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Desembrulhar o Natal, por José Tolentino Mendonça

A Revista Expresso | Edição 2302 | 10/12/2016

Será que algum dia nos aproximaremos da dádiva genuína e desinteressada, da pura dádiva? E como é que isso se faz?

No frenesim de consumo que atropela dezembro, nesse labirinto de excesso, euforia e solidão em que a vida, como uma imposição, se torna, cada um de nós
aprende, mesmo sem dizê-lo, alguma coisa sobre a dádiva. Ora, talvez o que nos custe mais neste insano tráfico pré-natalício seja, precisamente, a constatação
dolorosa e inconfessada de que não sabemos ou não conseguimos dar. Ainda que as mãos se atulhem de embrulhos, sabemo-las no fundo vazias, atadas às
suas posições invisíveis, incapazes de dar não o inútil, mas o que seria preciso, indisponíveis para a tarefa da reparação da vida, equivocadas em relação à
verdadeira carência ou ao diagnóstico que fazem da escassez e da lacuna. Há uma dor submersa, uma ferida que brota do confronto com esta nossa
vulnerabilidade, sobretudo quando desistimos de fazer um caminho com ela. O dom é efetivamente mais complexo do que parece, e mais comprometedor do
que, porventura, queremos. A começar pelo incómodo da pergunta que, perante as suas contradições, a nossa realidade no subsolo suscita: será que algum dia
nos aproximaremos da dádiva genuína e desinteressada, da pura dádiva? E como é que isso se faz?

O filósofo Jacques Derrida, por exemplo, sobre a dádiva diz que ela, tal como a idealizamos, é impossível. Descrevemo-la normalmente como manifestação de
gratuitidade, oferta de si aos outros por afeto e generosidade, sem pedir nada em troca, mas não conseguimos chegar lá. E por uma razão: só há dádiva quando
aquele que dá e aquele que recebe não percebem que houve dádiva. Nós tendemos a condescender numa espécie de circularidade virtuosa. Derrida põe-nos a
desconfiar disso, pois as expectativas egocêntricas de um retorno sob qualquer forma, material ou simbólica, infiltram-se por toda a parte. A mercantilização da
dádiva, num “toma lá-dá cá” mais ou menos implícito, acaba por ser assim mais determinante e transversal do que parece. A dádiva, porém, quando realmente
existe, não chega a ser reconhecida por nenhuma das partes como tal. Ela não é expressão de reciprocidade: quem dá não a pode reconhecer como algo dado,
quem recebe não a pode reconhecer enquanto dádiva, e a própria oferta não pode surgir como se o fosse. Talvez essa condição imaculada, esse estado
puríssimo de desapego e amor seja, de facto, inatingido a maior parte das vezes, mas não podemos negar-lhe grandiosidade e beleza. E a verdade é que essa
grandeza é-nos vitalmente necessária. Temos de ter diante dos olhos verdades grandes, verdades sem prazo, horizontes de sentido maiores para não nos
perdermos depois na sucessão das coisas pequenas que é a nossa missão, no humilde enredo despido de qualquer espetacularidade que é o amor, nas relações
biográficas sem história que quotidianamente nos sustentam.

A exigência imensa da dádiva não deve paralisar-nos, mas seria insensato ensaiar simplesmente uma fuga para a frente, tornando-nos distribuidores de
contrafação, enchendo as mãos dos outros e as nossas próprias de coisas apenas, artefactos ruidosos de vazio, por mais ficcionados e encantatórios que
possam ser. As coisas são fracos substitutos para a nossa fome de encontro e de amor. É essencial que os nossos presentes se avizinhem daquilo que uma
dádiva é, daquilo que ela pode ser em termos humanos como expressão gráfica do amor, do cuidado, gentileza, alegria partilhada, atenção. Persistirão, por
certo, zonas de ambiguidade, mas podemos dar-lhes combate. As palavras sugeridas por Francisco de Assis há tantos séculos podem desenhar-nos um trilho:
“Que eu procure mais consolar que ser consolado/ Compreender que ser compreendido/ Amar que ser amado”.
Somos analfabetos do silêncio, por José Tolentino Mendonça
A Revista Expresso | Edição 2224| 13/06/2015

Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz

Ao que parece, durante anos, o compositor John Cage sondou a possibilidade de elaborar uma obra completamente silenciosa, mas impedia-o duas coisas: a
dúvida se uma tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no
espaço mental da cultura do Ocidente. Contudo, encorajado pelas experiências que se realizavam já nas artes visuais, construiu a sua peça intitulada 4’33’’.

A proposta de Cage era completamente insólita: os músicos deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por
quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantassem, agradecessem à plateia e saíssem. Na assistência instalou-se a polémica e choveram
as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: «A minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa
um só dia que não me sirva dela para a minha vida e para tudo o que faço. Recordo-a sempre que tenho de escrever uma nova peça».

Quando penso no contributo que a experiência poética ou religiosa possa dar num futuro próximo à humanidade, penso francamente que mais até do que a
palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Na palavra fazemos a experiência da diferenciação, experiência certamente fundante, mas
também ela parcial e insuficiente. Precisamos do auxílio de outra ciência, a que recorremos pouco: o silêncio. Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII,
ensinava: “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”. Creio que é absolutamente urgente revisitarmos com
outro apreço os territórios dos nossos silêncios e fazermos deles lugares de troca, de diálogos, de encontros. O silêncio é um instrumento de construção, é uma
lente, uma alavanca.

As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação
dos indivíduos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio. Somos analfabetos do silêncio e
esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz.

O silêncio é um traço de união mais frequente do que se imagina, e mais fecundo do que se julga. O silêncio tem tudo para se tornar um saber partilhado sobre
o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos
reinventarmos. Mas para isso precisamos de uma iniciação ao silêncio, que é o mesmo que dizer uma iniciação à arte de escutar.

Na sociedade da comunicação há um défice de escuta. Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só pode configurar-se como uma re-
significação do silêncio, um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos. A arte da escuta é,
por isso, um exercício de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa do discurso, à enxurrada que a
telenovelização do quotidiano (seja ele político, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui uma cesura, um corte simbólico, uma deslocação.

Pense-se em como o silêncio dá a ver o património de uma amizade. E a pergunta é: como percebemos que dois desconhecidos são amigos? Pela forma como
conversam? Certamente. Pelo modo como se riem? Claro que sim. Mas ainda mais porque nitidamente acolhem o silêncio um do outro. Entre conhecidos o
silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa, de ocupar o espaço em branco da comunicação. Com os amigos o silêncio
nada tem de embaraçoso. O silêncio é um vínculo que une.

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