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Traços Pós-modernos na Ficção Portuguesa Actual

Isabel Pires de Lima


Universidade do Porto — Portugal
“Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda.(…) «Sendo assim, tanto faz — tudo é idêntico a tudo»”.
(p.140)
Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios
“Viver não é apenas viver, é sobretudo contar repetidamente o que vivemos, forma de multiplicar a vida. Dizer
amo-te é uma coisa. Contar que amo alguém é outra.” (p.207)
Augusto Abelaira, Deste Modo ou Daquele
“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.” (p.310)
José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

Como é sabido, falar de pós-modernidade, isto é, “dizer que estamos num momento posterior à modernidade e
conferir a este facto um significado de algum modo decisivo” — lembra Gianni Vattimo — “pressupõe a
aceitação daquilo que mais especificamente caracteriza o ponto de vista da modernidade, a ideia de história,
com os seus corolários, a noção de progresso e de superação”[1]. Se é um lugar comum notar a imprecisão do
conceito de pós-modernismo, pelo menos em torno destas ideias parece haver consenso: [1]. O pós-
modernismo radica na rejeição das estratégias modernas que privilegiam o conceito de história como
realização progressiva da humanidade, como entidade unitária em torno de um centro ordenador e totalizante
que lhe dá um sentido. [2]. O abandono do conceito moderno de história acarreta a crise da ideia moderna de
progresso que fora geradora de um forte potencial utópico evidenciado e sedimentado pelas grandes narrativas
legitimadoras da cultura ocidental: o Cristianismo, o Iluminismo, o Marxismo… [3]. Do questionamento da
ideia de progresso decorre a perda da ideia de história como superação, como encadeamento de
acontecimentos no sentido da evolução e do desenvolvimento, dirigidos para um fim.
O ocaso da modernidade traz consigo, portanto, uma relativização da história, o seu descentramento de um sujeito
unitário e racional, o sujeito epistemológico ocidental, situado num eixo tido como único lugar possível para
interpretar ou dar sentido à história de forma objectiva. A emergência de uma sociedade da comunicação
generalizada, a par de alterações como a crise do colonialismo e imperialismo europeu, evidenciaram o carácter
ilusório de qualquer ponto de vista supremo, se é que depois de Auschwitz essa ilusão ainda era possível. O sujeito
racional e unitário perde a sua segurança epistemológica, a sua autoconsciência axiológica e questiona-se do ponto
de vista ontológico, torna-se frágil, débil, na expressão de Vattimo, e a par dessa transformação, assiste-se è erosão
do princípio da realidade: a realidade deixa de ser uma só, ou deixa mesmo de ser — como para Derrida —, torna-se
plural, caótica, oscila, abre-se a um mundo de possíveis.
Daqui à relativização ética vai um curto passo. Na falta de relatos legitimadores universais, os valores esvaem-se, as
referências escasseiam. Os media e as redes informáticas confrontam-nos com a fragmentação, a velocidade e um
volume de factos que nos afastam da órbita referencial das coisas. Mergulhados no puro jogo da diferença, estamos
para além do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, da realidade e da ilusão, numa instabilidade que atinge até
categorias antropológicas que pareciam estáveis (macho/fêmea, razão/mito) ou polaridades elementares
(afirmação/negação, sujeito/objecto): vogamos fora da história e do reino limitador da refencialidade, na incerteza
radical, em pleno simulacro — nos termos de Baudrillard.
Os matizes dentro desse grande guarda-chuva chamado pós-modernismo são inúmeros. Não cabe, nem importa aqui
evidenciá-los. Seria além disso difícil se não impossível fazê-lo. Importará apenas alertar para a definição de
algumas linhas de fuga dentro de um certo pós-modernismo que se escusa ao niilismo paralisante, à disseminação
infinita sem qualquer possibildade de consenso, a um círculo de espelhos sem princípio nem fim, à referência sem
um referente. Num desses pontos de fuga situa-se por exemplo o apelo de Vattimo à intensificação do diálogo e da
interpretação na sociedade transparente(?), porque complexa, dos meios de comunicação; a sua força emancipadora
residiria na experiência de liberdade num mundo de múltiplos “dialectos”, que ao propiciar a experiência da
oscilação abriria a “chance de um novo modo de sermos (talvez finalmente) humanos”[2]. Noutro ponto de fuga
poder-se-ía colocar Lyotard, o qual, reclamando a pluralidade das pequenas narrativas que traçam a trama do tecido
quotidiano no sentido de desconstruir a história e assinalar a multiplicidade e a diferença, admite um conceito ético
de justiça por contraste, por dissensus, em oposição ao consenso sempre totalitário, e reclama uma cultura pós-
moderna da diversidade[3]. Fiquemos por aqui, não sem notar que as estratégias de fuga a que aludimos valorizam o
exercício da palavra particular (do dialecto) ao serviço da construção de narrativas particulares (do quotidiano).
Não é de estranhar, pois, que por um lado, a ficção contemporânea tenha sido atravessada por inúmeros veios
inerentes à condição e ao pensamento pós-modernos e que por outro, se tenha tornado objecto de análises que
determinam a existência de uma ficção classificada de pós-moderna por contraposição à ficção moderna. O
importante trabalho de Brian McHale, Postmodernist Fiction (1987), estabelece a existência de uma dominante
ficcional pós-moderna, na linha de outros como David Lodge (1977), Douwe Fokkema (1984) ou, depois, Diane
Elam (1992)[4]. Esta última adopta mesmo o neologismo romance pós-moderno e atenta nas implicações da
intersecção dos dois conceitos, defendendo que “1) romance should be considered as a postmodern genre; 2)
postmodernism is romance.”[5]
Como vemos, pensa-se a condição pós-moderna — agora no campo da ficção — por oposição a uma dominante
modernista de tipo epistemológico, que integra critérios axiológicos definidos na perseguição de uma verdade e do
estabelecimento de um sentido, a qual põe questões do tipo: “O que há para conhecer? Será que posso e até que
ponto posso conhecer? Como e até onde o conhecimento é transmissível? etc.” A dominante pós-modernista,
defende McHale, é, pelo contrário, de tipo ontológico. Aqui as questões postas são doutro género: “Que mundo é
este? O que é um mundo? Que espécie de mundos existem? Como se constituem? Em que diferem? Como se
projecta e estrutura um mundo? Etc.” Esta nova dominante assenta, portanto, no descomprometimento axiológico do
sentido, gerador de mundos possíveis e de instabilidades, quer de valores, quer de estratégias narrativas[6].
O código modernista, na formulação de Fokkema, tinha preferência por construções hipotéticas, assentes em
convenções como o carácter não definitivo e incompleto do texto, a dúvida epistemológica, o cepticismo
metalinguístico, o respeito pela individualidade do leitor, algumas das quais não deixarão de ser apropriadas, se bem
que substancialmente matizadas ou extremadas, pelo código pós-modernista[7]. Este, por seu turno, vai basear-se
“numa preferência pela não-selecção ou por uma quase-não-selecção, numa rejeição de hierarquias discriminadoras
e numa recusa da distinção entre verdade e ficção, entre passado e presente, entre relevante e irrelevante”[8]. Em
consequência, este novo código dá origem a uma relação entre o autor e o seu texto menos tensa; o autor mostra-se
indiferente ao estatuto do seu texto, privilegiando o arbitrário e o desconexo; afirma-se a paródia da explicação do
mundo, numa lógica cheia de contradições internas; atribui-se mais realce ao leitor e dá-se mais ênfase ao código,
isto é, valoriza-se a componente auto-reflexiva da ficção.
Em sentido idêntico caminha Diane Elam, ao fazer decorrer a sua proposta de intersecção entre pós-modernismo e
romance, do facto de ambos conviverem com o excesso, isto é, de ambos serem incapazes de respeitarem fronteiras
estéticas ou históricas, o que tem como consequência a irrupção do anacronismo. Anacronismos temporais, estéticos
e outros que conduzem à falência da narrativa sequencial ou de qualquer outra hipoteticamente capaz de narrar o
fracasso desta última. Portanto, para a autora,
Postmodernism is not a new (…) narrative but rather the coexistence of multiple and mutually exclusive narrative
possibilities without a point of abstraction from which we might survey them. Postmodern romance offers no
perspectival view; it is an ironic coexistence of temporalities.[9]
Ll
Pensar a narrativa portuguesa actual à luz de uma dominante pós-moderna implica ponderar na especificidade do
contexto político, social e cultural português — o de um país que, coertado por uma ditadura longa e anacrónica, não
experienciou nem em liberdade, nem em plenitude, o projecto moderno de emancipação. Tal facto teve por
consequência uma atitude de forte responsabilização da parte de intelectuais e escritores de luta pela consumação,
antes e depois do 25 de Abril, do referido projecto. Porém, o não cumprimento da racionalidade moderna durante a
ditadura não significa que ela se mantenha hoje inocentemente exequível, sem ir a par da denúncia e da crítica da
irracionalidade global a que o próprio projecto moderno conduziu.[10]
Que tipo de efeito esta situação particular cria ao nível da produção ficcional portuguesa dos últimos 20 anos? A
meu ver daí decorre uma certa duplicidade que domina boa parte da nossa ficção: por um lado, a perseguição de uma
racionalidade totalizante moderna que explique o passado e que nalguns casos mantém uma vertente projectiva e por
outro, a abertura a soluções narrativas e a práticas estéticas pós-modernas. Um romance que vive da tensão entre
história e ficção, estabelecendo a ponte entre realidade e literatura, através de formas de mediação muito diferentes
das do realismo oitocentista.[11]
Reterei a minha atenção em três romances: A Costa dos Murmúrios (1988), de Lídia Jorge[12], Deste Modo ou
Daquele (1990), de Augusto Abelaira[13] e Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago[14].
Várias aproximações pós-modernas a estes textos e destes textos entre si são possíveis. Desde logo os títulos
instauram um clima de oscilação ou de indiferenciação pós-modernas: Saramago propõe-nos um romance que se
quer ensaio; Abelaira constrói o seu título sobre uma disjuntiva, que abre para um mundo de possíveis; Lídia Jorge
na palavra murmúrios não deixa de remeter para uma certa indeterminação.
Os três romances põem em questão o lugar estável do narrador, quer através da sua multiplicação, quer através da
sua problematização e complexificação, criadoras de instabilidades ontológicas.
Em A Costa dos Múmúrios, estamos aparentemente diante de uma narrador de 3ª pessoa, que conta uma história,
referente a um episódio da guerra colonial portuguesa em Moçambique, designada Os Gafanhotos, a qual constitui a
1ª parte do romance, mas este narrador heterodiegético revela-se afinal um “autor” intradiegético, um efeito do
texto: o autor de Os Gafanhotos é afinal um jornalista que na 2ª parte do romance confronta a sua versão dos factos
com a versão da protagonista Eva Lopo, num diálogo em que só nos é dado ouvir a voz dela ou quando muito o eco
das perguntas dele (“Se teve consequências? Teve…” p.88). Assistimos, portanto, a uma tematização do autor e da
leitora de Os Gafanhotos, num processo de con-fusão ontológica entre narradores e personagens, autores e leitores
de tipo metaficcional que abalam a distinção entre realidade e ficção — tudo é texto, nada está sedimentado numa
realidade pré-existente, a realidade e a ficção são construções verbais.
No romance de Abelaira, temos várias vozes doadoras da narrativa, mas é Jorge Fonseca, por sinal autodenominado
“o Narrador”, que funciona como centro autoconsciente da ficção. Ele é escitor e personagem, o que desde logo
contribui para a constituição de ambiguidade no universo ficcional: ele narra numa posição de autoridade discursiva
que lhe permite manipular a história contada, mas também é narrado e co-autor dos sentidos gerados pelo texto.
Propõe-se narrar a vida “real” de António Bastos, autor de um Diário que vai sendo transcrito (outro narrador) ou
condensado e comentado ao longo do romance. Diogo Anselmo, um historiador amigo de Jorge Fonseca, será a
terceira voz narrativa, pondo em causa a fiabilidade da versão narrativa do amigo, sem que se possa concluir qual a
verdadeira versão (a do Diário, a de Jorge Fonseca, a de Diogo Anselmo?), o que impedirá o sossego do leitor e
instala uma estratégia de desconstrução metaficcional.
Saramago, por seu turno, concebe um narrador desenganado relativamente à sua omnisciência, que todavia não
prescinde dela, e cuja omnipresença e poder manipulador pretende conciliar com uma multiplicidade dialógica de
pontos de vista das personagens, donde resulta uma voz narrativa não confiante, insegura no conhecimento e
domínio das informações, a qual debilita a autoridade e a objectividade dos conceitos. Atente-se no seguinte
interferência do narrador: “A partir deste ponto, salvo alguns soltos comentários que não puderam ser evitados, o
relato do velho da venda preta deixará de ser seguido à letra, sendo substituído por uma reorganização do discurso
oral, orientada no sentido da valorização da informação pelo uso de um correcto e adequado vocabulário. É motivo
desta alteração, não prevista antes, a expressão sob controlo, nada vernácula, empregada pelo narrador, a qual por
pouco o ia desqualificando como relator complementar, importante, sem dúvida, pois sem ele não teríamos maneira
de saber o que se passou no mundo exterior, como relator complementar, dizíamos, destes extraordinários
acontecimentos, quando se sabe que a descrição de quaisquer factos só tem a ganhar com o rigor e a propriedade dos
termos usados.”(p.122-3) Daqui nasce um discurso da suspensão, relativizado e incerto, que se projecta na própria
construção da narrativa e que provoca incerteza axiológica e ontológica: a propósito de um certo episódio o narrador
comenta:
Não havendo testemunhas, (…), é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que estas coisas
sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são como os da criação do
universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu. (Ensaio... p.253)
Por aqui se insinua também a aguda consciência pós-moderna de que a linguagem é construtora da realidade.
Relativamente a cada um destes romances procurarei evidenciar um ou vários traços que se conjugam com uma
sensibilidade e com estratégias narrativas pós-modernas, mas poderíamos ler quase todos esses traços em todos eles

Como disse, a construção em duplo d’A Costa dos Murmúrios faz com que a obra se institua como romance de uma
aventura de fundo histórico, apresentada na referida primeira parte, e como narrativa dessa aventura, na segunda.
“Os Gafanhotos” apresenta-se como ilusão da realidade, como texto, graficamente delimitado pelo título e pela
palavra FIM. A segunda parte contrapõe-se a esta como “realidade”. Na articulação das duas partes insinua-se uma
indeterminação ontológica — o autor de “Os Gafanhotos”, confundível com o autor empírico, na primeira parte,
torna-se simplesmente ser de papel, ficção, na segunda; Evita dá um passo inverso, torna-se Eva Lopo que,
invocando permanentemente a categoria da “realidade” como caução da sua narrativa, não se cansa de repetir:
“Evita era eu”. E uma tal indeterminação ontológica, se por um lado institui uma reflexão metanarrativa do
problemático estatuto do romance enquanto universo de ficção na sua relação com a realidade, por outro,
confrontando-nos com a tematização da leitura problematiza a tradicional oposição ficção/realidade — Eva Lopo
lendo-se enquanto Evita é tão “real” como nós, ou nós tão fictícios quanto ela.
Ao fazer a narração oral da sua própria vida, apresentando os factos de que, na “realidade”, foi testemunha, Eva
Lopo fá-lo com a auto-consciência ficcional de um romancista. Para construir a sua leitura, a sua versão de
“realidade”, ela seleccionará de entre os factos vividos, em função de uma teoria que designa por “simultaneidades”
(p.168) e não por contiguidade espacial ou temporal, porque “tudo tem uma semelhança com tudo” (p.201). Esta
maior importância dada às correspondências do que às circunstâncias permite a Eva Lopo, como a qualquer
ficcionista, propor dois finais alternativos para a sua narrativa.
O romance de Lídia Jorge questiona metaficcionalmente as possibilidades do romance representar a realidade e
reconstituir o passado, mas não recusa a sua ligação ao mundo, através da constituição daquilo a que Ricoeur chama
referencialidade de 2º grau, que liga o texto autónomo à realidade extra-textual, através de complexas formas de
mediação entre linguagem e mundo.
A Costa dos Murmúrios não deixa, portanto, de ser também um romance sobre a guerra colonial, procedendo a uma
revisão da história do passado colonial português. O romance subverte a versão oficial da história da epopeia
imperial, embora não exactamente através de uma contra-facção paródica, no sentido que lhe dá Elisabeth
Wesseling[15], muito típica do romance pós-moderno, pese embora ela surja sobretudo para descrever a dimensão
anti-heróica do soldado português. O meio escolhido para aquele efeito é o da inversão dos pontos de vista que
tradicionalmente veiculam o registo do nosso passado. O romance dá os pontos de vista ex-cêntricos, o ponto de
vista feminino de Evita, que não legitima a perspectiva oficial e colonial dos factos, evidenciada, por exemplo, no
comentário ao massacre da degola dos negros em que Luís Alex, o seu noivo, participara:
(…) quem determina a hierarquia da lâmina onde fenece a mesquinhez e se inicia a grandiosidade? De novo não
havia nenhuma fronteira, ou ela era imperceptível e irrelevante e ninguém podia indicar se era grandiosidade ou
mesquinhez o impulso das pessoas que degolavam as cabeças das outras e as espetavam em paus, e as agitavam em
cima das habitações dos próprios degolados. Sempre assim fora. O Condestável tê-lo-ia feito, o Fundador muito pior
(…) (A Costa... p.138).
A infidelidade do ponto de vista de Evita, simbolicamente insinuada no romance como sugere Maria Irene
Santos[16], pelo seu percurso conjugal “literalmente infiel”, permite contrapor o direito à afirmação dos povos
colonizados e das culturas locais africanas.
Mas para chegar aqui, Evita teve que ultrapassar a primeira fase da desistência da interpretação, da quase-não-
selecção pós-moderna, do “tudo é igual a tudo” (p.147) que a paralisara num relativismo ético e a levara a dizer:
“Que há momentos em que não me importa a verdade. Digo então que tudo são folhas e tudo é breve e volante como
as folhas.” (pp.143-4)
Se há romance intensamente auto-reflexivo, “narcísico”, metaficcional, no sentido que estes termos têm para Linda
Hutcheon ou Patricia Waugh[17], esse romance é Deste Modo ou Daquele. É um romance que chama para si o papel
de Narciso e, de forma autoconsciente, contempla-se no espelho feito de palavras para se ver na construção em
construção. (Des)Escreve-se (des)crevendo, realizando o paradoxo de ser produto e produção. Nesta viagem
narcísica de autocentramento reflexivo, o romance desvela a caixa de segredos do processo de invenção e, ao
autodescrever-se como artifício de linguagem, apresenta-se como modelo adequado a uma nova apendizagem sobre
a própria realidade.
Se no primeiro momento do processo de criação a linguagem parece reproduzir a realidade, rapidamente o Narrador
se apercebe que a linguagem, para além da função de representação, produz simulacros, produz realidade. No texto
ficcional, o reflexo do real rapidamente se converte no real desse reflexo, no momento em que a diferenciação de
fronteiras ontológicas entre o mundo actual e o mundo projectado, entre a ficção e a realidade se diluem: “Por vezes
o Narrador tem a sensação de que fala verdade, viveu aquilo que descreve” (pp.163-4). De tal modo que as situações
ficcionais que constrói e em que se projecta, o levam, na vida real, a sentir por vezes um certo pudor: “Coro
envergonhado de o pensar que podem ter percebido (confundo assim, mais uma vez, ficção com realidade)” (p.164).
Conduzindo o leitor por um percurso autoconsciente, a narrativa narcísica revela-lhe que, embora o mundo possa
parecer ser o horizonte imediato da ficção, o discurso ficcional produz os seus objectos, as suas entidades. Pode criar
uma forma de conhecimento do mundo mas cria também a própria realidade que parece descrever. O efeito de
linguagem, que é um constructo textual, transforma-se na causa da linguagem, no ser absoluto, conduzindo à
anarquização das fronteiras ontológicas: as entidades ficcionais saltam para o mundo real (casualmente, Jorge
Fonseca cruza-se com a Ágata do Diário, num café) e o Narrador-leitor sente-se permanentemente um voyeur que
espia a intimidade do par amoroso (António Luís e Ágata), protagonistas da sua ficção.
O efeito de real é desnudado ao ser denunciado como tentativa de criação da ilusão referencial. Por exemplo, a
atenção exaustiva ao pormenor, nomeadamente a descrição minuciosa dos movimentos e pensamentos de Hipólito, o
gato, feita em paralelo com as conversas entre o biólogo e o historiador, e a utilização das notas de rodapé como
processo de autenticação, é uma estratégia do Narrador autoconsciente, utilizada no sentido de desvelar a condição
linguística do texto, o carácter de criação construída da ficção, mostrando-a como produção e simulação, jogo, arte.
Um dos traços mais inequivocamente pós-modernos do romance de Abelaira, de resto anunciado pelo título, é a
subversão do mundo construído a partir de uma lógica disjuntiva — deste modo ou daquele — e a contraposição de
um universo ficcional constituído por mundos mutuamente inclusivos, de lógica aditiva — deste modo e daquele e
daquele e daquele… “«Todos os possíveis coexistindo.»” — escreve António Luís, num certo momento do Diário,
pensando em Leibniz — “«Se fosse romancista, escreveria mil, dez mil romances (tantos quantos os imagináveis),
todos eles glosando a mesma intriga, cada um desenvolvendo uma das inúmeras virtualidades dessa intriga. O
conjunto de todas elas definiria o universo total da intriga (esgotava-a). Poderia até servir-me dum romance famoso,
extraindo dele as potencialidades que o autor desprezou ou desconheceu. Quantas combinações, quantos romances
esconde a Chartreuse? Stendhal diminuiu a história, reduzindo-a a uma única dimensão.»” (p.60)
Ao explorar a pluralidade de mundos joga-se com a existência paralela de modos de ser, caracterizados por estatutos
ontológicos instáveis e ambíguos. Além disso, o constante jogo de glosas, o método de permanente refutação, as
informações parentéticas, o uso da ironia por parte do Narrador, instituem o império da dúvida e da interrogação,
não permitindo ao leitor distinguir a factualidade da não factualidade. É a esta prática que se está a referir Jorge
Fonseca quando “sente outra vez a tentação do abismo, a tentação estética de explorar as múltiplas possibilidades da
história, a beleza da mentira”. (p.179) Estamos no mundo dos possíveis, não havendo melhor escolha, melhor
intriga, melhor mundo, o que nos leva a pôr em causa o sentido consensual da realidade, contribuindo para a
questionação do real e do real histórico.
Aliás, o romance incorpora a par do argumento autoreflexivo, o argumento historiográfico e o Narrador, orientado
pelos princípios teóricos formulados no romance, concebe uma teoria da história como possibilidade, uma
possibilidade textualizada — porque a História é sempre uma narrativa, uma textualização do passado —, uma
possibilidade que pensamos ter acontecido, quando o mais importante é o que, podendo ter acontecido, não
aconteceu. A páginas tantas do Diário, António Luís escreve: “«O estudo minucioso de todas, absolutamente todas
as possibilidades, só ele poderá constituir a verdadeira, a completa história de Portugal — a história que não
deveremos apenas reduzir aos factos acontecidos.»” (p.61). Na tentativa de explorarem todas as possibilidades
históricas, Jorge Fonseca e Diogo Anselmo vão ficcionalizando um Portugal deste modo ou daquele: com ou sem
Descobrimentos, com ou sem Salazar, com ou sem 25 de Abril e questionam a vida política portuguesa do presente.
Desmistificam o discurso historiográfico oficial, evocando e subvertendo matrizes narrativas da História de
Portugal, questionam a natureza e o estatuto da nossa informação sobre o passado, avaliando ironicamente o
discurso da História canónica. Por isso o Diário afirma: “as possibilidades históricas são tão lógicas como as
geometrias não-euclidianas e, num mínimo, devem existir, como os seres matemáticos, no platónico mundo das
ideias — ainda que se possa hesitar acerca da natureza dessa existência.” (p.61)
Apesar do autocentramento narcísico da narrativa, verifica-se que ela não põe de lado o real, isto é, os discursos
sobre o real. E corporiza-se assim um paradoxo a que Linda Hutcheon chamou metaficção historiográfica[18], ou
seja, uma narrativa de ficção que, conscientemente, reflecte sobre o seu estatuto ficcional, pondo em evidência a
figura do narrador e o acto da escrita, que interrompe violentamente as convenções do género, que expõe a própria
ficcionalidade da história que constrói, mas sem cair na mera absorção técnica e negando simultâneamente a
possibilidade duma distinção clara entre História e ficção, na medida em que aquela só é passível de ser conhecida
através da narrativa.
Em Ensaio sobre a Cegueira, é dado ao leitor conhecer um mundo possível[19], alternativo ao mundo actual, que o
leva a abandonar as leis deste último e a sua enciclopédia e a adoptar temporariamente outra perspectiva ontológica,
ou melhor, a mergulhar numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno.
Este é o primeiro romance de Saramago que não fornece ao leitor qualquer informação sobre o espaço e o tempo em
que decorre a acção. Estamos em plena atopia, em total acronia, dados que contribuem para a constituição da
alegoria que edifica o romance, como para a sua constituição contribui o facto das personagens não terem nome
próprio: elas são apenas o médico, a mulher do médico, a rapariga dos óculos escuros, o primeiro cego, o rapazinho
estrábico, o velho da venda preta…
Um homem subitamente cega ao volante do seu automóvel, no meio do trânsito. A sua cegueira em breve se revela
contagiosa, o que conduz à criação por parte das diligentes autoridades de uma quarentena para os atingidos pelo
mal branco (p.194). Este espaço concentracionário é um mundo possível de segundo grau, que aos poucos se revela
um microcosmos em muito semelhante ao mundo que os cegos conheciam e que o leitor conhece. “O mundo está
todo aqui dentro”(p.102), proclama, não por acaso, a mulher do médico, isto é, a única reclusa não cega (ela apenas
simulara a cegueira para poder acompanhar o marido). É como se um mundo possível de segundo grau, encaixasse
num outro de primeiro grau, como num jogo de caixas chinesas. B. McHale afirma de resto que a narrativa pós-
moderna “tend to encourage trompe-l’oeil, deliberately misleading the reader into regarding an embedded,
secondary world as the primary, diegetic world.”[20]
A indeterminação ontológica acentua-se neste mundo encaixado, a qual é verbalmente formulada pela mulher do
médico ao constatar chocada: “tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos,
nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes”
(p.64)[21]. Este desnorte ontológico é causa e consequência de um outro traço próprio da condição pós-moderna, a
perda de referências, a desagregação de valores hierarquizados, como por exemplo vida/morte.
A descrição da quarentena prolonga-se; os cegos vão descendo um a um os degraus da degradação e da abjecção e
ao mesmo tempo vai-se progressivamente desvendado o carácter alegórico da cegueira e desta caixa chinesa. Os
próprios cegos descortinam a dimensão parabólica da sua cegueira ao relatarem uns aos outros como cada um
perdeu a visão, numa estratégia narrativa metaficcional, também ela pós-moderna. O velho da venda preta, já então
cego de um olho, sentira a órbita vazia inflamada, tirou a venda para se certificar e cegou do olho são — “Parece
uma parábola, disse uma voz desconhecida, o olho que se recusa a reconhecer a sua própria ausência” (p.129). Outra
personagem conta a sua história: tendo ouvido falar da epidemia, fechou os olhos para experimentar-se; quando os
abriu estava cego. “Parece outra parábola, falou a voz desconhecida, se queres ser cego, sê-lo-ás.” (p.129)
Assim aparece metaficcionalmente revelado o carácter alegórico do romance. Tem-se assistido a um ressurgimento
da alegoria no romance pós-moderno, o que é compreensível se atentarmos no carácter dual da alegoria, visível na
sua própria etimologia, do grego allhgoria, formado de alloz, outro e de agoreuw, eu falo; isto é, na alegoria quando
falo duma coisa, falo doutra ou, dito de outro modo, a alegoria é um sistema de relação entre dois mundos. É,
portanto, fácil aproximá-la e pô-la ao serviço da dominante ontológica da poética pós-moderna. “The fictional world
of an allegorical narrative is a tropological world, a world within a trope.” — nota McHale — “Its ontological
structure is dual, two-level, one level (or frame) that of the trope” — no caso, a quarentena dos cegos — “the other
that of the literal”[22]— no caso, o mundo do exterior em que uma cegueira virótica fez deles cegos. A alegoria
adequa-se ao jogo de caixas chinesas ao gosto da narrativa pós-moderna.
A voz desconhecida que fez das palavras dos cegos duas parábolas: “o olho que se recusa a reconhecer a sua própria
ausência” e “se queres ser cego, sê-lo-ás”, não será a mesma que, no final dessa cena, sempre sem se identificar —
trata-se apenas de um cego — declara: “já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo
nos fará continuar cegos” (p.131)?[23] Outra polaridade se desfaz — cego/não cego — neste clima de oscilação
ontológica que a alegoria alimenta e torna saliente. Esta cegueira não será a alegoria da nossa condição pós-moderna
num mundo que, não se reconhecendo cego, se quer cego e é cego, num mundo de cegos onde a esperança morreu?
A mulher do médico dirá da caixa chinesa onde está encarcerada: “a cegueira também é isto, viver num mundo onde
se tenha acabado a esperança.” (p.204) Este é um mundo vazio de sentido, um mundo auto-rasurado, branco. A
cegueira é várias vezes designada por mal branco, por maré branca, porque as suas vítimas vêem tudo branco e não
encontram um sentido: “não há estrelas no céu branco” (p.106) — lembra o narrador a propósito de um dos cegos
perdido na sua desorientação.
Quando na sequência de um fogo, os cegos são libertados da quarentena, o mundo com que se confrontam é de fim
dos tempos: toda a população da cidade igualada na cegueira, isto é, a humanidade, por extensão metonímica, e
sentem-se regressados à horda primitiva (p.245), incapazes de encontrar uma qualquer forma de organização social.
É um mundo que em tudo prolonga e confirma o mundo sem sentido da quarentena.
O mundo que os cegos vão vendo através dos olhos da mulher do médico e sofrendo na experiência da fome, da
sede, do frio, do odor nauseabundo, da perda da dignidade, da abjecção é o de um quadro apocalíptico assustador,
que leva a mulher do médico a sentir-se “a que nasceu para ver o horror”(p.262). Consciente da debilidade oscilante
do novo/velho universo em que se move, ela sintetiza do seguinte modo a sua condição, ao fim e ao cabo alegoria da
nossa condição pós-moderna:
não me perguntem o que é o bem e o que é o mal, sabíamo-lo de cada vez que tivemos de agir no tempo em que a
cegueira era uma excepção, o certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a nossa relação com os
outros. (Ensaio... p.262).
Trata-se de sujeitos descentrados, entregues a uma relativização ética, mergulhados numa realidade caótica, que os
situa fora de um qualquer sentido da história, na incerteza radical.
Porém, há alguém que nunca deixou de ver. Neste mundo de trevas brancas, a mulher do médico transporta a luz,
por isso ela será a voz da lucidez, manifestada desde logo no fingimento da sua cegueira. Ela é a lucidez (atente-se
na raíz etimológica da palavra), aquela que proclamará: “meu Deus, a luz existe e eu tenho olhos para a ver, louvada
seja a luz” (p.223) e também aquela que reconhece o caos em que os cegos estão mergulhados e o recusa[24].
Através da lucidez do seus olhos, os cegos vão conscencializando a oposição a esta condição histórica rasurada de
um sentido, de um futuro.
Perante a cidade cega, ela abertamente reclama a urgência de um sentido para a vida, o qual só poderá ser
obviamente o da luz, que permitirá aos cegos reaverem a sua dimensão humana. O caminho, entende ela, é encontrar
um princípio organizativo para agir: a vida é organização, a morte desorganização, como acontece no corpo (p.281)
— “organizar-se já é, — cito — de uma certa maneira, começar a ter olhos” (p.282).
Ela é uma voz profética no sentido em que anuncia uma nova/velha ordem em que a vida, a lucidez, a visão são
valores humanos estáveis. Face à experiência do apocalipse, ela imagina-se num tribunal, numa espécie de juízo
final, mas ”recusa-se a ser julgada e a aceitar aquilo que entende ser uma ameaça escatológica do fim dos tempos,
embora reconheça que urge agir porque parece que “O tempo está a acabar, a podridão alastra, as doenças
encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornou-se um veneno” (p.283). A cegueira, — alegoria,
como vimos da condição pós-moderna — ela entende-a como mais uma escatologia a rejeitar[25]. É assim que,
perante o imaginado tribunal ela apela ao poder da acção humana, gritando: “Abramos os olhos, (…) É uma grande
verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver” (p.283).
O anjo da história de Saramago é uma mulher cega, que vê, ao contrário do anjo da história de Benjamin[26], cujos
olhos estão escancarados para o passado, que vê com lucidez, mas que é cego para o futuro que recusa, pois as
ruínas do passado fascinam-no mais que qualquer luz do futuro. Ela é um anjo lúcido que ilumina as ruínas e os
mortos do passado e do presente, que vê o futuro. É uma mulher, que ao enterrar um cadáver nas ruínas do presente,
lança um grito messiânico assustador: “Ressurgirá”. Não aquele corpo, explica ela, mas a ordem: “Que ordem,
perguntou a si mesma, e a si mesma deu a resposta, A ordem que quer os mortos no seu lugar de mortos e os vivos
no seu lugar de vivos” (p.288). A essa nova/velha ordem ela conduz, pela sua lucidez resistente, os cegos, os quais,
no final do romance, recuperam um a um a visão, recuperam a vida e a humanidade. É uma inversão do anjo de
Benjanmin.
Poderá ela então ser entendida como o anjo do progresso? Um anjo moderno portador de luz? É seguramente um
anjo que acredita no futuro e na sua capacidade para desvendar a história e dar-lhe um sentido; um anjo que diz, nas
últimas linhas do romance: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo,
não vêem”, o que, se por um lado enfatiza a indeterminação ontológica da nossa condição pós-moderna —
habitantes nós também de uma das caixas chinesas —, simultaneamente reafirma o húmus originário, o grau zero da
construção de um sentido (para o) futuro: “Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros,
como se estivesse a ver-lhes a alma” (p.262).
Ensaio sobre a Cegueira confirma-se então como romance metapós-moderno, isto é, um romance que pensa a
condição pós-moderna recorrendo a estratégias pós-modernas, mas que lê e rejeita o discurso pós-moderno como a
alegoria da nossa cegueira.
O que aqui trouxe são traços, apenas traços pós-modernos, leituras pós-modernas do romance português actual. Eu
não falei em romance pós-moderno português…

Notas
• 1 VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade — Niilismo e Hermenêutica na cultura pós-moderna, Lisboa:
Editorial Presença, 1987, p.9.
• 2 VATTIMO, Gianni. A Sociedade Transparente, Lisboa: Edições 70, 1991, p.19.
• 3 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.
• 4 Cf. LODGE, David. The Modes of Modern Writing: Metaphor, Metonym, and the Typology of Modern
Literature, Ithaca, New York: Cornell University Press, 1977.
FOKKEMA, Douwe. Literary History, Modernism and Postmodernism, Amsterdam and Philadelphia: John
Benjamins, 1984 (tradução portuguesa: História Literária — Modernismo e Pós-modernismo, Lisboa: Vega, s.d.).
ELAM, Diane. Romancing the Postmodern, London: Routledge, 1992.
• 5 Idem, p.12.
• 6 Procurando rebater as objecções ao eventual carácter contraditório da aproximação entre ontologia e pós-
modernismo, que decorreria do facto de ser essência do próprio discurso pós-moderno a negação da possibilidade de
qualquer fundamentação ontológica, Brian McHale contrapõe: “an ontology is a descritpion of a universe, not of the
universe; that is, it may describe any universe, potentially a plurality of universes. In other words, to “do” ontology
in this perspective is not necessarily to seek some grounding for our universe; it might just as appropriately involve
describing other universes, including “possible” or even “impossible” universes — not least of all the other universe,
or heterocosm, of fiction.” (McHALE, Brian — Postmodernist Fiction, London and New York: Routledge, 1987,
p.27).
• 7 Fokkema coloca a questão nos seguintes termos, ao falar na “preferência modernista por construções
hipotéticas, especificando as principais convenções sintácticas e composicionais, a saber: a) a apresentação do texto
como não definitivo e incompleto; b) a dúvida epistemológica a respeito da possibilidade de representar e explicar a
realidade; c) o cepticismo metalinguístico quanto à possibilidade de exprimir adequadamente qualquer
conhecimento que se julgue ter alcançado sobre o mundo e, por fim, d) o respeito pela individualidade do leitor, ou a
ideia de que a leitura é um assunto privado em que nem mesmo o escritor se deve intrometer.” (História Literária —
Modernismo e Pós-modernismo, idem, p.35).
• 8 Idem, p.66.
• 9 ELAM, Diane. Idem, p.13.
• 10 Por isso, um sociólogo como Boaventura Sousa Santos entende que os modelos de desenvolvimento a
considerar numa sociedade semi-periférica, como para ele é a portuguesa actual, devem subordinar-se a uma dupla
exigência: “(1) na formulação dos objectivos de desenvolvimento deve proceder como se o projecto da modernidade
não estivesse ainda cumprido ou não tivesse sequer sido posto em causa; (2) na concretização desses objectivos deve
partir do princípio (…) de que o projecto da modernidade está historicamente cumprido e que não há a esperar dele
o que só um novo paradigma pode tornar possível.” (SANTOS, Boaventura Sousa. Pela Mão de Alice — O social e
o político na pós-modernidade, Porto: Edições Afrontamento, 1994, p.84).
• 11 Isso explicaria a hesitação que Douwe Fokkema revela, em 1991, em classificar Memorial do Convento
de José Saramago como um romance pós-moderno. “How to decide whether «Memorial do Convento» by José
Saramago is or is not a postmodernist novel?”- este o título de um artigo seu sobre o assunto (Cf. Dedalus, nº1,
Dezembro de 1991, pp.293-302). O autor acaba por propor uma reformulação do título inicial: não se trataria tanto
de decidir se aquele romance é ou não pós-moderno, mas de defender a possibilidade e a vantagem de fazer dele
uma leitura pós-modernista, acabando finalmente por preferir apresentar a questão em termos ainda mais mitigados,
ao dizer: “How can we defend our preference for a postmodernist reading of «Memorial do Convento»?” (Idem,
p.296). De resto, num artigo do mesmo ano, Maria Alzira Seixo acentua por seu turno o carácter ambíguamente pós-
moderno dos romances de Saramago, na medida em que neles existe sempre “un sens bien déterminé où situations et
personnages convergent vers un centre d’explication fictionnelle: la raison du peuple ou celle des artistes, la sanction
du futur” (“Modernités Insaisissables — Remarques sue la fiction portugaise contemporaine”, Dedalus, nº1,
Dezembro de 1991, pp.303-313). Ora este centro de explicação ficcional parece-me apontar para uma totalidade
coerente que penso não poder escapar a uma legitimação ideológica moderna.
• 12 JORGE, Lídia. A Costa dos Murmúrios, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
• 13 ABELAIRA, Augusto. Deste Modo ou Daquele, Lisboa: O Jornal, 1990.
• 14 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
• 15 WESSELING, Elisabeth. Writing History as a Prophet — Postmodernist Innovations of the Historical
Novel, Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1991, em especial o capítulo VII,
intitulado “Alternative Histories”.
• 16 SANTOS, Maria Irene. “Bondoso Caos: A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge”, Colóquio-Letras,
Dezembro-Janeiro-Fevereiro. 1989, p.64.
• 17 Cf. HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative — The Metafictional Paradox, London and New York:
Routledge, 1984.
Waugh, Patricia. Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction, London and New York:
Routledge, 1993.
• 18 HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction, New York and London:
Routledge, 1991.
• 19 A respeito da recuperação do quadro conceptual dos mundos possíveis aplicado à teoria literária da
ficcionalidade, designadamente à explicação do estatuto lógico-semântico da ficção, consultar o exaustivo trabalho
de RONEN, Ruth. Possible Worlds in Literary Theory (Cambridge University Press, 1994).
• 20 McHALE, Brian, Idem, p.115
• 21 A propósito daquilo a que chama “chinese-box worlds” B. McHale diz: “Each change of narrative level in
a recursive structure also involves a change of world. These embedded or nested worlds may be more or less
continuous with the world of the primary diegesis”. (Idem, p.113)
• 22 McHALE, Brian. Idem, p.141.
• 23 “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em
que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um
cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.” (p.131)
• 24 Ela diz: “Chegou a altura de decidirmos o que devemos fazer, estou convencida de que a gente está cega,
pelo menos comportavam-se como tal as pessoas que vi até agora, não há água, não há electricidade, não há
abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve ser isto” (p.244).
• 25 Pese embora a leitura que Antoine Compagnon faz da pós-modernidade como sendo “moins la fin de
l’histoire que la fin des eschatologies”. (COMPAGNON, Antoine. “D’une fin de siècle à l’autre”, Dedalus —
Revista Portuguesa de Literatura Comparada, nº1, Dezembro de 1991, p.369.
• 26 Como é sabido, uma das poucas ideias consensuais dentro do pensamento pós-moderno reside na
oposição às ideias modernas de progresso e de história. Tal facto explica o fascínio exercido sobre este pensamento
pela metáfora encontrada por Walter Benjamin, na IXª das suas célebres Teses sobre a Filosofia da História (1940),
para o progresso histórico como uma sequência de presentes destruídos. Ouçamo-lo:
“Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se
afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas
desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o
passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que
não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os
vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de
voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante
dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso.” (BENJAMIN,
Walter. “Teses sobre a Filosofia da História”, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d’Água
Editores, 1992, p.162).
O progresso histórico não é para Benjamin uma edificação constante, mas antes pelo contrário uma incessante
destruição, decorrente da subordinação do presente a um projecto de plenitude futura. Paradoxalmente, diz ele, o
pensamento racionalista moderno é o anjo da destruição ao definir como imperativo categórico da sua ideologia do
progresso a necessidade de concluir o projecto. Os milhões de mortos da história recente, alerta ele, são só um sinal
de um desvio.

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