nise e Nerine se
não encontram em Virgílio, e António José Saraiva chama-lhes «nereidas camonianas».
246 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
E (e entre substituído por entre), tivesse sido omitida uma copulativa que ligava
os dois verbos10 em perfeito paralelismo com o que se passava com a outra Ninfa.
A leitura seria esta:
A sequência do texto afirma que as Nereides que fizeram deter a nau capitaina
eram muitas11. A especificação podia ser apenas bimembre, tal como sucede no
10
Outros exemplos que podem provir da oscilação no uso linguístico ou resultar de uma intenção
estilística: a alternância (comum a António Ferreira) entre toda parte e toda a parte (I.2.7, etc.); todo
o dano (I.83.3) e todo dano; quando Gama (I.84.3), que a edição de 1663 emendou para quando o Gama.
Um exemplo de troca nas copulativas, com reflexos no sentido da frase, é a proposta de José Maria
Rodrigues, «Um ‘e’ a mais e outro de menos em uma oitava de Os Lusíadas» [VI.18] (Lisboa, 1938).
Convém ainda acrescentar que a pontuação de Os Lusíadas, se, por um lado, é muito melhor do que
a de outras obras contemporâneas, e mais adequada à leitura, tem, no entanto, erros evidentes, em que
surge ou falta uma virgula onde o sentido requeria o contrário. Alguns exemplos tirados da edição Ee:
Sobre a famosa confusão dos Marcomanos com Polónios, em III.11.4 – originada num erro de
pontuação – leia-se o artigo de Armando Sousa Gomes, «Marcomanos não são Polónios», A Língua
Portuguesa 4 (1934), 147-149.
Quanto à frequência de expressões paralelas em Camões, vide José Maria Rodrigues, Fontes dos
Lusíadas (Lisboa, 21979), pp. 488-489.
11
Carece de fundamento a hipótese de Faria e Sousa, de que as Ninfas eram três, porque se des-
tinavam cada uma a sua nau, tal como sucederia no Canto V da Eneida, onde as seis ninfas nomeadas
indicariam que era esse o número de embarcações de Eneias. É que, logo adiante, na estância 22, se
declara que eram muitas mais:
Canto VI, quando Vénus leva as Ninfas a abrandar os Ventos, para pôr termo à
tempestade. Aí singularizam-se somente Oritia e Galatea12, quando havia muitas
mais na formosa companhia:
A aceitarmos a estrofe tal como está nas duas edições datadas de 1572, terí-
amos que admitir que Camões, ao invés da sua prática habitual, substituiu aqui
um nome de uma Ninfa – que com tanta facilidade encontrava sempre – por uma
designação genérica das filhas de Nereu.
Supomos, porém, que não foi esse o caso, e que se trata de um fenómeno
semelhante ao que ocorreu na estância 51 do Canto V, onde se lê esta anomalia
mitológica na história de Adamastor:
O símile das formigas, que ocupa a estância 23, concorre ainda para reforçar a noção de pluralidade
indefinida. Por outro lado, a estrofe 28 confirma que só a nau capitaina precisava de ser desviada.
12
Estância 88-89. Galateia, comum a Ilíada XVIII.45 e a Teogonia 250, passou à Eneida IX.103, depois
de ter sido a amada do Ciclope no Idílio XI de Teócrito; é frequente na Lírica camoniana (Elegia I.74;
Écloga II.223 (onde representa a amada de Sannazaro); objecto da paixão de Sereno na Écloga VIII.
Quanto a Oritia, é uma das Nereides na Ilíada XVIII.48 e não figura em Hesíodo. De outra Oritia, filha
de Erecteu e raptada por Bóreas, falava Ovídio nas Metamorfoses VI.675-721; Virgílio faz-lhe alusão
em Georg. IV.463 e em Aen. XII.83. Em Os Lusíadas, estão combinados os dois mitos, pois é na qualidade
de amada do Vento Norte que a Ninfa consegue amansar o sopro temível às naus.
É certo que as Genealogiae de Boccaccio fornecem o catálogo completo das Nereides da Ilíada, onde
figura Oritia, mas o facto de aí se ler correctamente Doto, e não Cloto (vide supra, nota 7) faz-nos pôr
em dúvida que fosse a fonte que serviu a Camões; por sua vez, na Officina de Ravísio Textor, onde
persiste o erro Clotho, falta Oritia, bem como outras Ninfas homéricas. A combinação destes factos
torna mais provável que o modelo tenha sido o homérico.
248 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
A irregularidade foi notada por Faria e Sousa, que comenta: «Creemos que
la conjuncion e, sobra, porque parece hazer dos Gigantes de uno; pues Egeo es
Briareo: i epíteto suyo el centimano, porque tenia cien manos.» Cita, depois, em
abono da sua identificação, um passo do Canto I da Ilíada (que ocorre em I.402-404).
Hernâni Cidade, no seu comentário ad locum, também observa: «Centimano
(ou melhor Centímano se lermos independentemente do metro) que tem cem mãos,
não é nome de gigante, mas epíteto dado a Briareu ou Egeon e a Tifeu, gigantes que
igualmente foram na escalada do Céu».
Que poderia tratar-se de uma hendíade ou de sinonímia, também o suspeitou
Ruben Franca, As armas, e os barões... (Pernambuco, 1973), p. 79.
Por sua vez, Leonard Bacon, na sua já referida tradução comentada, observa, na
p. 205: «Egeus, properly Aegeon («hundredfold Aegeon» in Statius, Thebais, IV .535)
is all over the war of the Gods and Giants. Hundred Hands, I take to be Briareus».
É oportuno recordar que segundo Hesíodo, Teogonia 149, os Centímanos eram
três: Kottos, Briareos e Gyas. Mas, dos três, o mais importante era, de longe, Briareu,
como observa M. L. West, Hesiod: Theogony (Oxford, 1966), p. 209, que menciona
também o passo da Ilíada em que ele é identificado com Egéon. Esta identifi-
cação, bem como o cognome (Centimanus ou Centumgeminus, tradução do grego
Ἑκατόγχειρ, composto criado tardiamente pelos mitógrafos), era conhecida tanto
das Genealogiae como da Officina, que acrescenta «fuisse fertur centimanus» e cita
o passo da Eneida13.
Em consequência de quanto ficou dito, e, particularmente, da semelhança
com o passo da Eneida acima referido, supomos que o verso 2 deverá ler-se do
seguinte modo:
13
Epifânio, no seu comentário, refere exemplos latinos de ocorrências dos outros dois: centi-
manus Gyas em Horácio, Odes II.17.14 (em texto, aliás, de tradição insegura – vide P. G. M. Nisbet and
Margaret Hubbard, A Commentary on Horace Odes Book II [Oxford, 1978], p. 279) e centimanum... Typhoea
em Ovídio, Metamorfoses III.303.
5. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES 249
Note-se, logo de entrada, a perfeita simetria do quadro: num total de oito nomes,
a cada grupo de dois pertence uma circunstância específica14. Assim, Dinamene
e Efire estão ligadas ao próprio deus da poesia e ao motivo – tão frequente em
Ovídio, e central na sequência narrativa desta mesma écloga – da Ninfa surpre-
endida ao banhar-se num rio ou num lago; Sirinx e Nise são perseguidas por Pan;
Amanta e Elisa têm pontaria certeira (o que deverá entender-se alegoricamente);
Daliana e Belisa, as mais belas, provêm das margens do Tejo. Um terceto cabe às
duas primeiras; o seguinte, até à pausa, à terceira e quarta, e daí até ao final, à
quinta e sexta; finalmente, um terceto às duas últimas.
A referência ao Tejo, retirando a máscara bucólica ao terceto, despertou, natu-
ralmente, a curiosidade dos comentadores. Faria e Sousa partiu do número total
(nove) para a identificação com as nove Musas (quando Camões, embora chame
Ninfa a Calíope em Lus. III.2.1, nunca dá outra atribuição a essas divindades, como
é de regra, que não seja a de inspirar os poetas); com mais um salto de imagi-
nação, e atendendo a que as duas últimas parecem colocar a cena em Portugal,
formulou a hipótese de nestes tercetos se encontrar uma alegoria ao Paço – a
corte da Infanta D. Maria15 – hipótese que Juromenha aceitou16 e que Mendes dos
Remédios não desprezou17.
14
Sobre a «estética binária», veja-se Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na
Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra, 1971), pp. 355-358.
15
Rimas Várias de Luís de Camões, vol. II, t. V, col. 307. No seu comentário a Os Lusíadas, vol. I, col.
158, já Faria e Sousa pretendera explicar que as Tágides minhas de I.4 eram as «damas de Lisboa».
16
Obras de Luís de Camões, vol. III, p. 419. Juromenha vai ao ponto de lembrar que as duas Ninfas
vindas do Tejo podiam ser as Irmãs Sigeias, naturais, como é sabido, de Toledo. No exemplar da
biblioteca de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, existente no Instituto de Língua e Literatura Por-
tuguesas da Universidade de Coimbra, a famosa investigadora exprimiu o seu desacordo com três
irónicos pontos de exclamação na margem.
17
Camões, Écloga dos Faunos (Coimbra, 1923), pp. 12 e 57-58.
250 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
18
W. Storck, Luiz de Camões: slimtliche Gedichte, 4. Band (Paderborn, 91882), p. 417, comenta: «Der
Dichter mischt übernommene (Ephyre, Syrinx, Nise) und erfundene Nymphennamen, wie aufs Deut-
lichste v. 106 ff. zeigen; daher darf man nicht zu ängstlich nach seiner Quelle suchen.»
19
As edições de 1595 e de 1598 têm Sirene, lição que Costa Pimpão muito acertadamente rejeitou
em favor de Sirinx. Ao mito de Pan e Syrinx alude Sannazaro na Poesia X da Arcadia:
a primeira solução) que Camões derivou a palavra, pois não teria podido recompô-
-la através da corruptela castelhana 22.
O nome aparece também na Écloga VI.74, 217 e 249, e na Elegia I.78. Se se trata
da mesma pessoa, e se esta, por sua vez, é identificável com a Dinamene dos
Sonetos 100 e 101 (para já não falar de outros igualmente famosos, pertencentes
ao chamado Ciclo de Dinamene, como o 80 e o 106), teríamos a prova de que a
Elegia e Éclogas em questão lhes eram anteriores23. Julgamos, no entanto, duvi-
dosa essa identificação, e arriscado qualquer suporte biográfico que se pretenda
dar-lhe. Observemos apenas que Dinamene, que fazia parte do coro das Nereides
que seguia a nau em que Camões embarcara para a Índia (Elegia I), não aparece
nunca n’Os Lusíadas.
É precisamente naquela Elegia que surge o outro catálogo camoniano de
divindades marítimas:
22
A edição crítica de Garcilaso por Elias L. Rivers (Madrid, 1964) cita Diamane como a forma da
princeps. Também aqui, na Écloga III há quatro ninfas, das quais se lê:
É interessante notar que o copista do Soneto Ah, minha Dinamene, assi deixaste no Cancioneiro de
Cristóvão Borges (copista esse que Askins no prefácio à sua edição, p. 6, supõe ser espanhol), escre-
veu Diamene (n.º 135, p. 138), ao passo que o Cancioneiro de Luís Franco Correa apresenta a forma
correcta (fol. 69v).
23
Os Cancioneiros manuscritos quinhentistas pouco nos ajudam neste particular, pois quase só
fornecem argumentos ex silentio ou, quando muito, um terminus a quo. Assim, o de Cristóvão Borges e
o de Luís Franco Correa não contêm nenhuma das duas Éclogas em causa; o segundo inclui, porém,
a Elegia I (fol. 4), pertencente à parte do apógrafo que, segundo R. Bismut (La lyrique de Camões [Paris,
1970), pp. 383-386), teria sido copiada entre 1557 e 1560. O mesmo se passaria com o Soneto 80 (comum
a Cristóvão Borges), ao passo que o 101 teria sido trasladado entre 1560 e 1565 (também figura em
Cristóvão Borges). O 100 e o 106 faltam em ambos. Em contrapartida, o índice do Cancioneiro do P. e
Pedro Ribeiro conhece todas estas composições, mas atribui os Sonetos 100, 101 (alterado) e 106 a
Diogo Bernardes.
252 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
(Écloga VI.106-108)
Desta, afirma Faria e Sousa que «quiere decir Ninfa de la agua», e logo se
lança em fantasiosas hipóteses de identificação com D. Guiomar, baseando-
-se em etimologias populares deste nome. Parece-nos que é a Λιμνῴρεια de
Ilíada XVIII.41, com fenómeno de hipercorrecção de um suposto itacismo, que
aqui está presente. «Lago» ou «lagoa» (λίμνη) entra na composição deste mitó-
nimo.
Já referimos Thetis (que é uma Nereide, a distinguir de Τηθύς, uma Titânide
filha de Uranos e Gaia, de Lusíadas VI.21 e IX.85,89), com modelos em Teogonia 244,
Eneida V.825 e ainda Metamorfoses XIII.738-899.
Em conclusão, poderemos talvez dizer que, de mais de duas dezenas de nomes
de Ninfas, um pequeno número é formado por anagramas ou criptónimos ao gosto
da época, mas a maioria ascende à Eneida ou às Geórgicas e, pelo menos alguns, a
modelos gregos, com ou sem mediação latina.
Estão neste último caso Ὠρείθυια da Ilíada (embora se cruze com o mito das
Metamorfoses), Δυναμένη da Ilíada e da Teogonia, e Λιμνῴρεια, só da Ilíada 24.
O conhecimento destes nomes confirma-nos na opinião de que Camões tinha
notícia do catálogo das Nereides da Ilíada – e não através de Boccaccio, que escreve
Dinameni com itacismo e Liminoria com anaptixe – e entendia o seu significado,
essencial nalguns casos. O que aumenta a probabilidade, já sugerida por outros
24
Destas, a primeira figura só nas Genealogiae; a segunda e a terceira, tanto aí como em Ravísio
Textor.
5. NOMES DE NINFAS EM CAMÕES 253
indícios25, de que o nosso maior poeta, além de manusear o latim com extrema
familiaridade, também tinha algum conhecimento, pelo menos, da outra língua
clássica.
25
Leiam-se, a este propósito, as considerações de A. Costa Ramalho «Sobre o nome de Adamas-
tor», no seu livro Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), pp. 33-41.
(Página deixada propositadamente em branco)
6. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS *
Em relação aos modelos clássicos, todos sabem como Camões os tomou por
norma na sua epopeia e como os ajustou aos objectivos que se propunha alcançar.
O poema tem, pois, uma proposição, invocação e narração lançada in medias res.
Tem ainda – e aí o seu modelo terá vindo das Geórgicas de Virgílio (I. 24-42), como
já notou Faria e Sousa, e dos Fastos de Ovídio (I.3-26), como sugeriu Epifânio – uma
longa dedicatória a D. Sebastião. Neste esquema, porém, inserem-se algumas
diferenças significativas, nas quais nos propomos atentar.
Uma está na estrofe terceira, que serve de articulação entre a proposição e a
invocação; outra, na própria invocação. É que o poeta não vai limitar-se a cantar
uma série de feitos comparáveis aos dos grandes heróis antigos, mas muito supe-
riores a eles. O facto, preludiado no “passaram ainda além da Taprobana”, limite
oriental do mundo conhecido pelos Antigos – quer deva identificar-se neste passo
com Ceilão, quer com Sumatra (no que o próprio Camões parece ter hesitado – cf.
M. H. Rocha Pereira, 1988c: 83-108, espec. 94-101)1 – é reencarecido na estrofe 3
com a introdução da fórmula conhecida, desde Propércio2, como cedat, combinada
com taceat, e constituindo assim, conforme observou Kurt Reichenberger (1961:
79-88, espec. p. 89), o motivo da Ueberbietung ou «esquema de superação», definido
por Curtius (21954: 169-172)3. O esquema em questão culmina nos dois últimos
versos da referida oitava:
*
Publicado em Revista Portuguesa de Filologia 25.2 (2003-2006), 911-924; Actas da VI Reunião Interna-
cional de Camonistas. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra (2012), 51-61.
1
Taprobanam alterum orbem terrarum esse diu existimatum est – chega a dizer Plínio (VII. 81) citado por
Faria e Sousa e recordado por Epifânio. De qualquer modo, foi a chegada dos Portugueses a Ceilão que
deixou em textos de humanistas italianos as marcas do grande assombro (Ramalho, 1980:13-15 e 24).
2
Cedite Romani scriptores, cedite Grai / nescio quid maius nascitur lliade (II.324.65-66). Este famoso
dístico de Propércio referente à Eneida já foi citado por Faria e Sousa.
3
A tradução por «esquema de superação» é de R. M. Rosado Fernandes (Lausberg e Rosado Fer-
nandes, 52004: 108). O «esquema de superação» também figura nos grandes cientistas da época: Garcia
de Orla, Colóquios dos Simples e Drogas, nº XX; Duarte Pacheco Pereira, Esmeralda de Situ Orbis, prólogo.
256 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Se referimos este texto que todos sabem de cor, não foi para evidenciar este
princípio estruturante do poema (cf. Kurt Reichenberger, 1960: 1-2; é de sua autoria
a expressão), mas por ser esta a primeira referência à Musa que nele se contém.
Não pertence, porém, ainda, à invocação. Essa virá logo a seguir; contudo, não
será endereçada à Musa, mas, como todos sabem, às “Tágides minhas”. Ocupará
duas estrofes completas, nas quais soam com insistência as alusões à lírica do
Poeta, com maior incidência na poesia bucólica: “se sempre em verso humilde
celebrado / foi de mim vosso rio alegremente”, em I.4.3-4, remete por hipálage
para o adjectivo emblemático do canto pastoril4 (“non omnes arbusta iuvant
humilesque myricae”, da mais discutida écloga de Virgílio – IV.2) e para a paisa-
gem do vale do Tejo, cenário habitual, embora não único, dos idílios camonianos,
particularmente de “Ao longo do sereno / Tejo suave e brando” (II.1-2); do mesmo
modo, “a agreste avena ou frauta ruda” (I.5.2) reenvia para a não menos célebre
“silvestrem tenui musam meditaris avena”, que Títiro exercitava no começo da
Bucólica I do Mantuano e que agora vai ceder o lugar à tuba canora e belicosa
(I.5.3).
As Musas voltarão a ser mencionadas neste canto, no decorrer da dedicató-
ria a D. Sebastião, mas agora para sublinhar a veracidade dos feitos que vão ser
celebrados, em contraposição com os dos poemas renascentistas, cantados por
Boiardo ou Ariosto, ou ainda pela medieval Chanson de Roland, essas “vãs façanhas
/ fantásticas, fingidas, mentirosas” (I.11.1-2), glorificadas por “estranhas / Musas,
de engrandecer-se desejosas” (I.11.3-4).
É, pois, entre a antigua Musa e as estranhas Musas que vão situar-se as divin-
dades inspiradoras invocadas nas estâncias 3-4. Entre a Antiguidade Clássica e
os modelos estrangeiros surge, porém, algo que pareceria inesperado, não fora
a insensibilização causada por cinco séculos de leitura e exegese camoniana: as
Tágides minhas.
O nome – aliás, um patronímico – fora inventado por um grande humanista,
como se sabe pela declaração do próprio. Efectivamente, André de Resende, na
anotação 25 ao Canto II do seu poema Vincentius Levita et Martyr, observa que foi
ele que teve a ousadia (nos ausi sumus) de derivar do “Tagus Lusitaniae fluvius...
nominatissimus” os nomes de Taganus, Tagis,-idis (este, no poema sobre a morte
de D. Beatriz de Saboia), Cistaganus e Transtaganus. O facto é bem conhecido dos
Pedro Nunes, no Tratado em Defensão da Carta de Marear, exaltava a descoberta de «novas ilhas, novas
terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novos céus e novas estrelas».
4
Epifânio recorda, a propósito, a divisão dos estilos conhecida por Cícero, Orator 192 (neque
humilem et abiectam orationem nec minus altam et exaggeratam probat).
6. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS 257
Uma crença, que ascende aos tempos mais antigos, atribui às águas
de certas fontes e rios, entre outras virtudes sobrenaturais, a de darem
inspiração poética aos que beberem delas; estavam neste caso duas fontes
da Beócia, que brotavam do monte Hélicon, a fonte de Aganipe e a Hipo-
crene; as Musas foram originariamente Ninfas de fontes criadoras de insp-
iração.
5
A questão foi retomada modernamente (Ramalho, 1982: 221-236).
6
Sobre as várias etimologias propostas para o nome das Musas, veja-se Chantraine (1980: s.v.
μοῦσα).
258 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
1951: 80-82). Nenhum texto exprime talvez tão bem essa relação como este frag-
mento de Píndaro:
Mais uma vez, o modelo ascende a Hesíodo que, ao fazer o catálogo das Musas
na Teogonia (77-79) – a mais antiga menção conhecida dos seus nomes – termina
com o de Calíope, acrescentando: «esta é, de todas, a principal» (ἣ δὲ προφερεστάτη
ἐστὶν ἁπασέων). Virgílio, ao invocá-la em especial na Eneida IX.525, limitara-se
a implorar-lhe que desse inspiração ao seu canto (Vos, o Calliope, precor, aspirate
canenti).
A tradição mítica consagrada pelo texto de Hesíodo transparece ainda na estrofe
dedicada à criação da Universidade de Coimbra, quando se referem as Musas,
símbolos do saber, como provenientes do Monte Hélicon, tal como as situara o
proémio da Teogonia (Lus. III.97.1-4):
Temos aqui a outra ocorrência do nome das Tágides, na estância 100, e a perí-
frase que igualmente as designa na estrofe 99 (Filhas do Tejo), construída em coorde-
nação a Calíope, como observa Epifânio, e, como nota ainda o mesmo comentador,
tendo por ocupação habitual trabalhar as telas de ouro fino, tal como «as ninfas
que rodeavam Cirene, a mãe de Aristeu», nas Geórgicas de Virgílio, IV.334-3357.
As Ninfas do Tejo são chamadas a inspirar o Poeta, juntamente com as do
Mondego (e repare-se como a perífrase aqui era necessária, pois o rio que banha
Coimbra nem a partir do seu nome latino, muito menos do português, se prestava
a criar um patronímico8) na invocação suspensa do final do Canto VII, quando o
Poeta se preparava para começar a descrição das bandeiras (78-87). No entanto,
se as Ninfas do Mondego são também mencionadas, são as do Tejo que mais mar-
cadamente se invocam. Referiremos apenas os passos mais significativos para
o nosso propósito, embora com o inconveniente de com isso excluir alguns dos
trechos mais célebres do poema, ou por conterem dados autobiográficos, ou por
7
Faria e Sousa mencionara vagamente Virgil., Georg. IV e acrescentara-lhe Claudiano, De raptu
Proserpinae I; Sannazaro, Arc. Prosa 12; e um texto bem mais próximo, a Écloga III de Garcilaso:
«sacando telas delicadas del oro que el feiice Tajo embia».
8
A partir do arranjo do nome latino do Douro, o muito erudito António Ribeiro dos Santos
(Elpino Duriense) havia de criar, no séc. XVIII, as suas Dórides como ninfas do Douro, nas odes «A
D. Catarina Michaela de Sousa, quando esteve na cidade do Porto» e «Em louvor das Dórides». (M. H.
Rocha Pereira, 1972: 209-212). Já nos nossos dias, José Gomes Ferreira (Poesia VI 1976, p. 90) consagra
um poema à “Descoberta dos Dourodeias”.
260 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
darem voz a certas críticas sociais e políticas (Bismutt, 1974: VII.78; VII.79.1-4;
VII.82.1-2; VII.85.1-8):
Por duas vezes as Ninfas são ligadas ao rio, e nos mesmos termos (o vosso Tejo);
na estrofe 85 são chamadas Camenas, o equivalente latino das Musas, que haviam
usado Lívio Andronico e Névio, e que nunca se apagou de todo da Literatura Latina
(nada menos de dez ocorrências em Horácio, sendo uma da Arte Poética9); e por
último, esvaem-se as Tágides, destinatárias destas lamentações e advertências,
para dar lugar a uma renovada profissão de confiança no deus da poesia e sua
comitiva, que levarão a bom termo os seus propósitos (VII.87):
9
O antigo nome latino das Musas figura também noutro passo de Os Lusíadas, no idílico quadro
das mulheres negras da angra de Santa Helena que, em V. 63, «Cantigas pastoris, em prosa ou rima/ na
sua língua cantam, concertadas/ co’o doce som das rústicas avenas,/ imitando de Títiro as Camenas.».
6. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS 261
Note-se que a fúria remete de novo para a área semântica da inspiração épica,
tal como a que fora pedida às Tágides em I.5.110. A equivalência destas às Musas
tornou-se evidente.
As referências às Musas somam uma dezena ao longo da epopeia (sem contar
as que singularizam Calíope), mas é no Canto X que se acumulam, cada vez mais
como metonímia para a inspiração poética, a culminar na apóstrofe famosa que
introduz as desalentadas considerações finais (X.145.1-4):
10
Esta observação sobre a fúria encontra-se já em Epifânio.
11
Por esta edição das Rimas faremos todas as citações.
12
Sobre a destinatária desta Ode, A. J. Costa Pimpão observa (loc. cit.): «O redactor do apenso
manuscrito, já várias vezes referido, baseado não sabemos em que autoridade, diz que esta Ode foi
dirigida a D. Francisca de Aragão». Quanto à écloda IV, tem a rubrica «A ũa Dama».
262 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Foi este trecho, junto com a já atrás referida chegada das Ninfas na Écloga dos
Faunos, que serviu de esteio à hipótese de Faria e Sousa sobre a identificação das
Tágides com as damas de Lisboa.
A Écloga IV atribuía à sua destinatária os poderes das Musas e dos montes
sagrados que elas habitavam. Além disso, punha em jogo a emulação com os dois
modelos épicos supremos: os mesmos Homero e Virgílio que ao longo de Os Lusí-
adas são o duplo paralelo por que se afere a superioridade dos feitos lusitanos13.
Note-se que chamar Ninfa à mulher amada ou a uma mulher superior é prática
constante da lírica camoniana. Na Écloga I, “Que grande variedade vão fazendo”,
há um grupo de “fermosas Ninfas”, entre as quais “ũa, de desusada fermosura
/ que das outras parece ser senhora” (345-346), mais adiante erguida a “deusa,
bela e delicada” (383) e facilmente identificável, sob o anagrama de Aónia, como a
princesa D. Joana, viúva do príncipe D. João, filho de D. João III (385-388). Na Écloga
II, “Ao longo do sereno”, a Ninfa com que sonha Almeno (em pp. 297-314) é mani-
festamente a sua amada, como, aliás, em tantos outros exemplos. Mas as Ninfas
13
O duplo paralelo abrange também exempla da história grega e romana, de tal modo que se pode
dizer que constituem um princípio de composição. (M. H. Rocha Pereira, 1988b: 109-131).
6. MUSAS E TÁGIDES N’ OS LUSÍADAS 263
podem também ser as tradicionais divindades do campo, das árvores, das águas, e
aí o Poeta demonstra frequentemente a sua erudição mitológica, distinguindo-as
pelos nomes adequados, quer andasse sempre com as Genealogiae de Boccaccio e a
Officina de Ravisius Textor à mão, como julga a maior parte dos seus comentadores,
quer não. Dessa erudição é prova o Soneto 73, que começa
O mar alto é povoado por Nereides, como as daquele coro que acompanhava a
nau em que o poeta seguia para a Índia na Elegia I, “O poeta Simónides falando”
(73-78)14, justamente considerada como um primeiro esboço de passos célebres de
Os Lusíadas, designadamente a descrição da tempestade:
14
Analisámos estes nomes e sua proveniência (M. H. Rocha Pereira, 1988a: 31-44, espec. 42-43).
264 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
“Das Tágicas areias rico fruto”, diz o verso 96, aludindo à lenda que atribuía
ao Tejo águas auríferas, e usando um adjectivo derivado do nome latino do
rio.
Mas, se procurarmos melhor, encontraremos, na Lírica também, mais pre-
cisamente nas Éclogas, o famoso patronímico criado por André de Resende.
Encontrá-lo-emos duas vezes, uma das quais com a vantagem de pertencer a uma
obra datada. Trata-se da Écloga I, “Que grande variedade vão fazendo”, que é na
verdade um duplo epicédio a D. António de Noronha, morto em África em 1553, e ao
príncipe D. João, falecido no ano seguinte. No canto de Frondélio, o jovem filho do
2º Conde de Linhares é homenageado sob o nome arcádico de Tiónio, com motivos
que lembram de perto os da morte de Dáfnis na V Bucólica de Virgílio, como o da
tristeza das Ninfas, dos animais, da própria Natureza, os quais são entrelaçados
com o dos amores de Tiónio, contrariados pelo pai, que (218-219):
Ora a transição para este segundo tema é feita através das Ninfas do Tejo e
das da montanha (187-192):
As margens do rio eram o cenário desta Écloga (“pela praia do Tejo discorria”,
diz o v. 11). É aí que Almeno avista a sua “linda pastora” (v. 7), “a lavar a beatilha e
o trançado” (v.12), aí que “não lhe soube dizer o que convinha” (v. 20). O encontro
e desencontro entre os dois é preludiado por estes versos (35-42):
15
Cf. Platão, A República 548b: «a verdadeira Musa, a da dialéctica e da filosofia».
16
Cf. Ilíada XI. 830-832.
266 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
E vede carregado
d’anos, e trás a vária experiência,
um velho, que, ensinado
das Gangéticas Musas na ciência
Podalíria sutil e arte silvestre,
vence o velho Quíron, d’Aquiles mestre.
Aganipe toma agora o lugar de Hipocrene, de I.4.8. No plano épico, falara-se antes
de “tudo o que a antigua Musa canta” (I.3.7); a seguir, como já vimos, das “estra-
nhas / Musas de engrandecer-se desejosas” (I.11.3-4). Entre umas e outras obras se
vão situar Os Lusíadas, narrando feitos ainda mais valorosos do que os antigos, e
verídicos, como em nenhum dos outros grandes poemas. É este último ponto que
Vasco da Gama acentua ao terminar a sua narrativa ao Rei de Melinde (V.89.4-8):
Bibliografia
17
No seu já citado artigo (Reichenberger, 1961: 92) o Autor observa: «Kennzeichend für die
patriotische Haltung, die Camões in jeder Phase seines: Beginnens beseelt, ist die Abwandlung des
traditionellen Musenanrufs in eine Invocatio der Nymphen des Tejo, die er um die gesuchte esuchte
Inspiration angeht».
268 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Entre os mitos gregos, poucos tinham tantas condições para fascinar a pos-
teridade como o de Orfeu e Eurídice. O poder da poesia e o poder do amor juntos
numa só história são os seus pólos magnetizadores da sensibilidade de todas as
épocas, sem excluir a nossa.
A esta difusão não foi alheio o facto de terem sido dois dos poetas mais lidos
da Latinidade a dar-lhe forma inesquecível: Virgílio e Ovídio. Certamente por esse
motivo, a lenda do cantor da Trácia não precisou de aguardar o Renascimento,
como tantas outras, e, bem ao contrário, conheceu uma tradição contínua através
da Idade Média.1
É, porém, a partir de La Favola di Orfeo, de Angelo Poliziano, cantada e recitada
em Mântua em 1472, com cenários pintados por Rafael, impressa em 1494 e con-
tinuamente reeditada (dezanove edições até 1524!) que se torna um dos temas
favoritos dos poetas quinhentistas. «Foi ela de certo uma das jóias da poesia
italiana que Miranda trouxe das suas viagens, apesar de não citar nunca o nome
de Angelo Poliziano» – anotou Carolina Michaëlis a propósito das nove estrofes
da «Fábula do Mondego» que o «bom Sá» torneia, lembrando-se do poeta huma-
nista, e também das Geórgicas e das Metamorfoses.2 O modelo assim recriado iria
*
Publicado em Actas da IV Reunião Internacional de Camonistas. Ponta Delgada, Universidade dos
Açores (1984), 466-473; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacio-
nal – Casa da Moeda (1988, 22012), 69-81.
1
Sobre o assunto, veja-se John Block Friedman, Orpheus in the Middle Ages (Harvard University
Press, 1970).
2
Tanto os dados sobre a fortuna de La Favola di Orfeo como a frase citada provêm da edição das
Poesias de Francisco de Sá de Miranda (Halle, 1885), p. 818. As informações sobre o espectáculo constam
de Edward J. Dent, Opera (Penguin Books, reimpr. 1965), p. 30. Lembre-se ainda que a mais antiga
ópera de que há notícia é a Euridice de Peri (Florença, 1600), e que o verdadeiro criador do género,
Claudio Monteverdi, se estreou com um Orfeo (que se conserva), em 1607, também em Mântua, como
o de Poliziano.
A história de Orfeu, que Dante pusera no limbo no Canto IV do Inferno, não era estranha ao Can-
cioneiro Geral. Lê-se no «Inferno dos Namorados» de Duarte de Brito, o seu nome em primeiro lugar:
270 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Por sua vez, no «Fingimento de Amores», Diogo Brandão põe Orfeu a falar em nome dos secaçes
de Cupido, em termos que bem o identificam nesta parte das suas lamentações:
Outra alusão ocorre, quando pranteia, na Carta XXI, a morte de António Fer-
reira perante Pedro de Andrade Caminha:
5
E.g. Écloga III.1-6-21; Écloga VI.109-111; Soneto XIII do Livro II (onde atribui a D. Simão da
Silveira o papel de Orfeu); Elegia VII.77-78 (versão do «Amor Fugido» de Mosco).
6
Há ainda breves referências a Orfeu em III.1 e III.2.
272 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
7
O erro da localização na Índia, que vem na editio princeps, já foi refutado por Juromenha, Obras
de Luiz de Camões (Lisboa, 1862), vol. III, p. 456.
8
Sobre a questão da data, vide a edição das Rimas por A. J. da Costa Pimpão (Coimbra, 1973),
pp. 407, 411-412. Desta edição nos servimos em todas as citações da Lírica. Relativamente à Elegia
II, veja-se estudo do mesmo Professor, A Elegia Segunda, «Aquela que de amor descomedido», e a chamada
Écloga Primeira, «Que grande variedade vão fazendo» de Luís de Camões (Coimbra, 1973).
9
Poderá ver-se no verso 110 ao pé dos carregados arvoredos, uma alusão indirecta ao mito de
Tântalo, que prepara o tema dos supliciados divinos.
10
Especialmente nos seguintes versos:
As filhas de Belo estavam nas Metamorfoses X.43-44, onde se lê apenas que elas
«deixaram as suas urnas», noção que Camões levou mais longe, ultrapassando
as barreiras do adynaton da lenda: a comoção será tal que o tonel sem fundo das
Danaides se encherá, não já de água, mas de lágrimas.
E Salmoneu? Salmoneu era desconhecido de Ovídio. Talvez por isso, o copista
do que Juromenha chama «meu MS», sem mais explicações, substituiu este verso
por outro em que se refere um mito mais vulgar neste contexto:
11
Obras de Luiz de Camões, Vol. III, p. 462. Cf. também Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Notas sobre
o Cânone da Lírica Camoniana (Coimbra, 1968), que fala de «um texto secularmente falsificado». Agra-
decemos as informações sobre a nova posição da crítica em face da autenticidade dos apógrafos de
Juromenha ao Doutor Aníbal de Castro.
274 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
As infernais figuras
moveste com teu canto docemente;
as três Fúrias escuras,
implacáveis à gente,
quietas se tornaram, de repente.
A ordem se mudava
das penas que ordenava ali Plutão,
em descanso tornava
a roda de Ixião,
e em glória quantas penas ali são.
12
Na sua edição das Rimas Várias, Vol. II, Tomo IV, 2.ª parte, p. 24, Faria e Sousa escreve: «Quiere
dezir, que Orfeo ya certíssimo de que no bolverá a cobrar su Euridice, por màs que cante, estarà
desocupado para ayudarle en su nuevo canto». Também Costa Pimpão, A Elegia Segunda... , cit., p. 15,
interpreta a frase como significando um facto consumado.
A mais antiga versão conhecida do mito, a que figura em Eurípides, Alceste 357-362, apenas refere
o êxito alcançado pelo canto de Orfeu, facto esse que não obriga a excluir a sequência trágica da
história, como observa A. M. Dale na sua edição comentada da peça (Oxford, 1954), p. 80.
13
A hipótese, formulada por Faria e Sousa no com. ad locum, de se tratar de uma alusão velada
ao papel da rainha D. Catarina na perseguição ao poeta, não merece ser considerada.
14
Em Poliziano, aparece a figura de Minos a prevenir Plutão dos perigos de receber um vivo
nos infernos. Minos e Radamanto alternam em Diogo Bernardes (Minos na Carta XX e Radamanto
na Carta XII).
15
Rimas Várias, Vol. II, Tomo III, p.136:
cantando e colhendo lindas flores. Esta rápida visão – que é, aliás, um lugar comum dos
poetas renascentistas – forma novo contraste com a agonia que lhe vai na alma.
Deste modo, o quadro não é tão pungente ainda como o do Soneto O céu, a terra
o vento sossegado..., talvez um dos mais dramáticos da poesia portuguesa, com um
Aónio desolado, a quem leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita. Aqui, se não tem a
sorte de Orfeu, as Nereides ao menos o escutam, embora seja apenas para ouvir
a sua tristeza:
16
Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (Bern, 1948), pp. 169-172. A versão adaptada, de
«esquema de superação», é a proposta por R. M. Rosado Fernandes, na sua tradução, com prefácio e
aditamentos, de Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária (Lisboa, 1966), p. 108.
17
Faria e Sousa recorda, a propósito do Letes, um passo de Ovídio, Pontica II e outro do Soneto 291
de Petrarca (Rimas Várias, Vol. II, Tomo IV, p. 29). É um lugar comum da Antiguidade. A mesma ideia
está, de resto, como notou o mesmo Faria e Sousa, ibidem, no Soneto 57 de Camões, quando escreve:
Uma análise deste passo – que excede, a nosso ver, as premissas do texto – pode ler-se em Ger-
sey Bergo Yahn, O Homem sob o signo do desterro: uma Elegia de Camões (Rio de Janeiro, 1981), pp. 87-93.
7. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES 277
A instabilidade da Fortuna,
os enganos suaves d’Amor cego,
(suaves, se duraram longamente),
direi, por dar à vida algum sossego;
que pois a grave pena me importuna,
importune meu canto a toda a gente.
..........................................................
Logo neste começo ouvimos falar em pena, uma palavra-chave que, com a sua
polissemia de «sofrimento» e «castigo», nos prepara para o abismo infernal de meu
tormento da segunda estrofe. São, efectivamente, as penas infernais que daqui em
diante serão tomadas, uma a uma, para formarem o «esquema de superação» dos
seus sofrimentos morais. Assim, cada estrofe vai culminar na comparação com um
supliciado divino: Tântalo, Ixião, Tício, Sísifo. A ideia já estava na Canção XV de
Sannazaro, Qual pena, lasso, como advertiu Faria e Sousa18. Mas, no poeta italiano,
diremos nós, há um percurso da alma através de cada uma das penas do além, per
ammenda de’ passati danni, com as quais sucessivamente se identifica (indi... poi...
al fine); em Camões, é a história da sua paixão – conquanto mais sugerida do que
delineada – que atrai as comparações com os modelos míticos19.
Em cada uma dessas estrofes da Canção II, o nome próprio é preludiado por
uma série de jogos de palavras, que aproveitam dados do mito para sugerir um
drama que se desenrola no mais íntimo do poeta, por ter posto o seu amor em
18
Rimas Várias, Vol. II, Tomo 3, p 22.
19
Deve notar-se que a mencionada Canção XV de Sannazaro tem exactamente o mesmo esquema
formal que a de Camões e, como ela, joga de início com a polissemia de pena, que compara, logo de
entrada, com as do além (giù nel gran pianto eterno), definindo-a, a seguir, por meio de uma série de
antíteses e oximoros. Mas, continua a primeira estrofe, a sua alma in se sola poi soffrir ciascuna. As
seis estrofes seguintes descrevem esse percurso, que a levam a identificar-se com as Danaides, Sísifo,
Tântalo, Ixião, Tício (dos quais só o segundo e o terceiro são nomeados). Em Camões, além da omissão
das descendentes de Belo e da alteração da ordem, a parte mitológica é enquadrada por duas estrofes:
a segunda, que mostra como Amor o fez cair na culpa e mais na pena; a sétima, que substitui ao paralelo
mítico o exemplo do sonho do avarento. A ambos é comum a culpa da revelação indiscreta do amor:
Poi che la sua nascosa / speranza discoverse / e’l suo desire aperse / a tutto ’l mondo, che celar doveva, – no
primeiro; o fim de meu desejo, / que a língua descobriu por desvario – no segundo.
278 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
20
Como é sabido, tiveram audiência universal os célebres versos postos na boca de Francesca
de Rimini em Inferno V.121-123. No entanto, os comentadores de Dante registam a presença do tópico
já em Boécio, De Consolatione Philosophiae II, p. 4.
7. O MITO DE ORFEU E EURÍDICE EM CAMÕES 279
21
Sobre as tentações «de ler a lírica camoniana em clave biográfica», veja-se a conferência de
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, «Aspectos petrarquistas da lírica de Camões» in: Cuatro lecciones sobre
Camoens (Madrid, 1981), pp. 99-116.
(Página deixada propositadamente em branco)
8. O TEMA DA METAMORFOSE
NA POESIA CAMONIANA*
*
Publicado em Biblos 51 (1975), 125-143; Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa.
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 45-67.
1
Vv. 121-123. Em todas as citações da lírica usaremos a numeração e o texto da edição das
Rimas de A. J. da Costa Pimpão (Coimbra, Atlântida, 1973), excepto para as Éclogas, onde seguiremos
o suplemento publicado pelo mesmo especialista, também nesse ano, através do Centro de Estudos
Românicos da Faculdade de Letras de Coimbra.
2
Que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
(vv. 45-56)
paráfrase de
................. video meliora proboque,
deteriora sequor .............................
(Met. VII.20-21)
4
Cf. Kurt Reichenberger, «Der christliche Humanismus des Camões», Aufsätze zur portugiesischen
Kulturgeschichte (citado a partir daqui Port. Aufsätze) 4, 1964, pp. 120-121.
5
Lus. VI.17-19 e Met. I.331-342 (identificação de Faria e Sousa).
6
A semelhança, notada por Faria e Sousa, entre Fasti I.405 sqq. e as Ninfas da Ilha dos Amores,
foi retomada por Helmut Hatzfeld, «Camões’ manieristische und Tassos barocke Gestaltung des Nym-
phenmotivs», Port. Aufsätze 3, 1962/1963, pp. 92-93. Outra parte do episódio dos Fastos a que pertence
esse texto, acrescentarei, foi aproveitada na Écloga dos Faunos. Vide infra, nota 28.
7
De todos estes poemas, além dos Fastos, mencionados na nota anterior, há reminiscências
apontadas desde Faria e Sousa.
8
Sobre a influência de Ovídio nas literaturas europeias, veja-se, entre outros, L. P. Wilkinson,
Ovid Surveyed (Cambridge, 1962), caps. XI e XII.
9
Luís de Camões, O Lírico (Lisboa, 31967), p. 128.
10
Sobretudo por Faria e Sousa, Rimas Várias de Luís de Camões (Lisboa, 1685, 2 vols.), e por Hernâni
Cidade, Luís de Camões. O Lírico.
11
Sobre a variedade de conteúdo do soneto camoniano, vide António José Saraiva e Óscar Lopes,
História da Literatura Portuguesa (Porto, s.a., 5ª ed.), p. 332. Que alguns são «miniaturas de Idílios, cheios
de amenidade e graça», como o 22 (Num jardim adornado de verdura), 74 (Num bosque que das Ninfas se
habitava), 69 (Tomava Daliana por vingança), 70 (Quantas vezes do fuso s’esquecia,), 13 (Alegres campos, verdes
arvoredos), notou-o J. M. da Costa e Silva (Ensaios III, p. 143), citado por F. Costa Marques, Camões, poeta
bucólico (Coimbra, 1939), p. 21, nota 1, o qual acrescenta passos das Elegias III (O Sulmonense Ovídio, des-
terrado), II (Aquela que de amor descomedido) e Divino almo pastor (em todos os exemplos, excepto no último,
que é de autenticidade duvidosa, substituímos os números indicados por esses autores pelos corres-
pondentes na edição de que estamos a servir-nos). Pela nossa parte, não incluiríamos nesta rubrica
os sonetos n.os 22 e 74, que são de temática anacreôntica. Em contrapartida, acrescentar-lhes-íamos
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 283
os n.os 60 (Todo o animal da calma repousava), 67 (O raio cristalino s’estendia), 77 (Na metade do céu subido
ardia), 78 ( Já a saudosa Aurora destoucava), 103 (Cantando estava um dia bem seguro), 112 (Indo o triste
pastor todo embebido). Note-se, aliás, que tanto a temática pastoril como a anacreôntica são correntes
nos poetas quinhentistas (exemplos em Sá de Miranda, em António Ferreira, em Diogo Bernardes).
12
Op. cit., p. 92.
13
Op. cit., vol. I, p. 293.
14
«Lo mejor de ambos a dós es el terceto ultimo de cada uno: y solo para lograr aquellas pon-
deraciones se escribieron ellos» – comenta Faria e Sousa, op. cit., I, p. 293.
15
Met. X.69.
16
«... agora rochedos, que o Ida húmido sustenta.»
284 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Antes de prosseguirmos, vale a pena recordar que o poeta também tratou este
mito da Écloga dos Faunos17, a que adiante nos referiremos com mais pormenor,
dando-lhe uma oitava inteira:
17
O único elemento de cronologia relativa de que dispomos é que o soneto, para ser anterior
à écloga, teria de ter sido composto antes de 1553, data do falecimento de D. António de Noronha,
destinatário desta última.
18
O tratamento do mesmo mito na Écloga dos Faunos, onde aparece associado ao de Ciparisso, é
ainda mais breve (352-355). Outro tanto se repete em Lus. IX.57.
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 285
19
Cf. a nota de Costa Pimpão ad locum (p. 407 da sua edição). O soneto redobra de interesse, se
se aceitar a hipótese de Storck (Luís de Camões’ sämmtliche Gedichte, II, Paderborn, 1880, p. 408), de
que o verso final:
cantando à vossa sombra verso eterno
se deve entender como referente a Os Lusíadas.
20
«... e as flexíveis palmeiras, prémio dos vencedores, e o pinheiro enramado, de topo hirsuto,
caro à mãe dos deuses; pois Átis, a Cibele consagrado, aí perdeu a forma humana e endureceu naquele
tronco.»
21
A Antiguidade legou-nos, aliás, duas versões divergentes da lenda, sobre as quais vide Franz
Bömer, P. Ovidius Naso. Die Fasten (Heidelberg, 1958), Band II, pp. 226-227.
286 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
22
Supomos que no texto do verso 368, que, aliás, figura assim na edição de Manuel de Lira:
Já no indino monte se lançava
deve ser corrigido o adjectivo, que não faz sentido, pelo nome próprio que está em Ovídio no passo
correspondente do v. 234, para localizar esse monte:
effugit et cursu Dindyma summa petit
(fugiu e na sua corrida procurou as alturas do Díndimo)
ficando portanto:
Já no Díndimo monte se lançava
que, além de lectio difficilior, evita o hiato do texto tradicional.
Note-se que o topónimo em latim aparece tanto no masculino singular (e.g. Catulo 35.14, 63.91;
Ovídio, Fast. IV.249) como no neutro plural (e.g. Virg. Aen. X.617; Ov. Met. II.223, Fast. IV.234). A deusa
recebe do facto de ter o seu culto nesse monte o epíteto de Dindimene (e.g. Hor. Carm. I.16.5). A desig-
nação era também conhecida de Camões, que a emprega mais adiante nesta mesma Écloga (v. 474):
Sabe-o da deusa Dindimene o templo.
23
Veja-se, a este propósito, o já referido estudo de F. Costa Marques, Camões, poeta bucólico.
Parece-nos exagerada a informação de G. Le Gentil, ao tratar das éclogas, de que «Camões, que tanto
se inspirou em Virgílio para a sua epopeia, não parece lembrar-se senão raramente das Bucólicas e
das Geórgicas» (Camões, trad. port., Lisboa, 1969, p. 150).
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 287
24
Estas e outras fontes são devidamente apontadas por Faria e Sousa. Recordemos de passa-
gem, como curiosidade da nossa história literária, que é a propósito desta mesma Bucólica que esse
comentador propõe a personificação de ribeiro (v. 40) como o autor da Menina e Moça e a identificação
das Ninfas, que vão surgindo a partir do v. 91 (sendo duas naturais do Tejo), com a Infanta D. Maria
e as suas damas...
25
La lyrique de Camões (Paris, 1970), especialmente pp. 177 e 220-229, que põe em evidência o que
ele intitula «mecanismos de auto-imitação». Veja-se também a edição de Mendes dos Remédios da
Écloga dos Faunos (Coimbra, 1923), p. 56.
26
«Os monólogos dos dois sátiros estão cheios de reminiscências clássicas; o do 2.º, especial-
mente, é como que um resumo de muitos passos das Metamorfoses de Ovídio» – escreveu José Maria
Rodrigues («A propósito das éclogas de Vergílio e de Camões», Boletim da Academia das Sciências de
Lisboa, N. S., 2, 1930, p. 886). «Não sei que mais exemplos célebres de amor excessivo, sacrificado,
dramático este poderia invocar para abrandar nas ninfas a aspereza insana com que se lhe recu-
savam» – observa Hernâni Cidade (Luís de Camões. O Lírico, p. 127), que depois transcreve e compara
exemplos, para concluir: «O poeta, em geral, contenta-se de receber a sugestão, sem decalcar. E os
288 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
episódios em que mais se demora são os mais dramáticos...» (p. 129). Na página seguinte, refere
ainda, com a penetração crítica que o caracteriza, como o nosso poeta acrescentou habilmente ao
mito de Actéon o motivo (inspirado noutro passo ovidiano) do jogo verbal derivado do emprego do
eco. Sobre as diversas versões camonianas daquele mito e a tese de Faria e Sousa acerca da razão da
insistência que nele fazem Os Lusíadas, vide A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos (Coimbra, 1975),
cap. IV, «O mito de Actéon em Camões».
27
O pormenor das equivalências está em Faria e Sousa.
28
Supra, nota 6.
29
Uma fina análise do tratamento do mito de Alcíone e do de Actéon nesta Écloga pode ler-se
em Hernâni Cidade, Luís de Camões, O Lírico, pp. 129-130.
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 289
30
A erudição deste pastor, que uma convenção literária estabelecida desde Virgílio (não de
Teócrito) faz passar despercebida, foi acentuada por Hernâni Cidade, Luís de Camões. O Lírico, p. 298.
31
Faria e Sousa cita expressamente, para os vv. 215 sqq., a Écloga que termina a Prosa X da
Arcadia. De notar que, tal como o poeta italiano, Camões usa nesta fala rima encadeada.
290 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
32
Estas duas metamorfoses, a de Narciso e a de Adónis, estão integradas na flora da Ilha dos
Amores (Lus. IX.60.5-8):
Ali a cabeça a flor Cefísia inclina
sôbolo tanque lúcido e sereno;
f lorece o filho e neto de Ciniras,
por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
33
A estes exemplos, onde os tópicos ovidianos de Met. X.11-63 se misturam com os virgilianos de
Georg. IV.466-483 e de Aen. VI.580-627, poderia acrescentar-se o do encarecimento dos sofrimentos
do poeta sobre os dos próprios supliciados no Tártaro, na Elegia II, O Sulmonense Ovídio, desterrado (vv.
79-84), e no final das ·estrofes terceira, quarta, quinta e sexta da Canção II, A instabilidade da fortuna.
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 291
34
Uma perífrase semelhante para o mês de Abril, em II.72 (que, aliás, principia em termos
mitológicos e se completa com dados cristãos), não explicita o processo da metamorfose, embora o
subentenda também.
35
Met. I.750- II.366. A continuação desta história, relativa a Cicno, em II.367-380, serviu para
uma perífrase muito mais breve, mas ainda alusiva ao mito, em Lus. I.49.8 (Os de Fáeton queimados).
Outra perífrase ainda, agora para designar a luz do Sol, em Lus. V.91.6.
36
Sobre as diversas fontes propostas para este canto, veja-se V. M. Aguiar e Silva, «O Significado
do Episódio da Ilha dos Amores na estrutura de ‘Os Lusíadas’», Ciclo de Lições Comemorativas do IV Cen-
tenário da Publicação de Os Lusíadas, XLVIII Curso de Férias da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra (Lisboa, 1972), pp. 84-85 (colectânea daqui em diante citada como Ciclo de Lições).
37
Supra, nota 32.
38
Os paralelos escolhidos são Ariadne e Dido, «segundo se lee em suas epistollas» (Crónica de D.
Pedro I, cap. XLIV), o que quer dizer que a fonte de conhecimento são as Heróides (X e VII, respecti-
vamente; é curioso que o segundo destes poemetos tenha sido um dos que João Rodrigues de Sá de
Meneses verteu e que, como se sabe, figura no Cancioneiro Geral).
39
Aqui acaba a semelhança. O motivo do acolhimento, em terras longínquas, a um hóspede que
depois é solicitado a contar a sua história foi utilizado, como todos sabem, para a recepção do Rei de
Melinde e o conjunto da narrativa que lhe é feita.
292 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
40
Lusíadas de Luís de Camões comentadas (Lisboa, 1639), vol. I, pp. 215-216.
41
Respectivamente, «Pedro, Inês e a Fonte dos Amores», Lusitânia, 2, 1925, 159-182, e Inês de
Castro (Portucalense Editora, 1933), pp. 114-124.
42
A argumentação desenvolvida por Jorge de Sena, Estudos de História e de Cultura (Lisboa, vol. I,
1967), pp. 282-289, sobre a cronologia deste soneto (transcrito por Carolina Michaëlis, op. cit., p. 180,
do Cancioneiro Fernandes Tomás) leva-nos hoje a supô-lo posterior a Os Lusíadas.
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 293
Porém, Adamastor não é castigado com um suplício infernal, como o pai dos
Centauros, mas com nova metamorfose46, de modo que
43
Quanto à origem do nome, vide A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, cap. II, «Sobre o nome
de Adamastor». A discussão relativa às suas origens e significado encontra-se no mesmo livro, cap.
III, «Aspectos clássicos do Adamastor». Aí o autor insere esta figura numa dupla tradição mítica, a
de Polifemo e a da Gigantomaquia. O artigo de H. Houwens Post, «Eine wenig bekannte Quelle der
‘Lusiaden’», Port. Aufsätze 1, 1960, 87-93, encontra-lhe a origem em Valério Flaco, Argonautica I.598-607
(para a profecia) e II.17-24 (para a Gigantomaquia). O segundo destes paralelos parece-nos aceitável
nas linhas gerais, mas, no pormenor da metamorfose, está muito mais próxima a fonte já indicada
por Faria e Sousa e aceite por Epifânio: Ovídio, Met. IV.655-660. A hipótese de Leonard Bacon, no
comentário à sua tradução do poema para inglês (The Hispanic Society of America, New York, 1950,
p. 206), segundo a qual a imagem de Adamastor derrubado teria a sua origem na Odisseia XI.576-581,
parece-nos de rejeitar.
44
Sobre este assunto, veja-se especialmente João Mendes, Literatura Portuguesa, I (Lisboa, 1974),
pp. 234-239 e 254, e Aníbal Pinto de Castro, «O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na
estrutura de ‘Os Lusíadas’», Ciclo de Lições, pp. 61-78.
45
O mito encontra-se na Écloga II, Ao longo do sereno (vv. 342-344), e, de uma forma mais próxima
do passo que nos ocupa (embora decorrendo no plano da fantasia, apenas), na Canção II, A instabili-
dade da Fortuna (vv. 48-62).
46
O carácter compósito desta metamorfose foi notado por A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos,
p. 49.
294 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
47
Desde Homero que os heróis podem ser envoltos numa névoa, por efeito da protecção divina
(e.g. Odisseia VII.140), O motivo é retomado na Eneida I.411-414, 516, 580. A nuvem pode também ocultar
o divino, como em Hesíodo, Teogonia 9.
48
Fomos encontrar uma interpretação da nuvem próxima da nossa em António José Saraiva, Para
a História da Cultura em Portugal, I (Lisboa, 41972), p. 129, quando, referindo-se ao modo de relacionar o
plano divino com o humano, escreve: «Um terceiro processo consiste em dar uma preparação realista
ao surgimento do mito. Exemplificando: o Adamastor vem numa nuvem carregada e desfaz-se em
choro quando ela se desprende em chuva – confunde-se assim com um fenómeno meteorológico». Não
vemos, no entanto, por que razão o Adamastor deva considerar-se um «pseudomito», como sustenta
o mesmo investigador na p. 101 do mesmo livro.
49
Luís de Camões. O Lírico, pp. 105-151 e 175-176. É desta última página a magnífica síntese: «O tema
aqui tratado é comum à poesia platonizante e petrarquizante do tempo. Mas será difícil encontrar
um outro soneto em que o conceito platónico da ideia assim reforce seu poder expressivo com o
conceito aristotélico da forma».
50
Ibidem, p. 176, onde também se lê: «Nela o Poeta exprime a redução da actividade psíquica a um
alto e doce pensamento, desejo transcendente, que assume foros de razão». Ao tratarmos desta canção,
abstraímos do problema das três versões que nos foram transmitidas, hoje resolvido pelo estudo de
Jorge de Sena citado adiante (nota 52).
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 295
51
Luís de Camões, Líricas (Lisboa, 1940), p. 42.
Uma Canção de Camões (Lisboa, 1966), pp. 417-418. Não julgamos, no entanto, que a visão seja
52
referente, não a «um ente», mas a «uma essência». O parentesco desta visão com a da Ode VI, Pode
um desejo imenso (vv. 64-67) e de outros passos que procuram exprimir o inefável foi assinalado por
Jacinto do Prado Coelho, A Letra e o Leitor (Lisboa, 1969), p. 24.
53
As metamorfoses que dão o título ao livro latino são de carácter mágico e transitório. E o
«conteúdo espiritual superior» que efectivamente existe advém-lhe, muito mais que do mito de Eros
e Psyche, do sentido do Livro XI, que, esse sim, contém uma «ascese iniciática», que faz da obra um
documento precioso para a história da espiritualidade pagã do séc. II (cf. A. J. Festugière, Personal
Religion among the Greeks [Berkeley, 1954], cap. V, «Popular Piety: Lucius and Isis»); sobre a possibili-
dade de considerar a história de Psyche como uma alegoria dos rituais da iniciação que vai sofrer o
protagonista, no final da obra, vide R. Merkelbach, «Eros und Psyche», Philologus 102, 1958, 103-116.
Esse tipo de espiritualidade não seria compatível – como, aliás, Jorge de Sena reconhece (ibidem, p.
429) – com a religião do nosso poeta.
54
Idem, ibidem, p. 431.
296 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
55
Dizemos em especial, pelas razões já apontadas supra, nota 8. Porque de metamorfoses se
ocuparam, e largamente, os chamados mitógrafos, sobretudo Antonino Liberal, Apolodoro, Higino.
E não esqueçamos, para os autores do séc. XVI, a Officina de Ravisio Textor e as Genealogiae Deorum de
Boccaccio, mencionadas em José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas (Coimbra, 1905).
56
Como prova desta afirmação, veja-se o testemunho autobiográfico de André Gide citado por
Hermann Fränkel, Ovid, a Poet Between Two Worlds (Berkeley, 1956), p. 220, nota 73.
57
Estética, II, pp. 107-109 e 166-172, da tradução francesa (Paris, Aubier, 1944), que seguimos,
por não dispormos do original alemão. As expressões citadas provêm, as duas primeiras, da p. 107,
e as outras duas, da p. 167.
58
«Eu sou aquele, que não posso passar a tronco algum; eu sou aquele, que em vão quereria
ser pedra.»
8. O TEMA DA METAMORFOSE NA POESIA CAMONIANA 297
morte (X.483-487). Este segundo exemplo é apontado por Hermann Fränkel, que
explica: «Separation from the self means normally death, but not in a metamor-
phosis... The device of transformation offered a compromise for the dilemma
between life and death»59.
É à luz desta interpretação que melhor podemos compreender o acolhimento
deste motivo pelos cultores da estética chamada maneirista, porquanto está ligado
ao característico tema da mudança60, tão corrente nos poetas desse período em
geral, e de Camões em particular.
Efectivamente, mudança, transformação, resistência ao tempo, desejo de imor-
talidade através do canto, identificado com o próprio poeta61, são ideias afins, que
estão na essência da visão camoniana do mundo. São as mesmas que informam
os dois primeiros tercetos da já citada Elegia II, onde a Ninfa Eco petrificada tem
ainda – e só – a sua voz, tal como o autor dos versos. A metamorfose é também,
afinal, uma forma de permanência.
59
Op. cit., p. 99.
60
Cf. Kurt Reichenberger, «Der christliche Humanismus des Camões», Port. Aufsätze 4, 1964, pp.
114-115, e bibliografia aí scitada, e V. M. Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa
(Coimbra, 1971), pp. 279-293, especialmente p. 285.
61
Este último ponto foi evidenciado por Eduardo Lourenço de Faria, «Camões et le temps ou
la raison oscillante» in Visages de Luís de Camões (Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural
Português, Paris, 1972), pp. 109-124.
(Página deixada propositadamente em branco)
9. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS.
ESTUDO COMPAR ATIVO *1
*1
Comunicação apresentada à Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, na sessão
de 28 de Fevereiro de 1991. Publicada em Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, Classe de Letras
(1990-1991, ed. 1993), vol. 29, pp. 91-103.
300 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
que condensa os versos 503-506 de Ovídio1. (Note-se de passagem que uma hipér-
bole semelhante surgira na estância 76, essa, porém, mais próxima de Ariosto,
como observou Faria e Sousa).
Na estância seguinte, os últimos dois versos, sobre Deucalião e Pirra:
Ao passo que, na própria fala do Gama, está encastoada uma alusão ao Canto
VII.302-302 do mesmo poema:
1
Et nunc sublimis veluti de vertice montis
despicere in vallis imumque Acheronta videtur,
nunc, ubi demissam curvum circumstetit aequor,
suspicere inferno summum de gurgite caelum.
Faria e Sousa aponta a fonte ovidiana para a estrofe 76 e refere ainda, noutros passos, o Agamémnon
de Séneca e a Farsália de Lucano, sem dúvida mais distanciados.
9. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS. ESTUDO COMPARATIVO 301
Esta prece do Gama é um dos exemplos mais acabados de uma querela ociosa
travada durante séculos, em volta da suposta colisão do chamado maravilhoso
pagão e do chamado maravilhoso cristão em Os Lusíadas, a qual se encontra ultra-
passada desde os estudos de A. Costa Ramalho4.
Efectivamente, as três estâncias pelas quais se estende abrangem, na primeira,
conforme é próprio da tipologia da prece, o vocativo à divindade com os seus
atributos («Divina guarda, angélica, celeste, / Que os céus, o mar e terra senho-
reias») seguidos da enumeração de mercês passadas, todas bíblicas; a segunda
recorda as vicissitudes próprias, enquadradas dentro do esquema de superação
ou ‘Ueberbietung’5, corrente em Os Lusíadas; a terceira retoma declaradamente
um motivo famoso, quer da Odisseia (τρισμάκαροι Δαναοὶ / καὶ τετράκις), quer da
Eneida (o terque quaterque beati). Vale a pena atentarmos nela, parque exemplifica o
modo de adaptar moldes greco-romanos a um contexto histórico assente em base
cristã. Tirando os advérbios multiplicativos, o poeta substitui a glória alcançada
na Guerra de Tróia pela que os Portugueses obtiveram morrendo em África, na
luta contra os mouros, inimigos da Fé cristã:
2
Também aqui infamis scopulos Acroceraunia será fonte comum a Ariosto, de quem Faria e Sousa
cita, do canto 21: «L’Acrocerauno D’infamato nome».
3
É possível que, sendo os famosos escolhos marinhos mais conhecidos pela Odisseia, e os outros
dois perigos de ascendência latina, estejamos em presença de mais um exemplo da alternância exemplo
grego/exemplo romano, que é quase uma constante de Os Lusíadas, como procurámos demonstrar no
nosso artigo «Presenças da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas», in revista da Universidade de Aveiro
/ Letras 1 (1984), 87-106.
4
Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), pp. 19-24. Veja-se também o nosso artigo citado na nota
anterior, p. 98.
5
Sobre esta designação, vide o nosso artigo citado na nota 3, pp. 88-89.
302 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Esta fala do herói no meio dos elementos furiosos é topos fundamental nas tem-
pestades épicas. Concebida como uma fala solitária na Odisseia, onde Ulisses está já
privado de todos os seus companheiros e luta sozinho na jangada, num grandioso
cenário deserto da presença humana, mantém-se como um solilóquio do homem
perante a divindade em Virgílio (Eneias não invoca os deuses, mas toma a atitude
da prece, duplicis tendens ad sidera palmas) e em Camões (o Gama apela para a Divina
Guarda). Quer no poema latino, quer no português, os gritos dos companheiros de
viagem já se ouviram, primeiro no verso célebre pelas suas onomatopeias (insequitur
clamorque virum stridorque rudentum – 87), depois em «o céu fere com gritos nisto a
gente» (72.1). Esta solidão desesperada, denotadora da pequenez do homem, Camões
amplifica-a numa das comparações breves com que encarece a descrição (74.5-8):
Fazia parte da tradição literária que à fala do herói se seguisse o naufrágio. Assim,
na Odisseia, a jangada é sacudida por uma grande onda, o herói cai, agarrado ao leme,
o mastro parte-se, a vela e a verga tombam no mar, Ulisses fica debaixo de água, mas
consegue voltar à superfície e regressar à jangada, que se torna o joguete dos ventos
(V.313-332). Na Eneida, porém, é toda uma armada que está sob o jugo da tempestade. As
naus são derrubadas uma após outra e, dispersos no meio do mar, apparent rari nantes
in gurgite vasto / arma virumque tabulaeque et Troia gaza per undas (I.118-119). A esperança
de um renascimento de Tróia em novas paragens jazia desfeita em mil bocados.
Também em Os Lusíadas se segue à fala do herói o recrudescer da tempestade,
numa das estâncias mais ricas em efeitos sonoros do poema (VI. 84):
6
Esquemas de Lições sobre «Os Lusíadas» (Lisboa, 1972), pp. 25-26.
304 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Ao coro dos oponentes em todos os três poemas pertencem, como não podia
deixar de ser, os Ventos. Ora o excitar dos Ventos estava, naturalmente, entre os
primeiros topoi do momento do desencadear da tempestade nas três epopeias. E,
como, em qualquer delas, os Ventos são personalidades míticas, transpôs-se para
esse plano a explicação do rolar desencontrado das vagas, tanto mais desencon-
trado quanto é certo que os responsáveis da agitação marinha sopram dos quatro
pontos cardiais. É o que sucede na Odisseia V.295-296, que traduzimos:
Mais adiante, os mesmos quatro Ventos jogam uns aos outros os restos da
jangada de Ulisses:
Fica bem patente, neste último passo, a oposição completa dos quadrantes: sul-
-norte, este-oeste. E note-se também que o qualificativo de ‘tempestuoso’, dado a
Zéfiro (e repetido em VII.119) tem sido tomado como sinal de que o autor vivia na
costa egeia da Ásia Menor, onde esses ventos sopram com força.
Na Eneida são três os ventos que rolam as vagas, Euro, Noto e Áfrico, em passo
que traduzimos (1.85-86):
7
De Architectura I.6.4-10.
9. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS. ESTUDO COMPARATIVO 305
A este propósito, comentou Faria e Sousa: «Si bien estos quatro nombres, no
son mas de dos vientos, el P. entendiò que eran quatro como expressamente consta
de la est. 31, diziendo ‘Boreas e o companheiro Aquilo’».
Também Epifânio observou: «Noto é o nome grego e Austro o nome latino de
um mesmo vento, o Sul; também Bóreas é o nome grego e Áquilo o nome latino
de um mesmo vento, propriamente o Nordeste».
A hipótese de que Camões estava a fazer seguir cada nome de vento pelo seu
correspondente latino, produzindo uma enumeração bimembre, onde o ritmo
de acção alucinante e o desconcerto das direcções se coadunava melhor com a
enumeração quadrimembre, poderia aqui pôr-se, mas deve ser liminarmente
rejeitada. Para tal contribui, de resto, o exemplo, citado por Faria e Sousa, do
mesmo Canto, que já referimos.
Por isso será mais prudente a explicação genérica de Costa Pimpão, ao dizer:
«Noto (νότος) e Austro, ventos do Sul; Bóreas (Βορέας) e Áquilo, ventos do
Nordeste»9.
Outro aspecto que será interessante analisar é a frequência do emprego de um
processo literário característico dos Poemas Homéricos, o símile desenvolvido,
do qual diremos, na esteira de Bowra, que consta da comparação de uma acção
compósita com outra compósita.
Ora a tempestade da Odisseia, poema bem mais parco em símiles do que a Ilíada,
está cheia desse processo literário: nada menos de quatro, ou, se levarmos o episó-
dio até ao apaziguamento final do adormecer de Ulisses, cinco. Nos dois primeiros,
8
Pauly-Wissowa, s.v . Βορέας, onde se mostra também que desde Timóstenes que Bóreas pode
ser o Nornordeste (Geographi minores II.473). A mesma Enciclopédia, s.v. ‘Winde’, ‘Windrosen’, observa
que a imprecisão nos quadrantes dos ventos reflecte as condições meteorológicas do Mar Egeu e das
rotas para o Egeu e a Magna Grécia.
9
Citações das respectivas edições comentadas de Faria e Sousa (Madrid, 1639), de Epifânio (Porto,
2
1916) e de Costa Pimpão (Lisboa, 1972). Por sua vez, António José Saraiva anota na sua (Porto, 1978),
p. 463, s.v. Áquilo: «Um dos quatro principais ventos. É a palavra latina correspondente a Bóreas,
vento norte; mas Camões parece distinguir os dois.» Emanuel Paulo Ramos (Porto, 1982), p. 499, diz
genericamente «ventos do Sul, os dois primeiros; e do Norte, os dois últimos.»
306 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
o símile transporta-nos do mar para a terra: os cardos selvagens, que Bóreas sopra
pela planura fora, são termo de comparação para a jangada de Ulisses, empurrada
pelos ventos em todas as direcções (V.328-330); mais adiante, quando a jangada se
desfaz, o mar dispersa-lhe as traves como o vento tempestuoso dispersa a palha
seca (V.368-370). Da esfera dos sentimentos, da vida familiar, é tirado o terceiro
símile, para sugerir a alegria do náufrago que ao terceiro dia avista terra: ele é
como os filhos que vêem voltar à vida o pai doente (V.394-399). Da vida animal vem
o quarto: Ulisses agarrado a uma falésia, enquanto aguarda o refluxo das águas,
deixa a pele agarrada às rochas, tal como sucede ao polvo arrancado às pedras que
o abrigam (V.432-435). O último sugere a calma e a esperança: Ulisses adormecido
no leito de folhas que preparou sob a oliveira mansa enxertada no mesmo pé de
uma oliveira brava é como a brasa que os homens resguardam para conservar o
fogo (V.488-491). Um fundo cultural – reminiscência do tempo em que o fogo era
uma conquista a preservar com cuidado – e um valor simbólico – a chama da vida
do herói é pouco mais que um tição que é preciso abrigar – entrelaçam-se nesta
nota de quietude com que encerra o canto.
Na Eneida, pelo contrário, o episódio da tempestade comporta um único, e, aliás,
extenso, símile, por sinal, o primeiro do poema, mas colocado numa posição-chave:
o final do episódio. Neptuno acaba de acalmar as vagas e de libertar as naus junto
com Cimótoe e Tritão, como já referimos, e parte no seu carro, deslizando sobre
as ondas com as rodas ligeiras (I.148-156):
10
10 Cf. R. D. Williams, ed., The Aeneid of Virgil, Vol. I (London, 1972), p. 172; E. Paratore, ed.,
Virgilio: Eneide, Vol. I (Milano, 1978), pp. 149-150.
9. A TEMPESTADE MARÍTIMA DE OS LUSÍADAS. ESTUDO COMPARATIVO 307
Mais adiante, os ventos são «como touros indómitos bramando» (est. 84).
Noutra estrofe ainda, a 87, as Ninfas belas «mais fermosas vinham que as estre-
las».
Na viva descrição das manobras marítimas – o silvar do apito, o alerta, o alijar
da carga – pode apontar-se, como fez Faria e Sousa, a proximidade do modelo de
Ariosto.
Precisamente, a voz do mestre na sua nau, a dar ordens breves e urgentes, é
uma das diferenças em relação aos modelos clássicos, onde, como vimos, a voz
humana se ergue, lamentosa, no meio da passividade, incapaz de resistir à fúria
dos elementos. Notámos, também, que Os Lusíadas contêm o topos da fala do herói
solitário, e até em termos muito semelhantes, com hábeis transições do chamado
maravilhoso pagão para o chamado maravilhoso cristão.
Umas considerações ainda sobre as diferenças estruturais. Na Odisseia preva-
lece o esquema monólogo-descrição-símile, como já foi notado por Hainsworth.
O mesmo helenista observa ainda que se encontra aqui a maior concentração de
monólogos do poema – seis – contra um total de quatro nas outras partes, e o
relevo que dá ao episódio o uso repetido do discurso directo12.
Já vimos que não é assim na Eneida. O esquema é mais simples: descrição, um
momento interrompida pelo clamor dos homens, monólogo, descrição, símile final
e único, mas muito extenso.
Novamente mais complexo é o esquema de Os Lusíadas. Abre esta parte do
poema, quase ex abrupto, pondo termo à sequência da narrativa das aventuras
dos Doze de Inglaterra, o apito do mestre, logo seguido das suas ordens, com
11
Op. cit., Vol. I, p. 172.
12
Omero, Odisseia, Vol. II, ed. J. B. Hainsworth, Fondazione Lorenzo Valla, Milano (1982), pp. 173
e 179.
308 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
obstáculos à vitória. Esse concílio, por sua vez, não é no Olimpo, mas no fundo do
mar. É a rendição do senhorio dos mares que assim vai estar em causa. E, contra
a prática estabelecida, os deuses das profundidades vão ficar derrotados.
Também o naufrágio não se consuma. A tempestade é medonha, e parece que
vai «arruinar a máquina do mundo» (Lus. VI.76.6), mas, uma vez serenada pela
deusa, os seus efeitos ficam anulados e, na terra de Calecut, «já a manhã clara
dava nos outeiros» (Lus. VI.96.1). A vitória estava alcançada.
(Página deixada propositadamente em branco)
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
EM OS LUSÍADAS *
*
Publicado em Revista da Universidade de Aveiro / Letras 1 (1984), 87-106; Novos Ensaios sobre Temas
Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1988, 22012), 109-131.
1
Sem prejuízo da coexistência em Camões de elementos maneiristas com os renascentistas, como
notou Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (Coimbra, 1971), p. 14.
312 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Se nos permitimos a repetição de uma estrofe que todos mais ou menos sabemos
de cor, é porque contém dois princípios de composição que serão uma constante
de Os Lusíadas: um, é a já referida Überbietung, que culmina nos dois versos finais e
que já foi posta em relevo, em sugestivo artigo, pelo mesmo Kurt Reichenberger6;
outro, é o paralelismo greco-latino, que aquele estudioso aponta neste passo, mas
que é geral no poema, e está aqui consubstanciado em dois pares de exemplos:
um literário (o sábio Grego e o Troiano, ou seja, Ulisses e Eneias), outro histórico
(Alexandre e Trajano).
A junção do Grão Macedónio com o imperador de origem hispana irá repetir-se
no mesmo Canto, na estância 75. Ou então surgirá Alexandre em frente de César,
2
Não julgamos que haja hendíade no começo da Eneida (a interpretação que aqui lhe damos,
encontrámo-la depois no comentário de R. D. Williams (London, 1972), I, p. 156. Quanto ao começo
de Os Lusíadas, José Maria Rodrigues, que a aceitava quando escreveu «Uma divergência no texto
da primeira estância», Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, 13 (1921), 726-727,
mostra-se céptico nos «Aditamentos e correcções» às Fontes dos Lusíadas (Lisboa, 21979) pp. 511-512.
Negou-a Rubem Franca, As armas e os barões... (Pernambuco, 1973), pp. 72-87.
3
«Epische Grösse und manuelinischer Stil. Untersuchungen zum Proomium der ‘Lusiaden’»,
Aufsätze zur portugiesischen Kulturgeschichte (adiante citados abreviadamente Port. Aufsätze), 2 (1961), p. 89.
4
Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (Bern, 1948), pp. 169-172.
5
Na sua tradução, com prefácio e aditamentos, de Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica
Literária (Lisboa, 1966), p. 108, R. M. Rosado Fernandes oferece esta versão. Cf. Johannes Kleinstück,
«O problema da novidade n’‘Os Lusíadas’», Psort. Aufsätze 11 (1961), p. 68.
6
«Vergleich und Überbietung, Strukturprinzipien im Epos des Camões», Germanisch-Romanische
Monatsschrift, N. F. 10 (1960) 1-2. No ensaio citado na nota 3, o mesmo autor refere, a propósito deste
passo: «Wie in den Vitae des Plutarchs hat die Gestalt aus dem griechischen Altertum in jedem Fall
ein römisches Pendant». A esta conclusão, que, aliás, o autor não explora, tinhamos chegado inde-
pendentemente da leitura deste artigo.
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 313
em VII.12 – tal como os colocara Plutarco nas Vidas Paralelas e o mesmo Camões
na Elegia VII.467.
A enumeração, sem ordem aparente, de nomes grandes da história grega ou da
romana, ou das duas juntas, era moda que já vinha, entre nós, do Cancioneiro Geral,
onde Luis Anriques, no poema à morte de D. João II, cita, numa só estrofe, cerca
de uma dezena de nomes da tradição heróica dos Helenos8. O hábito tinha sido,
certamente, tomado dos humanistas, e designadamente daquele que trouxera esse
movimento intelectual para a corte do Príncipe Perfeito e para o País, como o têm
provado os diversos estudos a ele consagrados por A. Costa Ramalho9: o italiano
Cataldo Parísio Sículo. Na oração com que recebeu em Évora, em 1490, a princesa
D. Isabel, noiva do Príncipe D. Afonso, refere-se o humanista a D. João II como
superior a Alexandre e a César, e à Rainha D. Leonor (ignoscant Manes...) como par
de Cícero e Demóstenes10. Esse hábito mantém-se, por exemplo, na oração que o
discípulo dilecto de Cataldo, o Conde de Alcoutim, D. Pedro de Meneses, proferirá
em 1504, na abertura das aulas da Universidade, então em Lisboa11.
Também os corifeus do Renascimento literário português (bem como os seus
modelos italianos e castelhanos) usaram largamente do processo. Vejamos, entre
muitos, dois exemplos de Sá de Miranda, um tirado da Carta a D. João III12:
7
As citações da Lírica são todas feitas pela edição das Rimas por A. J. da Costa Pimpão (Coimbra,
1973). As de Os Lusíadas pela edição fac-similada da de 1572 (Lisboa, 1972), salvo na ortografia e na
pontuação, que modernizámos.
8
Cancioneiro Geral, edd. A. J. Costa Pimpão e Aida Dias, I (Coimbra, 1973), n.º 366, vv. 41-48.
9
Sobretudo em Estudos sobre a Época do Renascimento (Coimbra, 1969), pp. 31-116; no prefácio às
Duas Orações, citadas na nota seguinte, e no de Martinho, verdadeiro Salomão (Coimbra, 1974).
10
Cataldo Parísio Sículo, Duas Orações, edd. M. Margarida Brandão G. da Silva e A. Costa Ramalho
(Coimbra, 1974), pp. 56 e 58.
11
Apud A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos (Coimbra, 1975), p. 9.
12
Seguimos a edição de Rodrigues Lapa (Lisboa, 21943).
314 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Não quer isto dizer que o discípulo de Diogo de Teive, precisamente aquele dos
nossos líricos que imitou de perto, pela primeira vez, Teócrito, Mosco e algumas
Anacreontea, não tivesse um conhecimento dos modelos gregos melhor do que
qualquer dos seus compatriotas15. Mas, seja em cartas, elegias, odes ou éclogas,
predominam os latinos.
13
Do Pro Archia, que Petrarca redescobrira, consta um famoso elogio das Letras, que culmina
em VI-VIII e X.24. Este elogio deve ter estado na mente de Camões ao compor as estâncias 95 e 96 do
Canto X de Os Lusíadas. Note-se que o primeiro estudioso a assinalar a influência daquela oração de
Cícero na nossa epopeia foi Epifânio, que deve completar-se com Carlos Eugénio Corrêa da Silva, Ensaio
sobre os Latinismos dos Lusíadas (Coimbra, 1935), pp. 12-14. Poderíamos acrescentar que os exemplos se
multiplicam em António Ferreira (e.g. Odes II.2.20; Cartas I.3.95-98; Cartas II.7.28.33. Cf. também Diogo
Bernardes, Carta XXVI.163-174). Cícero, aliás, retomou a dicotomia sob a forma arma/toga inúmeras
vezes (e.g. Pro Murena 11.24; De Oratore I.2.7; Brutus 73.256-257; Philippicae II.8.20). Escusado será dizer
que a ideia tem raízes gregas, particularmente fundas em Píndaro, que não se cansa de repetir que,
sem a glória conferida pela Poesia, a maior coragem permanecerá obscura (exemplos no nosso artigo
«O conceito de Poesia na Grécia arcaica», Humanitas 13-14 (1961-1962), pp. 345-346, onde também se
citam outros autores gregos). Sobre a frequência da antítese letras/artes nos humanistas, veja-se
Luís de Sousa Rebelo in Dicionário de Literatura, ed. Jacinto do Prado Coelho (Porto, 31973), II, 437.
14
Seguimos a edição dos Poemas Lusitanos por Marques Braga (Lisboa, I, 1939; II, 1953).
15
Julgámos tê-lo demonstrado suficientemente em «Alguns aspectos do classicismo de António
Ferreira» e «Dois Epigramas de António Ferreira», artigos incluídos no nosso livro Temas Clássicos na
Poesia Portuguesa (Lisboa, 1972).
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 315
Uma excepção tem de registar-se, no que concerne aos dois maiores da Anti-
guidade. Estes figuram sempre juntos, numa espécie de binómio que já fora consa-
grado por Petrarca, através dos topónimos que melhor os simbolizavam (Mantova
e Smirna). Também Sá de Miranda falou, na dedicatória da Écloga Célia, do
Aqui, o Horácio lusitano toca num ponto essencial, que é nele uma aspiração
profunda: o anseio de que se escreva uma epopeia digna dos feitos marítimos dos
Portugueses, e em português. A exortação foi feita muitas vezes pelo poeta17, como
é sabido. E antes dele (pensando, evidentemente, em bem escandidos hexâmetros
latinos), já o tinham desejado os humanistas18.
Também na Écloga IV.27-32, Camões prenunciara:
Mas voltemos a Camões épico, onde o modelo da Odisseia forma com o da Eneida
um par obcecante:
16
Cf. também em Diogo Bernardes, Écloga XI.41-42:
Celebre o grão Marão Heróis Latinos;
d’Homero os Gregos sejam celebrados.
17
Lembremos só as Odes I.1; I.8; II.1; e as Cartas I.8, I.13 e II.6 (em II.4 convida Diogo de Teive a
celebrar o português império, mas em verso e prosa latinos); e ainda a Écloga X.54-64.
18
Cf. A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, pp. 8-9.
316 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
19
Designadamente nos trabalhos de António Salgado Junior, «Os Lusíadas e o tema das Argonáu-
ticas», Ocidente 38, n.º 146, pp. 277- -294; 40, n.º 158, pp. 261-284, e nos de H. Howens Post, sobretudo
«Eine wenig bekannte Quelle der Lusiaden», Port. Aufsätze 1 (1960), 87-93, e ainda no final do artigo
de Kurt Reichenberger, «Der Abschied der Lusiaden. Ein Beitrag zur dichterischen Gestaltung der
Höhepunkte im Epos des Camões», Port. Aufsätze (1960), 67-86. Sobre o assunto, veja-se J. L. Carvalho,
«Camões e Valério Flaco», Euphrosyne N.S. 4 (1970), 195-202. A este respeito se pronunciara já J. M.
Rodrigues, Fontes d’Os Lusíadas, pp. 533-534.
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 317
de tudo, o homem com avidez de saber, de haurir novos conhecimentos, que lhe
permitam situar-se melhor no mundo.
Tal como Ulisses na caverna do Ciclope quer ver tudo até ao fim, incluindo o
próprio monstro (e, devido a essa curiosidade, dificilmente consegue salvar-se e a
alguns dos que levava consigo), também os Portugueses, no Sudoeste da África, se
metem em perigosa aventura com os nativos, preludiada nestes termos (V.26.1-4):
Esta visão do herói, muito tempo deturpada por se procurarem ver nele o
espírito belicoso e a personalidade forte de um Aquiles, em vez do modelo estóico
que no rosto simula a esperança e no fundo do coração recalca a dor22 é a nossa visão de
hoje, e aquela que Camões soube encontrar.
Bem diferente destes é o Jasão sempre sem saber o que fazer (ἀμήχανος, em
oposição ao πολυμήχανος Ὀδυσσεύς, o anti-herói, como expressivamente lhe
chamou Gilbert Lawal 23), de Apolónio de Rodes, ou mesmo o de Valério Flaco, que
é dominado pelo medo e ansiedade (I.693-699).
20
Pacifique imponere morem,/ parcere subiectis et debellare superbos (VI.852-853). Jorge Borges de
Macedo caracteriza perfeitamente o Gama neste trecho de Os Lusíadas e a História (Lisboa, 1979), p. 81:
«O herói camoniano não é, pois, impecável. Vive as dificuldades da execução, enfrenta-as, e resolve-
-as, porque nele se consubstancia a paixão e a lucidez executiva; luta por realizar o que lhe cumpre...
Gama apresenta-se como um herói-padrão, executor responsável e habilitado, vigiando-se na execução,
enfrentando as condições de realização de uma tarefa difícil, como homem de carne e de sentidos.»
21
Ardet abire fuga dulcisque relinquere terras,
attonitus tanto monitu imperioque deorum (IV.281-282).
22
Spem uultu simulat, premit altum corde dolorem (I.208).
23
«Apollonius’ Argonautica: Jason as Anti-Hero», Yale Classical Studies 19 (1966), 111-169.
318 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
As referências de Os Lusíadas aos Argonautas são várias24, mas, a nosso ver, não-
-estruturais; apenas têm a finalidade de apontar um paralelo mítico enobrecedor
para os Portugueses que se aventuraram a mares desconhecidos. Nesse sentido
são os vossos Argonautas (I.18.6), mas superam-nos, de longe, pela grandeza do
seu destino, como homens de missão, que a fé e o império foram dilatando.
Bem diferente, repetimos, é o papel desempenhado pela Eneida e pela Odisseia.
Este último não tem sido, a nosso ver, suficientemente posto em relevo, pelo que
não será supérfluo insistir nele.
Logo de início, o lançamento da acção in medias res, como Homero praticara
e Horácio teorizara, é suspenso por um concílio dos deuses, onde se vai discu-
tir a sorte da armada portuguesa – tal como a de Ulisses o fora no princípio do
Canto I da Odisseia e depois no Canto V, onde a acção leva um impulso decisivo25.
Ao passo que na Eneida se regista um único concílio, o do princípio do Canto X,
em que Júpiter pretende serenar as deusas que fizeram com que se abrissem as
hostilidades entre os Troianos e Rútulos.
Quando é recebido pelo Rei de Melinde, o embaixador prestante de Vasco da
Gama compara a situação presente com a de Ulisses em Esquéria 26:
24
I.18; IV.83, 85; V.28; VI.31, 63; IX.64. Aliás o modelo também estava em Ariosto, como mostrou
J. M. Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, p. 381.
25
Trata-se de uma reduplicação de motivos (como tantas outras da Odisseia) que tem sido expli-
cada diversamente. As teorias que têm maior aceitação são talvez as de D. Page, The Homeric Odyssey
(Oxford, 1955), pp. 70-71, e a de E. Delebecque, Télémaque et la structure de l’Odyssée (Aix-en-Provence,
1958), cap. V.
26
II.82. O que não impede de, na sequência do encontro, o poeta se voltar para o modelo virgi-
liano da recepção feita por Dido a Eneias.
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 319
Ítaco, uma vez identificado perante Alcínoo, enceta os seus apologoi – quatro cantos
de excitantes aventuras, quase todas situadas no domínio do fantástico.
Neste último ponto surge, porém, uma diferença essencial: a história contada
pelo Gama é toda verdadeira. Por isso, ao terminá-la, ele se distancia em relação
ao modelo, gastando duas estâncias a resumir esse género de aventuras, desde
agora superadas (V.88-89):
27
E.g. II.45 (referido a Eneias), VI.82 (onde também se mencionam as Sirtes da Eneida e os Acro-
ceráunios do Orlando Furioso). Note-se que Cila e Caríbdis, Polifemo e as Sereias são vistos à distância
por Eneias.
28
É irrelevante, para o efeito, que este último motivo tenha vindo de Apolónio de Rodes e figure
também em Valério Flaco.
320 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Este último exemplo é tanto mais curioso, quanto, como é sabido, Camões
utilizara já o motivo da súplica de Vénus e consequente profecia das glórias dos
seus protegidos num episódio célebre do Canto II.33-56, que, apesar das suas fortes
conotações ovidianas, não deixa de ser fundamentalmente inspirado nos versos
223-304 do Livro I da Eneida.
Das múltiplas imitações e hábeis aproveitamentos de trechos da Eneida não
vamos ocupar-nos. O trabalho está feito desde Faria e Sousa, completado por
Epifânio e outros, e corria o risco de se transformar num estéril catálogo.
Mais importante será sublinhar a capacidade mitopoiética de Camões, não
quanto à velha questão do papel dos deuses e da coexistência do maravilhoso
pagão com o cristão – dificuldade que se nos afigura definitivamente ultrapassada
29
Que tal conhecimento não era um facto isolado, prova-o a poesia de seu amigo André Falcão
de Resende que parafraseia a alegoria da caverna (apud Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo
e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, pp. 312-313).
30
Vida e Obras de Luís de Camões. Primeira Parte. Tradução anotação de Carolina Michaëlis de
Vasconcelos (Lisboa, reimpr. 1980), p. 245, nota 2. Cf. também p. 225. C. M. Bowra, From Virgil to Milton
(London, reimpr. 1961) p. 88, supõe que o Poeta terá lido Homero na tradução latina de Lorenzo Valla.
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 321
31
Estudos Camonianos, pp. 19-24. A esses exemplos podemos acrescentar o de António Ferreira,
que, na «História de Santa Comba dos Vales», para melhor sugerir a fuga da Santa ante a perseguição
do Rei Mouro, não hesita em introduzir símiles pagãos: o mito de Diana e Actéon (289-292), de Dafne
e Apolo (369-372), de Atalanta e Hipómenes (373-376).
32
Luís de Camões. O Épico (Lisboa, 31968), pp. 136-154. Do mesmo autor, veja-se também o artigo
‘Lusíadas’ no Dicionário de Literatura, ed. J. Prado Coelho, vol. II, p. 581.
33
Sobre o Sonho de D. Manuel e o Velho do Restelo, não foram ainda excedidos os estudos de
F. Rebelo Gonçalves, Dissertações Camonianas (S. Paulo, 1937), pp. 59-177. Sobre as origens do Adamas-
tor, veja-se, em especial, A. Costa Ramalho, Estudos Camonianos, pp, 44-45, e Aníbal Pinto de Castro,
«O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na estrutura de Os Lusíadas» in XLVIII Curso de
Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Ciclo de Lições Comemorativas do IV Centenário da
Publicação de ‘Os Lusíadas’ (Lisboa, 1972), pp. 63-78; ocupámo-nos também do assunto em «O tema da
metamorfose na poesia camoniana», Biblos 51 (1975), 138-140. Sobre a Ilha dos Amores, vide A. Costa
Ramalho, op. cit., pp. 89-95, e Vítor Manuel de Aguiar e Silva, «Função e significado do episódio da
Ilha dos Amores na estrutura de Os Lusíadas» in Ciclo de Lições, cit., pp. 81-96.
34
Alguns exemplos: Nunálvares frente aos irmãos em Aljubarrota é como Pompeu e César ·(IV.32),
e a apóstrofe que se segue sobre os traidores (IV.33) é dirigida a Sertório, Coriolano, Catilina; ao
322 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
herói a rezar antes da Batalha de Valverde dá o paradigma de Numa Pompílio (VIII.31); a Batalha
do Salado deixa a perder de vista Mário e Aníbal, e até Tito em Jerusalém (III.116-117). Parte dos
exemplos aqui aduzidos foi também utilizada por Kurt Reichenberger, «Der Abschied der Lusiaden.
Ein Beitrag zur dichterischen Gestaltung der Höhepunkte im Epos des Camões», Port. Aufsätze 1 (1960),
67-86, especialmente pp. 80-81.
35
Não empregamos aqui paralelismo no complexo sentido que lhe dão actualmente os estrutu-
ralistas, sobre o qual vide Maurice-Jean Lefebvre, Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa (trad.
port., Coimbra, 1975), pp. 251-255.
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 323
36
Cedo, num, Scipio, barbarorum Romulus rex fuit? (Lael). Si ut Graeci dicunt omnis aut Graios esse aut
barbaros, vereor ne barbarorum rex fuerit; sin id nomen moribus dandum est, non linguis, non Graecos minus
barbaros quam Romanos puto (I.37.58). Deste tratado se sabe que é de 54 a. C. É duvidoso se lhe é anterior
esta curiosa diferenciação que esboçara Lucrécio (V.35-36):
propter Atlantem litus pelagique severa
quo neque noster adit quisquam nec barbarus audet?
Ou seja: «para além das plagas atlânticas e dos pavores do pélago, onde nenhum dos nossos ou
dos bárbaros ousa penetrar?» No seu comentário ad locum, Cyril Bailey (T. Lucreti Cari De Rerum Natura
Libri Sex [Oxford, 1947], vol. II, p. 1327) tem dúvidas sobre a inclusão dos Gregos nesta antítese. No
tempo de Plauto (ca. 254-184 a.C.) ainda era possível fazer rir o auditório, dizendo que se ia apresentar
uma peça de Demófilo «traduzida para a língua dos bárbaros» (Maccus uortit barbare – Asinaria 11).
324 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
37
O mesmo trikolon também se encontra em Ariosto, Orlando Furioso XLVI. 75 (citado por José
Maria Rodrigues, As Fontes dos Lusíadas [Lisboa, 21979], p. 388).
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 325
Na sua longa profecia do Canto X, Tétis ousa dizer, sobre Duarte Pacheco
Pereira, o Aquiles Lusitano, que
Estes descendentes espirituais dos Romanos levam ainda mais além o legado
tradicional clássico. Eles dão novos mundos ao mundo, eles adquirem conheci-
mentos nunca ouvidos.
As descobertas, feitas por cuidada observação ao longo da viagem, são motivo
de orgulho para o Gama:
E, mais adiante:
326 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Mas talvez nenhum trecho exprima com tanto entusiasmo a novidade cien-
tífica das navegações portuguesas como as palavras postas na boca do próprio
Adamastor (V.50):
38
V. 23. Epifânio, com a sua argúcia habitual, encontra dois passos de Cícero sobre estes filósofos:
De Finibus V.19 e Tusculanae IV.19.
10. PRESENÇAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA EM OS LUSÍADAS 327
Fala aqui, mais uma vez, o homem do Renascimento, o amigo de Garcia de Orta,
daquele que, no XX dos Colóquios dos Simples e Drogas, ousara escrever
Fora essa obra que, depois de traduzida em latim, viria a alcançar uma divulga-
ção poucas vezes gozada por tratados científicos nacionais39, a mesma que Camões
apresentara, em 1563, com a elegante Ode ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia,
cujo favor solicitava para o trabalho do médico seu amigo, para as plantas novas,
que os doutos não conhecem.
As novidades científicas dos Descobrimentos também tinham sido vistas por
outro homem de saber insigne, Pedro Nunes, que, no Tratado em Defensão da Carta
de Marear, impresso em 1537, declarara40:
Não há dúvida que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte,
são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e discretas conjeituras que
as de nenhuma outra gente no mundo. Os Portugueses ousaram cometer
o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram
novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo
céu e novas estrelas.
39
Sobre a extraordinária influência exercida pelos Colóquios, vide Conde de Ficalho, Garcia de Orta
e o Seu Tempo (Lisboa, 1886), p. 374, e Augusta Gersão Ventura, Clúsio, Portugal e os Portugueses (Coimbra,
1933). Da Ode ao Conde do Redondo tratámos neste livro, em capítulo anterior.
40
Pedro Nunes, Obras, vol. I (Lisboa, 1940), p. 175. Também aqui modernizámos a ortografia e
pontuação.
41
Soleo saepe nostrorum hominum res gestas admirari, easque crebris usurpare sermonibus. Nihil tamen
video in illis ad gloriam maius, quam quod terrarum ignotarum lustratione nova sidera, ignotas stellas, incognitas
328 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
regiones: hoc est, alios terrarum orbes, quos Alexander Magnus suis victoriis superesse dolebat, invictis armis
peragrarunt. Quod profecto numquam facere potuissent, nisi siderum observatione edocti fuissent.
O texto pode ver-se na nossa edição fac-similada, com introdução, tradução e notas, de Belchior
Beleago, Oração sobre o Estudo de Todas as Disciplinas (Porto, Centro de Estudos Humanísticos, 1959),
p. 40. À data em que fizemos esse trabalho, reconhecemos a paráfrase de Pedro Nunes. Não a assina-
lámos, porém, nas notas, por não nos ter sido possível localizá-la. Essa atenção devemo-la à grande
estudiosa que foi a Dra. Augusta Gersão Ventura.
Já observou A. Costa Ramalho, Portuguese Essays (Lisboa, 21968), p. 23, que, embora as orações
académicas quinhentistas sejam muito similares entre si, divergem na ênfase dada a certos aspectos
da cultura, e assim, a de Belchior Beleago, sendo semelhante à que Arnaldo Fabrício fizera no ano
anterior, difere no encómio que faz das navegações portuguesas.
42
Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, cit., p. 212.
11. A TR ANSMISSÃO MANUSCRITA
DE OS LUSÍADAS. ALGUNS ASPECTOS *
Em diversas obras suas, esse grande mestre da Camonologia que foi Hernâni
Cidade1 enumerou, com exemplar clareza, o que até então se sabia de positivo
sobre manuscritos do poema: um, a que se referira episodicamente Manuel Correa,
na edição de 1613, a propósito de uma única variante que figurava num «livro
de mão» do próprio Poeta, mas que nunca foi encontrado2; e quatro apógrafos,
dos quais deve ser imediatamente eliminado como falsificação o último, forjado
por Filinto Elísio. Dos três que restam desta curta série, conserva-se um, o que
se contém no Cancioneiro de Luís Franco Correa, de fol. 203r a 215v, com o Canto
I apenas, porque esse «companheiro e muito amigo de luis de camões», como se
lê na portada, só queria trasladar «obras dos milhores poetas do meu tempo,
ainda naõ empresas», e, entretanto, Os Lusíadas foram publicados. «Naõ continuo
porq sahio a lus» – escreve no canto inferior esquerdo da página a mesma mão
quinhentista que copiara o texto até ali.
Tornaremos a este apógrafo da Biblioteca Nacional de Lisboa, hoje acessível,
graças à edição facsimilada que dele fez a Comissão Executiva do IV Centenário
da Publicação de Os Lusíadas. Entretanto, seja-nos permitido recordar as circuns-
tâncias em que Faria e Sousa declara ter descoberto em Madrid os dois outros
*
Publicado em Revista da Universidade de Coimbra 33 (1985), 51-65.
1
Prefácio à sua edição das Obras Completas de Luís de Camões (Lisboa, 1947), vol. IV, pp. VIII-XI;
Luís de Camões, o Épico (Lisboa, 31968), pp. 237-240; Prefácio à Edição Comemorativa do IV Centenário da
Publicação de ‘Os Lusíadas’ (Lisboa, 1972), pp. I-VII.
2
É a lição flor clícia (heliótropo) por flor cifísia (narciso), que tem a princeps em IX.60.5. A infor-
mação de Manuel Correa foi registada por Faria e Sousa, que a comentou nestes termos: «No era malo
para la ponderación de que inclinava la cabeça, siendo esto tan natural de la Clicia, Heliotropio, o
Tornasol, que todo es uno: però con el Narciso no queda menos propio, porque por su mismo amor
siempre se inclino sobre el estanque de buena gana a verse, i a enamorarse: i dale el Poeta en la
transformacion la porfia que tuvo en la relidad, poniendole a mirarse sobre el estanque.»
330 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
«Estes seys cantos se furtaraõ a Luis de Camões da obra que tem come-
çado sobre o descubrimiento, e conquista da India por os Portugueses.
Vam todos acabados, excepto o sexto, que posto que vay aqui o fim delle,
faltalhe hũa historia de amores que Leonardo contou estando vigiando,
que há de prosiguir sobre a Rima 46 onde logo se sente bem a falta della;
porque fica fria, e curta a conversaçam dos vigiantes; e o proprio canto
mais breve que os outros.»
3
Lusíadas de Luís de Camoens comentadas por Manuel de Faria e Sousa (Madrid, 1639), Tomo I,
col. 37.
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 331
copia lo que diximos de la estimacion que se hazia deste Poema, aun antes de
acabado, pues assi como iva escriviendo se lo ivan hurtando»); depois, vem uma
enumeração das diferenças maiores entre o manuscrito e o impresso.
Ao chegar ao final desta coluna, começa a referência ao segundo manuscrito
«aũq no es de tanta estima, porque teniendo infinitas alteraciones se ve clara-
mente que no son del Poeta.» Escrito pela mão de Manuel Correa Montenegro e
dedicado ao Duque de Bragança D. Teodósio, confessa ter mudado todos os versos
esdrúxulos e agudos, «por ser muy mal parecidos em estilo heroico, ao menos no
tempo de agora: trocamos algũas palabras por outras ao parecer melhor soantes,
etc.». Confessa ainda ter acrescentado oitavas.
Saliente-se que, como notou Hernâni Cidade4, uma dessas estâncias, colocada
entre aquelas em que Paulo da Gama descreve as bandeiras ao Catual, representa
a tomada de Azamor pelo Duque de Bragança D. Jaime, quinze anos depois da
chegada de Vasco da Gama à Índia...
«Agora novamente reduzido» – declarava Manuel Correa Montenegro no título
do seu manuscrito. A avaliar pelos poucos exemplos recentemente dados a público,
algo de semelhante teria acontecido, mas desta vez não no sentido literário, mas
no religioso, num outro manuscrito desde há pouco conhecido, que parece não
ser mais que uma versão judaizante da epopeia 5. Enquanto se aguarda a sua publi-
cação, não é possível ir mais além.
Neste momento há também notícia, através de um artigo de jornal6, de um
outro manuscrito, que estaria a ser estudado e preparado para a impressão por
esse grande conhecedor e editor de Cancioneiros de mão do Século XVI que é o
Prof. A. L.-F. Askins.
Tudo isto significa que o que vamos dizer tem um carácter provisório e que
poderá ser alterado com os novos dados que se esperam.
Para a análise que nos propusemos fazer, dispomos, portanto, apenas, de dois
testemunhos merecedores de estudo: o primeiro dos manuscritos referidos por
Faria e Sousa, com seis cantos e só conhecido indirecta e parcialmente (o próprio
declara só ter tomado nota das diferenças principais), e o de Luís Franco Correa,
com o Canto I somente. Que eles fossem um só na origem, foi hipótese que logo
se aventou, quando do aparecimento deste último no século passado. O que,
dado o completo descrédito em que aquele polígrafo caíra, lançava ipso facto a
4
Prefâcio da Edição Comemorativa do IV Centenário, p. VII.
5
Maria Antonieta Soares de Azevedo, «Um manuscrito quinhentista de ‘Os Lusíadas’», Colóquio/
Letras, 55 (Maio de 1980), pp. 14-23.
6
Francisco de Sequeiros, «Descoberto um manuscrito de ‘Os Lusíadas’, Expresso, 9 de Junho
de 1978. A informação aí transmitida é de Maria Antonieta Soares de Azevedo, que diz ter ido esse
manuscrito de Espanha para os Estados Unidos.
332 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
7
Vida e Obra de Luís de Camões. Versão do original alemão anotada por Carolina Michaëlis de
Vasconcelos (Lisboa, 1897), pp. 16-18. (A citação é da p. 18).
8
Nota 2 da p. 72 de O Cancioneiro de Fernandes Tomás (Coimbra, 1922). Cf. ainda, inter alia, O Can-
cioneiro do P.e Pedro Ribeiro (Coimbra, 1924), p. 112, nota 3.
9
Braga (1980), pp. 18-19 e nota 17.
10
Paris (1970), pp. 235-240 e também 453-457.
11
Op. cit., p. 23.
12
Respectivamente, de 1595, 1598 e 1668.
13
Exemplos do primeiro (utilizando as siglas P = editio princeps, B = Cristóvão Borges, F = Luís
Franco): 10 e vinde P: om. B F // 11 d’uns olhos P: só de olhos B F // 12 vereis P: e vereis B F. Exemplos
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 333
do segundo: 2 Sílvia P: Sibella B F / ninfa linda P: linda ninfa B F. Como é de esperar, há também casos
de concordância de P com F, o que demonstra que B e F são independentes.
14
Pode ver-se uma discussão do problema, com a respectiva bibliografia, em Askins, op. cit.,
pp. 209-216.
15
E.g. O Cancioneiro de Fernandes Tomás, p. 67. «Fabulista-mor», na mesma página, «amoral letrado»
e «rouba-honras» (p. 76) são outros dos títulos que lhe confere.
334 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
16
Como diz Faria e Sousa nas «Lecciones varias deste poema» (vol. II, col. 650); «no estava en
el original: hizola de nuevo el Poeta».
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 335
como primeiro verso da estância LXXIX. No texto impresso, porém, esta estrofe
é precedida pela LXXVIII, que refere em discurso indirecto o começo da fala do
falso Mouro.
Temos aqui dois aspectos a considerar: um, a razão provável da redução deste
passo, omitindo a descrição geográfica; outro, os dados que a critica textual nos
fornece para estabelecermos a relação entre os manuscritos. Principiaremos pela
última e usaremos a numeração romana para distinguir as três estrofes, e as siglas
F para Franco Correa e C para o manuscrito que Faria e Sousa diz ter achado na
livraria de Pedro Coelho.
A colação dos dois textos revela apenas algumas variantes, que passamos
a examinar. Desta análise excluímos as que são meramente ortográficas, não
só por ser essa uma prática corrente em trabalhos desta natureza, como ainda
porque não é de crer que a transcrição de Faria e Sousa tenha tido em atenção
esses pormenores, e, por outro lado, Franco Correa é muito desleixado na maté-
ria. Divergências como preceptos (em II.4) e semblante (em III.6), em C, e preceitos e
sembrante em F podem apenas revelar a pronúncia popular deste último copista.
Por isso mesmo, não deixa de ser curioso que ambos concordem na forma com
metátese cocrodilo em II.8 (a única ocorrência da palavra na princeps, em X.XCV.3,
restaura a forma erudita).
O copista de F era, como é geralmente reconhecido, muito atreito a erros, a
despeito da revisão que o manuscrito levou, e que se nota em frequentes emendas
supralineares ou à margem. Este passo contém, precisamente, um exemplo muito
336 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
curioso na estância II, verso 2. Aí lê-se em C, conforme já vimos, uma perífrase para
designar o Nilo, na qual figura um epíteto alusivo às suas sete bocas, que é tirado
das Metamorfoses de Ovídio (I.422 e XV.753): septênfluo rio. F, porém, não entendeu
o adjectivo e leu mal o substantivo rio, de modo que transformou o latinismo
num composto, aliás, não registado nos dicionários17: em vez das duas palavras
acabadas de mencionar, escreveu septemfluvio. Detectado o erro ao fazer a revisão,
passou um traço por baixo das últimas três letras e escreveu na margem a palavra
largo. Emenda feita já sem o original à vista, em que o adjectivo composto terá
sido tomado por um topónimo? Deve notar-se que há um pequeno espaço entre
Septem e fluuio e que o copista é muito variável na distância observada entre as
palavras e na ligação entre as letras, para além do hábito, já notado, de aglutinar
os artigos com os substantivos18.
Em III.5, a lição e de C é preferível, sob o ponto de vista sintáctico, a que de F.
Em outros versos, porém, a vantagem é de F sobre C. Assim sucede por duas vezes
na estância I, onde, no verso 2, C diz Thebana parte, em vez de Thebana patria de
F, que é sem dúvida a lição correcta; e, no verso 5, o imperfeito atravessava, de F,
parece mais consentâneo com os dois perfeitos que o ladeiam (moveu, discorreu)
do que com o presente atravessa, que se lê em C (embora ambas as formas sejam
metricamente aceitáveis). A descrição só a partir do verso 7 muda para o presente,
que se mantém depois em todo o itinerário de Baco.
Esta longa descrição do caminho do deus, a que Faria e Sousa atribui modelo
virgiliano (certamente a descida de Mercúrio do Olimpo a Cartago, na Eneida IV.
238-258, onde o motivo da geografia do percurso – embora diverso – também
figura) foi eliminada na versão impressa, ficando dela apenas:
«Warum C. die Fassung der Strophen geändert habe, lässt sich nicht errathen»
– escreveu, em 1883, Wilhelm Storck, que, logo acrescenta que se encontrava aqui
um dado geográfico erróneo, pois Moçambique não está a nascente de Tebas, mas
na direcção marcadamente meridional19. O que o Poeta diz é que Baco, partindo
de Tebas para atravessar o Mediterrâneo, começa por se mover para Oriente; toda
17
Outro epíteto do Nilo, septemgeminus, foi usado por Catulo XI.7 e por Virgílio, Eneida VI.800.
O mesmo Ovídio em Met. V.187 escreveu septemplice Nilo.
18
Uma pequena cruz a seguir ao composto pode ter sido traçada posteriormente. O códice
apresenta muitas na margem de diversas composições.
19
Luis de Camões: Die Lusiaden (Paderborn, 1883), p. 390. Sobre as dificuldades e divergências na
localização do Cabo Prasso, veja-se José Maria Rodrigues, Fontes d’ Os Lusíadas (Coimbra, 1905), pp. 69-74.
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 337
20
Vol. I, col. 338.
21
Como escreveu Faria e Sousa (I, col. 338): «I en la 78, con mejor invencion, no le introduze
hablãdo, sino refiere lo que empeçò a hablar; en la siguiente le introduze hasta la 81.»
338 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
estava
Em XXXVIII.4, F e C coincidem em ler cujo valor, que depois foi alterado para
o mais raro cuja valia. Outros exemplos figuram em XLIII.6, XLIV.l, XLIV.2, LXI.5,
LXI.6, LXIV.8, LXVII.8, LXXI.2, LXXII.7, LXXXVI.4, LXXXVII.1, XCII.8, CIV.824.
Uma das lições concordantes mais significativas encontra-se logo na estân-
cia IV.I, onde a invocação é feita às Tágides Musas, quando o impresso diz, como
todos recordam, Tágides minhas. A alteração demonstra que o Poeta considerava o
mitónimo criado por André de Resende já suficientemente claro para ser tomado
como um substantivo, sem necessidade de explicitar que eram as novas divinda-
des inspiradoras. Ao possessivo pode atribuir-se a simples intenção de acentuar
o carácter nacional do poema (que demarcara já da Odisseia e da Eneida, como
consagrado a mais altos feitos, e que mais adiante distinguirá do Orlando Furioso,
22
Apenas uma variante: F lê ajuntam onde C tem juntam.
23
Faria e Sousa nota que Camões eliminou quase por completo do poema o antigo etnónimo
dos Castelhanos.
24
Alguns deles com pequenas variantes, atribuíveis a erro do copista.
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 339
25
É curioso notar a prova de mau gosto de Manuel Correa Montenegro, ao «corrigir» a expressão
para Musas do Tejo.
26
«Contribuição de ‘Os Lusíadas’ para a renovação da língua portuguesa», Revista Portuguesa de
Filologia, 18 (1980), p. 15.
340 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
lista de vocábulos novos introduzidos por Camões, que Faria e Sousa apontou 27.
Vale a pena observar que, dos vinte e cinco termos novos aí registados para o
Canto I, vinte e um estavam já na redacção de que F é cópia, e que houve um
que, depois de não ter sido compreendido na primeira versão, aparece emendado
supra lineam: ethereo, em LXXIII.2, que fora lido eterno. Por outro lado, em XVI.2,
é de crer que exício não foi entendido à primeira leitura nem à segunda, pois a
uma primeira forma exercio foi acrescentada por cima a sílaba ci, que se supunha
omitida (exercício)28.
Ocorrerá neste momento perguntar o que se passa com o manuscrito da livraria
de Pedro Coelho no tocante a estes aperfeiçoamentos. Quanto às formas em -vel,
Faria e Sousa não as registou, mas ele mesmo declarou, no apêndice de «Lecciones
varias deste poema», que «Lo que solo tuviere alteracion considerable, es lo que
se ha de ver aqui»29. Lá vêm, portanto, relativamente à estrofe LXXII, obsequente
e cógnito. Mas ficaram certamente excluídos os múltiplos exemplos de singular
por plural ou vice-versa: padeçam por padeça (XXXVIII.5), panos e cintas por pano
e cinta em XLVII.1 e 5, os céus por o céu, em LVIII.3, festas por festa em LIX.7, ventos
por vento em XCV.3. Apenas cita como amostra da lei a substituir das leis em II.6.
Num dos exemplos, o de LXXXII.7, ler Portugueses (como faz C) por Português (da
edição impressa) dá, evidentemente uma sílaba a mais, que não parece ter per-
turbado o copista.
Os casos de melhoria estilística (quer pela procura de um termo mais raro – que
pode ou não ser um latinismo –, mais expressivo ou mais eufónico) prolongam-se
nos cantos que Luís Franco Correa já não copiou. Apontamos apenas um pequeno
número: lindas filhas de Nereu passa a alvas filhas de Nereu (II.XIX.l), e as banais ondas
levantadas (II.XX.7) a ondas encurvadas, os frescos fios d’ouro (II.XXXVI.l) a crespos
fios d’ouro (repare-se no valor pictórico de todas estas alterações). O movimentado
verso 3 da estância LXVII do Canto III – fere, mata, derriba denodado – provém de
uma enumeração bimembre – uns captiva, outros mata denodado. Outras substitui-
ções mostram a preferência pela conotação de ordem moral (os brutos matadores
de III.CXXXII.l eram apenas duros matadores) ou pelo latinismo raro (a crua mesa
de Tiestes torna-se a seva mesa de Tiestes no mesmo episódio de Inês de Castro, em
III.CXXXIII.3) ou pelo efeito de uma sugestiva aliteração: fresca fonte por gentil
fonte (no aition final do mesmo episódio, III.CXXXV.7). E atente-se no efeito da
substituição de dois dos adjectivos que descrevem a aparição de Tétis em V.LV.4:
27
A lista, que vem nas col. 69-70 do Vol. I, pode ler-se também na edição do Visconde de Juro-
menha, Vol. V (Lisboa, 1866), pp. 449-450. Nela figura igualmente o citado malévolo.
28
Na II Reunião Internacional de Camonistas, realizada em Niterói em 1973, Hamilton Elia
apresentou uma comunicação intitulada «O Canto I de ‘Os Lusíadas’ no Cancioneiro de Luís Franco
Correa» que contém uma comparação sinóptica exaustiva entre o texto da princeps e o de Luís Franco.
29
Lusíadas, Vol. II, col. 647-658.
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 341
da linda Thetys inclyta despida, que é visualizada com mais relevo, sedução e energia
em da branca Thetys única despida.
As amostras dadas baseiam-se, conforme resulta de quanto dissemos, nos
dados de Faria e Sousa. Esses dados compreendem também estâncias novas.
Além das já vistas, uma no Canto III (a seguir à X) e uma alteração grande na
XXIX; no Canto IV, três estrofes de louvor aos bastardos, após a II, que, apesar de
sobrecarregadas de motivos clássicos, não figuram na edição impressa. Muitos
outros exemplos podiam apontar-se, mas o mais intrigante é o discutido episódio
do taful de Sevilha, longo trecho de mau gosto, entretecido precisamente num
dos momentos mais solenes do poema: a descrição da batalha de Aljubarrota. A
questão foi já discutida, com lapidar concisão, por Hernâni Cidade, que observa:
«Que contraste violento entre o texto épico d’Os Lusíadas e o que lhe acrescenta
o novo episódio da batalha»30. Seguidamente, o mesmo Professor discute o outro
suposto acrescento, a história de amores que Leonardo contaria no mesmo
canto. Parece-nos inútil insistir neles, porque a impossibilidade de comprovar a
autenticidade pela comparação com Franco Correia nada nos permite adiantar.
No estado actual da questão, apenas poderemos repetir com Hernâni Cidade:
«Mesmo admitindo que o Poeta o tivesse composto, a tempo oportuno o teria elimi-
nado...»31.
Um outro ponto deve ainda merecer a nossa atenção: dá o manuscrito de Franco
Correa algum contributo para dirimir a famosa questão das duas edições datadas
de 1572? É certo que não podemos utilizar um dos errores significativi mais claros,
tornaram de Ee por começaram de E, porquanto a estância XXIX está omissa no
Cancioneiro, conforme já dissemos. Mas em todos os restantes, incluindo queres
(XXXVIII.5) e responde, de LXIV.1 (onde E lê, respectivamente, queiras e respondeo),
mostram o parentesco de C com Ee, e apontam, por conseguinte, para a anterio-
ridade, hoje geralmente aceite, da edição com o pelicano voltado para a esquerda
sobre a que o tem virado para a direita. Uma excepção: em LIX.6, F lê toldos como
E e contra Ee, que apresenta todos. O facto pode, no entanto, explicar-se, admi-
tindo que a falta do l em Ee não passa de uma simples gralha, que E corrigiu sem
esforço. Outra, ainda menos significativa, é o erro fortíssimo gente, que Ee tem em
XXXI.1, onde E e F lêem a forma feminina do adjectivo. Mais adiante veremos
outras deste género.
30
Edição do IV Centenário de Os Lusíadas, cit., p. IV.
31
Ibidem, p. VI.
342 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
Apesar de todos estes factos, sobre o manuscrito de Luís Franco Correa, lavrou
Hernâni Cidade a sentença que peço vénia para recordar na íntegra 32:
A regra com que termina este juízo de valor tem, a nosso ver, algumas excepções
para a confirmar. Uma é a que surge no verso 1 da estância LXXXI, onde a lição
deste feito, de Franco Correa, evita a repetição da rima no verso 5 (que de jeito). Se é
certo que há mais exemplos do fenómeno no poema, também é exacto, como notou
António Salgado Junior, ao defender esta lição – proposta independentemente
como emenda por Manoel Correa – que nos outros passos a palavra repetida na
rima não tem exactamente a mesma construção e significado, como aqui33.
Em I.XCV.8, dizer como F:
em vez da contracção às velas das duas edições de 1572, é mais conforme com a
prática camoniana (cf. II.XVIII.2, II.LXIV.8, V.XXIII.4)34.
Outro exemplo poderá ser I.XXXV.5, onde Franco Correa escreve:
como mais tarde o fará Manoel Correa. Trata-se de um caso que tem inúmeros e
conhecidos paralelos, não só em Camões como em António Ferreira, que mostram
que a língua oscilava ainda entre o uso ou omissão do artigo após o pronome inde-
finido, e que poderia dar-se como uma simples questão ortográfica (o a era aberto,
32
Ibidem, p. II. Note-se que W. Storck se apoiou na variante de Luís Franco em I.II.3-4 para defender
a emenda A fé e império. Cf. José Maria Rodrigues, Fontes d’Os Lusíadas, p. 184 e nota 1.
33
São estas as suas palavras, no comm. ad locum: ... «diremos tratar-se de repetição da pala-
vra jeito como terminal dos versos 1º e 5º, de ambas as vezes a fazer parte da expressão de jeito, na
mesmíssima função adverbial. Temo-la, pois, por não contida no âmbito normal da versificação do
poema, e cremos em erro tipográfico. Da mesma maneira se pensava já quando da edição preparada
por Manoel Correa».
34
Deve observar-se que José Maria Rodrigues, que em Fontes d’Os Lusíadas (1905), p. 492, nota 1,
escrevia a respeito deste passo «Manifestamente As velas», mais tarde, em artigo do Boletim da Aca-
demia das Ciências de Lisboa XIII, 2, 1919 (Coimbra, 1921), p. 703, esclareceu: «E aas velas com dois aa,
para não haver dúvida nenhuma a respeito da pronúncia, do artigo».
11. A TRANSMISSÃO MANUSCRITA DE OS LUSÍADAS . ALGUNS ASPECTOS 343
quer resultasse de uma contracção, quer não), se não fosse a ocorrência da mesma
construção também no plural, facto exemplificado por José Maria Rodrigues35.
O mesmo Camonista chegou a admitir, no entanto, para este passo, a presença
do artigo como provável, embora mais tarde pareça ter mudado de opinião36 e o
tenha omitido na sua própria edição. Diferentemente entendeu Epifânio, que o
inseriu e anotou: «Todo seguido de substantivo apelativo sem o artigo definido
só pode empregar-se no sentido de ‘todos’; Camões disse pois necessariamente
‘toda a montanha’; a omissão do a é fácil de explicar-se atendendo a que ‘toda a’
se pronuncia ‘toda’.»
Em outros pontos, o manuscrito de Franco Correa supera a princeps, por estar
livre de certas gralhas tipográficas que esta apresenta (quer na edição Ee, quer
na E). O facto é tanto mais digno de nota, quanto é sabido – como já referimos –
que o Cancioneiro quinhentista enferma de numerosos erros de ortografia. São
eles: Viriato em XXVI.3 (e não Variato37); dovidoso em XXVII.1 (por dividoso); ímpeto
em XXXV.4 (por ímpito 38); almadias, em XCII.l (por almádias de Ee e almàdias de
E). Este último exemplo – emendado, como os outros, já nas edições antigas – é
confirmado pela métrica, pois o acento do verso deve recair aqui na sexta sílaba,
e pelo paralelo com II.LXXXVII.2, onde a palavra surge em posição final e em
rima com dias e vias, e ainda pela sua colocação em VIII.LXXXIV.8, e pela grafia
e acentuação de VIII.XCIII.539.
Pode objectar-se que seis ou sete lições preferíveis, entre dezenas de variantes,
é muito pouco para justificar a atenção dada ao manuscrito do amigo de Camões.
Não pensamos assim. Este breve estudo permitiu-nos, pelo menos, tirar algumas
conclusões que parecem úteis a um melhor conhecimento do Poeta e do poema.
A primeira é a de que circulou uma primeira forma de Os Lusíadas, de que F e C
são cópias independentes; se essas cópias também acrescentavam algo de seu (e o
episódio do taful sevilhano em C poderia ser um caso), não temos elementos para o
afirmar. De qualquer modo, a similitude do texto existente na Biblioteca Nacional
de Lisboa e do referido por Faria e Sousa dá a este polígrafo uma credibilidade que
35
Fontes d’Os Lusíadas, pp. 486-487.
36
Ibidem, p. 487, nota 2, e p. 538.
37
A forma correcta Viriato é a que figura nas outras duas ocorrências do antropónimo (VIII.
VI.3 e VIII. XXXVI.4).
38
Ímpito repete-se em IV.LXXII.5, mas a forma correcta reaparece em VI.LXXIV.2.
39
Este é, aliás, um dos casos onde se registam variantes de exemplar para exemplar. Assim, o
que serviu para a edição facsimilada da Imprensa Nacional escreve almadias, ao passo que o utilizado
para o Índice Analítico de A. G. Cunha tem almàdias. Apenas alguns exemplos mais: em II.C.2, a pri-
meira tem rejoando e a segunda resoando; em III.LXXV.1, aquela diz leuisse, e esta leuasse; e, na mesma
estância, no verso 8, lê fangue onde a outra tem sangue.
344 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
não deve mais ser-lhe negada tão sistematicamente como se tem feito em geral40.
Outra conclusão – e esta de não menor importância – é que o confronto dessa
primeira versão com a impressa permite-nos ver, em muitos casos, como o Poeta
trabalhava. Desde a eliminação pura e simples de estrofes de boa feitura (como no
caso da viagem de Baco), em função de uma necessidade estrutural do poema, à
busca da expressão mais rara, mais eufónica, mais merecedora do famoso elogio
da língua que com pouca corrupção crê que é latina, quase não há verso que não
mostre a razão dos dizeres de Diogo do Couto, que mencionámos no começo, e
que não tenha levado a lima do Poeta. Por isso mesmo, não é de admirar que o
manuscrito de Franco Correa não traga lições melhores do que a editio princeps. A
razão do seu interesse reside precisamente no motivo inverso: através dela sur-
preendemos um pouco do acto criador, da poiesis de uma obra-prima.
40
Um caso semelhante que se observa na lírica foi notado por A. J. Costa Pimpão, na sua edição
das Rimas (Coimbra, 1973), p. LIV.
12. UM SONETO A CAMÕES *
Era costume muito difundido no séc. XVI antepor às obras, quer literárias, quer
científicas, poemas laudatórios em latim ou em vulgar. Destas últimas, recordemos
dois exemplos, ambos relativos a autores lusitanos: a edição do Thesaurus Paupe-
rum de Pedro Hispano, feita em Francoforte em 1576, compreende nada menos
de quatro poemas latinos, dos quais três são em dísticos elegíacos e um é uma
ode sáfica – e isso não obstante tratar-se de um livro de medicina1; a princeps dos
Colóquios dos Simples e Drogas, de Garcia de Orta, saída em Goa em 1563, também
tem um epigrama latino e, além disso, uma ode em português – nada menos do
que a Ode VIII, ao Conde do Redondo, Vice-Rei da Índia, por Luís de Camões2. Foi
essa aliás, como é sabido, a primeira obra sua a ver a letra de forma. De resto, para
além de Os Lusíadas, só mais dois poemetos foram impressos em vida do autor, e
esses também, por singular coincidência, de tipo encomiástico: a Elegia VII e o
Soneto 165, ambos a elogiar o livro de Pêro de Magalhães Gândavo, História da
Província de Santa Cruz, de 1576.
Em contrapartida, uma praxe semelhante viria a ser cumprida para com a
sua restante obra lírica, depois de morto o poeta. Assim, quando Manuel de Lyra
imprimiu, em 1595, as Rhythmas de Luís de Camões, fê-las preceder de dois epigramas
latinos ao «Príncipe dos Poetas», por Manuel de Sousa Coutinho, de um soneto em
Português por Francisco Lopes, de outro em italiano por Luís Franco, do célebre
«Quem louvará Camões qu’ele não seja?», de Diogo Bernardes, e ainda de outro
soneto de Diogo Taborda Leitão. Esgotada esta edição, Pedro Crasbeek faz sair a
*
Publicado em Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional
– Casa da Moeda (1988, 22012), 133-138.
1
Publicados e traduzidos na nossa edição de Obras Médicas de Pedro Hispano (Coimbra, 1973),
pp. 380-385.
2
Seguimos a numeração e o texto da edição das Rimas, por A. J. Costa Pimpão (Coimbra, 1973).
Do epigrama latino que referimos, da autoria de Tomás Caiado, pode ver-se a tradução que demos
em Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1972), p. 225.
346 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
segunda, três anos mais tarde, antecedida de todos estes encómios, excepto o
de Luís Franco, e acrescentada em mais quatro: dois em italiano (o de Leonardo
Turricano e o de Torquato Tasso) e dois em português. Destes últimos, um é do
licenciado Gaspar Gomez Pontino. Do outro, apenas se lê na rubrica: «Ao Autor,
por hum seu amigo. Ao qual respondeo com o Soneto 62, que começa 3
3
A evidente gralha do texto, «attento» por «accento», aparece corrigida na p. 16v, e não existia
na primeira edição.
4
Estes factos foram já registados por Vítor Manuel de Aguiar e Silva, no seu Estudo Introdutório
à edição fac-similada da de 1598 (Braga, 1980), pp. VIII-IX.
5
Não cremos que o nome de Sófocles, citado entre os de Virgílio, Píndaro e Ovídio, no Epigrama
primeiro de Manuel de Sousa Coutinho, deva ser tomado por algo mais do que um símbolo da poesia.
12. UM SONETO A CAMÕES 347
6
Rimas de Luís de Camões (reimpr. da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1972), vol. I,
pp. 127-128.
7
Braga, 1979, p. 60. Na mesma obra, pp. 231-232, dão-se as referências bibliográficas, que omiti-
mos por brevidade. Veja-se também a edição dos Sonetos de Camões, por Cleonice Berardinelli (Braga,
1980), p. 665.
348 ESTUDOS SOBRE LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS
possibilidades, o local da récita seria Goa (como ensina o Cancioneiro de Luís Franco
Correa); na segunda, seria Lisboa (a aceitar como critério de localização a alusão a
Alfama, no verso 175, como se tem feito). Storck fundamenta a sua opinião também
no facto de o Soneto elogiar já o poeta épico.
Ora o Cancioneiro de Luís Franco «companheiro em o estado da Índia e muito
amigo de Luís de Camões», como se lê na portada, transcreve, é certo, o Filodemo,
com a indicação de que foi representado na Índia a Francisco Barreto, mas tam-
bém conhece Os Lusíadas, de que copiou todo o primeiro canto, e só não conti-
nuou, declara, porque entretanto a epopeia «saiu à luz». Não há, portanto, razão
suficiente para excluir a candidatura de Filodemo. Mas, por outro lado, a alusão
às Musas Plautinas aponta para os Enfatriões e pode bem confirmar a suposição
de Teófilo Braga, de que a propiciava, e onde, a nosso ver, a alusão a Alfama não
constituiria uma incógnita para o público.
Mas voltemos à versão do Cancioneiro de Cristóvão Borges. Outra parte do seu
interesse reside em apresentar algumas variantes. E, se algumas são simples erros
de copista, provados pelo sentido e pelo metro (no v. 1 lê-se «Quem a este que
na harpa Lusitana»), outros podem proporcionar-nos indicações aproveitáveis.
Assim, quando se lê no v. 8 «da Omerica musa, e Tulliana», parece evidente que
quem o transcreveu teria na frente um modelo semelhante ao da edição de 1595
(«da Homerica Musa italiana»), que não soube interpretar. Mas outro tanto pode
não ter sucedido com o v. 11, onde, em vez do nome do outro grande comedió-
grafo latino – que Camões, aliás, não imitou – surge o de um actor romano muito
conhecido dos leitores de Cícero:
8
Askins, op. cit., p. 20, formula a hipótese da existência de uma antologia de Sonetos de Camões
de onde teriam derivado os textos deste e de outros Cancioneiros. Quanto ao copista do de Cristóvão
Borges, era pouco versado em nomes antigos. Na resposta de Camões, transformou as musas em
«filhas de Gnemosine».
12. UM SONETO A CAMÕES 349
9
Também Askins (op. cit., p. 232) reconhece que o «Soneto de resposta pressupõe (se é simples-
mente uma galantaria) que o autor, quem quer que ele tenha sido, era um poeta exímio e conhecido».
10
Da Investigação da Casa de Camões em Constância (1977), pp. 71-73 e passim.
11
Décadas VII. 10.2. Cf. Storck, Vida e Obra de Luís de Camões (trad. Carolina Michaëlis, Lisboa,
reimp. 1980), especialmente pp. 615, 617-620, 625, 633-634.
12
Os Enfatriões e Filodemo em 1587, juntos com os autos de António Prestes e outros. El-Rei Seleuco
só em 1645, na edição das obras completas por Paulo Craesbeeck (cf. Hernâni Cidade, prefácio ao vol.
III da sua edição de Camões [Lisboa, 1946), p. VII).